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Natureza humana
versão impressa ISSN 1517-2430
Nat. hum. v.1 n.2 São Paulo dez. 1999
ARTIGOS
Sobre a confiabilidade: decorrências para a prática clínica
About reliability: consequences for the clinical practice
Elsa Oliveira Dias
Psicanalista, Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP
RESUMO O artigo busca examinar o sentido do termo "confia- bilidade" no interior da teoria winnicottiana do amadurecimento pessoal e com relação à tarefa terapêutica. Em Winnicott, mais do que uma qualidade desejável em qualquer relação humana, a confiabilidade é a característica central do ambiente facilitador, materno e terapêutico, e está intimamente ligada à dependência. O ponto específico no qual o estudo se detém é a função essencial da confiabilidade durante o período inicial da vida, em que estão sendo constituídas as bases da personalidade, com o bebê em estado de dependência absoluta da mãe. Nesse momento, a confiabilidade ambiental está diretamente implicada na constituição da identidade e dos sentidos de realidade, do si-mesmo e do mundo, tendo implicações clínicas importantes, sobretudo no que se refere ao tratamento de pacientes que usam a situação analítica para regredir à dependência.
Palavras-chave: Confiabilidade, Dependência, Regressão, Si-mesmo, Sentido de realidade.
ABSTRACT
The purpose of this essay is to examine the meaning of the term "reliability" within the winnicottian maturacional process theory and its relevance to therapeutic task. According to Winnicott, reliability is more than just a desirable quality in human relations: it is the central characteristic of the facilitating - maternal and therapeutic - environment. The specific point to be examined is the essential function of reliability during the earlier stages, when the bases of the personality are being built and the baby is in a state of absolute dependence on the mother. At this moment, the environmental reliability is directly implicated in the constitution of the self as identity and the world's sense of reality. This point has significant clinical implications specially in the treatment of patients who need to regress to the dependence.
Keywords: Reliability, Dependence, Regression, Self, Sense of reality.
1. Introdução
Confiabilidade é uma dessas palavras que falam por si. Na compreensão comum, dizemos de uma pessoa que ela é confiável quando sabemos que é possível contar com ela; quando acreditamos que fará o que prometeu ou que não fará mau uso do que lhe dissemos num momento de intimidade; ou de que, capaz de reconhecer que alguém se encontra indefeso, não abusa nem se aproveita de um estado de fragilidade, distração ou incapacidade do outro. Na teoria winnicottiana, o significado geral da palavra confiabilidade vai na mesma direção. É preciso, contudo, examinar o sentido específico do termo no interior do processo de amadurecimento e com relação à tarefa terapêutica.
Em Winnicott, mais do que uma qualidade desejável em qualquer relação humana, a confiabilidade é a característica central do ambiente facilitador, materno e terapêutico, e está intimamente ligada à dependência, cujo protótipo é, por excelência, o estado de dependência absoluta do bebê com relação à mãe, nos estágios iniciais da vida. O ponto que quero examinar, neste estudo, é a função essencial da confiabilidade durante esse período inicial. Nesse momento, a confiabilidade ambiental está diretamente implicada na constituição da identidade e dos sentidos de realidade, do si-mesmo e do mundo. É só através da experiência repetida da confiabilidade ambiental que começam a ser constituídos os fundamentos do sentido de ser, de ser real e de poder habitar num mundo real. Toda essa questão tem implicações clínicas importantes, sobretudo no que se refere ao tratamento de pacientes que usam a situação analítica para regredir à dependência, em busca de experiências primitivas de ser.
Sabemos, pela teoria do amadurecimento pessoal do indivíduo, que o estabelecimento mais consistente do si-mesmo, como um eu integrado, só se dá no estágio em que, se pudesse falar, o bebê diria "EU SOU". Mas muitas conquistas se fazem necessárias até o bebê chegar aí. Em cada uma destas etapas, a confiabilidade do ambiente é fundamental e ganha diferentes relevos.1 Vou limitar-me aqui ao início do processo, ao estágio da primeira mamada teórica, em que estão sendo constituídas as bases desse processo e, a propósito desse ponto, apresentarei uma ilustração clínica.
2. A clínica winnicottiana e a teoria do amadurecimento
A clínica winnicottiana está baseada numa teoria dos distúrbios psíquicos que tem, como fundamento, a teoria do processo de amadurecimento pessoal do indivíduo. Descrevendo as tarefas e conquistas que caracterizam os vários estágios do amadurecimento saudável, sobretudo em suas etapas iniciais, essa teoria norteia o estudioso ou analista na compreensão da natureza do distúrbio com que se depara e na finalidade eminentemente clínica de fornecer os cuidados concernentes às necessidades específicas, e sempre variáveis, do paciente, no decorrer do processo terapêutico. É explícita a conexão essencial que Winnicott traça entre a teoria dos distúrbios psíquicos e a teoria do amadurecimento:
Precisamos chegar a uma teoria do amadurecimento normal para podermos ser capazes de compreender as doenças e as várias imaturidades, uma vez que não nos damos por satisfeitos a menos que possamos preveni-las e curá-las. (Winnicott 1965n [1962], p. 65)2
Segundo essa teoria, todo ser humano é dotado de uma tendência inata ao amadurecimento e à integração numa unidade. Mas, embora inata, a tendência não vai de si, como se bastasse a mera passagem do tempo. Trata-se de uma tendência e não de uma determinação. Para que a tendência venha a realizar-se, o bebê depende fundamentalmente da presença de um ambiente facilitador que forneça cuidados suficientemente bons. Isso é tanto mais verdadeiro quanto mais precoce o estágio que consideramos.
Uma das principais contribuições de Winnicott ao estudo da natureza humana e de suas formas de adoecer é sua minuciosa descrição dos estágios iniciais do amadurecimento nos quais estão sendo constituídas as bases da personalidade e da saúde psíquica. As tarefas e conquistas do bebê, nesse momento, não são de natureza instintual, mas referem-se à possibilidade de tornar-se real e existir. Se o ambiente falha na sua função de facilitador no campo dessas conquistas fundamentais, há risco de psicose, uma vez que, não sendo ainda um eu, o bebê não tem como defender-se da falha ambiental sem ser aniquilado. A falha ambiental ocorrida mais tarde, já não impede a estruturação do indivíduo e acarreta outro tipo de distúrbio.3 Desse modo, a natureza do distúrbio que aflige o indivíduo está relacionada com o estágio em que este teve origem, e, portanto, com o ponto de imaturidade ou maturidade relativa em que o indivíduo se encontrava, e a natureza da tarefa com a qual estava envolvido, por ocasião do fracasso ambiental.
Os bebês que, no início, não recebem cuidados suficientemente bons, "não conseguem se realizar nem mesmo como bebês. Os gens não são suficientes" (Winnicott 1968d, p. 84). Isso significa que o processo de alcançar a vida pode falhar. Estar vivo e tornar-se real pode jamais vir a acontecer. Há bebês que, embora fisicamente saudáveis, morrem porque não encontram, desde o começo, uma base para ser, para continuarem vivos, sendo. Há outros que não necessariamente morrem: eles "são persuadidos a alimentar-se e a viver, ainda que a base para esse viver seja débil ou mesmo ausente" (Winnicott 1988 [1954-70], p. 127). Nesses casos, o indivíduo cresce e, apesar de biologicamente vivo e até saudável, não alcança viver ou sentir-se vivo; permanece imaturo num sentido básico, fundamental. Essa é a questão dos psicóticos e é por isso que Winnicott afirma que suas dificuldades e problemas "não fazem parte da vida mas sim da luta para alcançar a vida." A paciente com que vou ilustrar este artigo, e cujas dificuldades apresentam claramente aspectos esquizofrênicos, disse-me: "Ando por aí sem saber de mim. Jamais tenho certeza da direção que tomo. Sempre me espanto quando ouço as pessoas dizerem, com toda a segurança, `estou indo a tal lugar'. Nunca me senti real, sinto que fui indo, empurrada, pela vida, mas vejo agora que nada, jamais, fez qualquer sentido".4
Uma das questões de maior relevância para a clínica winni- cottiana consiste em que, numa análise com qualquer tipo de paciente, à medida em que o trabalho prossegue e a confiabilidade se estabelece, a possibilidade de uma psicose, ou elementos psicóticos, aparecer nunca pode ser excluída, em princípio. Para aqueles analistas que dizem não ter nenhum interesse em casos de psicose, Winnicott oferece a sua experiência como resposta:
Deve partir-se da base de que minha experiência é a de um psicanalista que, quer lhe agrade ou não, vê-se envolvido no tratamento de pacientes fronteiriços e daqueles que talvez imprevistamente tornam-se esquizóides durante o tratamento. (Winnicott 1968c [1967], p. 151)
Segundo Winnicott, a teoria concebida originalmente para a compreensão das neuroses é insuficiente para dar conta da compreensão e do tratamento das patologias psicóticas ou dos episódios de natureza psicótica que surgem no tratamento analítico. Ele é incisivo ao afirmar que "a técnica psicanalítica clássica é inaplicável no tratamento da esquizofrenia" (Winnicott 1964h, p. 372). Numa neurose pura, se é que tal formação pode ainda ser suposta, a estrutura da personalidade está intacta e o indivíduo adoece ao lidar com as dificuldades inerentes à instintualidade no quadro das relações interpessoais. Na psicose, no entanto, o amadurecimento foi paralizado num certo momento dos estágios iniciais, em função de falhas ambientais traumáticas. A despeito de esses indivíduos se apresentarem, e de serem, muitas vezes, pessoas capazes de lidar com as exigências da vida, suas experiências iniciais foram tão deficientes ou distorcidas que o analista terá que ser a primeira pessoa na vida do paciente a fornecer certas coisas que são simples e essenciais, e que só podem ser oferecidas pelo que Winnicott chama ambiente suficientemente bom. Essas pessoas precisam que lhes seja fornecida a oportunidade de viverem experiências primitivas, com o ambiente desta vez atendendo, com sucesso ao invés de fracassar, às necessidades específicas do momento. No caso das patologias psicóticas, se se quer chegar ao problema efetivo do paciente, a regressão à dependência é necessária. Essa afirmação está baseada numa necessidade do paciente e não da teoria, ou do que seria uma "técnica" winnicottiana.
O que dá suporte à afirmação da necessidade do paciente de regredir à dependência é o fato de ele achar-se compelido a chegar à "loucura original", que nele habita sem ter sido experienciada. A loucura original foi o fragmento de segundo em que, quando bebê, ele perdeu momentaneamente o "ser" em função de uma reação à falha ambiental. Sofreu uma agonia impensável e, imediatamente após, houve uma organização de defesas. A defesa operou uma cisão, isolando o "núcleo" espontâneo do si-mesmo para que ele nunca mais voltasse a ser ferido. Ao invés de prosseguir integrando os vários aspectos do ser, em contato com as experiências da vida, o si-mesmo verdadeiro torna-se inacessível, enquanto a outra parte - a falsa identidade, com a qual o indivíduo apresenta-se ao mundo - fica aprisionada na tarefa de manter a defesa armada e impedir a repetição da experiência traumática.
Na clínica, o que aparece como doença é esse sistema defensivo, organizado contra o colapso já ocorrido. Tudo o que o indivíduo faz ou "escolhe" é orientado, sem que ele o saiba, na direção de evitar qualquer contato com a área de perigo letal. Tornado invulnerável o núcleo verdadeiro do si-mesmo, fica isolada a possibilidade de traumatismo, mas, ao mesmo tempo, a pessoa também perde o contato com suas necessidades mais básicas e passa a prescindir daquilo de que todo ser humano precisa, uma relação baseada na confiabilidade e uma comunicação pessoal e verdadeira. Qualquer proximidade, contudo, traz consigo a ameaça de invasão e aniquilação do si-mesmo e, desse modo, ele fica incólume a qualquer ajuda. A vida toda torna-se um esquema defensivo, nada é real, nenhum encontro tem consistência, não há mais nenhuma espontaneidade e não há, portanto, lugar para acontecimentos que possam ser vividos como experiências pessoais, restando apenas o sentimento de que tudo é fútil ou falso, inclusive o si-mesmo. A vida é vivida como uma permanente cilada do imprevisível da qual é preciso, sem cessar, se precaver. Atrás de todas as defesas, há uma permanente ameaça de confusão, de um colapso da falsa integração.
3. A necessidade do ambiente confiável no estágio de dependência absoluta
É a extrema imaturidade do bebê que torna graves as falhas ambientais que estão na base das patologias psicóticas. De fato, no mais primitivo dos estágios iniciais, o da primeira mamada teórica, o bebê é uma mera continuidade de ser e sua única expectativa é continuar a ser. Ele está não-integrado, não tem nenhum sentido de tempo ou de espaço e, portanto, nenhum sentido de realidade, nem do si-mesmo, nem do mundo. Ele só pode viver nesse estado em função de sua dependência absoluta da mãe e sem nenhuma consciência, seja de sua própria situação, seja das condições que lhe permitem viver nesse estado.
Embora a palavra dependência aponte imediatamente para a existência do outro, o outro não é, nesse momento inicial, nenhum objeto, no sentido clássico do termo, uma vez que o bebê não está suficientemente amadurecido para ter ou perceber objetos. A mãe não é um objeto externo, nem interno, porque o sentido da externalidade, assim como o de mundo interno, ainda não foi constituído. Do ponto de vista do bebê, diz Winnicott, "não há, nesse estágio tão primitivo, nenhum fator externo; a mãe é parte da criança" (Winnicott 1965n [1962], p. 59). E, no entanto, o bebê é imediatamente afetado pelo tipo de cuidados que recebe. Ou seja, os cuidados maternos participam intrinsecamente da constituição paulatina do si-mesmo do bebê.
Pela própria tendência inata ao amadurecimento e à integração, a necessidade do bebê é chegar a existir e alcançar o sentimento de ser real e habitar num mundo real. Para dar início a essas conquistas, ele se vê envolvido com três tarefas: 1) a sua temporalização e espacialização, que deve dar-se inicialmente num tempo e num espaço subjetivos; 2) o alojamento da psique no corpo; 3) o início da relação objetal que culminará, mais tarde, com a criação e o reconhecimento da existência de objetos externos. À medida em que essas tarefas estão sendo realizadas, uma outra conquista está acontecendo: a constituição do si-mesmo enquanto identidade. Todas essas tarefas são interdependentes, uma não pode ocorrer sem a outra, mas é possível dizer que a primeira e a mais básica é a da temporalização e espacialização do bebê: não há sentido de realidade - nem corpo, nem mundo, nem si-mesmo - fora de um espaço e de um tempo; não há indivíduo, se não houver uma memória de si, aquilo que mantém a identidade em meio às transformações; não há encontro de objetos se não houver um mundo onde os objetos possam ser encontrados e se não houver um si-mesmo que possa encontrá-los.
A essas tarefas do bebê correspondem cuidados maternos específicos: à integração no espaço e no tempo corresponde o segurar (holding); o alojamento da psique no corpo é facilitado pelo manejo (handling), que é um aspecto especializado do segurar relativo aos cuidados físicos; à relação objetal pertence, por parte da mãe, a apresentação de objetos (object-presenting). Ao mesmo tempo em que a mãe facilita, de forma especializada, cada uma das tarefas do bebê, o conjunto dos cuidados maternos constitui o ambiente total. Melhor dizendo, o modo de ser desses cuidados totais configura um mundo para o bebê.5 A característica central do primeiro mundo onde o bebê habita é a de ser confiável. A confiabilidade materna não reside em nenhum fazer específico mas no "como", no "modo como" ela faz e providencia as coisas que são necessárias ao bebê. Mais do que qualquer fazer, são os modos de ser da mãe que estão em questão.
O principal traço da confiabilidade reside no fato de a mãe cuidar para que o bebê tenha preservada a sua continuidade de ser e, para tanto, ela o introduz e mantém na área de ilusão de onipotência. Isso significa que lhe é permitido habitar, durante o tempo necessário, num mundo subjetivo no qual ele exerce um controle mágico, onipotente, ou seja, as coisas acontecem no momento exato da necessidade do bebê e correspondem ao seu gesto espontâneo: o seio aparece quando a fome ou a precisão de encontrar algo aponta e desaparece quando a tensão cessa. Nesse mundo, nenhuma amostra da realidade externa se intromete porque a mãe evita qualquer irrupção imprevisível, e incompreensível para ele, de um tipo de realidade (externa para o observador) que o bebê não possa abarcar na sua experiência. Se ela insiste, por exemplo, em excitá-lo quando ele já se retirou para descanso; se, ao invés de corresponder ao gesto do bebê, ela impõe a ele seu próprio gesto, a existência de algo fora de seu âmbito de onipotência aparece antes que o lactente esteja preparado para tal realidade. Isto se constitui em intrusão.
No mundo subjetivo, tudo o que chega ao bebê, o seio, um manejo, um ruído, deve ter, para ele, o caráter de objeto subjetivo. Esses objetos são de tal natureza que não aparecem como destacados do si-mesmo do bebê e, portanto, não o surpreendem, não causam sobressaltos, chegam no momento exato e são do tamanho exato da sua capacidade para assimilá-los como parte dele. Sua forma de presença é tal que não denuncia a sua existência externa e, desse modo, não o obriga a reagir e não interrompe a sua continuidade de ser. O bebê não tem maturidade suficiente para suspeitar da existência de algo fora de seu controle.6
Saliento, aqui, a distinção que Winnicott faz entre mundo e objetos. Uma coisa é o mundo onde o bebê habita; outra, são os objetos que podem ser encontrados no interior desse mundo.7 A essa distinção correspondem as duas formas do cuidado materno: a mãe-objeto e a mãe-ambiente.8 A mãe-objeto é aquela que é alvo do amor excitado do bebê. O cuidado materno aqui reside no modo como os objetos são apresentados ao bebê e a confiabilidade consiste em a mãe apresentar o seio de tal maneira que permita ao bebê ter a experiência de criar o objeto que, na verdade, já estava lá para ser encontrado. Ao criar o seio, o bebê faz uma pequena experiência de integração momentânea que é sentida como real. O encontro "realiza" a necessidade não apenas no sentido da satisfação, mas no de tornar real a própria necessidade, o impulso, o gesto espontâneo e o algo que encontra, porque "para o si-mesmo imaturo de um bebê muito pequeno, o que ele sente como real é essa expressão de si-mesmo" (Winnicott 1993h [1956], p. 20). Essa integração momentânea, durante os estados excitados, será descrita por Winnicott, em seus escritos mais tardios, como as primeiras experiências de identidade: o bebê éo seio que encontra. Depois da experiência de integração, o bebê como que se desmancha e volta ao estado relaxado da não-integração.
Mas, além de ser o objeto a ser encontrado, a mãe é o contexto, o mundo onde um encontro pode acontecer. O mundo do bebê é feito da totalidade dos cuidados maternos, incluídos, aí, os cuidados específicos relativos às três tarefas. A palavra-chave, aqui, é confiabilidade e esta significa, neste primeiro momento, previsibilidade. A mãe-ambiente cuida para que o mundo do bebê, e ela mesma, se mantenham consistentes, regulares, monótonos, em uma palavra, previsíveis. Ela cuida para que não haja alterações na atmosfera do ambiente e para que o manejo não seja brusco nem apressado; é ela, também, que preserva imperturbado o isolamento do bebê quando este se retira para descansar. Ela permanece lá, sustentando a situação no tempo, aguardando que ele retome uma busca qualquer. Quando o bebê desperta e faz um gesto de comunicação, lá está ela apresentando um fragmento de mundo ou um manejo que confirmam, para ele, que o mundo continua presente e vivo. É a repetição monótona e regular dessa experiência que vai criando no bebê a capacidade de confiar. Ele começa a ter um "conhecimento" do ambiente, que não é mental, mas baseado na familiaridade. Sendo-lhe assegurada a cada vez a existência de algo que espera, o bebê torna-se gradualmente capaz de reconhecer coisas e predizer acontecimentos.
A manutenção do mundo do bebê é essencial. Primeiro, porque tanto a experiência excitada do encontro com o objeto quanto o retorno à não-integração só são possíveis sobre o fundo de um mundo subjetivo, que pode ser repetidamente reencontrado pois está assegurado pela confiabilidade materna. O bebê só pode retirar-se para descansar porque começa a confiar, pela repetição da experiência, que o mundo continua vivo e permanece lá assim que ele precisar. Além disso, para que o gesto espontâneo seja sentido como real, é preciso que parta, que brote, de um estado de repouso. O retorno à não-integração é a condição necessária para que, o que quer que se dê nos estados excitados, seja sentido como real e favoreça a integração num si-mesmo sentido como real. Se o que se estabelece é uma impossibilidade de descanso, o gesto já estará alienado na base.
Vejamos um detalhe da confiabilidade ambiental. Winnicott diz que, no momento inicial, o bebê está elaborando a capacidade de manter as pessoas vivas em sua realidade psíquica, no mundo subjetivo. Dada a sua extrema imaturidade, ele ainda não tem, por exemplo, o sentido do que é "presença". Não da presença deste ou daquele objeto, mas da presença enquanto tal. O bebê não sabe da existência permanente da mãe - e do mundo e das coisas que o rodeiam - mas sente os seus efeitos e, vagarosamente criando uma memória dessa experiência, conta com isso, estabelecendo uma crença na permanência do mundo e dos objetos. Tudo isso só pode se dar na área de ilusão de onipotência e, para que a crença na realidade e na consistência da presença se instaure, é indispensável que ela seja anterior à consciência da existência externa de objetos e do mundo. A crença na realidade é condição de possibilidade para a posterior constatação intelectual da existência da realidade externa. Mas essa constatação jamais substitui a crença básica.
No entanto, há ambientes que deixam o bebê entregue a seus próprios recursos e, nesses casos, ele não pode construir a necessária crença na consistência da presença e no fato de o mundo ser encontrável. A criança pode manter viva por algum tempo a imagem da presença, mas se a ausência da mãe exceder o que a criança está capaz de sustentar, então essa imagem se esvanece e começa a morrer. A sensação é de aniquilamento, de loucura. O apagamento da memória da presença é um dos traumas específicos que aparece na etiologia das patologias psicóticas. Trata-se de uma agonia impensável. O que impede essa agonia - no caso, a de perder todo o sentido de real, - é o fato de a mãe assegurar a permanência do mundo e tecer permanentemente a presença, apresentando continuamente o mundo ao bebê, em pequenas porções, no momento do gesto espontâneo.
Winnicott relata o caso de uma paciente que só podia manter viva a imagem do analista se fosse atendida três vezes por semana. Duas vezes ainda era aceitável, mas uma vez por semana não era suficiente. A imagem esmaecia. "É tão grande a sua dor de ver todos os sentimentos e todo o significado se esvaindo que ela me diz que não vale a pena, que é melhor morrer" (Winnicott 1968b, p. 115). Do mesmo modo, a paciente sobre a qual falarei, se perguntava se valia a pena todo aquele esforço da análise. Dizia que, assim que saía da sala, tudo se desmanchava. Não ficava nada. Era imediatamente arrastada para fora de si. Não conseguia mais lembrar-se de mim, não conseguia refazer o rosto, a figura. Tudo parecia-lhe longínqüo, irreal, como se não existisse.
4. A confiabilidade ambiental e a constituição do si-mesmo
A questão que agora se põe é o modo como a confiabilidade ambiental auxilia na constituição da realidade do si-mesmo, ou seja, passa a pertencer ao indivíduo como uma característica do si-mesmo. Esse ponto é claramente elucidado por Winnicott num texto sobre a comunicação pré-verbal entre mãe e bebê. Ele diz:
A capacidade que a mãe tem de ir ao encontro das necessidades, em constante processo de mutação e amadurecimento, deste bebê permite que sua trajetória de vida seja relativamente contínua; permite-lhe, também, vivenciar situações de não-integração ou relaxadas, a partir da confiança [confidence] que deposita na realidade do fato de o segurarem bem, juntamente com fases reiteradas da integração [nos momentos de excitação e encontro do objeto] que faz parte da tendência inata ao crescimento. O bebê passa, então, com muita facilidade da integração ao conforto descontraído da não-integração e o acúmulo dessas experiências torna-se um padrão e forma a base para as expectativas do bebê. Ele passa a acreditar (believe) na confiabilidade [reliability] dos processos internos que levam à integração em uma unidade. (Winnicott 1968d, p. 86).
Para a questão em pauta, o ponto principal é o seguinte: o bebê passa a acreditar na confiabilidade dos processos internos que levam à integração em uma unidade. Através da confiabilidade ambiental, fazendo inúmeras vezes o percurso que vai da não-integração à integração, e vice-versa, o bebê passa a confiar na vigência da sua própria tendência à integração. Ele acredita que a integração voltará a seu tempo e não precisa preocupar-se com isso. A natureza faz seu próprio trabalho. Note-se: o bebê depende inteiramente da confiabilidade da mãe, mas não sabe da existência do ambiente e muito menos do sucesso dos cuidados adaptativos, a mãe mantendo a confiabilidade ambiental. Para um bebê bem cuidado, não é a mãe que funciona bem, que é confiável, senão que é o vigor de sua tendência à integração que fica acima de qualquer suspeita.9
Winnicott continua:
À medida que o amadurecimento prossegue e o bebê adquire um interior e um exterior, a confiabilidade do meio ambiente passa então a ser uma crença, uma introjeção baseada na experiência de confiabilidade (humana, e não mecanicamente perfeita). (ibidem)
O senso do real - do si-mesmo e do mundo - está diretamente ligado à confiabilidade e ao estabelecimento de uma crença em...; ou seja, uma crença que não é nisto ou naquilo, mas em que algo é encontrável, permanece, tem vida própria, não precisa ser produzido. Winnicott mostra como a crença em... é uma base inaparente que, no entanto, dá sustentação às possibilidades humanas e está presente no mais corriqueiro cotidiano. O real encontrado através dessa crença é uma espécie de fundamento que, no entanto, não tem fundamento concreto em si mesmo. É um real que se apóia numa ilusão.
Essa crença básica só pode chegar a pertencer naturalmente ao indivíduo quando atos silenciosos de confiabilidade humana estabelecem uma comunicação muito antes que a fala signifique algo. A mãe mostra ao bebê que é confiável, não com palavras, mas, através dos cuidados, por saber, a cada momento, o que ele necessita. O bebê, diz Winnicott, "não ouve ou registra a comunicação mas apenas os efeitos da confiabilidade." A confiabilidade materna é um traço inaparente e essencial que se faz sentir em todos os cuidados e os reúne em um mundo para o bebê, sem jamais falar de si mesma: é silenciosa. E, para Winnicott, ou bem a comunicação é silenciosa e a confiabilidade está garantida, ou bem é traumática, produzindo a experiência de uma angústia impensável ou primitiva (Winnicott 1970b [1969], p. 201).
A confiabilidade se assenta na comunicação silenciosa, em primeiro lugar, porque os cuidados maternos não são propriamente deliberados mas provêm "de um nível mais fundo, e não necessariamente daquela parte da mente onde há palavras para tudo" (Winnicott 1968f [1968], p. 53). Em cada caso, diz Winnicott, a questão consiste em alguém encontrar alguém a nível profundo, e para isto não há palavras. Além disso, se a mãe tem a necessidade de demonstrar e garantir o reconhecimento do bebê quanto à sua própria confiabilidade, esta falhará exatamente aí: ela estará apelando para uma compreensão para a qual o bebê não tem nenhuma maturidade e não terá confiança suficiente no processo de amadurecimento em curso do bebê.10 Não temos nada a dizer ao nosso paciente para que ele compreenda a nós e às nossas razões. Temos apenas que possibilitar a ele viver a experiência.
Se o ambiente falha em prover o bebê de confiança na realidade de si-mesmo e do mundo, o indivíduo não alcança a capacidade de acreditar em..., de confiar. O resultado é uma desconfiança básica, uma inconsistência que torna tudo irreal. O indivíduo não pode entregar-se aos acontecimentos da vida e fica todo o tempo tomando conta do am- biente, à espreita de alguma invasão ou tomando conta do frágil si- mesmo, sempre passível de ser perdido, aniquilado.
5. Ilustração clínica
É exatamente a propósito desse ponto que gostaria de apresentar um fragmento clínico. A paciente a que vou me referir jamais havia alcançado saúde psíquica suficiente para padecer das vicissitudes referentes às relações interpessoais. Suas dificuldades eram de tipo psicótico, mais precisamente na linha das esquizofrenias. Apresentava problemas com a constituição da sua identidade e evidências claras de que carregava consigo a memória latente de agonias impensáveis. Toda a sua vida fora orientada no sentido de evitar a repetição do colapso. Em S., podia-se observar o efeito devastador do fato de um bebê não ter sido introduzido ou mantido por tempo suficiente na área de ilusão de onipotência e não ter tido preservado o mundo subjetivo. Ela cresceu sem qualquer capacidade para a ilusão, para a crença de que a realidade é encontrável e de que é possível uma comunicação humana e verdadeira. Ou essa capacidade era tão frágil que facilmente se quebrava no menor contato com uma realidade externa que se impuzesse como tal.
Esta ilustração clínica visa mostrar de que modo a ausência da crença básica impede a constituição do sentido de realidade do si-mesmo e do mundo. Visa também refletir acerca do papel do analista nesses casos. No fundo, trata-se de dar conteúdo à afirmação de Winnicott de que, em certos casos, só nos cabe esperar e esperar e esperar. Para dar a dimensão da confiabilidade que é necessária ao trabalho terapêutico, Winnicott afirma que, na análise, cuidamos de ser confiáveis num sentido que só podemos sustentar no espaço estrito de nossa tarefa profissional.
S., uma mulher jovem, bonita e bem vestida, veio me procurar dizendo que há muito tempo pensava fazer uma terapia mas nunca tomara a iniciativa e que, agora, estava ali em função de um encontro casual com uma amiga que falara de mim. Contou algo sobre a amiga e, em meio a outras observações genéricas, como uma informação a mais, disse que sua mãe acabara de falecer. A terapia seria útil, porque havia problemas práticos a serem resolvidos e ela se sentia desorientada. Era a mais velha dos três irmãos, e apenas ela havia se disposto a cuidar da mãe em seus últimos meses. Não sabia dizer o que sentia. Tivera pena da mãe e gostaria de ter podido aliviar-lhe mais os sofrimentos mas não podia dizer que estava arrazada. Na verdade, surpreendia-se, à vezes, dizendo a si mesma que perdera a mãe e que isso era grave. Mas a situação toda ficava envolta em um sentimento de estranheza. "O que ela devia sentir?", se perguntava.
S. falava de modo pausado, sem nenhuma entonação na voz, como que recitando um monólogo. Notava-se que estava exaurida e talvez fosse esse o único sinal de alguma realidade nela. De resto, era uma presença que se desfazia, estava lá e não estava; o olhar, vago, era atravessado por uma total desesperança. Lembro-me de que, quando saiu, nas duas primeiras vezes, tive a estranha sensação de não saber sobre o que havíamos falado. Mostrava-se passiva e desorientada com relação à vida e às pessoas. Nunca havia tido nem relações estáveis que a marcassem, nem campo específico de interesse ou profissão. Tinha apenas algumas amizades ocasionais e dedicava-se, também ocasionalmente, a atividades artesanais.
Durante algumas semanas, medindo as palavras, S. trouxe questões relacionadas com a partilha dos bens, seu receio de não fazer o mais acertado, suas dúvidas sobre o que fazer com as coisas da mãe e o descaso do pai e dos irmãos. Não confiava em ninguém e não sabia por onde começar. Ficava claro que, ao mesmo tempo em que queria, ou sabia que devia, tomar posse do que lhe era de direito, tinha a tendência a desfazer-se de tudo o que lhe viera da mãe. Acompanhei-a com muita atenção e permaneci no âmbito que ela abrira. Ponderamos juntas desde minúcias até imóveis dos quais nem sabia da existência. Dei algumas orientações precisas: insteia-a, por exemplo, a que tivesse a ajuda especializada de um advogado. Disse-lhe também que seus bens deveriam ser postos a salvo e guardados para quando ela soubesse como usá-los, de modo a que lhe favorecessem a vida. Mas, por ora, era preciso começar a viver. Estávamos apenas iniciando e precisávamos de tempo para que as coisas amadurecessem. Ela sabia muito pouco ainda sobre si mesma, sobre o que queria, e qualquer decisão sobre o que fazer com a herança seria prematura. Embora fizesse aqui e ali algumas observações como essas, não aludi ao que me parecia o seu estado de total desorientação na vida nem ao fato, óbvio pra mim, de que estava aprisionada numa armação defensiva, vivendo através de uma identidade artificialmente construída. Pareceu-me necessário que ela se sentisse acompanhada, no nível em que lhe era possível, antes de eu tentar uma comunicação com algo dela mesma que "ainda não estava lá para ser encontrado".
Houve, então, um feriado mais longo. Quando retomamos o trabalho, não fez nenhuma alusão ao intervalo e, para minha surpresa, começou a narrar exatamente as mesmas coisas que me dissera nas primeiras sessões, como se nunca tivesse estado ali. Fui completando seu relato, mencionando nomes, mostrando-lhe que guardara, sim, o que dissera. Espantava-se de eu saber essas coisas. Apontei-lhe então, simplesmente, como uma constatação, e não como se se tratasse de uma desconsideração, o fato de ela haver anulado os nossos encontros. Isso talvez mostrasse, disse-lhe, que era muito difícil para ela, provavelmente em função do que já vivera e sofrera, acreditar que alguém pudesse mantê-la viva dentro de si, guardando as suas coisas, assim como também era-lhe difícil manter algo vivo dentro de si. Olhou-me com profunda estranheza. Disse-lhe que, apesar de se dispor a segurar tudo, inclusive a si mesma, ela necessitava, mais do que podia imaginar, sentir-se acompanhada e protegida. Havia apagado o que tínhamos vivido pois já não valia; e não valia porque, depois de ter tido uma pequena amostra de ser vista e ouvida, vira-se de novo, repentinamente, sozinha e desamparada, como tantas outras vezes em sua vida. E agora precisava, como sempre, começar novamente, sem nenhuma história.
S. ficou calada muito tempo, olhando para mim sem me ver. Depois, lentamente e em voz muito baixa, como quem toca em algo intocável, disse que sim, que fora sempre assim, que não agüentava mais, que nunca pudera contar com ninguém, só consigo mesma, mas nem isso era possível, porque não sabia quem era nem o que queria. Só se sentia viva enquanto fazia algo prático e concreto. Todo o resto era uma imensa escuridão e um permanente sentimento de irrealidade. Nada fazia sentido e ela passara toda a vida como uma sonâmbula. Tentava sempre "desaparecer", tornar-se invisível, evaporar. Fazia o que lhe mandavam, exatamente para não aparecer, e, quando a situação tornava-se insuportável, escondia-se no quarto, fingindo dormir. No entanto, havia um sobressalto impossível de apaziguar e ela tinha que permanecer horas a fio muito quieta para conseguir aplacar o tumulto interno que a assolava.
Nas sessões subseqüentes, continuou a falar-me com um fio de voz, quase inaudível. Sem me dar conta, comecei, também eu, a falar-lhe em voz muito baixa e isso perdurou por muito tempo ao longo da análise. (Anos mais tarde, nós duas chegamos a rir do fato de que nossas sessões eram quase todas sussurradas, como se estivéssemos no quarto de um bebê.) Disse que a sua única lembrança consistente era a de sentir medo. Lembrava-se dos pesadelos recorrentes da meninice, do medo dos vãos escuros da sua casa da infância que era, agora ela via, como um cenário. Havia sido toda montada por decoradores, sem nenhuma pessoalidade e sem que nenhum raio de luz atravessasse as pesadas cortinas. Carregava consigo uma imagem, não sabia se lembrança ou sonho, a de estar na cama e, sobre ela, dois olhos imensos, negros, cheios de rancor, que a enchiam de medo. No último ano do colegial, teve uma crise de pânico que durou alguns meses e ela não sabe como sobreviveu. Seu único pensamento era como evitar ver-se assolada pelo medo agudo que a atravessava e a deixava inteiramente paralizada. Naquela ocasião, não teve coragem de falar a ninguém sobre isso.
Contou que sua mãe fora uma pessoa muito inteligente, mas vulcânica e violenta. Casara-se porque a vida estava tediosa e pelo fato de que o rapaz, bem de vida, resolveria a situação de insolvência financeira da família. Era inteiramente desorganizada. Não tinha horário para nada, comia ou dormia nas horas mais extravagantes. Andava pela casa, absorta, como uma sombra, e não entrava em contato com nada em torno dela. Era impossível saber o que pensava ou sentia. Às vezes, passava tardes inteiras em seu quarto, olhando para o teto e arrancando fios do cabelo. Não suportava ruídos e, às vezes, quando S. brincava com sua irmã, ela descia intempestivamente do quarto aos gritos, xingando-as e mandando-as calar. Se estava presente, durante as refeições, envenenava tudo com sua ironia e amargor. O pai era um homem de negócios que ganhou muito dinheiro com transações escusas. Fazia piada de tudo e jamais conversou com os filhos sobre o que interessasse a estes. Nunca falou aos filhos sobre a mãe; ria, sem graça, das cenas de violência da mulher e se retirava deixando-os à mercê da tempestade. Esse pai tinha, no entanto, algo de meigo e materno, e S. teve sempre muita pena dele. Num momento bem mais adiantado da análise e de seu amadurecimento, teve que se defrontar com uma imensa raiva dele, por não tê-la ajudado a entender as impossibilidades da mãe e não tê-la protegido das suas irrupções.
Durante uns seis meses, na primeira sessão após o fim de semana, S. voltava formal, distante, e falava comigo como se tivesse acabado de me conhecer. Após algum tempo, eu lhe dizia: "Percebo que a cada vez que nos afastamos, você teme chegar aqui e não me encontrar tal como me conhece. Desse modo, primeiro investiga o território." Ela sorria e assentia com a cabeça. Às vezes, eu não comentava nada; apenas conti- nuava a falar com ela em voz muito baixa. Depois de uns dez minutos, ela relaxava e voltava ao que já tínhamos. Em alguns desses momentos formais, ela trazia perguntas sobre mim: se eu tinha filhos, em qual escola havia estudado, se gostava do meu trabalho etc. Respondia às suas indagações de forma direta e breve. Certa vez acrescentei: "Acho que você está tentando saber se tem alguém dentro de mim capaz de vê-la e comprender o seu sofrimento. Quer ter alguns dados para ver se consegue aumentar a confiança. Posso perfeitamente lhe dar essas informações mas você sabe, no fundo, que a confiança de que necessitamos não pode ser produzida por dados; é totalmente pessoal e crescerá ou não. Não há nada que possamos fazer nesse sentido, a não ser criar as condições para que ela venha a acontecer". S. compreendeu e sorriu. Qualquer outra coisa seria uma falsa solução e, além disso, um apelo à sua mente já por demais saturada.
No que S. ia relatando, mostrava-se a extrema fragilidade do si-mesmo, que não chegou a constituir-se como realidade integrada e autô- noma. Sua vida parecia estar, toda ela, defensivamente organizada contra áreas de perigo letal, aquilo que Winnicott denomina agonias impensáveis, uma das quais era vir a perder todo o sentido do real. Não tendo sido provida da ilusão básica, não tinha onde se apoiar no que se refere à vigência de suas experiências ou permanência de suas possibilidades. De fato, tudo nela se desmanchava e estava sempre em sobressalto pela possibilidade de desfazer-se, de tornar-se irreal, sem consistência. Surpreendia-se, muitas vezes, por exemplo, com o fato de as pessoas a verem e reconhecerem. Certo dia, precisava voltar a uma loja para trocar uma peça que fora comprada no dia anterior. Foi tomada de grande sobressalto e hesitou muito. Temia que o dono simplesmente não a visse e ela fosse entregue à sua inexistência. Ou então que ele, mesmo vendo-a, não escutasse a sua voz ou não a reconhecesse ou achasse absurdo o seu pedido. Lembrei-me da cliente de Winnicott cuja vida era um permanente esforço para estabelecer-se como uma identidade e que disse a ele: "Não seria horrível se a criança olhasse para o espelho e não visse nada?" (Winnicott 1967c, p. 160)11 O sentimento de não ter presença visível aparecia também no consultório e S. ficava em pé, na sala de espera, com medo de que eu não reparasse nela. Contou-me também sobre algo que denominou de timidez: numa situação social qualquer, e mesmo conversando com alguém, ficava imediatamente sem recursos, aquém do outro, não tinha nada a dizer, via-se mal vestida, desengonçada, exposta. Fomos percebendo que a mera presença do outro a arrastava para fora e a dominava. Ela era tragada por esse olhar externo e já não sabia de si. Precisava isolar-se para resgatar algo do sentimento de si-mesma.
Estava sempre lutando também, sem consciência disso, com o temor de perder todo o senso de orientação. Algumas vezes, ao sair de casa ou do consultório, tinha o sentimento de que jamais conseguiria voltar, nunca mais acharia de novo o caminho, tantas ruas a distinguir, tantas casas, como se todas as referências se apagassem. Sentia-se muitas vezes esgotada, como alguém que tenta manter algo escrito sobre a areia. Quando pôde falar disso, começaram a aparecer dois tipos de sonhos recorrentes. Em uns, ela estava andando e, repentinamente, o chão acabava. "Não era um buraco", disse, "era o chão mesmo que acabava e não havia mais nada, apenas névoa." Em outros sonhos, ela andava por caminhos estreitos, labirínticos, escuros e úmidos, alguns que a levavam a cavernas pré-históricas, e ela tinha que atravessar rios, sempre em busca da casa que não encontrava ou, às vezes, de sua cama que havia sumido.
Foi percebendo que não tinha propriamente uma história. Apenas alguns flashes aqui e ali, quase tudo coisas que lhe foram contadas mas das quais não tinha memória da experiência. Pegava, às vezes, fotos da infância e adolescência, e ia tentando montar de novo sua história, ordenando acontecimentos, primeiro isto, depois aquilo, mas sempre se perdia pelo caminho. Falava também do sentimento de pobreza que a acompanhava. Objetivamente, fora educada em bons colégios, vestia-se com o que havia de melhor e freqüentara clubes e lugares caros. Mesmo na época, comprava, às vezes, uma roupa de griffe mas, assim que a vestia, a roupa perdia toda a graça, ficava "caipira". Foi mais ou menos nessa ocasião que trouxe um sonho impressionante: ela estava deitada e dava-se de mamar em seu próprio peito. Nesse dia, falou de sua indigência e eu lhe disse que a pobreza, numa criança, era não ser pessoalmente vista e cuidada pela mãe, pela família, e que nenhuma riqueza podia suprir essa falta. Ela chorou muito, pela primeira vez.
Num dado momento, era claro que uma regressão à dependência começava a se estabelecer. Ela já não empinava o corpo, como no início, e começou a andar de maneira a mal tocar o chão, como se temesse desfazer-se. Ao entrar para a sessão, olhava nos meus olhos, profundamente, com grande inquietação. Perscrutava se eu continuava ali, se podia recebê-la, se a reconhecia. Precisava sobretudo saber, nos meus olhos, quem era ela em mim. Passou também a reparar minuciosamente no ambiente e a apontar quando algo estava diferente ou "fora do lugar". Queixava-se que havia muito a dizer e não ia dar tempo, que os intervalos entre as sessões eram muito longos e, em especial que, no fim de semana, eu lhe parecia longínqua e irreal, como um sonho que se esvai. Nesses momentos, perdia o contato consigo mesma; qualquer coisa a fazer era fútil e sem sentido, e sua casa parecia-lhe inteiramente vazia. Tínhamos duas sessões na semana e eu lhe propuz mais uma.
S. se assustou com o estado de dependência que começava a instalar-se. Precisava imensamente disso, parecia estar compelida a entregar-se para vivê-lo, mas o medo era brutal. Vivera toda a vida segurando a si mesma e era terrível, agora, abandonar, mesmo que parcialmente, a organização defensiva na qual se apoiava. Sua desconfiança, que ela tentava manter em níveis de sensatez, envolvia a questão crucial de saber, e mais do que saber, de acreditar, se havia alguma coisa real na vida, se existia alguém, consistente, real e confiável, capaz de dar sustentação ao que desse e viesse. Essa descrença total na possibilidade de uma comunicação verdadeira e persistente, e a desconfiança de que alguém pudesse acompanhá-la ao lugar do temor e sofrimento básicos, tornaram-se sobretudo agudas em relação a mim, uma vez que eu era, agora, ao mesmo tempo, o lugar da proteção possível e o lugar de maior ameaça. Se, pela primeira vez em sua vida, como em geral ocorre com esses pa- cientes, ela tivesse cuidados suficientemente bons ou mesmo se a minha adaptação às suas necessidades fosse apenas melhor do que a que recebeu no início, de qualquer modo uma falha minha no âmbito da confiabilidade seria pior uma vez que permiti o retorno da esperança. O que S. temia, mais que tudo, era que o trauma inicial se repetisse; que, de novo, ela esperasse por uma comunicação que não viria, temia sentir-se outra vez um estorvo tendo que, de novo, ser um nada; que eu, repentinamente, não reconheçesse a intensidade de seu sofrimento, ou não pudesse tolerá-lo. Escondida e temendo em alto grau ser encontrada, S. precisava que alguém, capaz de uma comunicação silenciosa e altamente confiável, testemunhasse a existência de um verdadeiro si-mesmo ferido. O perigo, de um lado, era que eu atravessasse seu muro artificial de proteção e tentasse entrar em comunicação com um eu que "ainda não estava lá para ser encontrado". De outro, era que sua falsa personalidade fosse tratada como real. Isso só faria crescer seu sentimento de futilidade e desespero.
S. lutou muito contra a regressão e o advento de qualquer esperança. Há que se convir que a situação de dependência é, de fato, altamente arriscada e dolorosa para o paciente. Implica em sofrimento e numa sensação de precariedade que são inerentes ao depender embora não sejam essas as características normais do amadurecimento original. O risco, diz Winnicott,
não é somente que o analista possa morrer como também que ele se torne subitamente incapaz de acreditar na realidade e intensidade da angústia primitiva do paciente, do medo de desintegração ou de aniquilamento ou de queda contínua para sempre. (Winnicott 1965vd [1963], p. 216)
Uma regressão a estados infantis na situação clínica, esclarece ele, só adquire caráter terapêutico se os intensos sofrimentos associados à dependência puderem ser suportados. É preciso, portanto, ter em mente, diz Winnicott, que
as toscas habilidades do psicoterapeuta, se o compararmos com a mãe real, faz com que seja inconcebível - mesmo na terapia mais cuidadosamente controlada - uma regressão à dependência vivida com prazer. (Winnicott 1988 [1954-70], p. 179)
A dependência foi se instalando à medida em que fui me tornando, para ela, objeto subjetivo. Era apenas na relação comigo, como objeto subjetivo, que ela podia fazer a experiência da realidade da presença e não se sentir arrastada pela minha presença externa, que só exigiria alerta e submissão. Esta possibilidade nunca era total, uma vez que sua desconfiança fazia-a lembrar-se de minha presença concreta e a impelia, imediatamente, a prevenir invasões. A comunicação ocorria nos momentos em que eu, podendo ser objeto subjetivo, comunicava-me com o bebê ferido que ela trazia quando podia.
A regressão foi seguindo seu próprio curso e quando atingiu um cume, teve que ser vivida no que tinha de mais primitivo. Uma angústia persecutória começou a manifestar-se com toda a intensidade. Paradoxalmente, é apenas numa situação de confiabilidade ambiental, sentida como tal pelo paciente, que ele pode viver a desconfiança, a persecutoriedade, de forma cabal. Ele precisa chegar à "loucura original" e precisa saber que o analista saberá entender e sobreviverá à sua "transferência delirante".12 S. deitava-se no divã e, a partir de um certo momento do processo, qualquer movimento meu na poltrona ou uma respiração mais funda, fazia com que ela se virasse para ver o que tinha acontecido. "O que foi, está cansada? Quer que eu vá embora?" Às vezes, ficava em silêncio e depois de algum tempo, se assustava e dizia: "O que você está resmungando?" Eu tentava falar o menos possível, fazer intervenções breves, tomando cuidado com o tom da voz, porque qualquer modulação diferente a assustava. Mesmo assim, o que quer que eu dissesse tornava-se uma perseguição e era prontamente recusada. Também não podia ficar em silêncio pois ela imaginava que eu havia me ausentado, chegando um dia a acusar-me de eu haver saído da sala enquanto falava. Houve um momento em que o estado de alerta e sobressalto foi tal que se sentou bruscamente no divã e olhou-me fixamente até que a sessão terminasse. Sentia que eu podia machucá-la a qualquer momento e precisava verificar se eu continuava lá, se era a mesma, se havia qualquer vestígio de mudança em meus olhos. Convidei-a para sentar-se, de vez, na poltrona, e prosseguimos assim durante o resto da análise.13
Tudo isso se amainou com o tempo, mas era difícil haver uma sessão em que a desconfiança não aparecesse. Numa certa ocasião, houve um silêncio prolongado. De repente, ela pôs-se a falar e o que dizia não fazia nenhum sentido. Deixei-a falar e quando silenciou novamente, perguntei-lhe o que é que quisera me dizer. Ela baixou o rosto e disse: "Não era nada mesmo. Falei qualquer coisa porque havia muita intimidade no silêncio. Falei para afastar você, para pôr uma distância entre nós". Em outra vez, menciona uma amiga pelo nome e acrescenta: "aquela que eu conheci de criança, com quem estive esta semana, aquela...". Ocorre que ela havia falado dessa amiga durante toda a sessão anterior, mas não podia alimentar a idéia de que eu ainda me lembrasse. Disse-lhe que era temeroso, para ela, abrigar a esperança de que eu guardasse o que ela me contara e se garantia contra a decepção antecipando todas as informações, exatamente como fizera logo no início da terapia. O problema é que, assim, ela ficava sem saber que era possível, sim, que eu guardasse suas coisas e as conservasse comigo. O medo talvez fosse exatamente esse: constatar que eu guardava e que podia haver esperança. Nesse dia, ela chorou muito, sentida, dizendo que há muito tempo reparava que eu me recordava até de sonhos dos quais ela mesma já havia se esquecido e que tinha muito medo, muito, de acreditar nisso. Lembro-me, também, que certa vez ela se distraiu, deixando-se levar pelos pensamentos, esquecida de estar ali comigo: quase um prenúncio da capacidade, que ainda não lhe era possível, de estar só na presença de alguém. De repente, voltou a si, olhou-me assustada, e eu estava ali, tranqüila, aguardando. Ocorreu algo que Winnicott denomina de trauma benigno.14 Ela não esperava não ter que tomar conta de tudo.
Enquanto tudo isso se passava, ciente da extrema precariedade de um si-mesmo que nem sequer havia nascido, cuidei muito para que nada de imprevisível a atingisse. Procurei de estar sempre a mesma, o que não era difícil pois ela me punha nesse lugar, e seu modo de presença era tal que me solicitava naturalmente para o cuidado. Além disso, atentei para que nada na sala fosse alterado. Mudar um horário nem pensar e, obviamente, nenhum atraso. Certo dia, trouxe um sonho: ela andava por uma rua e viu uma menina bem pretinha, sozinha num canto, toda suja de barro e doce misturados, quase indistinguível no meio de cacarecos e lixo. Passou e pensou: que nojo. Depois parou, lembrou que essa era a expressão preferida de sua mãe, voltou e pegou a menina com toda energia e disse: o que ela precisa é de um bom banho, de alguém que cuide dela e a deixe ser uma menina. E diz-se: "Agora sei do que preciso: de alguém que me veja por trás de toda a minha inexistência e que continue me vendo mesmo quando eu mesma me perco de mim. E que, quando eu olho, está ali do mesmo jeito, sem se transformar". Sem saber, ela me dava, tal como Winnicott, o roteiro central de meu lugar de analista:
O vislumbre do bebê e da criança vendo o eu (si-mesmo) no rosto da mãe e, posteriormente, num espelho, proporcionam um modo de olhar a análise e a tarefa terapêutica. Psicoterapia não é fazer interpretações argutas e apropriadas; em geral, trata-se de devolver ao paciente, a longo prazo, aquilo que o paciente traz. É um derivado complexo do rosto que reflete o que há para ser visto. Essa é a forma pela qual me apraz pensar em meu trabalho, tendo em mente que, se eu o fizer suficientemente bem, o paciente descobrirá seu próprio si-mesmo e será capaz de existir e sentir-se real. (Winnicott 1967c, p. 161)
Certa vez, passado um bom tempo, disse-me: "Vou perdendo tudo. Nos fins de semana, o tempo se alarga, torna-se infinito e tudo fica irreal. Falando com você volto a mim. Mas nem sempre consigo. Imediatamente uma dúvida atravessa tudo e já não sei nada nem o que estou fazendo aqui. Se algo me tumultua, como no outro dia em que falei com meu pai, penso que nem adianta vir. Fica apenas o tumulto e não consigo nenhuma comunicação". Respondi: "Sim, posso entender. Mas vindo, uma outra coisa importante acontece. Você fica sabendo que, mesmo que não consiga contato, as condições para o contato estão asseguradas, seu lugar está aqui, guardado, quer você possa usá-lo ou não". Ela ri e diz: "É, gosto de pensar que você está sempre aí, sentada em sua poltrona, me esperando e que, assim que chegar, vou encontrá-la tal qual eu espero".15
S. necessitou, sim, de modo absoluto, que eu a acompanhasse por onde quer que fosse, que não me assustasse e não me sentisse pessoalmente atingida pela sua "loucura", podendo sobreviver e cuidar de mim mesma e do setting de modo a deixar-lhe livres e protegidos os caminhos de exploração de si-mesma de que necessitava. Era essencial que eu entendesse o que estava se passando para não apressar o processo com uma "urgência psiquiátrica" de curá-la, tendo sempre em mente que sua "loucura" não era tanto a enfermidade mas o primeiro passo na direção da saúde. O fato de eu acompanhá-la de perto em seus temas e estados de ânimo, de não interpretar, o que seria falar sobre ela mas não com ela, de sobreviver ao seu desânimo e desconfiança foi da maior importância. Ela precisava de alguém que a deixasse acontecer como pessoa; que sobrevivesse quando a loucura, primeiro, e a raiva, depois, tomassem conta da cena. Mas, simultaneamente, uma outra coisa essencial, silenciosa, estava ocorrendo e sendo tecida e isto diz respeito à mãe-ambiente: a manutenção de um mundo previsível, sempre passível de ser reencontrado.
Depois de muito caminho andado e num momento em que S., mais integrada num si-mesmo, vivia agora um outro tipo de persecutoriedade - ou seja, sofria com os perigos que acompanham a integração num eu - cometi uma falha e, durante algum tempo, tivemos que retornar a padrões antigos de dependência. Ela havia conhecido um rapaz por quem, pela primeira vez na vida, se interessou vivamente, tecendo inclusive projetos de futuro, e que parecia gostar muito dela. Vários dados induziam a se pensar que ele era bastante estável emocionalmente; a relação ia indo bem e tudo levava a que pudesse haver um compromisso mais sério. Num dado momento, ele precisou viajar a serviço, para fora do país, por uns dez dias, e convidou-a. Ela mostrou-se entusiasmada e, inadvertidamente, também eu, entusiasmada com a possibilidade que se abria, manifestei aprovação. A viagem aconteceu e foi boa em muitos sentidos. Ela, no entanto, sentiu-se muito pequena e despreparada, perdendo o contato consigo mesma. Voltou desfeita, magoada primeiro e furiosa em seguida por eu tê-la deixado ir, sobreestimando a sua capacidade maturacional. "Você queria livrar-se de mim; estava louca pra livrar-se de mim", dizia ela.
É difícil para o analista, depois de ter se aplicado muito num caso, cometer um erro que causa sofrimento ao paciente e põe várias conquistas a perder. Mesmo sabendo que, sobretudo em pacientes com esse tipo de problemática, são exatamente as falhas do analista os momentos de maior valia terapêutica, ainda assim se pensa que o erro talvez pudesse ter sido evitado. Tive algum consolo quando li, numa carta de Winnicott, que ele reconhecia ter a tendência a "comportar-se mal" nesse estágio em que a dependência se torna relativa. Diz ele:
É tão grande o alívio que sobrevém quando não é mais preciso ser tão artificialmente adaptativo, bem para além do que se faria na vida particular, que começo a morder a isca que o paciente oferece e me vejo falando de assuntos gerais e agindo como se o paciente houvesse repentinamente ficado bom. (Winnicott 1987b, p. 182)
Não me defendi em nenhum momento e disse-lhe que, de fato, eu devia ter percebido que ela ainda era muito pequena para sair assim pelo mundo.
6. A mãe como protótipo do analista na clínica winnicottiana
Como o protótipo do analista, na clínica winnicottiana, é a mãe suficientemente boa, será útil examinarmos o que a faz confiável. A confiabilidade materna, nos estágios de dependência absoluta, está relacionada a dois atributos conjugados da mãe: 1) a sua capacidade de, identificando-se com o bebê, adaptar-se de modo absoluto às suas necessidades, e 2) a capacidade de permanecer adulta e poder devotar-se ao bebê. A confiabilidade da mãe depende de que essas duas capacidades operem juntas.16
A capacidade da mãe de identificar-se com o bebê deve-se ao estado natural regredido de "preocupação materna primária" que lhe permite saber, a cada momento, o que o bebê necessita. Essa capacidade não tem nada a ver com inteligência nem advém de algum conhecimento obtido em cursos ou livros: vem da sua saúde ou relativa saúde emocional, de sua própria experiência de ter sido um bebê, de ter sido cuidada de algum modo, de estar viva e ter imaginação. Se a mãe é do tipo que teme a regressão e não é capaz de pôr-se no lugar do bebê, ela tenderá a cuidar dele por via de conhecimentos intelectualmente adquiridos. Ela poderá prover o bebê de algumas coisas básicas, mas não entrará em comunicação com ele e não saberá o que de fato ele necessita num dado momento. Ela cuidará de seu bebê "como se cuida de bebês" e essa generalização tornará seu cuidado impessoal. Esse é tipicamente o caso da mãe que faz mas não é.17
Ora, o mesmo vale para o analista. Sendo humano, ele já sentiu na pele o que é desamparo e o que é ser cuidado; é, sobretudo, a sua sensibilidade pessoal que o guia na compreensão das necessidades do paciente. O analista, contudo, não tem o benefício natural da preocupação materna primária, além de não ter, como a mãe, vinte e quatro horas por dia para estar e conhecer o bebê. Pela sua tarefa, pelas condições especiais e especializadas que pode oferecer, talvez consiga fazer melhor do que fez a própria mãe do paciente, mas é preciso alguma humildade para saber, com Winnicott, que as habilidades do analista são toscas se comparadas com as da mãe suficientemente boa. Além disso, embora seja o paciente quem constantemente ensina o analista, que é capaz de aprender, sobre suas próprias necessidades, este, assinala Winnicott,
deveria conhecer teoricamente os aspectos referentes aos traços mais profundos e centrais da personalidade pois, do contrário, não poderá reconhecer as novas exigências impostas à sua compreensão e técnica, e fazer-lhes frente [...]. (Winnicott 1989vp [1966], p. 134)
Ademais, quando lidamos com pacientes que regridem à dependência e estes, em busca da cura, enlouquecem cada vez mais, é preciso alguma compreensão do que está se passando para poder suportar as tensões que são pertinentes a essa tarefa. Por tudo isso, em seu trabalho especializado, o analista deve poder contar com a orientação que lhe vem da teoria do amadurecimento pessoal. Não para fazer uso direto dela, nas intervenções ou interpretações - falas como: "sua desconfiança está relacionada com o estado de dependência absoluta em que você se encontra" ou "você está tentando me destruir, mas eu vou sobreviver", seriam desastres clínicos -, mas para ajudar o psicanalista a ver e compreender o fenômeno. Winnicott descreve do seguinte modo a aplicação da teoria em seu trabalho clínico:
A única companhia que tenho, ao explorar o território desconhecido de um novo caso, é a teoria que levo comigo e que se tem tornado parte de mim e em relação à qual sequer tenho que pensar de maneira deliberada. (Winnicott 1971b, p. 6, itálicos meus)
Além de pôr-se na pele do bebê, é preciso também que a mãe permaneça adulta para poder cuidar do seu bebê de forma confiável. O bebê precisa de uma mãe capaz de acreditar que ele é um processo de amadurecimento em curso e que, portanto, não é ela, nem o seu controle da situação, que darão vida ao bebê. Sua importância limita-se à função de facilitadora de um processo de amadurecimento que pertence ao bebê. A mãe é mera parteira da natureza humana. Seu cuidado é confiável na medida em que, usando toda a sua pessoalidade para cuidar do bebê, não põe a sua pessoa, enquanto subjetividade, no centro da cena.
Pela capacidade de ultrapassar suas próprias necessidades, os cuidados maternos são orientados pelas necessidades do bebê e não pelas necessidades da mãe, mesmo que se trate da necessidade de ser boa, ou muito boa. Muitas vezes, o cuidado que a mãe fornece excede a necessidade do bebê e este se vê compelido a ter aquelas necessidades que a mãe quer suprir. Quem cuida de quem? - essa é a questão. Se a mãe é confiável, ela: 1) previne fatos imprevisíveis: cuida de que o ambiente permaneça regular, monótono, consistente, previsível enfim, permanecendo consistentemente ela mesma, segurando a situação no tempo, diante das inúmeras variações do bebê. 2) Abdica, portanto, de ser criativa quando isto interfere na regularidade dos cuidados e contenta-se em ser monótona e repetitiva deixando, para o bebê, o exercício da criatividade. É claro que é preciso um bocado de criatividade cotidiana para proteger o bebê do imprevisível mas essa criatividade deve ser exercida nos "bastidores" e não deve, de modo algum, sobrepor-se ou impedir a do bebê. 3) Lida com o bebê como o ser humano que ele já é mas tendo sempre em mente que ele ainda não é um eu. O bebê não sabe nada acerca da existência da mãe, do mundo ou dele mesmo e, no entanto, é imediatamente afetado por qualquer variação do ambiente. 4) Jamais deixa de ter presente a extrema imaturidade do bebê e seu estado de dependência absoluta; de modo que não requisita do bebê mais do que ele pode dar em termos de amadurecimento; não apela, por exemplo, para sua compreensão em termos mentais. Ao contrário, ela o vê sempre como um ser que está permanentemente à beira de sofrer uma agonia impensável. 5) Sabe que o bebê não tem nenhuma consciência da existência do ambiente e muito menos do sucesso da adaptação da mãe, de modo que ela não tem nenhuma expectativa quanto ao reconhecimento do trabalho que ele dá. 6) Não apressa o processo do bebê e não impede o retorno a estágios já ultrapassados quando essa é a sua necessidade.
No que esse perfil da mãe suficientemente boa, isto é, confiável, nos ajuda a compreender a teoria winnicottiana acerca da tarefa tera- pêutica? É muito difícil, sobretudo em pacientes adultos, mantermos firme a idéia de que há, ali, um bebê a ser cuidado. É verdade que o paciente só é capaz de regredir à dependência porque alguma estrutura de eu permite-lhe tolerar a regressão. Há, sem dúvida, uma parte um pouco mais desenvolvida junto à parte doente de sua personalidade. Mas, adverte Winnicott, a porção enferma é tão enferma quanto possível e é com a parte enferma que o analista trata. O analista não pode, de modo algum, descuidar da adaptação às necessidades pelo fato de saber que o paciente tem uma parte mais sadia.
Quando digo a S. que não há nada a fazer em termos de aumentar a confiança a não ser criar as condições para que a confiança brote, estou dizendo a mim mesma que a única coisa a ser feita é, silenciosamente, dia após dia, estar lá, no horário previsto, "viva e respirando", com aproximadamente a mesma disponibilidade, ou seja, sem que nenhuma mudança no ambiente ou em meu estado de ânimo a surpreenda. Não basta exercer bem a função de mãe-objeto e tentar acompanhá-la em suas idas e vindas. O que de principal tento propiciar é aquilo que silenciosamente permanece e se mantém: um mundo, um lugar confiável e seguro onde o bebê possa crescer.
Creio que é a essa questão que Winnicott se refere quando diz que, em certos casos, só nos resta esperar, esperar e esperar. Naturalmente, há uma qualidade nessa espera e uma delas é não tentar "curar" o paciente. Este saberá imediatamente que tememos o seu estado e não o seguramos do modo como ele está. O inadmissível, em termos da confiabilidade, é não trair o pacto silencioso da dependência: permitimos ao paciente que ele mostre a sua imaturidade e, de repente, flagramos a dependência ao modo de uma infantilidade a ser superada. Ou, no momento em que o bebê do paciente aparece para mostrar a dor e o medo, falamos com o adulto que ali está a nossa frente, apontando para dados da realidade. O nome disso, para o paciente, é traição.
Mesmo que o analista zele para que a confiabilidade ambiental não falhe, ele falhará, sim, pelo mero fato de sua humanidade. A confia- bilidade é humana e não mecanicamente perfeita. A perfeição pertence ao domínio das máquinas. Confiabilidade não significa ser imune ao erro; ao contrário, exatamente porque falível, a pessoa humana pode então ser confiável. O fato é que mães e analistas permanentemente falham em sua adaptação às necessidades do bebê ou paciente. O problema não é esse. O problema consiste no reconhecimento e na atitude do ambiente ante a falha. Na verdade, o bebê ou paciente precisa de nossos erros (desde que, naturalmente, não sejam erros grosseiros que envolvam decepções insuperáveis). Por que nossos erros podem ser úteis no contexto de análise?
Em primeiro lugar porque, quando as falhas são ocasionais e não chegam a constituir um padrão e o ambiente é genuinamente preocupado com o indivíduo, elas são corrigidas e, nesse caso, a par do trauma relativo, algo de muito importante acontece. As falhas às quais se dá uma solução imediata acabam sendo comunicadas e é desse modo que o bebê ou paciente acaba tomando conhecimento do sucesso da adaptação. Segundo Winnicott, a primeira organização do si-mesmo é silenciosa e "surge a partir da experiência de ameaças de aniquilação que não levam à aniquilação e das quais o bebê repetidamente se recupera" (Winnicott 1993h [1956], p. 496).
A essa formulação, de 1993h, vem juntar-se um outro argumento, mais tardio, relativo à teoria das psicoses e das agonias impensáveis que habitam o indivíduo. As agonias impensáveis não podem pertencer ao passado, a menos que possam ser experenciadas pela primeira vez no presente. Esta é a razão que fundamenta a necessidade de regressão à dependência, de um retorno a um momento anterior ao colapso ou, como diz Winnicott, à perda da esperança. A necessidade específica do paciente é que, desta vez, a falha aconteça - e ela sempre acontece - mas possa agora ser experienciada, pela primeira vez, e percebida, com a ajuda do analista, como falha do ambiente. Isso só pode acontecer em condições especiais como as de um setting analítico no qual, em virtude de se ter construído um alto grau de confiabilidade, o paciente se permite, com o suporte do analista, a loucura que só é permitida aos bebês.18
Podem se passar anos até que o paciente se aproprie da confiabilidade ambiental como sendo um traço do si-mesmo; até que se instaure, nele, o sentimento de previsibilidade; até que ele se torne seguro da realidade e da consistência do si-mesmo, ao mesmo tempo em que se torna capaz de confiar na existência e permanência do mundo.
Às vezes, a espera produz alguns resultados. Num certo momento mais adiantado do processo, S. disse:
"Saio daqui mais forte, mas, depois, é como uma criança que vai longe, não vê mais a mãe e precisa voltar para saber quem é e onde está. Este processo é muito lento e as dúvidas voltam sempre. Mas eu agora, às vezes, quando sinto tudo mais real, falo com você, no meu quarto. Fico ensaiando de ligar pra você e te dizer umas verdades, dizer que não venho mais, que não preciso de você, que você é velha, ultrapassada e boba. Faço isso na imaginação, como um treino. Depois, acho graça. É como criança. Não pensei que seria capaz de contar isso a você. Às vezes, chego a pensar que vai ter um dia em que vou ficar muito brava mesmo e sou capaz de te xingar na cara."
"Sim, eu sei. Quando você crescer mais um pouquinho, ficará cada vez mais exigente e brava comigo. E reclamará das coisas que não tem. Mas creio que é assim mesmo, é desse modo que uma criança comunica à mãe o que lhe faz falta. Mas isso depende, naturalmente, de a criança acreditar que a mãe a escutará, que não ficará exasperada e não a humilhará por isso."
"Sim, tudo depende da crença. Eu não tenho crença. No domingo, eu estava completamente desorientada e fiquei um tempo no meu quarto, sentada e dizia: `Aquela tonta pensa que me engana. Se soubesse de fato o que eu passo, não me largaria aqui, deste jeito (ri)'. Exatamente como a criança que espera a mãe."
"Claro, exatamente como criança. Você pode, agora, se queixar de um modo que nunca pôde antes, quando era de fato uma criança. Você nunca pôde dizer à sua mãe o quanto precisava dela."
"Ah, não, ela não escutaria e, se escutasse, não suportaria. Ela nunca nos viu. Tinha uma amargura que tomava conta de tudo e nós, os filhos, éramos um peso a mais em sua vida."
"Para não ser um peso, um estorvo, para escapar do horror de não ser vista, você fez tudo para não existir, para tornar-se um nada, algo inconsistente que mal aparece. Tentou ainda fazer-se auto-suficiente para nunca mais precisar de alguém. Como não havia esperança nenhuma de que a escutassem, você perdeu muito cedo contato com sua necessidade. É como se não precisasse de nada."
"É, mas agora pode ser que eu precise cada vez mais. Pode ser que eu fique cada vez mais exigente."
Referências bibliográficas
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1 No estágio em que o bebê passa da dependência absoluta para a dependência relativa da mãe, por exemplo, a questão da confiabilidade ambiental torna-se crucial. Caberá à mãe falhar ao bebê sem, no entanto, falhar na confiabilidade. Esse tema, da maior importância, não cabe nos limites deste artigo.
2 As datas entre colchetes indicam o ano em que o texto foi escrito.
3 Isso não significa que, mesmo tendo tido um bom começo, o indivíduo, mais tarde, sendo exposto a uma situação traumática, para além da sua capacidade de suportá-la naquele momento, não possa desenvolver uma psicose. De qualquer modo, esta será diferente das psicoses que se desenvolvem nos momentos iniciais da vida, anteriores à integração num eu unitário. Uma coisa é não ter alcançado uma conquista do amadurecimento. Outra coisa é perdê-la.
4 Circunscrevendo a realidade ao princípio de realidade, oposto ao princípio do prazer, a psicanálise tradicional não chegou a considerar a necessidade que todo indivíduo tem de sentir-se real (feeling of real) e de alcançar o sentido de realidade (sense of real). Em Winnicott, o primeiro sentido de realidade é o do mundo subjetivo; é apenas quando este pode ser experimentado, no início da vida, que o sentido da externalidade do mundo compartilhado pode, mais tarde, fornecer ao indivíduo o senso de ser real. Sentir-se real implica em ser capaz de relacionar-se com o mundo objetivamente percebido sem perder a criatividade originária. Desse modo, mesmo o sentido da realidade objetivamente percebida difere, em parte, do que se chama, na psicanálise freudiana, de princípio de realidade. Em várias passagens de sua obra, Winnicott assinala essa crucial diferença. Num texto de 1961, ele diz que enquanto o sentido do real depende de a espontaneidade e a criatividade originária serem preservadas na área de ilusão de onipotência, o princípio de realidade é o "arquiinimigo da espontaneidade, criatividade e do sentido de Real" (Winnicott 1984i [1961], p. 241).
5 Cf. Loparic 1995 e Dias 1998.
6 Parece-me plausível pensar que quando M. Klein fala de objetos maus e persecutórios, e Bion refere-se aos objetos bizarros, eles estão se referindo ao fenômeno que corresponde, em Winnicott, à irrupção de uma amostra da realidade externa para cujo sentido o bebê ainda não está preparado. Na teoria winnicottiana, o que traumatiza o bebê não é algo que possa ser valorado como bom ou mau no sentido configurado por Klein, por exemplo. Uma amamentação instintualmente satisfatória pode violar e traumatizar o bebê, se for realizada de forma impessoal ou se for extemporânea à sua necessidade. Segundo Winnicott, manifestações primitivas de persecutoriedade, por precoces que sejam, não podem ser simplesmente debitadas na conta de uma destrutividade inata, relativa à pulsão de morte, ou à lei de talião, sem levar em conta o comportamento do ambiente; elas podem ocorrer se o mundo e os objetos não foram apresentados ao bebê de modo que este pudesse criá-los, invadindo o seu mundo antes de ele estar preparado para abarcar o sentido de externalidade.
7 A tese de que o mundo não é idêntico à soma de objetos intramundanos é central na obra de Heidegger (cf. Ser e tempo §9). Essa distinção foi aplicada à interpretação do pensamento de Winnicott por Loparic 1995. Cf. também Dias 1998.
8 Haver "duas" mães não se deve a que a mãe tenha sido cindida pela destrutividade do bebê. O que ocorre é que ela ainda não foi, nos primeiros estágios, integrada numa só.
9 Um bebê que não sente segurança ambiental, toma para si, por via de um funcionamento mental precocemente ativado, os encargos que são da natureza e da mãe. Cf. Winnicott 1954a [1949], p. 409ss. Num texto de 1958, Winnicott diz que, embora muitas vezes, a falta de tensão instintual possa produzir ansiedade, "a integração da personalidade no sentido do tempo permite esperar pelo retorno natural da tensão instintiva" (Winnicott 1958g, p. 33).
10 Contando a sua experiência terapêutica com um garoto de 15 anos (que havia perdido o pai aos 11 anos e reagia tardiamente à perda), Winnicott diz que, na primeira entrevista, muito trabalho significativo foi realizado através do jogo de rabiscos. Depois de duas horas, diz Winnicott, "nós dois já tínhamos bastante. Provavelmente, ambos sabíamos que muito ficava por fazer mas nenhum disse nada ao outro. Isto teve o efeito de Patrick adquirir confiança em mim [...]" (Winnicott 1965f, p. 271, itálicos meus). Ou seja, se a comunicação havia sido realizada, não era preciso desmerecê-la, garantindo tudo em palavras.
11 O mesmo acontece com o personagem Z, do conto "Deslocamento" de Juliano Pessanha. Perambulando, informe, num aquém da existência, diz, num certo momento, que "sua esperança era a de atingir uma tal realidade que não apenas um pedestre se desviasse do seu corpo na agitação de uma calçada mas que alguém o sentisse mesmo quando ele estivesse parado dentro de alguma sala" (Pessanha 1999, p. 25).
12 Segundo Winnicott, foi Margaret Little, analista da Sociedade Britânica de Psicanálise e sua paciente, quem lhe sugeriu essa expressão. Ele a usa para nomear o modo pelo qual o paciente organiza a situação na relação analítica de maneira a chegar de modo um pouco mais superficial à "loucura original". Cf. Winnicott 1989d [1965], p. 106 e 1989vk [1965], p. 98.
13 Se há confiabilidade, os pacientes insistem até que compreendamos as suas necessidades. Levei tempo para perceber que era essencial para S. poder olhar-me diretamente nos olhos, ver-se e ser vista por mim. Depois disso, sobretudo com pa- cientes que necessitam regredir à dependência, nunca mais usei o divã, pois pude perceber que, além da necessidade de se verem em nós e de serem vistos, se sou capaz, pela confiabilidade, de tornar-me objeto subjetivo para os pacientes, eles não precisam deitar-se no divã para experimentar a área de ilusão de onipotência. Em geral, são pessoas mais amadurecidas que gostam do divã. Às vezes, elas querem deitar-se com a finalidade de relaxar e de perderem-se melhor em suas fantasias.
14 Cf. Winnicott 1989d [1965], p. 106.
15 No extremo de um caso fronteiriço, diz Winnicott, "tudo se reduz, no final, ao que tentei descrever como a sobrevivência do analista; só que podem se passar anos até que o paciente se torne confiante o suficiente quanto à transferência para ser capaz de correr o risco de um relacionamento, no qual o analista está absolutamente desprotegido" (1986b, p.181). Em outro texto, ele esclarece o que entende por analista desprotegido: "Se o analista se defende, não é dada ao paciente a oportunidade de se zangar com um fracasso passado, exatamente quando a raiva estava pela primeira vez se tornando possível" (1956a [1955-6], p. 488).
16 Se estivéssemos examinando também os estágios em que a dependência se torna relativa, teríamos que falar da capacidade da mãe em separar-se gradualmente do bebê à medida em que esta for a exigência da tendência maturacional.
17 Sobre essa importante distinção entre "ser" e "fazer" cf. Winnicott 1989 vp.
18 Para maiores detalhes sobre a questão da falha do analista cf. Dias 1997.