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Natureza humana

 ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.1 n.2 São Paulo dez. 1999

 

ARTIGOS

É dizível o inconsciente?1

 

Can the unconscious be verbalized?

 

 

Zeljko Loparic

Curso de Estudos Pós-graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP

 

 


RESUMO

O artigo começa dando uma visão panorâmica do processo pelo qual se passou, na modernidade, da libertação da palavra à industrialização da palavra, esboçando algumas reações a esse desenvolvimento, em particular a de Heidegger. Prossegue pelo exame detalhado da regra de verbalização do inconsciente, sobre a qual repousa a clínica freudiana, mostrando os limites teóricos e clínicos desse tipo de comunicação entre o analista e o analisando. Passa, em seguida, ao estudo da comunicação não-verbal, característica da clínica winnicottiana dos psicóticos, para concluir: 1) que certos modos do inconsciente são comunicáveis, mas não verbalizáveis, 2) que a crise da comunicação verbal, detectada por Winnicott na psicanálise, apresenta paralelos notáveis com a crítica de Heidegger da palavra gramaticalmente - isto é, ciberneticamente - correta, como o único meio de falar sobre os seres humanos e seus assuntos.

Palavras-chave: Linguagem, Verbalização, Inconsciente não-verbalizável, Comunicação silenciosa.


ABSTRACT

The article starts by giving an overview of the process by which the liberation of speech became the industrialization of speech in Modern Times, outlining some reactions to it, such as the one formulated by Heidegger. It continues with a detailed study of the rule for verbalization of the unconscious, upon which the Freudian psychoanalysis is founded, showing theoretical and clinical limits of this kind of communication between the analyst and the analyzand. It goes over to the examination of the different modes of non-verbal communication, characteristic of the Winnicottian clinic of psychotics, in order to conclude 1) that some modes of the unconscious are communicable, but not verbalizable; 2) that the crises of verbal communication, detected by Winnicott in psychoanalysis, exhibits noteworthy parallels to the Heideggerian critique of the grammatically, that is, cibernatically correct language as the only means of talking about human beings and affairs.

Keywords: Language, Verbalization, Non verbalizable Unconsciousness, Silent communication.


 

 

1. O imperativo de verbalizar tudo

Desde o início, a clínica psicanalítica definiu-se pela relação especial com a linguagem. Anna O. chamou o tratamento com Breuer de "talking cure", "cura pela fala".2 Mas não se tratava de uma fala qualquer. Era um dizer enigmático, que seduzia e, ao mesmo tempo, atemorizava. Tanto é assim que Breuer fechou os ouvidos. Foi preciso Freud ter adivinhado, nessa corrente verbal da paciente de Breuer, a presença de um sintoma a ser interpretado, para que essa fala começasse a fazer sentido clínico. Com isso, Freud fazia a sua grande e verdadeira descoberta: a dos poderes terapêuticos da verbalização - na presença viva de uma outra pessoa - de verdades reprimidas e, por isso, fontes de distúrbios individuais e interpessoais.

Desde então, não somente as patologias psíquicas mas também a estrutura do ser humano, a sua vida sexual, o seu desenvolvimento cultural em geral, isto é, os temas centrais da psicanálise tradicional, passaram a ser tratados em função da sua relação com a fala. A começar pelo problema pré-psicanalítico da afasia, estudado por Freud, até a questão da palavra plena de Lacan, a verbalização, a oralidade, o caráter propriamente glóssico3, lingual, da fala permaneceu no centro da teorização e da prática clínica de tipo psicanalítico.4

As práticas de verbalizar o censurado começaram na cultura ocidental muito antes do surgimento da psicanálise. Os confessionários católicos eram os primeiros lugares desse tipo de uso da palavra. Os libertinos franceses do Século das Luzes foram mais longe e tentaram dizer o obsceno publicamente, e não mais sob o segredo da confissão ou apenas sussurrando-o na alcova. O Marquês de Sade levou essa prática ao extremo e começou a verbalizar o abominável. Só os mais comuns dos seus libertinos se comprazem na simples luxúria, na natureza desenfreada. Os mais radicais procuram "irritações" mais fortes e vão de encontro à natureza: buscam violentar, nos outros seres humanos e em si mesmos, a própria forma humana, cometem meticulosamente crimes hediondos, crimes contra a humanidade. Todas essas práticas são acompanhadas rigorosamente por discussões intermináveis sobre a verdadeira natureza do homem. Alguns, entretanto, são ainda mais radicais: eles têm a fantasia de atacar a natureza ela mesma. Para esses sadeanos mais puros, o crime perfeito seria aquele que destruiria as próprias leis da natureza madrasta, que só cria para destruir; seria um crime extremo que, repercutindo até os confins do universo, libertaria todas as coisas para novos modos de ser, totalmente diferentes dos que são submetidos às formas conhecidas. Mas esse crime, eles só podem cometê-lo com palavras. Noirceuil, um dos mais implacáveis dentre os teóricos sadeanos, dirige-se aos filósofos das luzes com as seguintes palavras:

Amável La Mettrie, profundo Helvetius, sábio e erudito Montesquieu, vocês que foram tão penetrados por essa verdade [a de que a natureza se compraz em destruir], por que não fizeram mais do que indicá-la em vossos livros?

E exclama:

Ousemos, portanto, dizê-la hoje, pois podemos fazê-lo; e, já que devemos a verdade aos homens, ousemos desvelá-la por inteiro. (Sade 1986, vol. 8, p. 209n)

Seguindo esse apelo, os sadeanos radicais entabulam intermináveis discussões em que verbalizam a verdade que os habita, mas que, por ser irrealizável, é fonte de eterna insatisfação.

Juliette, a mais radical dos radicais, ultrapassou até mesmo essa exigência. No fim da sua vida, depois de ter declarado: "A filosofia deve dizer tudo", silenciou sobre si mesma para se recolher num segredo que calou até mesmo o Divino Marquês, esse verborrágico e ensurdecedor contador da sua história. Nas últimas linhas a ela dedicadas, Sade despede-se de sua heroína mais perfeita com os seguintes dizeres:

No final desse período, a morte de Madame de Lorsange [Juliette] a fez desaparecer da cena do mundo, como costuma desvanecer tudo o que brilha sobre a terra; e essa mulher, única em seu gênero, tendo morrido sem ter escrito os últimos acontecimentos da sua vida, retira absolutamente de todo escritor a possibilidade de mostrá-la ao público. Aqueles que se aventurassem a tentá-lo não fariam mais do que fazer passar suas reveries por realidades, o que seria uma incômoda e surpreendente impropriedade para os homens de bom gosto e, em particular, para aqueles que demonstram algum interesse pela leitura da presente obra.5

As palavras lúbricas, enlouquecidas e blasfemas de Sade, palavras que pretendiam verbalizar a verdade custasse o que custasse e que enchiam milhares de páginas de uma obra gigantesca, caíram no vazio quase total. Mesmo o silêncio de Juliette, que encobria o seu segredo, foi recebido também com o silêncio. De um modo geral, as reações a seus dizeres inauditos foram parecidas às de Breuer diante de Anna O.: medo e rechaço. Nenhuma resposta interpretativa. Ainda nos anos 50, na França, moviam-se processos contra quem editava Sade.6 Só muito recentemente, ele, que é considerado por muitos como um dos maiores escritores da língua francesa, foi editado na coleção La Pléiade e, assim, reconhecido como alguém que tem algo essencial a dizer. Nem mesmo a psicanálise o tinha ouvido: pelo que sabemos, Freud nunca leu Sade, embora tivesse tido uma boa oportunidade para tanto. Os 120 dias de Sodoma, texto essencial, dado por perdido pelo próprio Sade, foi redescoberto e publicado pela primeira vez justamente na época de Freud, em 1904.7 Em Freud, o sadismo, um modo excessivo de existir e de dizer, passou a valer, sem nenhum exame da obra sadeana, como a principal e a maior entre as perversidades.

 

2. Regulamentação iluminista da verbalização

No exato momento em que se reconhecia à palavra até então proibida o poder de desocultar verdades essenciais e, por isso, o de curar, o homem ocidental começou a descobrir os abismos da verbalização destrutiva, para a qual dizer a verdade estava acima do interesse pelo bem-estar e pela cura: tratava-se de uma reação terapêutica negativa do tamanho da cultura ocidental. O que atemorizava, dessa vez, não era o verbo tentador; era a palavra que ameaçava arrasar os fundamentos do mundo. Embora não se quisesse mais permanecer no dogmatismo nem censurar a verbalização do desejo criador em confronto com restrições muitas vezes demasiadamente severas, nem por isso se aceitava ouvir a palavra que soava, não como a voz do si-mesmo verdadeiro, mas como a voz da morte. A profunda desconfiança para com a palavra - que acompanhou, pari passu, a sua libertação - não anatematizou apenas o dizer perverso, ela também estigmatizou o incorreto e, pela mesma lógica da vontade de poder, excluiu o pré-verbal e o não-verbal. O silêncio virou resistência, sintoma, motivo de suspeita. Tal como fez antes dela a religião, a racionalidade moderna também impunha o seu ritual público de autos-de-fé. Diante da violência verbal do perverso contra a razão e a moral públicas, da impropriedade do incorreto, da obscuridade do silenciado, reagiu-se com a regulamentação do dizer. A celebração do verbo libertado foi seguida da sua progressiva transformação em oração racional. No lugar do preconceito e do medo, postos na conta da desrazão, surgiu uma nova forma de ditar a palavra: as condições de possibilidade de dizer algo. O dizer foi colocado em liberdade condicional, submetido aos critérios que permitiam discriminar entre o dizível e o não-dizível, entre o que pode ter lugar dentro do discurso e o que está condenado a permanecer para sempre fora dele.

A ortopedia verbal da fala tornou-se prática corrente já com Leibniz que concebeu uma língua universal, uma escrita, na qual tudo o que existia poderia ser formulado e, assim, objetivado. A esperança depositada nessa "característica universal" era a de que todos os problemas nela formulados poderiam ser resolvidos pelo mero cálculo. Pela primeira vez, dizer a verdade passou a significar fornecer informações verbais para a computação de novas informações sobre um mundo concebido como consistindo, no seu todo, de meros fatos. Kant aprofundou o projeto leibniziano, submetendo a linguagem da metafísica, da moral e da estética, isto é, toda e qualquer linguagem com pretensão cognitiva, normativa ou reflexiva, a condições especificadas na sua semântica transcendental. Esta estipulava as regras teóricas e os métodos efetivos para evitar que as palavras permanecessem vazias de conteúdo.8 Só as palavras recheadas de dados da sensibilidade (isto é, interpretadas em domínios constituídos por esses dados) podiam ser usadas para falar com pretensões veritativas, normativas ou valorativas sobre o que quer que seja ou deva ser. Apenas as palavras cheias podiam acomodar coisas inteiras, idênticas a si mesmas, e veicular sentidos (conceitos, enunciados, regras, valorações) completos. Só aos poetas era reservada a "licença" de introduzir "palavras novas" e "novas construções de palavras". Ao homem político, tal modo de falar era ilícito. Para o filósofo, era mesmo contrário ao dever não obedecer ao cânon transcendental do uso da linguagem estabelecido por Kant nas suas três Críticas. A verdade e a falsidade, o bem e o mal, o belo e o sublime eram entregues à palavra explícita, verbalizada, que obedecia os ditados dos princípios universais.

No nosso século, foi Carnap quem mais se empenhou em realizar o sonho leibniziano e iluminista de uma linguagem unitária da ciência, na qual todas as coisas poderiam ser "caracterizadas", "significadas", e todos os problemas, uma vez bem formulados, poderiam ser mecanicamente respondidos por sim ou não. Ao mesmo tempo, Wittgenstein concebia a própria filosofia como prática "terapêutica" destinada a prevenir doenças intelectuais, ou seja, o surgimento de problemas insolúveis porque mal formulados. Tratava-se de mais uma clínica verbal, dessa vez de males filosóficos, que procedia à correção do dizer pelo estudo do uso da linguagem comum nas situações comuns da vida social.9

Após a liberalização da escuta para o proibido do desejo, na modernidade, permaneceram ainda três cânones que permitiam proibir: o da lógica, o da moral e o da estética, todos fundamentados em regras de linguagem. Nos dias de hoje, os três cânones da racionalização saíram do domínio fechado do debate filosófico, desceram do pedestal filosófico-teológico e transformaram-se em ditadura do falar correto, no sentido tecnológico e prático. A correção da fala deixou de refletir o bom uso de grupos esclarecidos para depender de "sistemas peritos" humanos (juízes, advogados, médicos, moralistas e sacerdotes midiáticos, investigadores policiais, produtores de cinema) que, por sua vez, recorrem, de maneira cada vez mais sistemáticas, aos sistemas peritos artificiais.10 Desse modo, a fala humana torna-se - assim como o sexo, a violência ou a moda - matéria-prima da tecnologia da informação. Os softwares inteligentes estão substituindo, com uma velocidade vertiginosa, os caseiros "jogos de linguagem" de Wittgenstein. E a comunicação com sistemas de processamento, sejam eles artificiais ou humanos, está valendo, de modo cada vez mais imperioso, como a "forma de vida" paradigmática da nossa época. Tanto os softwares como a nossa convivência com eles são, por sua vez, produzidos nos laboratórios de cibernética - definitivamente, estamos na era pós-industrial - e oferecidos como objetos de consumo. Os que estão fora desse mercado do verbo estão excluídos, de modo indolor, da sociedade "informatizada".11 O "meio" é a informação que, por sua vez, é um produto da high tech, comercializado pelas empresas globais. O domínio público, que já absorveu o privado, tornou-se um imenso laboratório do verbo onde o que alguém é ou deixa de ser tende a ser reduzido a um fluxo de dados. O comportamento humano no seu todo passa a ser medido, cada vez mais, pelo comportamento verbal ciberneticamente correto.12 Ao mesmo tempo, desconfia-se dos que permanecem pelas caladas.

 

3. Algumas tentativas iniciais de deixar um lugar para o não-verbalizável

Os perigos da regulamentação do dizer que decorrem do projeto iluminista foram pressentidos por muitos, entre eles alguns dos mais importantes pensadores da modernidade. A mesma modernidade que, mais do que qualquer outra época, contribuiu para normatizar a linguagem comum e acadêmica, também inspirou um questionamento sem precedentes da própria idéia da correção da linguagem e da dizibilidade como verbalização.

O próprio Kant começou a estabelecer os limites para o que é dizível: das coisas não acessíveis na experiência sensível, nada se pode dizer que seja verdadeiro ou falso. Em particular, não se pode fazer qualquer afirmação teórica sobre a natureza última da liberdade humana, sobre a moral ou sobre a vida humana como um todo. A razão teórica deve também guardar silêncio sobre o último destinamento do homem. Esse tipo de assunto exige uma linguagem diferente, a linguagem da razão prática, cuja semântica difere essencialmente daquela da razão teórica. De um modo geral, é um erro grave falar do homem como se ele fosse uma coisa da natureza.13

A desconfiança antiiluminista para com a palavra correta e ensurdecedora teve um primeiro ponto de culminação em Nietzsche. Para o filósofo da origem da tragédia, a metafísica inteira, a ciência inteira, repousa sobre erros de gramática. Substância? Hipóstase indevida da categoria gramatical do sujeito. O eu? Hipóstase, ainda mais imprópria, do pronome pessoal. Ao mesmo tempo, o super-homem nietzscheano descobria as virtudes do silêncio.

Logo em seguida a Nietzsche, o poeta Stefan George experienciava a exigência de uma renúncia ainda mais radical: a de que não haja coisa alguma quando a palavra quebra. A poesia, que nunca se prendeu à semântica dos filósofos, começava a abrir mão até mesmo da licença poética de criar palavras e construções novas. Renunciava-se, em virtude de uma necessitação imperativa, à dizibilidade entendida como verbalização de coisas inteiras ou conceitos completos em palavras plenas. As palavras quebradas do falar que se impunha a George não acomodavam mais as coisas idênticas a si mesmas. A linguagem deixava de ser a "casa do ser" na qual as coisas, como se fossem móveis, poderiam ser transportadas e agrupadas ao bel-prazer da subjetividade livre de recalques e proibições. O poeta via-se chamado a falar sem circunscrever - sem identificar - o dito; a buscar um dizer que seria sempre, ao mesmo tempo, um desdizer, um descaracterizar. Essa desconstrução do conteúdo aspectual e do dizer característico era acompanhada da crise da concretude, do caráter sensível, e mesmo da gramaticalidade do próprio dizer.

Antes de George, Mallarmé substituiu o bom uso pelo acaso transcendental falante, único possibilitador do mundo. Na obra do poeta francês, a morfologia e a sintaxe tornaram-se repositórios da ilusão e do esquecimento. Joyce e Pound, junto com os surrealistas e os dadaístas, aprofundaram o reconhecimento de que a verbalização gramática, política e racionalmente correta, passou a valer como barreira do acesso à verdade do existir humano como tal. A linguagem de Beckett é a fala de alguém que sabe não poder ser objetivado como notícia. O que prevalece é a idéia de que, por objetivar tudo o que o homem é e não é, por torná-lo, dessa maneira, real em demasia, a linguagem comum e a filosófico-científica despersonalizam o homem. Mesmo Nietzsche, com a sua vontade de poder, era real em excesso, um super-realista que só temporalizava as substâncias individuais para recuperá-las no eterno retorno regrado.14

Mais recentemente, Wittgenstein, que procurou redefinir o conceito leibniziano da linguagem unitária, reconheceu que nem tudo nela pode ser dito. No final do Tractatus, ao afirmar que devemos calar sobre aquilo que não podemos falar - por exemplo, sobre o fato de que há um mundo ou sobre os assuntos morais - Wittgenstein também reconheceu as virtudes do silêncio. Mesmo Carnap, o mais empenhado em realizar o sonho da calculabilidade de tudo o que existe, admitiu que havia problemas humanos - por exemplo, os problemas de saber se a vida vale a pena ou de como enfrentar a morte - que a sua linguagem universal não podia nem mesmo formular e ainda menos resolver. Mas esse tipo de declaração, embora reconhecesse os direitos específicos do silêncio, fazia com que este passasse, como tudo o que não pode ser regulamentado, pelo não-dito e o deixava no fora-do-falar.

 

4. O dizer pós-metafísico de Heidegger

Há, portanto, tanto na filosofia como na poesia, claros sinais de inquietação diante dos perigos que provêm dos nossos modos de dizer. Na filosofia, em particular, a problematização do dizer objetivante foi muito além das tentativas pioneiras de Nietzsche. Ela acabou tornando questionável não somente a metafísica tradicional mas também toda a mais recente filosofia da linguagem, e mesmo a terapia lingüística representada emblematicamente por Wittgenstein e seus seguidores. A crise da dizibilidade entendida como verbalização controlada, fabricada, que se iniciou com Nietzsche, culminou na obra decisiva de Heidegger.

O motivo da crise não foi o de Heidegger querer verbalizar o proibido ou o abominável. Foi um assunto que talvez tenha alguma relação com o segredo de Juliette e o silêncio auto-imposto de Sade. Heidegger descobriu algo que não podia ser contado de acordo com as regras gramaticais, mas que assim mesmo precisava ser dito. Esse algo era a verdade do ser do homem e do ser em geral, que nada tinha a ver nem com a falta constitutiva do desejo, nem com a vontade de destruir, mas com o fundo do nada que transparece no horizonte do tempo originário finito: o homem é feito de presença apenas na medida em que contém em si a sua própria ausência. Heidegger viu que essa verdade só se revela a alguém que, de cara quebrada por ter batido na parede do não-ser, cuida da sua ocupação com as coisas, preocupado com os outros.

Dizer que a verdade do homem e do ser ele mesmo só se mostram junto com o não-ser é fazer uma afirmação não gramatical, pois, sobre o nada, nada pode ser dito sem forçar as regras do bom uso das palavras. Além disso, na compreensão tradicional, tudo o que existia no mundo real, o homem inclusive, tinha, por definição, uma identidade espaço-temporal. A idéia de que o tempo não é o princípio de individuação e sim o princípio de diferença, dobra íntima do existir humano, que Heidegger chamará de ontológica, essa idéia inaudita não faz sentido "teórico". E, no entanto, ela conta como a descoberta fundamental de Heidegger: cada um de nós, por ser temporal no sentido da finitude temporal originária, acontece de uma maneira distinta de qualquer coisa conhecida, ou mesmo concebida, existente no tempo linear da metafísica tradicional ou da ciência. Por ser ao mesmo tempo si mesmo e diferente de si mesmo, o homem não é identificável por um feixe de dados espaço-temporais, nem controlado pelas leis causais, da natureza ou da moral. Nem por isso Heidegger dirá que o homem é um ser descontrolado; ele é, antes, um ser diferencial, acontecendo na e a partir da diferença do ser e do não-ser.15 Sendo um "acontecente" e não um (mero) "ente", o homem não é nem o "sujeito" nem o "objeto" possível de um enunciado gramaticalmente correto. De resto, "`sujeito' e `objeto' são designações inadequadas da metafísica, que se apoderou, muito cedo, da interpretação da linguagem, na forma da `gramática' e da `lógica'" (Heidegger 1946, GA 9, p. 314). Esse processo, ao longo do qual o ser do ser humano foi progressivamente esquecido - e que hoje chegou ao paroxismo, no esforço global de reduzir o homem a uma estrutura de dados digitais -, representa, segundo Heidegger, um perigo extremo. O principal dessa ameaça não reside na possibilidade de um eventual mau uso do genoma humano, mas na própria idéia, subjacente aos projetos cada vez mais ambiciosos da engenharia genética, de que a essência do ser humano pode ser escaneada. Nas palavras de Heidegger, o perigo extremo está na linguagem que usamos para dizer o ser humano.16 A interpretação metafísica da linguagem obscurece, ou mesmo vela, a essência do homem. Ao mesmo tempo, o dizer objetivante fundamentado pela metafísica, que é o dizer da técnica, amea- ça de desaparecimento o dizer originário. Vivemos numa época em que a linguagem da comunicação predominante vai destruindo, de maneira contínua, a possibilidade de dizer aquilo que mais importa dizer (Heidegger 1959, p. 89). Sendo assim, o homem da era global corre um perigo extremo: o de desaparecer não pela bomba, mas na e como palavra industrializada. Essa situação, que é o ponto culminante de toda a histórica da metafísica ocidental, impõe uma nova tarefa ao pensamento: "a libertação da linguagem da gramática para uma conjuntura essencial [Wesensgefüge] mais originária" (Heidegger 1946, GA 9, p. 314).

Esse diagnóstico do que está acontecendo na época da técnica, recolocou, para Heidegger, de maneira particularmente incisiva, a questão da dizibilidade: como dizer algo sobre algo, se o algo em questão não é um "sujeito" nem um "objeto" idêntico a si mesmo? Como entrar em comunicação com quem só se mostra ao se ocultar? Guiado por essas perguntas, Heidegger foi em busca de modos de dizer pós-metafísicos, procurando apoio em poetas. Foi assim que ele aprendeu a valorizar a palavra quebrada de George, por exemplo.17 A palavra essencial, dirá ele, não é um fato fonético que identifica um outro fato. Ela se assemelha antes ao gesto de um ator do teatro nô.18 Trata-se da acontecência que não tem o sentido de fato sensível que estivesse representando um outro fato sensível ou não-sensível (algo invisível, abstrato, supra-sensível, ou meramente ausente), mas que é um aceno que permite que algo se manifeste.

Para dar conta dessa situação, Heidegger distancia a linguagem da língua e a filosofia da linguagem, da fonética e da semântica. A linguagem, diz Heidegger, em A carta sobre o "humanismo",

não é apenas linguagem, no sentido em que a concebemos, quando muito, como a unidade de imagem sonora19 (imagem escrita),20 melodia, ritmo e sentido. [...] a linguagem é a casa do ser, apropriada pelo ser e con-juntada a partir do ser. Por isso, trata-se de pensar a essência da linguagem a partir da correspondência ao ser, a saber, enquanto esta correspondência, isto é, como alojamento da essência do homem. (Heidegger 1946, GA 9, p. 333)

Habitar a linguagem casa-do-ser só pode consistir em acompanhar o movimento do ser que, ao deixar-ser o ente, se esconde a si mesmo. Falar, no sentido de Heidegger, consistirá num dizer compreendido no sentido etimológico dessa palavra, que é indicar, mostrar, fazer aparecer e, ao mesmo tempo, ocultar.21 A Sprache, a "língua" é, diz Heidegger, uma Zeige, uma dica, e uma Sage, uma gesta, que, ao tornar manifesto, esconde. O "dizente" heideggeriano não é um fonador ou um escrevinhador; sua gesta, assim como o gesto do ator do teatro nô, move-se no vazio em que tudo que é dado à luz é, ao mesmo tempo, ultrapassado.22

Tudo se passa como se Heidegger quisesse erigir a afasia em princípio de método. No sentido metodológico, ser afásico significa dizer (mostrar) o que tem a dizer, sem que seja permitido recorrer à voz sonante ou mesmo à escrita caracterizadora. O dizer essencial é afásico não por estar perplexo diante do sigiloso, do selado; ele contém reticências porque trata do secreto, isto é, do separado, do diferenciado, do não-idêntico, algo que, em virtude do seu modo de existir, não pode ser acomodado numa representação verbal fechada. Por isso mesmo, o dizer do falante heideggeriano deve incluir necessariamente também a dimensão do vazio, isto é, do silêncio. A compreensão da teoria da linguagem tem de tomar a forma de uma sigética, teoria do silêncio.23

Mas - e com isso volto à psicanálise - se a verdade do ser humano é a de ele ser habitado por um si-mesmo secreto, essa mesma condição humana estará necessariamente em jogo também na situação analítica como, de resto, em toda e qualquer comunidade entre os homens.

Se a situação analítica reúne os que são chamados a existir como diferenças de si mesmos, sendo, por isso, radicalmente distintos de qualquer objeto da natureza, esse fato não poderá deixar de ter importância para a relação entre o paciente e o analista. A comunicação entre os dois de- verá ser concebida de tal maneira que a verdade diferencial - não-objetivável e não-naturalizável - possa transparecer e fazer-se valer no processo de cura.

Vê-se onde pretendo chegar: quero colocar em questão o pressuposto de Freud de que aquilo que está em análise seja algo que possa, no essencial, ser dito no sentido de ser verbalizado. Problematizar a idéia de que o inconsciente consiste num conjunto de dados que podem ser transpostos em dados sonoros, fonetizados e comunicados. Sugerir que também a psicanálise se depara com a mesma negatividade que, segundo Heidegger, constitui, para além do amor e da morte, do desejo e da agressividade, a verdade do ser humano, e que o dizer dessa negatividade não pode consistir na fonação glóssica. Isso implica que a regra de verbalização do inconsciente deve ser rediscutida. O inconsciente é mesmo verbalizável? Ou, antecipando os desenvolvimentos que se seguem: será que não é o caso de reconhecer que a psicanálise se depara com mais de um tipo de inconsciente, a saber, o verbalizável e o não-verbalizável?

Para evitar um mal-entendido inicial, observe-se que o "não-verbalizável" não precisa ser visto com o sinônimo de "não-dizível". É perfeitamente possível admitir dois tipos de dizeres, o verbal, isto é, oral - que poderíamos ainda denominar de "glóssico" ou "lingual" -, e o não-verbal, não-oral, mas assim mesmo um dizer reconhecível. Se concordarmos com isso, tornar-nos-emos abertos para a pergunta se a cura psicanalítica não poderia deixar de ser concebida apenas como talking cure para ser remetida também a outros dizeres, que passam por outras vias, pelo corpo, por exemplo, pela "proximidade" e até mesmo - para usar um termo de Heidegger - pelo "modo de presença". Desenvolverei e discutirei essas perguntas a partir da obra de Freud e Winnicott.24

 

5. A regra fundamental de Freud para a comunicação entre o paciente e o analista sobre o inconsciente recalcado

O Freud teórico explica os distúrbios psíquicos dos seus pacientes em termos do inconsciente recalcado. O que significa isso? Que os distúrbios psíquicos podem ser vistos como lacunas nas cadeias de atos conscientes. Freud entende que a existência do ser humano tem um lado físico e um lado psíquico, que os dois lados fazem parte da mesma realidade da natureza e que todos os constituintes dessa realidade são conectados pelas relações temporais e causais contínuas. As lacunas constatadas não desmentem o pressuposto de que a vida humana é regida pelo tempo linear e pelo determinismo causal, pelo contrário, elas são indício de que os elos da boa ordem natural, temporal e causal, foram suprimidos da consciência por fatores dinâmicos.

Isso posto, o Freud analista vê-se diante da tarefa de achar os elos temporais e causais perdidos. Ele não os busca na consciência, mas no inconsciente, domínio de estados psíquicos gerados pela repressão, chamado de "inconsciente dinâmico". Esses estados da vida psíquica privados da qualidade de serem conscientes são o principal assunto sobre o qual deveria estabelecer-se a comunicação entre o paciente e o analista. Eles são os geradores de sintomas a serem tratados e eliminados. A cura consiste no restabelecimento da boa ordem e da continuidade temporal e causal nas cadeias psíquicas mediante o preenchimento, na situação específica da transferência, das lacunas pelos elos inconscientes que faltavam.

Qual é o status ontológico - modo de ser, como diria Heidegger - dos estados inconscientes recalcados? O mesmo que o dos conscientes: essa é uma das suposições metafísicas básicas da psicanálise freudiana.25 Pode parecer que essa suposição contradiz uma outra tese de Freud sobre o inconsciente, a de que as "moções inconscientes" são governadas por leis distintas das que valem para os atos da consciência. Mais precisamente, que os atos inconscientes desconhecem a lei da contradição, que admitem deslocamentos e condensações de cargas, que não obedecem ao tempo e que confundem a realidade psíquica (o meramente representado como tal) e a realidade material (o real efetivo). Isso é verdade, mas a diferença entre as leis não implica na diferença de natureza: as moções contraditórias permanecem "anseios", os processos primários atemporais ainda operam no domínio das representações.

Como o psicanalista deve proceder para descobrir esses dados sonegados pelo paciente (o inconsciente recalcado)? Ele deve se dirigir ao paciente propondo a seguinte regra fundamental:

R1: Comunique tudo, sem omissões e sem crítica.26

Nessa formulação, "comunicar" traduz "mitteilen" de Freud, palavra que significa "compartilhar verbalmente". A regra dá a entender que o assunto que interessa são fatos (patógenos) e prevê a existência de obstáculos à sua comunicação. A natureza do obstáculo à comunicação terapêutica é contemplada numa outra versão da mesma regra:

R2: Comunique tudo o que se passa na sua auto-observação, com a suspensão de todas as críticas lógicas e afetivas.27

Freud deixa claro que os obstáculos mais freqüentes ao cumprimento da regra pelo paciente são o conflito do material clínico com as leis da lógica e os envolvimentos emocionais. As críticas que devem ser suspensas têm o sentido de censura, exercida pela razão e pela moral. Ambas as instâncias devem ser postas fora da ação, provisoriamente.

Uma terceira versão diz:

R3: Diga tudo o que lhe passa pela cabeça.28

Essa formulação destaca um caráter bem mais metodológico da regra: ela trabalha com a associação livre verbalizada, isso é, com processos mentais do tipo superior.

A regra fundamental da clínica estabelecida por Freud é uma regra de comunicação que tanto o paciente como o analista devem seguir. A comunicação contratada entre os dois é concebida como um tipo de relação intersubjetiva, acontecendo entre duas pessoas, inteiras, adultas, com possibilidade de intercâmbio cognitivo e afetivo. A comunicação visada é verbal. Supõe-se que o inconsciente é dizível e isso significa, nesse caso, verbalizável. Entende-se, ainda, que a comunicação é exclusivamente verbal e que outras formas de comunicação devem ser descartadas, a título de acting out ou em nome do preceito de abstinência.

O princípio de verbalizabilidade, implícito na regra fundamental de comunicação entre o paciente e o analista freudiano, repousa, por sua vez, sobre o princípio de representabilidade dos estados da consciência, em particular, dos atos da consciência e dos objetos desses atos. Dizer o inconsciente significa trazê-lo à consciência por meio de uma representação verbal. O que o recalque recusa, no caso de uma neurose de transferência, é a "tradução em palavras [Übersetzung in Worte]" de representações por imagens (Sachvortellungen) carregadas e censuradas.29 A verdadeira diferença, diz Freud em O eu e o id, "entre uma representação (um pensamento) inconsciente e uma pré-consciente consiste no fato de que a primeira se realiza num material qualquer que permanece desconhecido, enquanto que, no caso da segunda (a pré-consciente), adiciona-se a conexão com representações verbais [Wortvorstellungen]". A questão de saber como algo se torna consciente ou, melhor, pré-consciente recebe a seguinte resposta: "Pela conexão com as representações verbais correspondentes". Em particular, "a questão de saber como o inconsciente recalcado pode ser feito (pré-) consciente, deve ser respondida da seguinte maneira: mediante a produ- ção, pelo trabalho analítico, de tais elos mediadores pré-conscientes".30 A verbalização, em Freud, significa, portanto, representação por palavra.

Por ocuparem um lugar estratégico na teoria freudiana da doença psíquica e da cura, convém demorar-se mais sobre os conceitos de representação por palavra e por imagem. Quanto ao primeiro, Freud destaca, por um lado, o caráter "abstrato" dessas representações e as aproxima, senão identifica, com "conceitos e abstrações".31 As palavras não possuem mais as "qualidades" da percepção (dos "restos perceptivos") e introduzem qualidades adicionais entre objetos que representam, em particular, "as relações entre representações de objetos [Objektvorstellungen]", que as percepções não podem veicular. Essas relações, que se tornaram acessíveis [fassbar] exclusivamente pelas palavras, "são o componente principal de nossos processos de pensamento."32 Por outro lado, Freud também focaliza o aspecto material das representações verbais. Uma "palavra" (Wort) ou representação por palavra (Wortvorstellung), diz Freud já em As afasias (1891), é uma representação (Vorstellung) complexa fechada (abgesclossen), não susceptível de ser ampliada, "composta de elementos acústicos, visuais e cinestésicos". Mais precisamente, uma representação por palavra é um complexo de representações que consiste em imagem tonal, imagem lida, imagem escrita e imagem motora,33 sendo que a tonal é a mais importante. Em 1923, Freud reafirmará essa tese: "Uma palavra é essencialmente o resto mnemônico da palavra ouvida".34 Uma Wortvorstellung não é a representação de uma palavra, mas a representação de um algo (coisa ou objeto) por meio de uma palavra.35 O caráter propriamente lingüístico das representações verbais é acentuado no seguinte trecho de "O homem dos lobos":

No caso da criança, essa distinção [entre processos psíquicos conscientes e inconscientes] nos deixa em dificuldades. Ficamos freqüentemente embaraçados quando tentamos determinar o que deve ser chamado de consciente e o que, de inconsciente. Os processos que se tornaram dominantes e que, de acordo com seu desempenho posterior, têm que ser equiparados aos conscientes, ainda não estavam conscientes na criança. É fácil compreender porque: na criança, o consciente ainda não adquiriu todos os seus caracteres, ele ainda está envolvido no processo de desenvolvimento e não possui a capacidade de ser transposto em representações lingüísticas [Sprachvorstellungen]". (Freud 1918b, SA 8, pp. 216-7; itálicos meus)

As palavras são representações de um tipo diferente das Sachvorstellungen. Uma Sachvorstellung consiste, segundo Freud de 1891, em "um complexo associativo das mais diversas representações [impressões] visuais, acústicas, táteis, cinestésicas e outras", susceptível de ser constantemente ampliado. Freud se apóia na filosofia de J. S. Mill para afirmar que

A aparência [Anschein] de uma coisa [Ding], cujas diferentes "propriedades" correspondem àquelas impressões sensoriais, é gerada devido ao fato de que nós, ao enumerarmos as impressões sensoriais que recebemos de um objeto, supomos ainda a possibilidade de uma grande série de novas impressões na mesma cadeia associativa. (1891b, SA 3, p. 173)

Uma representação desse tipo recebe, portanto, o seu caráter "objetivo" não do fato de refletir diretamente as propriedades do objeto, mas devido ao processo pelo qual é gerada pelo nosso aparelho mental. Uma propriedade importante das representações em questão é a de serem imagens (Bilder), mais precisamente, "imagens mnemônicas diretas", de coisas.36 Essa propriedade possibilita "o pensamento em imagens", que é uma forma de pensamento onto e filogeneticamente mais primitiva que o "pensamento em palavras"37 ou "formulado em palavras".38 Esses dois tipos de pensamento são onipresentes nos processos psíquicos, como se vê, em particular, da análise freudiana do trabalho do sonho que envolve tanto os "pensamentos do sonho" (Traumgedanken), como as "imagens mnemônicas das coisas" (Sacherinnerungsbilder).39 Essas observações de Freud sugerem uma possível tradução para o termo "Sachvorstellung", a saber, "representação por imagem".40

Existem vários tipos de relação entre esses dois tipos de representação e de pensamento. Conforme vimos acima, as representações por imagens só podem tornar-se conscientes se conectadas com as verbais. Estas, por seu turno, recebem o significado (Bedeutung) apenas "mediante a conexão com representações por imagens".41 Esse trânsito (Verkehr) entre palavras e imagens está livre na vida normal, como se vê bem no exemplo dos sonhos. O mesmo não ocorre quando existem distúrbios psíquicos, de modo que estes podem ser caracterizados pelo tipo de interrupção desse trânsito, e os procedimentos de cura correspondentes, pelo restabelecimento do mesmo. Nas neuroses de transferência, por exemplo, a censura impõe a renúncia ao "objeto real" da representação verbal consciente e desvia a libido para "um objeto fantasiado" (introversão). Mas a carga sobre o objeto e, portanto, a relação de objeto permanece no sistema Inc., que contém "as cargas sobre imagens de objetos [Sachbesetzungen], as primeiras e verdadeiras cargas de objeto [Objektbesetzungen]". Dessa maneira, o neurótico continua apto a entrar no processo de transferência, isto é, de verbalização das cargas objetuais. A cura visa o restabelecimento do sistema Prc. "na medida em que essas representações por imagens [Sachvorstellungen] ficam reativadas através da conexão com as representações verbais [Wortvorstellungen] correspondentes", substituindo "o processo primário pelo processo secundário que prevalece no sistema Prc.". Nesse caso, a cura consiste, conforme indicado anteriormente, em "traduzir" as representações por imagem, pertencentes ao sistema Inc., em "palavras [Worte] às quais é permitido permanecer conectadas com o objeto". A representação não formulada em palavras ou o ato psíquico não reativado "permanece então no Inc. como recalcado".42

No caso da esquizofrenia, as coisas se passam de modo diferente. Aqui, o recalque não incide sobre a palavra, mas sobre a imagem, atingindo, portanto, o nível mais primitivo do aparelho psíquico. Sob pressão da censura, o esquizofrênico abandona a cargas do objeto representado por imagens, preservando as das representações verbais do mesmo. Entretanto, como as representações verbais de objeto só têm significado se conectadas com imagens, as relações expressas por palavras, formadas à maneira esquizofrênica (schizofrenische Wortbildung), não têm nenhum sentido compreensível: "as palavras e as coisas" não se recobrem mais. Totalmente desvinculadas da "relação eu-objeto", tendo perdido o seu significado objetivo, as representações verbais não são mais usadas de acordo com as regras do processo secundário, mas, tal como as imagens do sonho, de acordo com as do processo primário, de modo que elas "são condensadas e transferem totalmente, pelo deslocamento, uma a outra, suas cargas", sem qualquer restrição (1915e, pp. 157-8). Como no caso de neurose de transferência, trata-se ainda de uma tentativa de fuga do eu, só que, nesse caso, a fuga não se dá na direção de um outro objeto.

Por abandonar as cargas objetivas no seu todo, o esquizofrênico se recolhe num "estado narcísico sem objeto", em que desaparece a "oposição entre o eu e o objeto", tornando-se, desta feita, incapaz de transferência e, por conseguinte, inacessível à cura psicanalítica (1915e, SA 3, p. 155). Freud dirá ainda que, no caso da esquizofrenia, o trânsito entre as representações verbais e as por imagem não é simplesmente recalcado e sim "barrado".43 Como as representações verbais de objetos não podem mais ser conectadas com representações por imagens dos mesmos, a cura não está em condições de "influenciar o inconsciente pelo consciente" (ibidem, p. 153). A teoria representacional dos distúrbios psíquicos e de cura, proposta por Freud, é, sem dúvida, original. Mas ela é formulada no quadro de suposições que são tradicionais, na filosofia, pelo menos desde Descartes, a saber, 1) que a psique trabalha com representações, 2) que os estados inconscientes podem ser tratados como se tivessem a mesma natureza que os conscientes e 3) que, portanto, podem ser caracterizados por meio das mesmas "categorias" que são normalmente usadas para descrever a vida consciente, tais como representação, tendência, decisão, etc.44 Partindo daí, ao formular suas hipóteses sobre o inconsciente, Freud poderá fazer uso da terminologia conhecida das teorias da consciência. Ele se valerá, em particular, da oposição, já estabelecida por Kant, entre intuições ("representações por imagem") e conceitos ("representações verbais") e a correspondente divisão do conhecimento em intuitivo ("pensamento em imagens") e discursivo ("pensamento em palavras").45 Sendo menos primitivas, as representações verbais podem desempenhar um papel metodologicamente essencial: por seu intermédio, os processos de pensamento internos tornam-se perceptíveis, isto é, conscientes.

Voltando à regra fundamental da clínica freudiana. Embora formulada só em 1912, ela, de fato, generaliza uma prática que já era a de Freud em torno de 1900. Nessa época, Freud pedia aos pacientes "para comunicar todos os pensamentos e idéias que se lhes impunham".46 Além disso, vários pressupostos da regra fundamental não fazem mais do que reafirmar os resultados da análise dos sonhos, de 1900. O que passa pela cabeça de quem relata um sonho é, em primeiro lugar, o conteúdo manifesto, representado por imagens. Via de regra, esse conteúdo é enigmático, possuindo o caráter de charada que, na interpretação de Freud, encobre o desejo censurado. O que ele busca é o sentido encoberto que possa resolver a charada. Esse sentido latente tem a forma de um pensamento (Traumgedanke) que expressa proposicionalmente o mesmo desejo que o conteúdo manifesto expressa intuitivamente, sob o disfarce de charada, por causa da censura. Nessas teses centrais da teoria freudiana dos sonhos, estão presentes todos os elementos básicos da regra fundamental: vale a suposição de que os estados inconscientes podem ser tratados como se fossem conscientes; o conteúdo do sonho é analisado em termos dos modos de representação próprios da consciência (intuição, conceito); a dizibilidade é entendida como verbalizabilidade.

Representados verbalmente, os estados inconscientes, até então imperceptíveis, e por isso inconscientes, poderão ser observados, por assim dizer, "de fora".47 Quando isso acontece, eles podem também ser estudados "de fora", objetivamente. As verbalizações procuradas pelo analista freudiano formatam o inconsciente como objeto. A regra fundamental é introduzida precisamente com a intenção de permitir a transferência de informações (embora não necessariamente apenas de informações) sobre dados objetivos relativos ao paciente para o analista. O fato de se tratar sobretudo de dados sobre os sonhos, as fantasias e a realidade psíquica em geral, não muda nada nessa questão. O assunto é sempre o que aconteceu, quer na realidade psíquica quer na material, embora não devesse ter acontecido, e que, por isso, pode, em princípio, ser imputado ao paciente. Quando o paciente se cala, o analista é, em geral, autorizado a interpretar que se trata de resistência e, por conseguinte, a tentar fazer com que fale (para o bem da cura). A regra prevê que o paciente possa resistir produzindo "lembranças encobridoras", mas não permite supor a existência de algo que não pode ou não deve ser verbalizado e, dessa maneira, transformado em um dado. Na clínica freudiana, o silêncio fala apenas para dizer que há fatos ainda não acessíveis ou ainda não verbalizados. No essencial, ele apenas esconde uma realidade, "material" ou "psíquica", que deve ser trazida à luz.

Essa transferência de informação devidamente formatada permitirá ao analista, em seguida, preencher, mediante interpretação subseqüente apoiada em construções (ficções) metapsicológicas, as lacunas entre os dados da consciência, considerados como sintomas ou fontes de sintomas. O resultado esperado é o desaparecimento dos sintomas e a volta do funcionamento mais prazeroso do aparelho psíquico, conforme exige o princípio do prazer. Com efeito, por que é que o paciente subscreve o contrato de submeter-se a uma regra de desnudamento total? A metapsicologia de Freud responde: porque quer evitar a dor e, nesse sentido, ficar curado. A aceitação, pelo paciente, da regra fundamental implica o funcionamento do princípio de prazer como o princípio básico que governa o existir humano, inclusive durante e depois da terapia.

Em virtude do componente comunicacional, a análise terá ainda o sentido de socialização, baseada na tomada da consciência e na objetivação informacional da realidade, tanto psíquica como material.48 Por essas razões, a psicanálise pode ser vista como aliada a uma forma de cultura que visa a adaptação do desejo às condições do agir (às do trabalho, por exemplo), explicitadas como normas da razão e da moral, e a exclusão da destrutividade pela aplicação desses mesmos meios de controle.

Uma vez estabelecida a comunicação entre o paciente e o analista com essas caraterísticas, ela poderá ser utilizada na terapia que deverá seguir as seguintes regras de interpretação:

I1: Utilize tudo o que foi comunicado para fins de conhecimento do inconsciente velado.49

Essa fórmula diz que o analista não deve selecionar "intencionalmente" o material clínico de acordo com "suas expectativas e inclinações". A idéia subjacente é a de que todo ato verbal traz uma informação relevante, quer para identificar o problema do paciente, quer para resolver o problema, isto é, trazer à consciência as causas inconscientes dos sintomas. Para garantir que a seleção ocorra não-intencionalmente, o analista deve evitar ouvir o paciente com a "atenção consciente" e valer-se da sua capacidade de "atenção flutuante".50

I2: Não submeta a recepção do que é comunicado pelo analisando à censura própria.51

O que vale para o paciente, vale também para o analista: assim como a emissão, a recepção dos dados deve ser livre de valoração lógica ou moral dos mesmos. Para essa finalidade, o analista deve suspender o uso da própria consciência e "voltar-se para o inconsciente do paciente com o seu próprio inconsciente como órgão receptor; ele deve relacionar-se com o analisando, tal como o receptor telefônico se relaciona com o microfone [do transmissor]". Freud explica essa metáfora mecânica da recepção de dados com as seguintes palavras: da mesma maneira pela qual "o receptor transforma de novo em ondas sonoras as oscilações elétricas da linha excitadas por ondas sonoras", o inconsciente do médico analista é capaz de "reconstituir o inconsciente do paciente, que determinou os seus distúrbios, a partir da comunicação de seus derivativos". Ou seja, o inconsciente do analista funciona, segundo Freud, como um tradutor automático de dados inconscientes, não-verbais, em conscientes, inclusive verbais.52

I3: Não se envolva com o paciente.

O analista deve praticar abstinência, isto é, evitar o envolvimento emocional e mesmo qualquer outro engajamento pessoal. Num comentário sobre essa regra, Freud afirma: "O analista deve ser opaco para o paciente e, tal como um espelho, não deve mostrar nada, salvo o que lhe for mostrado".53 O analista freudiano não "convive", ele "reflete".

I4: Trate os distúrbios psíquicos como enigmas a serem decifrados, ou como casos de polícia, a serem desvendados.

O exemplo paradigmático dos problemas freudianos é o enigma que a Esfinge propõe a Édipo. Por essa razão, a psicanálise freudiana pode ser chamada de "edipiana". O traço comum dos enigmas clínicos freudianos é o de serem parecidos com quebra-cabeças. Os problemas desse tipo têm uma solução assegurada no domínio de dados objetivos, a princípio acessíveis ao solucionador, embora ainda desconhecidos ou encobertos. O quebra-cabeças psicanalítico será resolvido mediante o fornecimento de informação até então sonegada, suprimida, obtida nas condições da psicanálise, sobre algo que de fato aconteceu, embora não devesse acontecer (censura). Informação suprida e interpretada, o enigma é resolvido e a estória é completada.54 Esse trabalho não é mais feito pelo inconsciente do analista, mas pelo analista enquanto profissional analisado e treinado na teoria e na clínica psicanalíticas.

I5: Utilize as informações clínicas sobre os dados inconscientes e a metapsicologia para formular interpretações capazes de preencher as lacunas causais observadas entre os atos psíquicos conscientes dos pacientes.

A análise não pode limitar-se à recepção de dados verbais e à sua transformação em dados sobre o inconsciente do analisando. O inconsciente do analisando "conhecido" pelo inconsciente do analista deve ser trazido à consciência dos dois. Para tanto, ele precisa ser interpretado. A interpretação é uma ação consciente do analista que visa restabelecer conexões temporais e causais entre dados clínicos rompidas pela censura.55 Isto é, as interpretações freudianas devem sempre ser feitas do ponto de vista quantitativo e, mais precisamente, dinâmico.56 Em Freud, como em Kant, o sentido torna-se causa.

I6: Utilize as interpretações causais para constituir uma história, quer real quer fictícia, do paciente.57

A verdade verbalizada deve ser inserida numa história de vida, numa biografia. A história de vida do paciente nem sempre pode ser comprovada como real. Para os fins da cura psicanalítica, a diferença entre a história real e a fictícia conta menos do que a eliminação das lacunas na trama das causas mediadas pelo sentido. Mesmo uma história fictícia, desde que assumida afetivamente, pode corrigir os caminhos das forças que habitam o paciente e que são causalmente responsáveis pelo seu destino.

Feita essa análise, estão reunidos os elementos essenciais que permitem formular o que pode ser chamado de equação básica da clínica freudiana do inconsciente recalcado: comunicação Ü verbalização Ü representação Ü objetivação Ü interpretação causal Ü história redesenhada Ü diminuição do desprazer.58 Essa fórmula identifica com precisão o objetivo principal do pacto sobre a comunicação na cura psicanalítica dirigida pela regra fundamental. Ela também dá a chave do que poder-se-ia chamar de "cultura psicanalítica", pois a "historiação", tanto real como fictícia, permite a socialização e a moralização, isto é, a submissão do prazer à razão e a exclusão da destrutividade. É nesse sentido que os filósofos da cultura gostam de ler Freud.59 Há quem conteste, mesmo entre os psicanalistas, essa interpretação.60 Entretanto, a formulação inicial da psicanálise por parte de Freud, somada ao modo como ela se inseriu na cultura do século e à maneira como ela é percebida pelo senso comum qualificado, falam a favor dessa leitura.

 

6. Algumas dificuldades da interpretação dos fatos clínicos na linguagem da consciência (representações intuitivas e verbais)

São conhecidas as dificuldades da clínica freudiana guiada pela regra fundamental. Algumas delas dizem respeito aos ingredientes da própria situação: as resistências, a contratransferência, o acting out. De interesse particular é o "negativismo dos psicóticos", que parece indicar a existência de algo no ser humano que resistiria à verbalização objetivante ou, quem sabe, de alguma dimensão do ser humano que transcenderia, de direito, todos os pronunciamentos.61 Para Freud, nenhuma dessas dificuldades parecia decisiva. A negatividade dos psicóticos, por exemplo, foi aproximada do "prazer geral em denegar", sendo que a denegação, por sua vez, valia como um comportamento verbal derivado da expulsão e do repúdio.62 O que interessava a Freud, no que diz respeito aos psicóticos, era ainda um certo modo de verbalizar (a denegação) e não o fato, hoje considerado tão relevante, do seu silêncio.

Outras dificuldades são metodológicas: a pluralidade das interpretações, o caráter interminável da análise, etc. Algumas dessas dificuldades são ligadas especificamente à verbalização do inconsciente. Discute-se muito o caráter caprichoso das associações, chamadas "livres", dos analisandos. Dificuldades simétricas dizem respeito à recepção pelo analista de dados sobre o inconsciente. Como vimos, em 1912, Freud explicava essa recepção em termos de uma metáfora emprestada da telefonia física: assim como o aparelho telefônico receptor transforma automaticamente a corrente elétrica em ondas sonoras, o inconsciente do analista teria a capacidade de transformar dados verbais em informações sobre o inconsciente do analisando. Com o passar do tempo, Freud substituiu a tradução automática pela construção de hipóteses. Quando um analista diz: "aqui interveio uma lembrança", isso quer dizer, segundo um texto tardio de Freud, o seguinte: "Aqui ocorreu algo que não podemos alcançar, mas que poderíamos descrever, caso tivesse chegado à consciência, dessa ou daquela maneira [a saber, como ocorrência de uma lembrança]".63 Freud comenta:

A questão de saber com que direito e com que grau de certeza podemos tirar tais conclusões e empreender tais interpolações permanece, bem entendido, sujeita à crítica em cada caso particular e não se pode negar que a decisão freqüentemente representa grandes dificuldades que se expressam na falta de acordo entre os analistas.64

Fica concedida, portanto, a incerteza na comunicação verbal em casos particulares. No mesmo texto, Freud reconhece, ainda, que o real psíquico, assim como o real físico, permanecerá para sempre "incognoscível"- devido ao fato de que o real, assim como a coisa em si kantiana, não poder ser dado em qualquer percepção. O analista nunca poderá ir além de construção de ficções sobre histórias, para sempre inacessíveis, dos seus analisandos. Permanece em vigor, entretanto, a tese geral de que o existir humano, em tudo o que diz respeito à saúde e à doença psíquicas, "deve ser traduzido para a linguagem das nossas percepções",65 isto é, para a linguagem definida originalmente no domínio dos estados conscientes. Por quê? Porque, dessa maneira, podemos "preencher as lacunas dos nossos fenômenos conscientes", causadas pelos conflitos intrapsíquicos, o que nos permite "`entender', prever e possivelmente modificar" os estados do psiquismo. O caráter artificial da tradução do inconsciente para a linguagem da consciência pode prejudicar a realização da nossa pretensão à verdade, mas não prejudica a nossa capacidade de controle sobre o curso das vidas humanas.66

 

7. Recurso à metapsicologia (construções auxiliares, analogias, metáforas, visualizações, especulações)

Confrontado com as dificuldades clínicas e metodológicas mencionadas e, em particular, com o problema de transpor ou mesmo traduzir o inconsciente para o consciente, Freud serviu-se, sistematicamente, de um procedimento auxiliar, comum nas ciências naturais da época: ele recorreu à especulação que envolve a criação de modelos dos processos inconscientes. A sua metapsicologia não é senão uma tentativa de construir vários tipos de metáforas psíquicas, físicas, históricas, arqueológicas, etc. que permitam visualizar o inconsciente e o psiquismo em geral. Assim como os atos da vida psíquica em geral, esses modelos eram tidos como estritamente causais. O caráter não-experiencial das especulações só aprofundava o seu naturalismo. A visualização que prometiam desempenhava ainda um outro papel importante: o de garantir a verbalização dos estados (processos) inconscientes.67

Embora tivessem uma certa utilidade sistematizadora e heurística, as construções auxiliares, criadas pelo método especulativo, continuam marcadas por incertezas e arbitrariedades. Em 1920, depois de ter introduzido a pulsão de morte por meio de especulações, das mais audaciosas, Freud escreve:

Em todo caso, a introdução dessa idéia [da compulsão à repetição] só é possível se combinarmos repetidas vezes o fatual com o inventado e, ao fazer isso, nos afastarmos muito da observação. Sabemos que o resultado será tanto menos confiável quanto mais freqüentemente fizermos isso durante a construção de uma teoria, mas o grau de incerteza não pode ser especificado.68

No exato momento em que introduzia a pulsão de morte, Freud deu-se conta de uma outra dificuldade: a da não verbalizabilidade da morte. Já em 1915, ele concordava com Schopenhauer em afirmar que a própria morte não pode ser representada nem no inconsciente, nem no consciente. O primeiro, que desconhece o negativo, nada sabe da própria morte e se comporta como se fosse imortal. O segundo, que dispõe de negação, pode fazer a tentativa de pensar a própria morte. Mas logo percebe que não sabe o que está pensando: no momento em que me penso, conceitualmente, como morto, eu ainda estou aí como observador, o que deixa o meu conceito de morte vazio.69 A mesma dificuldade se repete no caso da pulsão de morte, força essencialmente "muda" (stumm), e que só se torna perceptível se misturada com pulsões eróticas (que fazem o "barulho da vida") ou dirigidas para fora, como agressão.70

Freud reconhece tudo isso, mas não cede no essencial: a pulsão de morte pode ser esquiva, pode apresentar problemas de "liga", mas nem por isso deve ser concedido que ela desafia o princípio de objetivação como tal, que ela seja algo "místico". Tal conclusão é prevenida pela especulação de que a morte é a volta ao estado inorgânico, algo objetivo e que pode ser visualizado e verbalizado.71 No mutismo da pulsão de morte, não há qualquer indício de negatividade não representável numa linguagem que satisfaça os critérios do bem dizer filosófico-científico. Em suma, nem a recusa dos psicóticos de entrar em comunicação verbal, nem o problema da traduzibilidade, nem o silêncio da pulsão de morte foram suficientes para dissuadir Freud do seu projeto de continuar buscando interpretações e construindo especulações de acordo com o pressuposto básico da sua regra fundamental: de que o inconsciente, assim como o consciente, pode ser, em princípio, representado, objetivado e, por isso, verbalizado. Ele nunca se colocou a sério o problema dos limites internos da descrição da existência humana no seu todo em termos das categorias da consciência e das especulações naturalistas, limites que já foram explicitados, até certo ponto, por Kant e que, como vimos, marcaram o desenvolvimento da filosofia moderna.

 

8. O assunto da psicanálise winnicottiana: o não-consciente cindido

O desenvolvimento recente da psicanálise rompeu o encanto da verbalização. Isso aconteceu quando Winnicott descobriu um inconsciente não-verbalizável e constituiu em torno dele a sua teoria das psi- coses e a sua prática clínica. Winnicott não contesta a suposição do inconsciente recalcado, conatural ao consciente, mas sustenta que esse inconsciente é uma formação relativamente tardia que 1) não explica o surgimento de doenças psíquicas mais graves, as psicoses, 2) não determina nem mesmo a sexualidade humana,72 3) não determina o destino da pessoa humana, 4) não é o referente satisfatório para entender a vida e a criatividade cultural. Dito de outra maneira, com Winnicott, a psicanálise muda de assunto. O tema central da psicanálise winnicottiana não é mais a sexualidade recalcada e seus derivativos, mas a cisão, uma parada no acontecer do ser humano que caracteriza a psicose. Essa formação é, por certo, não-consciente. Mas aqui a não-consciência não significa inconsciência, expulsão da consciência a título de indecência proibida.

Isso se mostra pelo exame da origem da cisão. A cisão não surge devido à censura, mas em virtude das falhas do ambiente na função de facilitar o processo de amadurecimento. Essas falhas têm, no início, o caráter de ruptura da comunicação primária. O lugar da cisão não é a consciência, nem mesmo a mente; o seu "local" é o próprio existir humano. O que fica cindido não são as relações entre as representações, mas, no essencial, a continuidade e os ritmos do ser. Essa continuidade não é assegurada pelos elos temporais e causais, no sentido de Freud. O tempo do existir humano não pode ser pressuposto nem como uma condição inata nem como uma aquisição a partir de seqüências temporais objetivamente percebidas, pois ele é constituído ao longo do amadurecimento pessoal do indivíduo na relação de dependência com o ambiente. Uma das formas de perturbação do amadurecimento é justamente a não-constituição, pelo bebê, do tempo ou, melhor, dos tempos necessários para a continuidade da existência. A cisão tampouco é uma perturbação das relações causais. O processo de amadurecimento não é um processo causal, ele não é um processo natural de modo algum, ele é uma acontecência na qual está em jogo uma pessoa ou a promessa de uma pessoa que está em relação de dependência com uma outra pessoa.73

As cisões winnicottianas não assinalam, portanto, algo que aconteceu mas não devia. Elas apontam, antes, para algo que devia acontecer mas não aconteceu.74 Quando há intrusão, aconteceu o indevido - o inesperado, e não aconteceu o previsto - o aguardado. Diante do extemporâneo, o bebê teve que reagir e, por isso, cindiu-se no tempo, no espaço, no corpo, nas relações de objeto, enfim, nessa ou naquela dimensão por onde poderia continuar a crescer. Essa parada, esse não-acontecido do amadurecimento devido à falha do ambiente, é também algo não-experienciado. O inesperado precoce não invade apenas por surpre- ender, o seu efeito traumatizante resulta sobretudo do fato de não existir ainda, nas fases muito precoces, alguém que possa integrá-lo na forma de uma experiência. O ambiente traumatiza sobretudo quando impõe algo que ainda não pode ser experienciado em primeira pessoa e que, por isso, só pode ser enfrentado por uma "reação" patógena. Nem a intrusão nem a reação são experienciadas. A cisão - o não-crescimento - permanecerá ela mesma não-experienciada e, até que se der a cura, não-experienciável. Este é o sentido do "inconsciente" winnicottiano: trata-se de um modo de existir do homem em virtude do qual esse se partiu segundo essa ou aquela linha de crescimento e de integração. O seu processo de amadurecimento parou, foi desativado ou mesmo desfeito. Tal cisão pode ser primitiva a ponto de anteceder a existência da capacidade de integração em termos de experiência e, de um modo geral, de representação. Quando tal ocorre, a cisão antecede a distinção tradicional entre o consciente e o inconsciente, com a qual trabalha Freud. "Nessa área", diz Winnicott, "ainda não há para o bebê o consciente e o inconsciente".75 A psicanálise winnicottiana, na medida em que trata do não-acontecido, não concerne, portanto, nem o recalcado, nem o in-consciente. Trata de agonias do ser e do não-ser, que Winnicott corretamente denomina de "impensáveis". É desse tipo de mal que sofre o psicótico winnicottiano, não de reminiscências. É contra traumas que o fazem agonizar que são erigidas as defesas psicóticas (as psicoses). Se o inconsciente agônico não é comunicável, isso não se deve ao fato de sua verbalização ser censurada, mas ao fato de ela não poder ser feita. Para tanto, deveriam ter acontecido muitas coisas que justamente não aconteceram, entre elas a comunicação primária pré-verbal com a mãe.

 

9. Da comunicação entre o paciente e o analista relativamente à cisão (o não-acontecido) em Winnicott

Winnicott sabe muito bem que a psicanálise tradicional é baseada na comunicação verbal, caracterizada pela regra fundamental, e nas interpretações causais apoiadas pelas especulações metapsicológicas. Ele concede que tal método era bastante apropriado para o tratamento de pacientes neuróticos.76 Nesses pacientes, as experiências psíquicas podem ser consideradas como "dadas",77 a capacidade de simbolização e mesmo de verbalização como estabelecida.78 Além disso, eles já sabem como fazer uso dos objetos e diferenciar entre o eu (o interno) e o não-eu (o externo). Os pacientes que atingiram esse grau de desenvolvimento poderão perfeitamente exibir distúrbios relativos a suas relações de objeto. Esse é justamente o caso dos neuróticos, pessoas que se debatem com problemas objetuais, perfeitamente representáveis, nomeáveis, no mesmo sentido em que são verbalizáveis os problemas objetuais de homens sadios. Assim sendo, o psicanalista poderá tratá-los por meio da aplicação da regra fundamental de Freud.79

A situação dos psicóticos é diferente. Para caracterizar essa diferença, é preciso lembrar que a externalidade e a objetividade do mundo, assumida pelos neuróticos, é uma criação do processo de amadurecimento e que possui, em virtude disso, um certo caráter ilusório. Os neuróticos só podem sofrer porque "têm fé" na realidade objetiva do mundo e formulam os seus problemas como relativos a esse mundo. Tal não acontece com os psicóticos, cujo problema essencial é justamente a falta da ilusão básica, sobre a possibilidade do contato com o mundo externo. Esta falta da ilusão não decorre do abandono de cargas sobre representações por imagem e a conseqüente perda de conexão entre representações por palavra e representações por imagem, como pensava Freud, mas é devida à não-constituição, numa fase anterior, de um mundo confiável de objetos subjetivos. Os seus problemas, assinalados pelas agonias impensáveis, não são de ordem representacional; eles dizem respeito ao alojamento (dwelling), não acontecido, num mundo que deveria ter sido o primeiro, caso não tivesse havido a falha ambiental. Esses problemas não são enigmas nem se assemelham a casos de polícia. Não houve transgressão alguma, nem censura, não há criminosos nem algozes. Há bebês, crianças, adolescentes, adultos, agonizando por falhas nas relações humanas.

Caso queira cuidar dos sofrimentos desse tipo de paciente, o analista não poderá pressupor a capacidade de comunicação verbal objetivadora, isto é, a máquina representacional com a qual opera Freud. Com essas pessoas, deixou de acontecer algo antes mesmo de sua capacidade de experienciar e de comunicar esse não-acontecido ter sido estabelecida. Via de regra, eles padecem de agonias "pré-simbólicas" que se originaram "muito antes de a verbalização ter adquirido qualquer significação".80 Os psicóticos não trazem para a análise suas representações verbais, tratando-as como se fossem representações por imagem, nem seus "quebra-cabeças", mas os embates consigo mesmo e com o mundo, que nem sempre são vividos como próprios e, menos ainda, representados. Os pacientes winnicottianos típicos não se comunicam para informar os dados da charada em que se meteram, mas para poder continuar a existir e poder ter, um dia, uma biografia. E, às vezes, até para começar a existir. A psicanálise winnicottiana não é edipiana e sim maturacional.

Quando ocorrem distúrbios maturacionais, surge uma nova necessidade, também ditada pela tendência ao crescimento que define a natureza humana: a de refazer a comunicação com o ambiente sobre o não-acontecido, não sobre o censurado. Esse é um problema típico da clínica winnicottiana. A necessidade do restabelecimento da comunicação, como tal, não pode ser comunicada nem tornada assunto de informação. Para tratar do não-acontecido pré-simbólico, o analista não poderá pressupor nenhum modo habitual de representação. Quando o problema é precisamente criar a capacidade de ser si mesmo, de fazer experiência de si, de fazer experiências em geral e, depois, de se comunicar com o não-eu relativamente à cisão íntima, a análise não pode começar pela proposta de um contrato de comunicação verbal entre duas pessoas em relação de objeto uma como a outra. Nos casos em que a própria capacidade de comunicação é o não-acontecido agônico, não há nem pode haver regras de comunicação para iniciar a comunicação. A postura básica do psicanalista winnicottiano que trata de agonias impensáveis não poderá nem deverá, portanto, ser regida pela regra fundamental da clínica freudiana, por razões diferentes das aduzidas por Freud para explicar a incapacidade dos esquizofrênicos de entrar em relação de transferência.

Chega-se assim ao que poderia ser chamado a alternativa positiva da regra fundamental de Freud: esperar, esperar, esperar, até que o paciente tente se comunicar, não importa de que maneira, e então responder correspondendo. A comunicação que acontece como correspondência, isto é, como disponibilidade para o contato necessitado, não caberá na equação básica da clínica freudiana do recalcado: comunicação Ü verbalização Ü representação Ü objetivação Ü interpretação Ü história redesenhada, seguida de socialização e de moralização. A razão principal é a seguinte: na análise winnicottiana dos psicóticos, deixa de ser válido o ponto de partida dessa equação - a equivalência da comunicação com a verbalização. Esta não é nem ao menos condição necessária daquela. Winnicott é taxativo: no processo de cura desses casos, a verbalização não importa, as palavras não significam nada, a comunicação não pode ser feita por meio de palavras (1987a, p. 61). Mais ainda, o psicanalista não deve verbalizar a cisão do paciente em termos de categorias da consciência nem em quaisquer outros termos interpretados no domínio de dados objetivos. Muitas vezes, isso implica simplesmente guardar silêncio, mostrando que não há como saber - tomando o saber no sentido de conhecimento científico objetivante - o que fazer ou dizer.

Gostaria de destacar algumas outras conseqüências que resultam do abandono, por parte de Winnicott, do ponto de partida da equação básica da clínica freudiana. A primeira delas é epistemológica: se o não-acontecido não é verbalizável, ele tampouco é representável. As manifestações do paciente não podem nem devem ser vistas como fonte de informações fatuais sobre a perda de cargas objetais a serem usadas na formação de hipóteses (interpretações) causais e de especulações meta- psicológicas. Na análise dos psicóticos, não se trata de "conhecer" nada, mas de estar com o outro de uma certa maneira. O reconhecimento desse fato pelo analista é essencial para o êxito da cura.

A segunda é ontológica e não menos radical: na clínica winnicottiana das psicoses, o paciente não é um objeto, uma imagem num espelho. Ao regredir à dependência, o analisando torna-se o analista, no sentido transitivo do verbo ser - assim como o bebê é a mãe, na hora da identificação primária - e quer ser tratado como tal. O analista terá, portanto, que aceitar existir no mundo subjetivo do paciente. Quando isso acontecer, o analista tampouco será objeto externo para o analisando, ele passará a ser seu "objeto subjetivo".

Terceiro, o destino humano não é um efeito do destino das cargas ou das pulsões que habitam o nosso aparelho psíquico. Ele é a trajetória de quem está no caminho entre o nada inicial e a "segunda morte". Transeunte, o ser humano tem que, desde a primeira mamada, criar ex nihilo o seu primeiro mundo e os primeiros sentidos das primeiras coisas; destruir, em seguida, essa sua ilusão inicial e refazê-la na forma de novas fabulações, levando em conta, desta vez, a realidade objetiva e os outros externos, para, no final - depois de ter cruzado os diferentes mundos que criou e aos quais se adaptou - integrar o que estava esquecendo esse tempo todo da vida criativa: a possibilidade do retorno à solidão, livre de qualquer dependência, à "condição de completa simplicidade" que custa "nada menos do que tudo".81

Quarto, o problema de comunicação com os psicóticos não se deve ao fato de eles formarem as palavras sem conexão com os seus significados e de tratarem as palavras de acordo com as regras dos processos primários, mas ao fato de eles se comunicarem tão-somente para dizer que querem continuar a existir e vir a ter uma biografia. Compreender esse tipo de dizer não é o mesmo que decifrar dados relativos à sua história - preenchendo lacunas na cadeia de informações fornecidas -, pois trata-se de ajudar o indivíduo a criar, pela primeira vez, a capacidade de se integrar e de se tornar um si-mesmo independente. Mais precisamente, a tarefa é a de facilitar para que o paciente, ele mesmo, esta- beleça o contato com o não-consciente que permaneceu não-integrado e que, por isso, nem ao menos era seu. É somente depois de ter-se integrado, nesse sentido originário, que um indivíduo poderá eventualmente ser "analisado" e "historiado", no sentido da psicanálise tradicional.

Quinto, a facilitação do existir proporcionada pela análise winnicottiana infringe a regra de abstinência, implícita na regra fundamental de Freud. Para Winnicott, o que está em jogo na relação analítica não é apenas a "verdade", mas também a "bondade". O analista winnicottiano não pode permanecer na atitude de "abstinência" e deixar que a cura aconteça por conta do princípio do (des)prazer do analisando.

Ele tem que ser suficientemente bom para poder proporcionar que aconteça o não-acontecido, isto é, que aconteça uma vida humana que valha a pena. É esse deixar-acontecer - que não é um fazer acontecer - que deve estar presente na comunicação analítica, como, de resto, em qualquer comunicação verdadeira interpessoal. Se tudo correr bem na análise, esse tipo de comunicação permitirá que aconteça o não-acontecido, que surja alguém que possa experienciar o não-experienciado e passe a se relacionar com o ambiente. A clínica winnicottiana não consiste em "intervenções" ou "cortes", embora possa recorrer também a esses expedientes. O clínico winnicottiano é terapeuta no sentido etimológico, grego, dessa palavra: aquele que dispensa cuidados e presta serviços.82 Dispensar cuidados não significa fazer atos de caridade, mas sustentar os seus pacientes na tentativa de existir, compartilhando, dessa maneira, da fragilidade insuperável da vida humana. Esse cuidar é engajado, não devido à solicitação que vem do paciente, mas em decorrência da eticidade que caracteriza a condição humana. A eticidade do analista winnicottia- no não repousa sobre a regra negativa de abstinência, mas sobre a exi- gência positiva que carateriza o existir humano como tal e que decorre da tendência à integração definitória da natureza humana: a de, ao acontecermos nós mesmos, termos que deixar acontecer também os outros.83

Por fim, muda também o conceito de cultura. O homem culto não é aquele que consegue minimizar o desprazer nas condições de socialização e da moralização, impostas pelas relações afetivas ou pela ditadura da razão. Ter vida cultural não significa transferir energias, represadas pela censura, para objetos substitutivos ou representações abstratas, isto é, sublimar. Significa ser criativo, no sentido da doação originária, ex nihilo, do ser e do sentido do ser, criação acompanhada de destruição permanente, quer mágica, quer efetiva, dos próprios produtos. Em Winnicott, criar não significa substituir e, nesse sentido, manter tudo como está, tal como pede o princípio de inércia; significa, antes, deixar ser e, ao mesmo tempo, nadificar - nos dois casos, manifestar a diferença entre o ser e o não-ser.

 

10. O modelo de comunicação não-verbal entre o paciente psicótico e o analista sobre o inconsciente não-acontecido: a comunicação inicial mãe-bebê

Para Freud, foi a análise dos sonhos - isto é, um fenômeno representacional - que serviu de modelo na concepção da regra fundamental para o tratamento das neuroses. A clínica winnicottiana dos psicóticos, tal como acaba de ser descrita, não é calcada sobre um modo de representar, mas sobre o modo de se relacionar com outros, a saber, sobre a relação mãe-bebê. Winnicott entende que o analista deve imitar a disponibilidade primária da mãe para o contato com o seu bebê. A fim de explicitar a natureza da comunicação entre o paciente e o analista a respeito da cisão e do não-acontecido, Winnicott debruçou-se, na última fase da sua obra (1960-1971), sobre o fenômeno de comunicação em geral e dedicou a esse tema - em particular, às formas originárias de comunicação - alguns dos seus trabalhos mais ricos e, ao mesmo tempo, mais difíceis.84

Winnicott trabalha o assunto a partir de duas teorias centrais da sua fase madura, a teoria dos objetos e a do si-mesmo verdadeiro e falso. A sua teoria de objetos diz que, ao longo do processo de amadurecimento humano, o indivíduo parte de uma situação em que ainda não há objetos, para, em seguida, relacionar-se com objetos de natureza essencialmente diferente. No início da vida humana, na fase da primeira mamada teórica, ainda não há dualidade entre a mãe e o bebê, apenas o dois-em-um (mother-baby set up). Assim mesmo, seguindo o uso comum da psicanálise, Winnicott vai chamar a mãe primária de "objeto subjetivo". Como deve ser entendida aqui a "relação" do bebê a esse tipo de "objeto"? No sentido estrito, não há relação alguma. Em 1970, Winnicott escreverá: "Para mim é axiomático que não há relacionamento com [no relating to] o objeto subjetivo" (1989a, p. 286-7).

De que tipo de união se trata, então? O que é, nessa situação, a mãe para o bebê? Ela é o que o bebê veio a ser, pois o bebê começa o seu existir tornando-se a mãe, vindo a ser a mãe. Aqui, o nome certo da mãe não é ainda "objeto" e sim "ambiente".85 A mãe que o bebê passou a ser (note-se que aqui "ser" tem o sentido transitivo) não é uma entidade separada, ela é o todo dos cuidados dispensados na preocupação materna primária.86 O modo de o indivíduo ser a mãe-ambiente pode ser chamado de "identificação primária". Mas, nesse contexto, "identificação" não significa união de dois indivíduos que pré-existem separados. Significa, antes, que o indivíduo humano, caraterizado inicialmente apenas pela tendência inata à integração (isto é, pelo seu "ego" originário), ganha, na presença viva da mãe, "a base da capacidade de ser". É, portanto, a presença da mãe-cuidado, não a relação de objeto com a mãe-coisa, que proporciona a acontecência capital: a constituição - pelo "encontro" do vago gesto espontâneo do ego inato com os cuidados maternos - do "sujeito objetivo", do "si-mesmo" (self) primário, do "chão" do qual brota a espontaneidade e a criatividade que poderão caraterizar uma vida futura sadia. Aqui cabe lembrar o que Winnicott diz sobre o olhar da mãe. A mãe não é o espelho que simplesmente "reflete" o bebê para o bebê. No seu olhar, o bebê é visto e, sendo visto, pode dizer: "eu existo e logo tenho como fazer gestos espontâneos" (1971a, p. 134). Desse suporte da "idéia do si-mesmo" unitário e do "senso de ter uma identidade" surge o primeiro "senso do real".

Nesse primeiro sentido do ser, ainda não há lugar para a distinção entre ser si mesmo e não ser si mesmo. Nas condições de dependência máxima da mãe, o indivíduo ainda está absolutamente só. Fora do momento inicial, essa solidão "inerente" e "essencial" para a vida saudável nunca mais poderá ser reproduzida (1988, p. 132). A incomunicabilidade do si-mesmo primário com o mundo externo não deve ser confundida com uma outra negatividade comunicacional, mais profunda ainda, a do estado de paz, anterior à solidão essencial, ao qual podemos, assim nos parece, retornar por meio de uma regressão extrema. Essa solidão é anterior a qualquer relação de dependência, ela já foi experienciada de alguma maneira (1988, p. 133), mas só pode ser devidamente apreciada à luz da verdade que define uma pessoa madura: a de que a vida humana surge e se firma a partir da não-vida, e de que o ser humano só se torna fato ao tomar o lugar do não-ser (1965j [1963], p. 191). A mesma verdade pode vir a se manifestar, em momentos privilegiados, como a capacidade de se permitir até morrer.87 É essa negatividade que está implícita na afirmação de Winnicott de que a vida de um indivíduo humano é "um intervalo entre dois estados de não-vida", o primeiro sendo aquele do qual a vida surge, o segundo aquele para onde ela retorna (ibidem). Dessa finitude, o bebê ainda não sabe nada. Ele pode muito bem vir a aprender a estar a só com a mãe-ambiente, mas ele ainda não tem capacidade alguma de ficar preocupado com a morte. A morte, para o bebê, significa única e exclusivamente a perda da continuidade do ser (1987a, p. 134).88

Com a constituição da identidade inicial pelo encontro com a mãe-ambiente, ficam estabelecidas as condições para que o indivíduo, agora já caracterizado pelo si-mesmo primário, possa iniciar, sempre com a ajuda facilitadora do ambiente, a resolução de novas tarefas integrativas, para poder instalar-se no mundo e para, um dia, poder deixá-lo. Em particular, a conquista da identidade primária é a condição de possibilidade de resolução das três primeiras tarefas de integração ao mundo: a integração no espaço e no tempo, o alojamento no corpo e o início de suas relações de objeto. O seu êxito nessas tarefas dependerá essencialmente da facilitação da mãe-ambiente, isto é, da sustentação, do manejo e da apresentação de objetos, respectivamente.

Na resolução da terceira tarefa - a de iniciar as relações de objeto - a mãe passa a ser objeto (seio) apresentado pelo ambiente (a mesma mãe enquanto cuidado). Isto é, manifesta-se justamente como algo que o bebê aguardava, sem saber ainda de que se trata nem onde e quando poderia ser encontrado. Nesse primeiro sentido objetal, a mãe ainda não é objeto transicional, nem, menos ainda, objeto objetivamente percebido. Ela é a oportunidade de o bebê aprender a fazer uma experiência que será essencial para o resto da sua vida: a experiência da onipotência sobre objetos e de sua criatividade absoluta (1965j [1963], p. 180). Essa experiência reforça o senso do real do si-mesmo primitivo e, ao mesmo tempo, ensina a abertura autoconfiante para o mundo que, mais tarde, acabará por se revelar "externo" e governado por leis próprias. A iniciação nas experiências de onipotência e de confiabilidade dá-se ainda no domínio do objeto subjetivo, antes de quaisquer episódios de repúdio ou de separação.

Mas esses episódios terão que acontecer e, dessa maneira, surgirão as relações de objeto propriamente ditas. A mãe "objeto subjetivo", não percebida nem alucinada, apresentada no quadro da preocupação primária (1971a, p. 6), cederá, aos poucos, o lugar a objetos de natureza totalmente distinta, chamados de "objetos objetivamente percebidos", objetos reais externos acessados pela representação. A criação do sentido de realidade externa (espaço e tempo externos, a causalidade natural, etc.) e da natureza de objetos externos (de serem não-eu, de terem suas propriedades, de existirem e de terem existido independentemente do eu) não poderá ocorrer diretamente, pela transubstanciação dos objetos subjetivos. Ela deverá passar por uma área intermediária, também criada, denominada "espaço potencial", domínio povoado de fenômenos e de objetos transicionais, com um sentido próprio de realidade. Ela dependerá, ainda, da criação da capacidade do uso de objeto (dessa vez, a facilitação da mãe consistirá em sobreviver à destruição pelos ataques do bebê) e da formação do eu "secundário", o eu das ações, das necessidades instintuais, dotado de um domínio privado, reservado, "interno", separado do não-eu. A partir de então, o não-eu será compreendido como "externo" para, finalmente, ser hipostasiado como "coisa em si", coisa ela mesma, presente no mundo antes e depois de mim, que pode ser amada, odiada e fantasiada. É nesse momento também que começam a se fixar os padrões de comportamento adaptativo, posto na conta não do si-mesmo primário, mas de uma das suas derivações, o si-mesmo falso normal. Ao longo do seu amadurecimento, o indivíduo humano passará a habitar diferentes áreas, povoadas de objetos que mudarão não apenas de propriedades, mas de natureza (1965j [1963], p. 180).89

 

11. Elementos da teoria winnicottiana da comunicação primária

É no quadro dessa teoria da acontecência do si-mesmo e das relações de objeto que Winnicott inscreverá as suas observações sobre a comunicação. Ele distinguirá a comunicação com o objeto subjetivo de todas as outras.

No início, a comunicação ocorre entre o si-mesmo verdadeiro primário e a mãe-objeto subjetivo. Winnicott a chama de "comunicação beco-sem-saída" (cul-de-sac). De fato, como o indivíduo é a mãe-ambiente, a sua comunicação com essa mãe, que se apresenta como o primeiro "objeto", é idêntica à comunicação consigo mesmo. O indivíduo não "sai" de si, ele se "relaciona" com o seu si-mesmo tal como constituído pelos cuidados maternos primários. Ele mama em si mesmo.

Esse tipo de comunicação não pode ser iniciado nem pela mãe, isto é, de lá para cá, nem pelo bebê, de cá para lá. Nessa fase, o bebê ainda não tem idéia de coisa alguma, nem mesmo uma pré-concepção do que buscar, no sentido de Bion (1967, cap. 9). Ele não tem nem mesmo um funcionamento mental pleno - sabe-se que este é uma aquisição a ser feita durante o processo do amadurecimento - e, por isso, não pode ainda compreender algo como algo, remeter algo a algo, deslizar de algo para algo. Sem a ajuda da mãe, nem as mais primitivas "significações" ou "remissões" instrumentais estão constituídas. Nessas condições, a comunicação, para existir, terá que acontecer. Do mesmo modo, se ela for interrompida por um acidente ou devido à falha da mãe, o bebê tentará refazer a comunicação, em virtude da tendência à integração, e a mãe fará o mesmo em razão da preocupação primária. Entretanto, nem um nem outro poderão iniciá-la sozinho. A comunicação terá que acontecer de novo.

Poderá talvez parecer que não há nem pode haver qualquer troca numa relação desse tipo. Mas isso é um engano, pois, na comunicação inicial, decide-se o senso do real, o sentido do ser e da continuidade do ser do si-mesmo (Winnicott 1965b, cap. 17, p. 184). A comunicação beco-sem-saída tem os seus modos e o seu dito ou, alternativamente, o seu ouvido. Primeiro, os modos. A comunicação sem saída para fora é secreta, silenciosa, não-simbólica. Em suma, é não-verbal: "As principais coisas que a mãe faz com o bebê não podem ser feitas pelas palavras" (1987a, p. 61). Aqui ocorre uma troca que não pode ser compartilhada por terceiros e que desafia a linguagem "comum". Assim como todas as outras necessidades precoces que decorrem da necessidade de ser, a necessidade do bebê de se comunicar também é "imune ao princípio de realidade", sendo, "tal como a música das esferas, absolutamente pessoal" (1965b, cap. 17, p. 192). Em que consiste essa música? A mãe e o bebê falam pelos gestos, pelos ritmos, pelos cheiros e tessituras, num mundo suspenso sem objetos representáveis, como se fossem personagens do teatro nô. Nessa hora, nenhum dos dois é objeto para outro. Não acontece nenhuma "transferência" de afeto ou de representação, nenhuma fabulação ou fantasia. O que acontece é a relação de dependência em que o bebê pede e a mãe atende.

O que é dito/ouvido na comunicação beco-sem-saída, pela música das esferas? Sem jamais precisar verbalizar, a mãe suficientemente boa diz algo que, se posto na forma das palavras, poderia ser expresso da seguinte maneira:

Eu sou confiável, não porque sou uma máquina, mas porque sei o que você precisa; e eu me preocupo com isso, e quero lhe dar o que você necessita. É isso o que chamo amor nessa fase do seu desenvolvimento. (1987a, p. 97)

A mãe cuidadosa e confiável estará dizendo ao seu bebê que é capaz de entender o que ele precisa e que o ama "fisicamente". Quando se trata de comunicação silenciosa, "o bebê não ouve nem registra a comunicação", mas apenas os efeitos da confiabilidade ou da não-confiabilidade e responde à sua maneira (ibidem). Nesse cenário favorável, o bebê também tem algo a dizer e o faz pelo simples fato de continuar existindo. O seu "continuar sendo", o seu "desenvolvimento de acordo com o processo de amadurecimento pessoal", tem o sentido de aceno que a mãe suficientemente boa saberá perceber e interpretar (1965a, cap, 17, p. 183). O que está dito, dessa maneira, são as necessidades que se originam, todas elas, da tendência a continuar a ser e que ainda não são nem representadas, nem verbalizadas, nem objetivadas, nem, portanto, bytes de informação transmitidos à mãe. A comunicação em questão define o sentido de "estar vivo" do bebê (p. 192). Trata-se, por parte do bebê, de uma dica não-verbal, que, no início, não passa de um esboço de um gesto e que, talvez, nem mereça o nome de comunicação. Cabe, assim mesmo, reconhecer nesses fenômenos um estar-junto num espaço de sentido, que a tarefa de existir num mundo ainda a ser integrado vai impondo ao bebê.

Mas a mãe pode também falhar nesse momento inicial (se ela não lhe der o amor "físico"). Sem precisar verbalizar nada, ela pode dizer, por exemplo: "Deus vai te fulminar se você continuar se lambuzando assim quando acabei de te limpar", ou: "Você não pode mais fazer isso!"90 É claro que a mãe pode até verbalizar a sua ameaça ou a sua proibição. O ponto é que o bebê não entende as palavras e sim os modos de presen- ça normalisantes da mãe e que ele responderá ficando abalado ou mes- mo fragmentado e cindido. No caso infeliz, seu abalo e, a fortiori, a fragmentação e cisão podem ser simplesmente ignorados pela mãe, o que vai piorar a situação. Nos casos benignos, a mãe poderá tomar esse dito como uma comunicação de que nem tudo vai bem. Ela poderá, então, tentar de novo.

Como o que é dito nessa comunicação primária não pode, em princípio, ser traduzido na linguagem das categorias objetivantes da consciência, o si-mesmo inicial permanecerá para sempre um ser "isolado", sem vínculos objetais, "permanentemente não-comunicante", não-verbalizado, "permanentemente desconhecido", em termos de realidade objetiva verbalizada, "de fato nunca encontrado", não posto em relação de objeto com ninguém. Esse fenômeno essencial não tem nada de patológico. Ele não é sinal de depressão, nem de autismo, nem de um núcleo patógeno defendido. Pelo contrário, ele fala da existência de uma base de vida sadia capaz de ir resolvendo seus problemas (p. 188), sendo o fundamento do qual surgem naturalmente outras formas de comunicação, em particular, as públicas, as barulhentas e as verbais que, essas sim, devem obedecer ao princípio de realidade (p. 192).91

Se essa é a verdadeira condição do núcleo inicial e, por isso, central, do ser humano, entende-se a razão pela qual Winnicott a chama de "sagrada" e pela qual afirma que ela deve ser preservada como o que há de mais valioso. Não se trata aqui de qualquer apelo irrefletido à religiosidade tradicional,92 mas do reconhecimento do fato de que a amea- ça de infiltração da comunicação objetivadora nesse núcleo íntimo do ser humano é uma violência diante da qual o estupro, por exemplo, representa um mal menor. É um "pecado", dirá ainda Winnicott (p. 187), forçar o si-mesmo primário a entrar em comunicação com o mundo ex- terno, povoado de objetos objetivamente percebidos, governados pelo princípio de realidade. Ora, a forma básica de violentar o núcleo primá- rio do si-mesmo é justamente a verbalização (p. 189). Winnicott não pretende fechar o indivíduo no isolamento total. Ele não diz que o ser humano busca estar isolado (isolated) para ficar ilhado (insulated). Ele diz que a comunicação com o verdadeiro si-mesmo de cada um de nós deve seguir a maneira como as mães tratam os seus bebês: elas só se comunicam com eles pondo-se na condição de seus objetos subjetivos (p. 188).

Esse é, também, o motivo profundo pelo qual Winnicott sustenta, como foi visto anteriormente, que a interpretação verbal pode ser perigosa quando o analista se torna repentinamente o não-eu do paciente e passa a saber coisas demais sobre o "ponto quieto e silencioso da organização do ego do paciente" (p. 189). É o caso de dizer, creio eu, que, quando tal acontece, a insistência na regra: diga tudo sem censura, torna-se um exercício de "psicanálise selvagem".93

Gostaria de fazer, para terminar, alguns apontamentos sobre certas teses de Winnicott relativas à linguagem e os limites da mesma. Em primeiro lugar, Winnicott distingue entre diferentes tipos de linguagens descritivas. Uma linguagem apropriada para tratar de um nível de amadurecimento pode ser errada para descrever modos de ser relativos a outros níveis (1987a, p. 34). Os estágios muitos primitivos, por exemplo, a relação de identidade primária mãe-bebê, não pode ser descrita em termos da linguagem das coisas. O bebê não é uma entidade separada da relação mãe-bebê. Ele é, como diria Heidegger, um estar-com-outro. Por isso não pode ser objetivado, nem categorizado por meio de categorias do mundo externo, nem mesmo da consciência. A experiência do bebê tem um sentido pré-psíquico e pré-somático, e esse sentido deve ser preservado na teoria. Winnicott sublinha ainda os limites da linguagem especulativa utilizada por Freud na sua metapsicologia como complemento da categorização do inconsciente em termos do consciente, reconhecendo ter inibições em ler Freud e se diz "absolutamente incapaz" de tomar parte em discussões metapsicológicas. Em alguns momentos, ele se pergunta sobre a razão da sua tão profunda desconfiança em relação aos termos metapsicológicos: "Será que é porque eles podem oferecer a aparência de serem compreensíveis por todos quando tal compreensão não existe? Ou será que é por causa de algo dentro de mim?" A resposta que Winnicott encontrou, nesse momento, foi a seguinte: "Pode ser, é claro, que sejam as duas coisas".94 Finalmente, cabe ressaltar que Winnicott recorre a linguagens verbais não-científicas ou metafísicas, tal como a linguagem poética, e aproximará o dizer psicanalítico do dizer filosófico e mesmo do teológico.95

 

12. Depois da desconstrução da verbalizabilidade

Freud estava entre aqueles que libertaram o dizer de certos condicionamentos. Ele deu ao desejo a palavra livre das restrições da censura moral e das considerações do realismo reconfortante. Mas Freud não perdeu a fé, salvo em alguns momentos de indecisão, no Deus Logos (1927c, SA 9, p. 187). Ele foi capaz - o primeiro - de dar sentido clínico à verbalização do desejo censurado, mais precisamente do pensamento que formula o desejo. Se Freud reconheceu os direitos do desejo, ele insistiu também sobre os seus deveres: obedecer ao princípio da realidade, domínio do Deus Verbo, lugar da verdade e do bem. Freud nunca reconheceu verdade alguma na palavra perversa, e tampouco na palavra quebrada, no pensamento que não se formula, que não chega a ser verbo da tradição filosófica e científica, exemplificado nos dizeres sempre desfeitos dos personagens de Beckett: os que nunca conseguem contar a história da própria vida. Mesmo tendo percebido que o problema do bem e do mal não pode ser reduzido à oposição entre o prazer e desprazer, ele jamais deu qualquer importância ao problema do bem e do mal desvinculado da luta entre a vida e a morte. Preso ao dualismo tanto na ontologia como na moral, Freud não percebeu que o ser humano pode adoecer não somente por causa das ameaças à vida, mas também devido à sua futilidade. Nas últimas obras, ele mostrava-se disposto a substituir a lei paterna, depositada no enigma do tetragrama, pela "ditadura da Razão" (1933a, lição 35, SA 1, p. 598). Até o fim, Freud guardou, portanto, a fé na palavra explícita da racionalidade ocidental. Isso ocorria no momento em que, como vimos anteriormente, entravam em crise, na filosofia e na poesia, os poderes objetivadores e as virtudes clínicas da palavra cheia.96

Com Winnicott, essa crise alcançou a psicanálise. Não porque Winnicott tivesse lido Heidegger - ao que tudo indica, Winnicott não teve um contato direto com a obra do filósofo alemão -, mas porque foi levado a isso pelos psicóticos de quem tratava. Mesmo nesses casos, a tarefa básica da psicanálise permanece sendo aquela que foi descoberta por Freud: cuidar da doença e da saúde psíquicas (psicossomáticas) na situação a dois, aberta à verdade e à dor humana. Só que a vida não é mais concebida como desenvolvimento da constituição herdada, sujeita ao princípio de (des)prazer, sob a influência do acaso, mas como amostra temporal da natureza humana, definida pela tendência ao amadurecimento num ambiente favorecedor. Por essa razão, o princípio básico do cuidar psicanalítico do ser humano deixa de ser o de ouvir e interpretar o que aconteceu, mas não devia ter acontecido, e passa a ser o seguinte: favorecer a integração do existir humano no tempo, no corpo e no mundo, integração que não aconteceu ou não aconteceu como devia, acontecência essa que não se explica causalmente, mas humanamente, e não pertence, na sua origem, ao domínio do verbalizável. Para se firmar numa vida que possa valer a pena ser vivida e que até possa ser transcendida, o homem depende essencialmente da boa sorte e de favores imprescritíveis dos outros. A primeira relação do bebê com a mãe não pode nem deve ser objeto de representação, nem, ainda menos, de teorização ou de ensino. "A mãe pode ser impedida", diz Winnicott, "e ela pode ser ajudada pelo apoio em todos os outros aspectos, mas ela não pode ser ensinada".97 Sendo a comunicação inicial "uma canção sem palavras",98 é preciso deixar que ela aconteça "naturalmente", a partir da maneira como só as mães regredidas ou analistas winnicottianos sabem deixar acontecer. Trata-se aí de um tipo de conhecimento totalmente diferente do conhecimento empírico-teórico da ciência da natureza, que ainda determinava as regras da clínica freudiana.99 Do mesmo modo, a última relação consigo mesmo, o desapego da morte, tampouco pode ser fonetizado. Nesse ponto, o círculo do existir humano abre-se a uma dimensão que tem que ser dita, mas que não pode ser acomodada na palavra plena.

Apesar do rompimento com o postulado de verbalização e com o modo de teorização ortodoxo, introduzido por Freud, Winnicott nunca deixou de se considerar um psicanalista. Ele se dizia fiel não a Freud, mas à tradição de pesquisa criada por este, pondo em movimento um processo que "nós e todas as gerações futuras podemos usar para a terapia, que é uma pesquisa da natureza humana, e para a pesquisa, que é uma terapia do homem" (1989a [1964], p. 483; itálicos meus). Mesmo constituindo uma linguagem própria, apoiada no inglês coloquial, livre da metapsicologia freudiana, linguagem inspirada em poetas, filósofos e teólogos e, por momentos, não-gramatical, Winnicott sempre ressaltou que a sua pesquisa e a sua terapia permaneciam práticas científicas, distintas de práticas artísticas, filosóficas ou religiosas. Winnicott concede, num texto significativo de 1945, que se possa supor que um poeta como Shakespeare já compreendeu tudo o que possa vir a ser descoberto pela psicanálise. Mesmo assim, a psicanálise tem vantagens sobre a "compreensão intuitiva" do artista: a compreensão psicanalítica, por ser produzida metodicamente e baseada em teorias testadas, pode "falar de maneira menos insensata da natureza humana", além de poder "ver mais nas peças de Shakespeare" (Winnicott 1945h, p. 4).100 É igualmente possível - e Winnicott reconhecerá, em várias oportunidades, ser esse o caso - que os filósofos e os pensadores religiosos tenham antecipado muitas das teses mais ousadas da psicanálise.101 Não obstante essas afinidades, a psicanálise "permanece um instrumento de pesquisa científica ou de uma terapia, e nunca faz uma contribuição filosófica direta ou uma contribuição religiosa" (ibidem, p. 11). Tal como Freud (veja-se, por exemplo, o uso parcimonioso que Freud faz de Nietzsche e Schopenhauer e a sua crítica à postura "profética" de Jung), Winnicott não se entrega a discussões filosóficas ou religiosas. Ao mesmo tempo, ele recomendava aos psicanalistas que sigam "o caminho satisfatório em direção da verdade" construído por Freud e se submetam às exigências do "treinamento científico" (ibidem, p. 5). Os que se recusam a aprender a testar cientificamente seus "pequenos fragmentos do mundo" e pretendem fazer progredir a psicanálise trilhando caminhos "pessoais" precisam saber, adverte Winnicott, que

nossos sentimentos e nossa imaginação podem fugir ao controle e nos levar a qualquer lugar; permitir-nos sonhar, num momento, que somos capazes de voar e, no próximo momento, fazer-nos sentir que estamos infinitamente sem apoio, de modo que caímos e caímos, e não existe nenhum fundo [...].(Ibidem)

O fundo existe, entretanto, e consiste em "estar acordando", "o que significa um retorno à ciência, à realidade externa bem-testada e bem-vinda" (ibidem).

Winnicott preservou essa mesma concepção científica da psicologia dinâmica (psicanálise) até o fim da vida. Em 1958, por exemplo, Winnicott faz notar que a contribuição de Freud à psicologia social consistiu no fato de ele ter introduzido idéias que permitiam compreender o crime e, ao mesmo tempo, ter mostrado "como podemos testar e usar" essas idéias (Winnicott 1958o, p. 28). Dez anos depois, em 1968, ele lamenta o fato de a lealdade pessoal impedir os membros da Sociedade Britânica de Psicanálise de se dedicarem ao "cuidado para com a verdade" e "de fazerem apreciação científica ou objetiva" das teses de M. Klein sobre o instinto de morte, ao mesmo tempo que louva Freud por ter cultivado, com respeito a suas próprias formulações sobre esse mesmo assunto, "dúvidas próprias de um cientista que sabe que nenhuma verdade é absoluta e final" (1989a, cap. 53, p. 460). Num dos seus últimos trabalhos, Consultas terapêuticas (1971), Winnicott volta a enfatizar a importância do treinamento em psicanálise, baseado na teoria psicanalítica. A diferença em relação à posição de 1945 é que, nessa altura, ele toma como "base teórica" do treinamento e da terapia a sua própria teoria do amadurecimento pessoal e não mais a teoria freudiana do desenvolvimento sexual. A recepção crítica da obra de Winnicott tem, portanto, diante de si, duas tarefas essenciais, ainda não resolvidas de maneira satisfatória: 1) determinar a natureza da mudança que Winnicott introduziu na psicanálise fundada por Freud, 2) explicitar o conceito de ciência implícito na reformulação winnicottiana da psicanálise tradicional.102

 

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1 Texto ampliado e modificado da palestra proferida na Sociedade de Psicanálise do Rio de Janeiro, em 24/10/97, e reapresentada no III Colóquio Winnicott, PUC-SP, 05-07/06/98.
2 No texto original de Os estudos sobre a histeria (1895), esse termo aparece em inglês.
3 Glossa, em grego, significa língua, no sentido de órgão de fala.
4 Esse ponto foi trabalhado por muitos autores, cf., por exemplo, Forrester 1980, para um estudo feito na perspectiva lacaniana.
5 Cf. Histoire de Juliette ou les Prosperités du vice, ed. Pauvert, vol. 9, pp. 582-3. Sobre Sade e linguagem, cf. Le Brun 1986.
6 Consulte, a esse respeito, o dossier de processo contra Pauvert, movido em 1956, publicado in Garçon et al. 1957.
7 A edição foi feita em Berlim pelo colecionador Iwan Bloch.
8 De fato, Kant trabalha com conceitos, não com palavras. Mas, como existe um isomorfismo entre as estruturas conceituais e lingüísticas em Kant, a sua teoria dos conceitos pode ser traduzida numa teoria da linguagem.
9 As observações de Wittgenstein sobre Freud foram reunidas em Wittgenstein 1966. A teoria wittgensteiniana da linguagem foi usada para criticar a psicanálise, em particular, o método de livre associação e a metapsicologia, cf. Costa 1994. Antes dele, muitos outros seguiram o mesmo caminho, por exemplo, o médico O'C. Drury, aluno de Wittgenstein, que identificou cinco "falácias verbais" na psiquiatria, incluindo a psicanálise, e as submeteu à terapia do bem dizer, invocando, em seu apoio, o versículo 10:19 dos Provérbios: "Com a abundância de palavras as transgressões aumentam" (O'C. Drury 1973, p. 1).
10 Giddens define os sistemas peritos humanos como "sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos" (1991, p. 35). O "conhecimento perito", avaliado por meio de testes impessoais e crítica publica, influencia "de uma maneira continua muitos aspectos do que fazemos" (ibidem).
11 Talvez não seja implausível dizer que a violência decorrente da industrialização da palavra é apenas a forma trivial da violência cuja forma exacerbada - e, por isso, mais verdadeira - é o "crime infinito" dos mais radicais entre os sadeanos, crime que, como vimos, consiste em destruir a natureza que constrói só para destruir. Inversamente, talvez a violência verbal mais extrema, imaginada por Sade, não passe de revolta antecipada contra um mal mais extremo ainda, tornado hoje banal e, por isso, imperceptível: o mal da objetivação filosófico-científica do dizer e da sua conseqüente informatização. Talvez não seja por acaso que o nosso século tenha começado a interessar-se pela palavra extrema de Sade.
12 O existir humano só não se reduz, no seu todo, ao verbalizar por causa da crescente importância da imagem, também computadorizada.
13 Sobre a semântica kantiana dos conceitos e juízos da razão pura, cf. Loparic 2000.
14 F. Pessoa demonstrou que sabia disso quando chamou Nietzsche de "Baco alemão".
15 Para uma análise mais detalhada da diferença ontológica, cf. Loparic 1999a. 16 A tese de que o perigo extremo reside na linguagem objetivante, que "destrói a possibilidade de dizer o que está sendo falado", é desenvolvida em Heidegger 1959 (pp. 89, 103, 111 et passim).
17 As reflexões de Heidegger inspiradas na poesia de George foram estudadas em Loparic 1995a, cap. 9.
18 Sabe-se que o poeta E. Pound tinha profunda admiração pelo teatro nô, tendo traduzido algumas das peças centrais desse tipo de teatro.
19 No original: "Lautbild".
20 No original: "Schriftbild".
21 Deleuze fez notar que, nesse ponto, Alfred Jarry é um precursor significativo de Heidegger (cf. Deleuze 1993, cap. 11).
22 O termo "falar" em português vem do latim fabular, conversar, contar estórias.
23 Heidegger nos obriga a levar em conta os diferentes modos de dizer, glóssico (fonético), sígnico (alfabético), pictural, gestual e mesmo sigético. As diferentes tradições culturais acentuaram e desenvolveram alguns desses modos e negligenciaram outros. A tradição ocidental é predominantemente glóssica e sígnica. A do Extremo Oriente, pictural e sigética. Sobre esse último ponto, cf. a "conversa" entre duas viúvas das vítimas da bomba lançada sobre Nagasaki, no filme Sinfonia de agosto, de Kurosawa. Esses diferentes modos de dizer implicam diferentes sentidos do conceito de "linguagem" e, portanto, diferentes teorias da linguagem. Heidegger não deve ser entendido como aquele que propõe que se opte por um tipo de linguagem e se abandone as outras. Ele propõe, antes, que entremos numa nova relação com a linguagem. A introdução de diferentes modos de dizer acentua e atribui dimensões inesperadas ao problema tradicional da traduzibilidade. É uma das teses centrais de Heidegger a de que a linguagem da metafísica é intraduzível na linguagem originária, nas dicas e na gesta na qual é dita a diferença ontológica, e vice-versa.
24 O leitor terá observado que não leio esses dois clássicos da psicanálise à luz de qualquer filosofia do passado, nem mesmo a partir dos pressupostos da filosofia da ciência contemporânea, no estilo Carnap, Popper ou Wittgenstein. A primeira abordagem corre o risco de ser anacrônica e insuficiente, e a segunda é problemática por empurrar o dizer psicanalítico para o discurso objetivante e ortopédico da racionalidade moderna. Nem por isso, creio ser possível desvincular as questões humanas que surgem na situação a dois, característica da psicanálise. Aqui, Heidegger é um ponto de referência privilegiado, não somente por ser um pensador contemporâneo, mas por várias outras razões. Mencionarei aqui apenas duas. A filosofia da linguagem de Heidegger permite, como adivinhou Lacan, um diálogo particularmente frutífero com a psicanálise. Em segundo lugar, a caracterização heideggeriana do existir humano como sendo essencialmente relacional - não no sentido meramente estrutural (formal), psicológico ou social, mas no sentido ontológico: ser, para o ser humano, significa ser-com-outros - oferece um quadro muito mais adequado para o estudo da relação paciente-analista do que a teoria da representação, pressuposta em muitas teorias tradicionais da transferência.
25 Cf. Freud 1915e, cap. I.
26 Cf. Freud 1912e, SA, EG, p. 172.
27 Ibidem, p. 167.
28 Ibidem.
29 Nesse caso, a censura age entre o sistema do inconsciente e o sistema do pré-consciente (cf. 1915e, SA 3, p. 150). A justificação de tradução do termo freudiano "Sachvorstellung" por "representação por imagem" será dada em seguida.
30 Cf. Freud 1923b, SA 3, p . 290.
31 No original: "Begriffen, Abstraktionen", Freud 1923b, p. 319.
32 Cf. Freud 1915e, SA 3, p. 161. Cf. Freud 1923b, onde está dito que "para as relações que caracterizam especialmente o pensamento, uma expressão visual não pode ser dada" (SA 3, p. 290).
33 No original: "Klangbild", "Lesebild", "Schriftbild" e "Bewegunsbild", Freud 1891b, SA 3, p. 172. Note-se que essa concepção da palavra é recoberta, com bastante exatidão, pela concepção da linguagem rejeitada por Heidegger (ver o que foi exposto anteriormente sobre esse tópico).
34 Cf. 1923b, SA 3, p. 290.
35 A minha tradução do termo freudiano "Wortvorstellung" difere, portanto da costumeira: "representação de palavra", em francês: "représentation de mot". Esta peca por induzir à conclusão errada de que o objeto da representação são as próprias palavras. Pelo exposto, tal interpretação não faz sentido teórico e, além disso, torna várias passagens de Freud literalmente incompreensíveis. Por exemplo, Freud diz que, no caso da esquizofrenia, "a carga das representações verbais [Wortvorstellungen] de objetos fica preservada" (1915e, SA 3, p. 159). Se usássemos a tradução convencional teríamos o seguinte texto: "a carga das representações de palavra de objetos fica preservada", o que não parece fazer sentido.
36 Cf. Freud 1915e, SA 3, pp. 159-60.
37 No original:"Denken in Bildern" e "Denken in Worten", Freud 1923b, SA 3, p. 290.
38 No original: "in Worte gefassten Gedanken", Freud 1917d, SA 3, p. 187
39 Cf., por exemplo, Freud 1917d, SA 3, p. 187,
40 A tradução corrente é "representação de coisa", em francês: "représentation de chose". A principal dificuldade com essa tradução é conceitual: ela não é suficientemente específica, pois as representações verbais também são representação de "coisas". Além disso, ela torna vários trechos de Freud incompreensíveis. Freud diz, por exemplo, que "o que é permitido chamar de representação consciente de objeto divide-se, para nós, agora, em representação verbal e representação por imagem". De acordo com a terminologia usual, esse trecho deveria ser traduzido da seguinte maneira: "o que é permitido chamar de representação consciente de objeto divide-se, para nós, agora, em representação de palavra e em representação de coisa", o que, mais uma vez, não parece fazer muito sentido.
41 Cf. Freud 1891b, SA 3, p. 172. No original, Freud usa o termo "Objektvorstellung" (representação de objeto) como sinônimo de "Sachvorstellung" (representação por imagem) de O inconsciente.
42 Cf. Freud 1915e, SA 3, p. 160.
43 No original: "abgesperrt" (Freud 1917d, SA 3, p. 186).
44 Cf., por exemplo, Kant 1800, p. 53.
45 Cf. Freud 1917d, SA 3, p. 184: 1923b, SA 3, p. 290.
46 Cf. Freud 1900a, SA 2, p. 121.
47 Cf. Freud 1923b, SA 3, p. 191-2.
48 Cf. a oposição entre a cultura da informação (a da vida pública, por exemplo) vs. a cultura do silêncio (a dos mosteiros de todas as religiões "superiores").
49 Cf. Freud 1912a, SA, EG, pp. 172, 176.
50 Ibidem.
51 Cf. Freud 1912e, SA, EG, p. 176.
52 Analogamente, o inconsciente do analisando pode ser visto como tradutor automático dos processos inconscientes em dados conscientes, quer "imaginais" quer verbais.
53 Ibidem, p. 178.
54 Freud também compara a análise à investigação policial. Lacan trata os problemas psíquicos da mesma maneira, isto é, como problemas objetais, quando os compara ao caso policial descrito por E. A. Poe no seu conto A carta roubada (The Purloined Letter), cf. Lacan 1966, pp. 11-61.
54 Cf. Freud 1904a, SA, EG, p. 103.
55 Cf. Freud e Breuer 1895d, cap. 4, SA, EG, p. 78; Freud 1916x, SA 1, p. 86.
56 Cf. Freud 1912a, SA, EG, p. 167.
57 Cf. Freud 1912a, SA, EG, p. 167.
58 O símbolo "" é usado nessa "equação" no sentido coloquial de acarretar, levar para, desembocar em, e não no sentido estrito de implicar logicamente. Usado assim, ele se presta bem para indicar a direção da interpretação de Freud aqui proposta. A explicitação precisa da conexão entre os elos da equação exigiria um estudo muito mais detalhado, que não pode ser feito no quadro do presente trabalho.
59 Entre eles, encontra-se Habermas (cf. Habermas 1973).
60 Lacan, em particular, rebelou-se contra o serviço do prazer, ligado ao consumo reconfortante. Contudo, a sua ética do desejo perverso não parece aceitável num contexto freudiano (cf. Loparic 1989).
61 Cf. Freud 1925h, SA 3, p. 313.
62 Cf. Freud 1937c, pp. 376-7.
63 Cf. Freud 1940a, p. 73-4.
64 Ibidem, p. 74.
65 Ibidem, p. 73.
66 Sobre o caráter essencialmente heurístico do saber da ciência moderna no seu todo, cf. Loparic 1997a.
67 Esse procedimento introduziu uma questão de coerência no dizer freudiano. Não fica claro como é possível tratar o inconsciente como se fosse consciente e, ao mesmo tempo, tentar visualizar esse mesmo inconsciente pelos modelos fisica- listas. Nesse ponto, Freud sacrificou a coesão interna pelo poder organizador e heurístico, real ou apenas suposto, da metapsicologia. Um ponto permanecia intacto: a interpretação dos sintomas por meio de especulações metapsicológicas reafirmava, a cada passo, o determinismo da concepção fundamental freudiana do homem.
68 Cf. Freud 1920g, SA 3, p. 268. Em determinados momentos, Freud chegou mesmo a duvidar do naturalismo (cf. 1920g, cap. 6). Sobre esse ponto, cf. Loparic 1998.
69 Cf. Freud 1915b, SA 9, p. 49.
70 Cf. Freud 1923b, SA 3, p. 313; 1933, SA 1, p. 538; 1930, SA 9, pp. 246-7.
71 Cf. Freud 1920g, SA 3, p. 263. Mais tarde, Freud lembrar-se-á de Empédocles ao declarar a pulsão de morte como uma força de natureza ativa no domínio da biologia (cf. Freud 1937c, cap. 6).
72 Seria um erro concluir dessa tese que Winnicott desconhece os problemas sexuais. Ele os reconhece plenamente, enfatizando, entretanto, que eles devem ser vistos no interior do processo de amadurecimento e não à luz da teoria do desenvolvimento da libido. Sobre esse ponto, cf. Loparic 1995b.
73 O termo "acontecência", usado aqui, é a tradução de Geschichtlichkeit de Heidegger que designa o acontecer característico do existir humano, conforme propus em alguns trabalhos anteriores (cf. Loparic 1995a). Só o homem pode ser dito "acontecencial", todos os outros entes são apenas "históricos", pertencem a histórias constituídas no ou pelo acontecer humano.
74 A primeira formulação do inconsciente winnicottiano como "não-acontecido" foi feita em Loparic 1997b.
75 Cf. Winnicott 1987a, p. 89; cf. ibidem, p. 107.
76 Cf. Winnicott 1965a, cap. 17, p. 189, e 1987a, p. 92.
77 As aspas são usadas para assinalar que o conceito de dadidade, aqui usado, não é o dos dados objetivamente percebidos (o dos fenômenos naturais objetivos).
78 Segundo Winnicott, a capacidade de simbolização não é inata. As suas raízes estão nas experiências relacionadas aos fenômenos transicionais (cf. Winnicott 1971a, cap. I).
79 Bem entendido, essa regra admite interpretações diferentes da que proponho nesse texto. Todas elas, no entanto, deverão levar em conta o princípio de verbalizabilidade, que é o ponto principal da discussão feita aqui.
80 Cf. Winnicott 1987a, p. 92; cf.
81 As expressões entre aspas são tiradas de T. S. Eliot, "Little Gidding" (4. quarteto). A última foi usada por Winnicott, pouco antes da sua morte, como título (provisório) da sua autobiografia (inacabada): Not Less Than Everything.
82 Em grego, o sentido originário do verbo therapeuein, de onde deriva o substantivo "terapeuta", significa servir e honrar deuses ou homens. Assim como em Freud, observamos em Winnicott um retorno aos gregos.
83 Cf. sobre esse ponto, o magnífico e pouco considerado artigo de Winnicott: "Morals and Education", in Winnicott 1965b, cap. 8.
84 Entre esses textos, destacam-se Winnicott 1965a, cap. 17, e 1987a [1968d], cap. 9.
85 De fato, o uso do termo "objeto" para aquilo a que se dirige o desejo provém da linguagem galante do século XVII.
86 A idéia de que o verbo ser, quando usado para o existir humano, tem o sentido transitivo, encontra-se também em Heidegger, cf., por exemplo, Heidegger 1985, p. 292.
87 Sabemos de Clare Winnicott que, no fim da vida, Winnicott escreveu a seguinte prece: "Meu Deus, faça com que eu esteja vivo na hora de morrer" (1989a, p. 4).
88 Acreditamos que a solidão pré-dependência, de Winnicott, pode ser aproximada do poder não-mais-estar-aí de Heidegger, manifestado no ser-para-a-morte. Em outras palavras, ela pode ser vista como uma explicitação independente do que Heidegger chama de diferença ontológica constitutiva do existir humano.
89 A teoria do amadurecimento de Winnicott foi trabalhada detalhadamente em Dias 1998.
90 Cf. Winnicott 1987a, p. 96.
91 Devo a Elsa Oliveira Dias e a vários outros psicanalistas winnicottianos dados preciosos sobre a clínica que possibilitaram, em grande medida, a leitura da obra de Winnicott proposta no presente trabalho.
92 Winnicott usa a palavra "sagrado" também para designar a fé (belief) ou a confiança (trust) que as crianças têm em seus pais ou os pacientes em seus analistas (cf. o artigo de Dias no presente número de Natureza Humana). Trata-se, no primeiro caso, de uma "aquisição" realizada durante o processo de amadurecimento - também chamada por Winnicott de "bem original"- e, no segundo caso, de uma "qualidade" fatual de certas "situações especiais". O "bem original" nada tem a ver com os ensinamentos da religião tradicional (cf. Winnicott 1971b, p. 4). Pelo contrário, na sua crítica da religião (e da teologia), Winnicott dirá que esta "rouba", de indivíduos, o bem originário constituído no processo de amadurecimento, produzindo, em seguida, um esquema educativo artificial e despersonalizador pelo qual injeta esse bem nas pessoas, em particular, em crianças na idade escolar, como código moral externo (cf. Winnicott 1963d, p. 94). Em Winnicott, tal como em Freud, a religião e a moral devem ser entendidas a partir da "psicologia" e não, inversamente, a psicologia a partir da religião.
93 O caráter incomunicável do si-mesmo verdadeiro, a solidão essencial, deve ser distinguido da dimensão da qual surge a vida (o existir humano como tal), que é chamada por Winnicott de "solidão pré-dependência".
94 Cf. cartas de Winnicott de 18/03/54 e de 05/02/60, publicadas em Winnicott 1987a.
95 Uma observação de Winnicott, de 1968d, abre essa perspectiva. Embora a psicanálise das neuroses, diz ele, se baseie na verbalização, "todo analista sabe que, junto ao conteúdo das interpretações, a atitude por trás da verbalização tem sua própria importância, e que esta atitude se reflete nas nuances, no ritmo e em milhares de outras formas que podemos comparar à variedade infinita da poesia" (Winnicott 1987a, pp. 95-6).
96 Acreditamos que Lacan, no essencial, não altera nada nesse quadro.
97 Cf. Winnicott 1987a, p. 64. A surpreendente "capacidade de identificação" da mãe com o bebê é algo, diz Winnicott, "que nenhuma máquina pode imitar e que nenhum ensino pode alcançar" (Winnicott 1987a, pp. 36-37).
98 Cf. Winnicott 1987a, p. 79.
99 Falando para as mães, numa emissão da BBC, Winnicott afirmou: "Da mesma forma que o professor, que descobriu quais vitaminas evitam o raquitismo, tem algo a lhes ensinar, vocês também têm algo a ensinar a esse professor sobre uma outra espécie de conhecimento, aquele que vocês adquirem naturalmente". Cf. Winnicott 1987a, p. 13.
100 Entre os poetas preferidos de Winnicott estão, além de Shakespeare, John Donne e T. S. Eliot. É bem conhecido que Freud também recorria a "poetas-filósofos", entre eles Empédocles, Platão e Goethe, para buscar neles as suas metáforas e mitos. A diferença entre Winnicott e Freud, quanto às preferências relativas a poetas, mereceria ser explorada em detalhes.
101 Esse ponto já foi concedido pelo próprio Freud (1925d).
102 Eu dediquei a essas tarefas vários trabalhos anteriores. Em Loparic 1956b, mostrei que a psicanálise winnicottiana pode ser proveitosamente interpretada no quadro da analítica existencial elaborada por Heidegger em Ser e tempo. Hoje creio que se pode ir mais longe e dizer que Winnicott propôs um novo paradigma para a ciência da psicanálise, compatível com a ontologia fundamental de Heidegger (cf. Loparic 1999b). Há boas razões de pensar que Winnicott, ao se distanciar da metapsicologia freudiana e mudar a linguagem da psicanálise, estava realizando, sem saber, a tarefa heideggeriana de "desconstrução" dessa ciência, isto é, de sua reformulação num quadro que não seja mais o da metafísica.
103 As obras de Freud, identificadas por títulos em português, são citadas de acordo com a codificação oficial, baseada no ano da primeira publicação, as páginas remetendo, salvo indicação do contrário, à Studienausgabe (SA), Frankfurt a/M, Fischer, edição que hoje é comumente usada pelos leitores de Freud em alemão. As obras de Winnicott são citadas de acordo com a bibliografia estabelecida por Knud Hjulmand, publicada no presente número de Natureza Humana, os numerais entre colchetes indicando o ano de produção do texto.