Natureza humana
ISSN 1517-2430
Nat. hum. v.1 n.2 São Paulo dez. 1999
RESENHAS
Jean-François Nordmann
Professor visitante da UERJ
Coordenador da parte francesa do Colégio Internacional de Estudos Filosóficos Transdisciplinares (UERJ)
Benedito Nunes 1998: Crivo de papel. São Paulo, Ática, 2a edição.ISBN 85-08-06968-5
Tensa rede formada pela reunião e articulação de quinze ensaios, escritos entre 1990 e 1997, Crivo de papel, a última obra de Benedito Nunes, prossegue um trabalho de exploração hermenêutica, que vai se desdobrando de livro em livro, destacando e explicitando as várias pré-compreensões fundamentais subjacentes a nossa experiência e constitutivas da forma de nosso mundo.
Caminhando segundo os passos deixados por Heidegger, trata assim de reevidenciar e reexaminar, em continuidade com trabalhos anteriores, as dimensões estruturais de nossa existência enquanto Dasein, ou seja, as da finitude, da mortalidade, da temporalidade, da historicidade, do ser em projeto e do decidir autêntico, da exposição essencial à questão do Ser, da historialidade, da lida com o domínio da técnica e o niilismo dos valores, etc. Mas, afastando-se de Heidegger (antes de reencontrar logo suas posições relativamente ao assunto), toda primeira seção do livro, "Filosofia e teologia", é dedicada à consideração e à avaliação específicas do sentido e do alcance da religiosidade e, mais geralmente, aquém da Fé (e tornando-a possível), do relacionamento com o sagrado e o divino. Por outro lado, a questão original, já colocada e trabalhada desde o início da obra de B. Nunes, da força e do potencial experiencial e pensante próprio do literário e, portanto, das relações entre filosofia e literatura (ficção, poe- sia, etc.), é retomada, em Crivo de papel, através de estudos dedicados ao trabalho literário de Guimarães Rosa, Paul Valéry e Carlos Drummond de Andrade, assim como através de várias referências cruciais recorrentes, em particular a Fernando Pessoa. En- contram-se, ainda, análises de tópicos específicos - a música e seu valor próprio em contraste com a literatura e o pensamento, a identidade problemática do filósofo e da atividade filosófica, a leitura e sua potência ética e formadora, a história da historiografia literária do Brasil, etc. - que, além de seu interesse próprio, sempre têm sentido, ao mesmo tempo, enquanto estudos de casos, ou seja, de traços particulares de nossa feição existencial.
Apesar de sua amplitude, esse trabalho de exploração não visa à exaustividade e à unificação sistemática, mas mantém a forma de um percurso livre e aberto, sem dúvida em conexão com uma consciência aguda das limitações hermenêuticas em geral (círculo interpretans/interpretandum, inesgotabilidade e parcialidade de qual- quer abordagem, etc.), e com o entendimento de que as explicitações desenvolvidas não consistem senão num simples desdobramento (embora implicando o confronto com outros pensamentos e uma verdadeira dialética da vivência e da leitura) de uma experiência por si mesmo já pensante. Daí a escolha fundamental da forma do ensaio, bem como a prática central da referência e do comentário (na ver- dade, sempre uma reefetuação ou reatualização apropriante do pensamento alheio) ou a freqüência das retomadas das análises sob um ângulo diferente. Daí também um dos traços mais interessantes e singulares em B. Nunes (e tão raros em geral nos filósofos, considere-se justamente o caso de Heidegger), a saber, a im- plementação de uma verdadeira multiplicidade e heterogeneidade de registros, tons e "timbres de estilo" (cf. p. 65) - do comentário heidegge- riano denso e tenso ao responso meditativo a poemas de Drummond, da monografia erudita e acadêmica sobre a historiografia literária brasileira à conferência pronunciada "em situação", ante o Seminário Metropolitano de Belém, relativamente à evolução histórica das representações de Deus -, sendo somente esta polifonia capaz de adequar-se à heterogeneidade de nossa experiência e mimetizá-la de maneira apropriada, segundo um esquema estrutural que o próprio livro aponta nas obras polimórficas de P. Valéry ou G. Rosa. Em outras palavras, o Crivo de papel de B. Nunes - tecelagem de escritas próprias e de reescritas de leituras - não tem uma mera superfície homogênea e lisa, mas apresenta voluminosidades, texturas e densidades múltiplas: trata-se, na verdade, de uma espécie de pele sensível e vivente, capaz de exercer multidire- cionalmente sua função analítica e hermenêutica.
Além desses traços, confirma-se ainda no livro um dos gestos teóricos fundamentais de B. Nunes, o da historicização. Cada uma das es- truturações de nossa existência pode, de fato, ser evidenciada como uma formação histórica singular, a ser colocada em contraste com outras estruturações do passado e reinscrita numa história de longo alcance. Historicização que, levando a narrações detalhadas da história de nosso relacionamento com o divino (pp. 10-20), de nossa experiência do tempo e da história (pp. 131-51), de nossa representação da tarefa filosófica (pp. 156-72) ou da potência da música (pp. 74-86), não pode ser considerada uma simples complementação e ainda menos ornamentação da análise hermenêutica: ela é antes um procedimento ou talvez o procedimento essencial do entendimento herme- nêutico em B. Nunes. Este é, em outras palavras, fundamentalmente historicizante; e não apenas em conformidade com declarações de princípio, mas na própria prática efetiva. Tal orientação certamente merece atenção e destaque, pois, embora o resultado produzido possa ser discutido (pois as narrativas relatadas tornam-se às vezes muito lineares e simplificadoras, apesar de sua riqueza e amplitude), ela recebe em B. Nunes um papel metodológico e filosófico central, que não se encontra na filosofia heideg- geriana, nem nas grandes versões (husserliana, diltheiana, sartreana, etc.) da fenomenologia e da her- menêutica. Ela não é só o caminho principal, viabilizando a produção dos termos diferenciais necessários para evidenciar as características próprias de nossa estrutura existencial (assim, por exemplo, a disposição de uma dimensão de futuro comportando, além do caráter de não-repetição, o da constituição de um horizonte ilimitado de possíveis, em contraste tanto com o mundo cíclico da Antigüidade quanto com a perspectiva de espera esca- tológica do cristianismo, cf. pp. 137-51). Mas ela também gera uma consciência viva da relatividade, da contingência, e, mais radicalmente, da facticidade e da arbitrariedade de nossas formas de encontrar e vivenciar o mundo.
Ao lado desse senso histórico, reencontra-se no livro a consciência aguda da importância da literatura e, mais geralmente, da dimensão do literário. Evidencia-se assim que, por si mesma e na sua forma própria, a literatura (aliás, como os outros tipos de artes) constitui um verdadeiro modo de explorar, conhecer e questionar o mundo, com sua própria exigência de "verdade", enquanto ficção e experiência do possível (cf. No tempo do niilismo, p. 198). Portanto, ela teria uma potência hermenêutica e compreensiva fundamental que caberia à filosofia, liberada de seus pressupostos e desvalo- rizações tradicionais, atestar e tor- nar explícita, seguindo o caminho aberto pela fenomenologia (Hei- degger, Sartre, Merleau-Ponty ...), por Nietzsche ou por Benjamin (ibid., pp. 195-99). Daí a dedicação de vários ensaios do livro ao trabalho de escritores e poetas, e a tentativa inicial de dar conta dos processos propriamente literários (produção ficcional, construção da narrativa, invenção lexical, modelação sintática, rítmica, etc.), enquanto elementos essenciais na constituição do "mundo-texto" (p. 252; cf. p. 178: "mundo de papel"). São analisadas, por exemplo, em G. Rosa, as maneiras pelas quais a forma narrativa multiplicada, a condensação das imagens, a concentração das enumerações cumulativas, as inumeráveis variações de tom, de voz, etc. criam um universo ao mesmo tempo literal, alegórico e anagógico, no qual "todos viajam e tudo é viagem" (p. 254), "transumância [...] a céu aberto" bem como "peregrinatio pelas veredas claro-escuras da alma" (p. 253, p. 254). E o ensaio final - "Aceitação da noite", sobre C. Drummond de An- drade - aponta como os jogos de rimas, anáforas, onomatopéias, pontuações rítmicas, etc. geram "as tô- nicas da irrisão e do sarcasmo" (p. 263) e um profundo senso de humor que se contrapõe ao não menos profundo senso trágico da finitude e da morte.
Mas, em sentido inverso, trata-se de considerar que a filosofia tem seus modos próprios de escrita e se apóia em grandes metáforas, antro- pomorfismos e torneios retóricos (como Nietzsche já tinha ressaltado, cf. No tempo do niilismo, p. 196); sob esse aspecto, pode ser vista como uma construção e um trabalho artístico, obra de uma sensibilidade e de uma imaginação expostas e engajadas na materialidade e na carne das palavras. Entrevê-se, assim, a raiz comum do filosófico e do literário, e a figura fundamental do filósofo-poeta ou poeta-filósofo: "São inventores os sábios, os artistas e poetas, aqueles que conhecem e aqueles que constroem. Na verdade, [...] há um só mecanismo inventivo [...]. E esse mecanismo é poético: os sábios, nisso também incluindo os filósofos, constroem tanto quanto os artistas e poetas conhecem" ("Sócrates construtor", p. 66). Mas, por outro lado, tal concepção do pensamento, como "aderido à linguagem" (ibid., p. 68), faz desdobrar um distanciamento muito salutar em relação ao trabalho filosófico, e, mais profundamente, um desapego, uma leveza, e até uma espécie de ale- gria fundamental que transparece freqüentemente na escrita de B. Nunes, fundindo-se aos harmônicos sombrios do ceticismo e do pessimismo. Tal composição e tensão de tonalidades reconhece-se, aliás, também na admirável clareza que permeia inteiramente o texto do livro: não um raiar brilhante imediatamente dado e assegurado, mas sim um luar frágil e tenaz, como o de uma chama, destacando-se no fundo de obscuridade que nos cerca por toda parte.
Porém, B. Nunes não se detém apenas na tal consciência da construção literária da filosofia (assim como do poder pensante da literatura), nem nos gestos hermenêuticos evocados anteriormente. Ocorre ainda, parece-nos, no horizonte de seu pensamento, um salto e uma reviravolta final, levando à liberação de uma última consciência, irônica, trágica, mas, ao mesmo tempo, liberada e liberadora, dançante, lembrando a "grande saúde" nietzscheana. Estas construções todas, as da literatura, da poesia, da arte, mas também do pensamento, da filosofia, do conhecimento, seriam, no fundo, de mesma natureza: apenas ficções, fabricações, projeções, elaborando ou reelaborando o mundo e tornando-o um conjunto orientado, organizado, dotado de uma figura e de um sentido determinado. O nome de tal ficção ou projeção configuradora de mundo passa a ser enunciado em algumas passagens-chave do livro: é o mito. A literatura, a arte e nelas particularmente a poesia (não só o gênero, mas a prática poética da linguagem) seriam mitopoiéticas ou "mito- mórficas", para retomar a palavra da conclusão do ensaio sobre G. Rosa ("Por ser mitomórfica, a narrativa é poética, posto que a poesia é geradora de mitos ou é o mito em potencial na linguagem", p. 262). Mas é esse igualmente o caso da filosofia, e não só em suas considerações e decisões sobre o sentido e os valores, mas até em suas meras descrições e explicitações de fatos e dados (nessa perspectiva, a ciência seria, da mesma forma, de natureza mitopoiética), por envolver sempre uma construção, uma escrita, do fato e do dado. Já que sempre implica, em última instância, determinadas interpretações e avaliações, a filosofia, como os demais tipos de conhecimento, não seria mais que tal produção de ficções e projeções imaginárias. Mas dado seu caráter essencial, esta operação revela-se como constituinte deste mundo mitificado e poetizado, único ambiente no qual podemos viver e evoluir. Neste sentido, o próprio crivo de B. Nunes, o "crivo de papel", desvelar-se-ia no fundo como um instrumento demiúrgico - demiúrgico-fingidor -, com referência implícita bem provável ao crivo do mito cosmogônico do Timeu de Platão. Assim, o ensaio "A filosofia e o milênio" cita F. Pessoa: "O mito é o nada que é tudo" (p. 165) e, caracterizando o mito como um "acompanhamento situacional" que "nunca falta no horizonte da existência humana" (ibid.), destaca que a filosofia (apesar de estritamente não ter que "mitologizar", isto é, produzir narrativas mitológicas - "ofício da poesia e da religião", p. 167) sempre mantém uma conivência com o mito, "do qual ainda não acabou, e talvez não acabe nunca de se desprender" (p. 165).
Claramente, seria de se esperar que tal entendimento radical do pensar como poetizar e mitificar se aplique, num grau particular, aos pensamentos metafísicos, seja teológicos, seja ontológicos, voltados para a questão de Deus ou dos deuses, e da essência última do ser. Isso pode de fato ser reconhecido no livro, como evidenciam algumas notações decisivas, tais como a citação de F. Pessoa, na epígrafe do ensaio "O último Deus": "Nasce um Deus. Outros morrem. A verdade / Nem veio nem se foi: o Erro mudou" (p. 21), ou a evocação, na conclusão do ensaio "Ética e finitude", da "reabilitação poética da habitação terrestre" (p. 200) e da remitificação que se efetuam na filosofia do se- gundo Heidegger ("[...] os mortais e os deuses, o céu e a terra remitificados", p. 201, itálicos meus). Mas tal compreensão não deveria, justamente, levar a encerrar o questionamento sobre a natureza da religião e da necessidade religiosa, assim como impedir e tornar definitivamente caduco qualquer empreendimen- to de ontologia revelatória funda- mental?
Ora, não há como não observar que, de uma maneira que não deixa de surpreender, estes dois caminhos não só permanecem abertos, mas passam a ser bastante explorados e seguidos no livro, como se a perspectiva mitomórfica pudesse, momentaneamente, ser esquecida ou deixada de lado.
Essa suspensão, ressalte-se, ocorre principalmente nos ensaios dedicados a Heidegger e, a nosso ver, decorre da relação muito particular que B. Nunes entretém com este autor, e a forte ascendência que dele sofre. Sente-se, nesses ensaios, uma espécie de exigência incondicional, a de acompanhá-lo em quaisquer rumos de seu pensamento, esforçando-se sempre por re-entender e reefetuar este pensamento por dentro. No caso, Crivo de papel dedica-se particularmente a seguir o percurso efetuado durante os anos 30, ou seja depois da "Kehre", dos Conceitos fundamentais da metafísica de 1929/30 até as Contribuições à Filosofia de 1936/38. Seguem assim o anúncio e o desdobramento de um novo modo de pensar, o dizer efetivo da essência do Ser, fundado no próprio acontecer (Ereignis) de seu desvelamento e seu requerimento do Dasein humano para suporte desse desvelamento. Mas, de maneira significativa, perdem-se, até um certo ponto, nessa atenção e dedicação ao pensar heideggeriano, a distância e o espaço crítico. Inesperadamente, aliás, essa perda torna-se ainda mais manifesta em Crivo de papel do que nos textos anteriores.
Lembre-se que B. Nunes, na abertura do primeiro ensaio, epônimo de No tempo do niilismo, evocava o poder de "fascínio" e de "forte sedução" que o pensamento heideggeriano exerce sobre ele (p. 7). Porém, atestando também, imediatamente, o "embaraço" - intimamente misturado ao fascínio (pp. 7, 8, 9) - gerado pela passagem da questão do Ser ao dizer do Ser, e da filosofia da analítica existencial de Sein und Zeit à "não-filosofia" (p. 8) do novo modo de pensar. O embaraço era principalmente de ordem "intelectual", ao se tentar restituir a continuidade e a coerência interna do trabalho heideggeriano através dessa passagem (com duplo enfoque na colocação das questões do niilismo e da essência da arte, pp. 9-20). Mas, implícita ou explicitamente, envolvia também outras inquietações, em particular as relativas ao engajamento nacional-socialista de Heidegger em 1933 e seu ulterior "pertinaz silêncio em torno da barbárie nazista jamais por ele condenada" (p. 37). Entrevia-se, em particular, até um certo ponto, que o apelo para a entrega historial e destinal do Dasein (e a fortiori do Dasein do povo alemão) ao chamamento do Ser poderia ter a ver com a possibilidade de se chegar a tais posições. Assim, o segundo ensaio do livro, "Variações de um tema: o nazismo de Heidegger", aponta, seguindo Zeljko Loparic (mas, na verdade, sem realmente adotar uma posição própria), para a exis- tência de "componentes perigosos, arriscados" (p. 37) no pensamento heideggeriano, sobretudo uma neu- tralização ética "predispondo à aceitação da violência" (p. 40), ligada, conforme Loparic, à recusa radical de qualquer instância moral superior, proporcionando o arrependimento assim como a atuação de uma "visão trágica da existência, sempre culposa e sempre irredimível" (p. 38).
Ora, estes vários motivos de embaraço, suscetíveis de gerar as mais vivas dificuldades e tensões (como evidencia o final bastante atormentado do ensaio "Hermenêutica e poesia" de No tempo do niilismo, pp. 95-6), aparentemente dissipam-se em grande parte no Crivo de papel. Para encontrar na questão da interpretação uma chave, aquém daquela da temporalidade, viabilizando a compreensão intelectual da unidade profunda do caminho do pensamento de Heidegger ("Poética do pensamento", pp. 87ss.). As notações críticas sobre sua visão do político quase desaparecem: perdura apenas uma menção isolada ao "silêncio" mantido na segunda fase (p. 197), enquanto a adesão ao Partido Nazista passa agora a ser atribuída a uma "fraqueza de caráter" ou a um "momentâneo ofuscamento do homem", que "não prejudicam a honra do filósofo como filósofo" (sic, p. 171), chegando a ser comparada à aproximação de Platão com o tirano de Siracusa ou o abandono por Rousseau de seus filhos (ibid.). Os conceitos de "povo", "historialidade", "destinação", etc. não são mais questionados, como ainda eram, pelo menos parcialmente, em No tempo do niilismo (que evocava sua "motivação política ocasional", p. 93): muito pelo contrário, "povo" passa a designar imediatamente e sem nenhuma reserva crítica a comunidade dos que vivem numa terra novamente natal, capaz de acolher os deuses, e chega mesmo a ser retraduzido como (...) "comunal" e "público"! (pp. 102 e 108). Uma página ainda sugere o caráter problemático do regime elocutório dos Beiträge "em que os argumentos cedem lugar às indicações peremptórias" e os "enunciados de essência" concorrem com "expressões de teor divinatório" (p. 47). Mas a evocação heideggeriana do "constrangimento essencial do Dasein" e do "terror interno que todo mistério carrega consigo e que dá ao Dasein a sua grandeza" (Grundbegriffe, op. cit., p. 123) não é questionada; o esforço principal do comentário concentrando-se manifestamente em tentar ressaltar em Heidegger o desdobramento de uma ética fundamental. Conforme a nova hipótese de leitura de Z. Loparic, chega a referir-se a uma verdadeira "Ética originária" (p. 197), formulando-se não apenas na "ética situacional do projeto" da primeira fase, mas igualmente na "ética destinamental da correspondência" da segunda (p. 199) - "Ética originária" consistindo numa ética radical da finitude, destrutiva da "responsabilidade ilimitada do humanismo" (p. 200) e de todas as éticas tradicionais, "infinistas" (p. 197), e repousando na exortação (p. 120), não-prescritiva ("sem obrigação nem sanção", p. 121; cf. p. 198), à decisão livre e autêntica do Dasein de ser si mesmo, entregando-se à "exposição ao ser" (p. 200). Em Benedito Nunes, essa procura de uma Ética originária (mas em qual sentido trata-se ainda de uma ética? como entender eticamente o "ter-que-corresponder" do Dasein ao Ser, sendo que "é afinal o ser que urge o Dasein a necessitá-lo"? - p. 42; cf. pp. 61 e 123 - e tal urgir não define uma prescrição essencial?) assim como os demais elementos referidos visam claramente justificar e legitimar, em definitivo, seu caminhar nos rastros do pensamento heideggeriano. No entanto, perde-se assim o nítido distanciamento hermenêutico tão firmemente estabelecido e praticado em todas as demais partes do livro, ao passo que volta, paradoxalmente, a ser re-autorizada, pelo menos procura- tivamente, a via desconceituada de um saber revelatório último da essência do ser.
O caso da manutenção de uma inquietação religiosa, referente ao divino e ao sagrado, é um pouco diferente. Não se trata somente de, em Crivo de papel, seguir as análises heideggerianas, do projeto inicial "fundamentalmente ateístico" da analítica do Dasein (p. 23) à meditação sobre o "retraimento dos deuses" nos cursos sobre Hölderlin (pp. 37-8) e, ulteriormente, ao anúncio do "último Deus" nos Beiträge - evidenciando a efetuação do que "talvez se possa chamar a procura heideggeriana de Deus" (p. 22). Mas trata-se também, ao que parece, de uma inquietação mais pessoal e direta, ligada à questão da Fé e em particular da Fé cristã. B. Nunes não se reconhece como um "beneficiário da Fé" (pp. 10 e 20). No entanto, ele atesta, no primeiro ensaio ("Aspecto teológico da Filosofia"), na abertura do livro, que a filosofia, ao evidenciar o relacionamento com um Deus (e com o sagrado) como uma das possibilidades existenciais da vida humana (p. 20), tem a capacidade de "repensar ou reatualizar" a Fé e providenciar-lhe as bases de uma "rea- tualização no mundo secularizado" (ibid.). Decerto, tal orientação não surge sem tensões nem contradições: assim, às avessas do primeiro ensaio, o segundo ("O último Deus") não pode deixar, nas pegadas de Heidegger, de passar a incriminar radicalmente o cristianismo enquanto "força coadju- tora do niilismo" e da "fuga dos deuses" (p. 35); algumas páginas depois, no entanto, evocará a "depuração" da idéia do divino cristão pelo deixar-acontecer heideggeriano do Ser (p. 43), antes de apontar (ibid., in fine) a não-identificabilidade e a "plenitude oculta" de Deus e dos deuses e, finalmente, deixar lugar, na conclusão, a um espetacular atropelamento, com a recordação do "sereno verso" de F. Pessoa: "Não haver deus é um deus também" (p. 44).
Mas, além destes entrechoques e conflagrações, percebe-se que a necessidade de "repensar o sagrado e o divino", tal como afirmada na conclusão do primeiro ensaio (p. 20), visa constituir a Fé - cristã? - como uma possibilidade aberta, efetuável,embora não efetuada, como se seu lugar, esvaziado (pela consciência crítica, filosófica, hermenêutica, etc.), tivesse deixado uma ferida, uma falha. Também nessa vertente, a perspectiva mitomórfica permanece inacessível: na primeira seção do livro, a Fé nunca é considerada como mitificação e poetização do mundo. Tampouco são colocadas em questão as razões pelas quais um discurso sobre a essência do ser deveria encontrar qualquer figura ou conotação de sacralidade, ou por que a experiência de uma trans- cendência do mundo deveria levar ao reconhecimento de um "deus" qualquer. De maneira característica e paradoxal, são finalmente as duas disciplinas por excelência da Metafísica tradicional, ou seja, a teologia e a onto- logia fundamental, que a alegria e a ironia da "grande saúde", apesar de sua força e radicalidade instiladas em Crivo de papel, não conseguem desenraizar ou metamorfosear.