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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.2 n.1 São Paulo jun. 2000

 

ARTIGOS

 

Heidegger e a poesia

 

Heidegger and poetry

 

 

Benedito Nunes

Professor-titular aposentado da Universidade Federal do Pará

 

 


RESUMO

A dialogação com a poesia, para Heidegger, consiste na doação da linguagem aos outros, que preserva a palavra e sua abertura. Essa dialogação se estabelece entre o pensador que lê e a poesia que a ele se doa na leitura. Aproveitando a dádiva, Heidegger utiliza-a quer no papel de tradutor quer no papel de escritor-poeta.

Palavras-chave: Ereignis, Rede, Gestell, Gelassenheit.


ABSTRACT

In Heidegger, the dialogue with poetry consists of an act of gibing to others, that preserves the words and its openness. The dialogue is settled between the thinker, who reads the poetry, and the poetry that gives itself in the writing (literature). Taking advantage of this "donatio", Heidegger uses poetry in his role of translator as well as of poet-writer.

Keywords: Ereignis, Rede, Gestell, Gelassenheit.


 

 

Em nossa época, tende o pensamento filosófico a interrogar a poesia quando não a interrogar-se perante a poesia. W. M. Urban e G. Bachelard, por exemplo, interrogaram a poesia tentando avaliar o alcance cognoscitivo das imagens poéticas. Sartre e Merleau-Ponty adotariam a segunda atitude, de interrogação da filosofia perante a poesia, essa última um limite desafiador à filosofia, espécie discordante de pensamento, autônomo ou irredutível ao discurso filosófico. Mas quaisquer que sejam as diferenças entre esses filósofos na maneira de avaliarem o nexo entre filosofia e poesia, nenhum deles adotou quaisquer dos dois modelos tradicionais, o disciplinar e o transdisciplinar, pelos quais se costuma pautar o relacionamento dessas instâncias do pensamento.

Domínios heterogêneos, a poesia proviria da imaginação e a filosofia, da razão. Aquela está, por isso, subordinada à última, como árbitro racional da verdade, que lhe compete estabelecer e disciplinar. A esse modelo disciplinar, ainda seguido por Hegel em sua Estética, opõe-se o supradisciplinar dos românticos alemães: pela imaginação, que concorre com a razão, também entramos no reino do saber, e às vezes a poesia é capaz de alcançar verdades superiores às filosóficas. Os românticos contrariaram a hierarquia tradicionalmente admitida e inverteram a superioridade do racional na do imaginário. Exclusivistas, os dois modelos obrigam-nos a escolher ou a poesia ou a filosofia. Quero crer que sob a influência de Heidegger, Sartre e Merleau-Ponty optariam por um terceiro modelo, de caráter transacional: o movimento de vai e vem, ora da poesia para a filosofia ora da filosofia para a poesia. Essa transação é o que se particulariza em Heidegger, de acordo com a sua intenção de dialogar com a poesia. Em que consiste, porém, essa dialogação? Quais os locutores desse diálogo, e como ele é possível? Não se pode enfrentar essas perguntas sem saber de antemão que circunstâncias predispuseram a filosofia heideggeriana, nas duas fases por que passou, a primeira de 1927 a 1936e a segunda de 1936 a 1976, data da morte do último grande pensador deste século prestes a findar, a transar, como transou, com a poesia. Em ambas as fases, essa filosofia se orientou pela questão do sentido do ser, interligada, desde o início, mas não da mesma maneira, à questão da linguagem.

Na primeira fase, correspondente à elaboração de uma ontologia fundamental, nascida em Ser e tempo (1927), o esforço de Heidegger se concentra no trabalho de analisar o ente que nós mesmos somos, o Dasein, definindo a fala (die Rede), a caminho da elucidação do problema atacado naquela obra, como uma das estruturas constitutivas do ser desse ente.

Estruturas constitutivas seriam aquelas articuladoras dos componentes da conduta desse ente, que a análise pode descobrir no seu corriqueiro agir de todos os dias, na sua lida cotidiana: manejar coisas próximas, úteis (das Zuhandene), ao alcance da mão, instrumentando-as; circunscrever as coisas distantes, fora do alcance da ação imediata, que a vista abrange (das Vorhandene); entrosar-se com os semelhantes, convivendo com os outros Dasein, como é capaz de conviver consigo mesmo, na generalidade dos casos, no modo da gente, do sujeito impessoal e anônimo que frases tais como pensa-se, diz-se, faz-se exprimem - tudo isso no ciclo das atividades cotidianas, estabilizadas, externalizadas e públicas, que nos solicitam, preocupam-nos, ocupam-nos e envolvem-nos. Solicitação, preocupação, ocupação e envolvência que, como espécies da lida diária, fixam a imediata compreensão que temos de nós mesmos e do mundo no espelho do ser-em-comum (das Mitsein), do mundo compartilhado. Compreender-nos e compreender o mundo implica, nesse plano, em nos conduzir como ser-no-mundo, mas não como elementos nele incluídos, posto que damos a nós e ao que nos rodeia um sentido e, portanto, mesmo de maneira vaga, admitindo que tal coisa, tal utensílio, tal pessoa, é isso ou é aquilo. Registre-se, então, a pressuposição da investigação heideggeriana - o Dasein é o ente que compreende o ser, nisso se distinguindo dos demais entes - de que resultou, nas páginas de Ser e tempo, a ontologia fundamental.

Mas a dificuldade peculiar da análise, apoiada em tal pressuposição, está na circunstância de que esse ente, cujo ser investigamos, também existe buscando-se a si mesmo, ora na direção da existência autêntica como poder- ser, ora na direção das inautênticas modalidades do anônimo e público ser-com-os-outros. O investigador não pode senão descrever essas direções, porque procede como fenomenólogo, e não pode senão lograr, porque também procede como hermeneuta, desencobrir-lhes o sentido latente. Assim ele descreve aqueles movimentos diretivos, o primeiro como o para-ser (das Zu-sein), implicado na busca, e o segundo, como o de decaída, objetificadora e alienadora, na direção do que é anônimo, público. O Dasein, é certo, está sempre se movimentando numa ou noutra direção.

Concluirá, portanto, o mesmo investigador, que as estruturas, tais como ser-com-os-outros e, paralelamente, ser-no-mundo, são estruturas constitutivas nossas, retiradas do estado de latência, em que normalmente se encontram, para o estado manifesto em que os coloca o método fenomenológico-hermenêutico adotado pelo analista. Quem diz latência diz o que não é completamente ocluso; refere-se, portanto, antes de a qualquer conhecimento teórico e independentemente dele, à abertura do ser do Dasein. Um tanto paradoxalmente, abertura significa o conjunto de condições preliminares - ontológicas, dirá Heidegger - que nos habilitam a agir, a pensar, a conhecer, condições que correspondem a estruturas do comportamento e, como tais, constitutivas do Dasein e de sua compreensão do ser. Ora, dado que a existência desse ente não se determina por uma essência prévia à maneira de um objeto, o que quer que ele compreende acha-se iluminado por essa prévia compreensão do ser e, dessa maneira, comensurado a uma sua possibilidade, segundo a terminologia heideggeriana, a um seu projeto. Mas, ao mesmo tempo que essa iluminada compreensão - a forma heideggeriana do lumen naturale escolástico -, um sentimento, um mood, um tom, preconfigura a possibilidade de compreensão, e assim preconfigurando-a, marca a situação em que nos encontramos, o Da, o aí do Dasein, lançado como existente nunca imune a uma disposição de ânimo (Stimmung), sentindo sempre, entregue a si mesmo, desta e daquela maneira.

Contudo, o sentimento da angústia nos leva, quebrando a barreira daquela inclusão que nos familiariza com as coisas e pessoas em torno, a transcender os entes e, por esse modo, a defrontar-nos com o mundo, tornado infamiliar sob o foco dessa disposição afetiva. A transcendência, que também integra a conduta do Dasein, é possível porque esse ente, vivendo numa tensão, por ele mesmo escamoteada, diante da expectativa de sua própria morte, da qual comumente foge, descobre-se temporal e finito: temporal, na medida do futuro que essa expectativa presume e que à sua experiência do momento se antecipa, ligando o passado ao presente, e finito, dado que, nessa dimensão, a temporalidade, confirma-se a distintiva conotação - o cuidado (die Sorge) - de seu ser, que existe historicamente, eis que suas decisões possibilitam o fazer e o escrever a história. Sua abertura permite-lhe sentir e compreender temporal e historicamente; dessa forma, interpreta-se a qualquer momento e a qualquer momento interpreta o mundo, à luz da disposição de ânimo e do projeto.

Interpretar é desenvolver, a partir de um pressuposto e de acordo com uma perspectiva já dada, as possibilidades de compre- ensão do ser, especificado como isso ou como aquilo, antes que o conhecimento teórico, concretizando apenas uma das possibilidades de compreensão, venha traduzir-se em proposições determinadas. Mas essa prévia e preliminar interpretação do mundo, que aflora no intercurso da fala (die Rede), e que não escapa ao risco de estabilizar-se num estado exterior e público, é, como melhor compreenderemos depois, anterior à predicação. Traduzimos die Rede por "fala", com a intenção de ressaltar o caráter limítrofe dessa noção, entre linguagem e não linguagem, entre as significações que o interpretar mobiliza e os atos, tão variados, de enunciar, rezar, prometer, louvar, invectivar, admoestar, etc., com os quais se abastece e se reforça a incessante conversação diária. Está claro que significações pedem palavras e que a conversação, em suas múltiplas espécies, compõe-se de distintos modos de discurso. Discurso é também uma das traduções correntes de die Rede, que não rejeitamos. Mas preferimos traduzir die Rede por fala, para insistir no núcleo comunicacional dessa noção, que Heidegger terá visado para introduzir, como que pondo uma cunha existencial nas concepções de linguagem, o fundamento desse fenômeno nas estruturas mais primitivas já nossas conhecidas, a disposição e o projeto, assim colocando-o no âmbito das possibilidades do Dasein, ou seja, de sua abertura enquanto ser-no-mundo e ser-com-os-outros. A fala é o intercurso dos homens entre si e, como intercurso, um verbo: o falar informando uns aos outros algo a respeito das coisas.

Não sou eu que o digo, e sim Platão, no Crátilo; quando o disse, afiançou o caráter de organum, de instrumento do falar, como ato de um sujeito na utilização dos nomes (onoma), de que dispõe a sua língua. Mas enquanto sistema de signos ou enquanto código social, de que o indivíduo se utiliza para escolher dele combinações apropriadas à expressão de seu pensamento pessoal, é a língua, conforme concluiria, com Saussure, a lingüística moderna, o verdadeiro organum. A fala seria somente o flatus vocis, a manifesta escolha individual e acidental de uma parcela do repertório da língua pelo sujeito falante, graças à capacidade psicofísica de articulação fonadora de que é dotado.

Qual é o real objeto dessa escolha? As palavras? Mas as palavras significam, e assim terá de ser escolhida a significação, que no entanto não está a elas colada como etiqueta de sua identidade, pois que as palavras se desdobram num significante e num significado. Significações já acorrem na interpretação de nós mesmos e do mundo. E se o Dasein é ser-no-mundo e ser-com-os-outros, o simples manuseio dos úteis já mobiliza significações, como as mobiliza o circuito da convivência. Não fosse assim, não seria o homem, segundo Aristóteles disse, um "zoon logon ehon", um animal que tem logos, este vetusto termo filosófico traduzido por Heidegger como o que "deixa e faz ver aquilo sobre o que se discorre e o faz para quem discorre e para todos aqueles que discursam uns com os outros" (Heidegger 1927, p. 32). A fala informa algo aos falantes; deixa-os ver e faz com que vejam algo quando falam entre si. Se deixa-os e faz ver, estão eles uns com os outros. O que vêem e são instados a ver é algo que lhes é comum se falam conversando ou discorrendo. Tendo logos, o homem fala, e falando tem linguagem, afirmação óbvia para nós, mas não para os gregos, a quem faltava, como falta aos japoneses, em seus léxicos, a palavra "linguagem". A linguagem é a mesma fala quando pronunciada, exteriorizada, que já cai dentro de um sistema ou de um código semiótico, o da linguagem como língua (die Sprache). A fala é a linguagem existencialmente considerada, em que se prolonga a interpretação, na medida em que através dela se articulam a disposição e o projeto que a condicionam.

Agora podemos compreender, conforme já antecipamos, que a interpretação seja anterior à predicação. Essa anterioridade é sustentada pela fala, no registro de logos, o que deixa e faz ver, e no da comunicação, o domínio do que se expressa ou pronuncia. Predicar, atribuindo um predicado a um sujeito e formulando uma proposição, exige primeiramente que se veja o ente determinado, descoberto de um certo modo e visto sob certo aspecto na fala. Assim poderia concluir Heidegger que a proposição, longe ser um elemento primitivo do pensamen- to, é uma síntese derivada do discurso, o qual lhe serve de pressuposto. E em seguida ousaria Heidegger transferir a verdade - de que o neopositivismo fez a nativa habitante da proposição - do âmbito desta para o reticulado âmbito da abertura, onde, delimitada pelas pos- sibilidades extremas do discurso, como estrutura constitutiva do Dasein, e que são o escutar e o silenciar, não é mais concordância da inteligência com a coisa, adaequatio rei et intellectus, mas velamento e desvelamento, no sentido da palavra grega aletheia. Pela fala, o Dasein já é aletheuein, aquele que não esquece (alethes) o ser de que é a eminente abertura - e do qual estaria à escuta mesmo quando a respeito dele silencia. Nesse sentido, diria Heidegger que a verdade é do Dasein ou que o Dasein está na verdade.1

Escuta-se antes de ouvir, silencia-se indo contra a corrente da fala. Escutar é uma forma de perceber compreendendo. Quem é surdo, pode escutar sem ouvir. E quem ouve verdadeiramente, não escuta sons esparsos, sem conexão; percebe o ruído pesado da chuva, o prolongado cicio do vento, etc. Perceber dessa maneira é compreender, como se compreende o outro escutando-o e como escuta ou ausculta com as mãos, apalpando, aquele que nada vê. Mais do que a minha fala, a escuta de quem me ouve assinala a ocorrência da compreensão. Pode também assinalá-lo o meu silêncio, quando interrompo ou deixo em suspenso o meu discurso para aquele que me ouve.

Pelo que acabamos de expor, vê-se que tanto quanto a disposição e o projeto, a fala2, que os interliga numa interpretação do Dasein por si mesmo e do mundo pelo Dasein, a qual precede e condiciona a predicação, sintetiza, como uma modulação preliminar da experiência e do pensamento, o lastro pré-teórico e pré-reflexivo que abastece, per- manentemente, a filosofia heideggeriana. Interferindo contra o predo- mínio de qualquer forma de teorização, seja científica, seja axiológica ou valorativa, esse lastro, que a imuniza contra o espírito de sistema, predispõe-na a aproximar-se da experiência e do pensamento na arte e na poesia. Mas devido ao seu vínculo existencial, a estrutura constitutiva da fala segue o mesmo movimento oscilatório daquele a quem constitui, ora mantendo-se na claridade da abertura, ora decaindo para a objetivação alienadora. Seja ou não inspirada numa categoria religiosa hebraico-cristã, a tão famosa decaída do Dasein, como envolvência na lida cotidiana, é, antes de tudo, quando o circuito da fala, engrenado ao da comunicação, transmite a interpretação comum, pública, anônima, repetitiva e reflexa, a decaída na e pela linguagem, já convertida em instrumento manipulável. Então a linguagem é a linguagem de todos e de ninguém; gastas pelo consumo, manejáveis pelo seu valor de troca no mercado das significações estabilizadas que a gente negocia, convertidas na gestualística verbal do falatório, da parolagem, as palavras fecham-nos ao mundo. E só poderá novamente reabri-lo o discurso, se reavivado pelo seu tom, pela disposição que o abre ao mundo e o qualifica de poético: "A comunicação das possibilidades existenciais da disposição, ou seja, da abertura da existência, pode tornar-se a meta explícita do discurso poético" (Heidegger 1927, p. 162).3

Eis, portanto, segundo a ontologia fundamental firmada em Ser e tempo, onde e como a fala se abre ao discurso poético, à poesia. Abre-se, num tom fundamental, modelado por uma disposição de ânimo (Stimmung) à altura da existência mesma, da verdade do Dasein, da aletheia quer implícita quer explicitamente. Quando explicitamente, tem por meta a "comunicação das possibilidades existenciais da disposição". Potencialmente, a fala, sempre que numa tonalidade, já é poética; e a poesia se concretiza atualizando, num Stimmung, as possibilidades da abertura.

Seria errôneo localizar o Stimmung, de que Ser e tempo já se ocupa (Heidegger 1927, § 29, pp. 136-7), no sujeito, como simples fenômeno subjetivo ou querer explicá-lo "a partir da ação das coisas sobre os nervos. Ao contrário, o Dasein do homem está lançado nos tons do mesmo élan original que o ente enquanto tal" (Heidegger 1980, p. 91).

Portanto, a predisposição à poesia já marca, desde Ser e tempo, o pensamento heideggeriano. Mas a passagem à poesia, de modo a que se efetivasse uma dialogação com ela, só se deu, como um salto, na segunda fase, quando, abandonada a ontologia fundamental, auscultando a mesma questão do ser nos textos dos pré-socráticos e dos poetas Hölderlin, Rilke, Trakl e Stefan George, Heidegger indagará sobre a essência da obra de arte em A origem da obra de arte (Der Ursprung des Kunstwerks, 1935) e sobre a essência da poesia no curso sobre Os Hinos de Hölderlin "Germânia" e "O Reno", de 1934-35 (Hölderlins Hymnen "Germanien" und "Der Rhein"). Nessa indagação, delegou papel proeminente às noções de verdade e linguagem.

A essência da obra de arte não reside nem na sua criação pelo artista nem no ato de contemplá-la, e sim na sua origem - no ser mesmo que se desvela na obra, que assoma em sua organização sensível, ôntica, tal como, no exemplo focalizado em A origem da obra de arte, a labuta diária, a sucessão dos dias e das noites, o cansaço e o repouso na imagem empastada de cores da bota de Van Gogh - talvez do artista e não de uma camponesa - ou como o deus votivo, evolado do espaço sacral do templo grego em ruínas, de que nos fala aquele ensaio heideggeriano. Do ôntico ao ontológico, tal o caminho na criação, repetido contemplativamente pelo fruidor ou espectador, e que constituiria a verdade da arte posta em obra. Na arte, a verdade opera e se transluz; seu ser iguala seu aparecer. E se aí o ser é como aparece e se aparece como é, isso ocorre devido ao caráter linguareiro (sprachlich) dessa operação, ao fato de que a verdade se faz palavra para transluzir ou aparecer. Sem linguagem, não haveria o manifesto, e, por conseguinte, não haveria, também, trânsito do ôntico para o ontológico.

"A linguagem não é só nem primeiramente uma expressão oral ou escrita do que deve ser comunicado", diz Heidegger em Os hinos de Hölderlin. A linguagem "é o que conduz o ente como ente ao estado de manifesto" (Heidegger 1980, p. 62). E não pode conduzi-lo a esse estado sem projetar-se numa forma de dizer (sagen), que já é poética. A essência da arte é, portanto, a poesia (die Dichtung). E a poesia consiste essencialmente na instauração da verdade (Stiftung der Wahrheit) em três diferentes sentidos correlatos: como dom (Schenkung), que na obra é o inaugural, como fundação (Gründung), posto que o que se inaugura, latente no destino histórico de um povo, também lhe dá fundamento, e como começo (Anfang), porque o que se inaugura e funda dá origem ao inédito, ao novo, ao que principia. "Sempre que a arte acontece, quer dizer, quando há um começo, produz-se na história um abalo e esta começa ou recomeça" (Heidegger, A origem da obra de arte, p. 88).

O acontecimento da arte enquanto poesia, e a poesia enquanto instauração da verdade, fornecem-nos o quadro compreensivo dos estudos sobre Hölderlin, o primeiro resultante do curso de 34/35 - Os hinos de Hölderlin "Germânia" e "O Reno" - de que é um resumo o mais conhecido texto "Hölderlin e a essência da poesia" ("Hölderlin und das Wesen der Dichtung"), publicado em 1937.

Por que Hölderlin será, para Heidegger, o Virgílio disponível, a guiá-lo, tal como guiou Dante, na Divina Comédia, numa espécie de ritual de passagem, à região onde colherá o "ramo de ouro" da palavra poética? Jamais se explicará a predileção do filósofo por Hölderlin; pode-se, sim, elucidar porque o escolheu num determinado momento, logo após a sua renúncia à reitoria da Universidade de Freiburg in Brisgau, quando começara o seu dissídio com a ideologia política do NSDAP.

Escolheu-o mediante três razões que ele próprio enumera na seguinte ordem:

1) Hölderlin é o poeta do poeta e da poesia. 2) Simultaneamente, Hölderlin é o poeta dos alemães. 3) Como Hölderlin é tudo isso, poeta do poeta enquanto poeta dos alemães, de maneira latente e difícil, ele ainda não se tornou potência na história de nosso povo. E como ainda não é, é preciso que assim se torne. Contribuir para isso é fazer "política", no sentido mais alto e próprio do termo, a tal ponto que quem conseguir obter alguma coisa nesse terreno, não terá necessidade de discorrer sobre o "político". (Heidegger 1980, p. 214)

Vontade política e vontade poética unem-se na decisão de Heidegger de oferecer ao povo alemão, em Hölderlin, um outro fundador, com quem "podemos aprender quem somos", preparando-o, com a terra natal, para esses deuses e semideuses que virão, e a que se referem, consagrando a linguagem como matéria da poesia e assim também como a procura de uma nova linguagem, os versos de "Germânia" e "O Reno".

O bouches l'homme est à la recherche d'un nouveau langage
Auquel le grammairien d'aucune langue n'a rien àdire
.

Nessa nova linguagem, invocada por Apollinaire em "La Victoire", o dizer e o ver, a dicção e a visão se tornariam complementares - uma espécie de sagração da linguagem, cujos variados temas, tons e formas se constelam sempre em torno do preferencial e reverenciado objeto: a própria poesia, cantada, louvada, interpelada, mesmo quando se louva e canta outra coisa. É essa poesia da poesia que Heidegger tematiza em Hölderlin. Tematizar é bem o termo, uma vez que Heidegger relaciona na obra desse poeta as incidências do dizer projetivo, poético. Não podemos fazer aqui, como seria preciso, a volta completa nas poesias de Hölderlin, explicando cada uma delas em particular. Em lugar disso, consideraremos cinco palavras do poeta, cinco Leitmotive sobre a poesia:

1. "Poetizar: a mais inocente de todas as ocupações."
["Dichten: Die unschuldigste aller Geschäfte".]
2. "Eis porque o mais perigoso dos bens, a linguagem, foi doado
ao homem [...]: para que testemunhe sobre aquilo que ele é [...]."
["Darum ist der Güter Gefährlischstes, die Sprache den Menschen
gegeben
[...] damit er zeuge, was, er sei [...]".]
3. " [...................................................................................................]
Do momento em que somos um diálogo
e que podemos ouvir-nos uns aos outros."
["Seit ein Gesprach wir sind
Und hören können voneinander
".]
4. "Mas o que permanece, fundam-no os poetas."
("Was bleibt aber, stiften die Dichter".)
5. "Rico em méritos, é, no entanto, poeticamente que o homem habita esta terra".
("Voll Verdienst, doch dichterisch wohnet Der Mensch auf dieser Erde".)4

O tópico 3, por onde começaremos, liga-se ainda, como um prolongamento do ser-com-os-outros, à fala dentro da língua ou à linguagem na fala. Se no texto o poema toma a palavra é porque vai bem longe na linguagem, implantando-se ali onde ouvimo-nos uns aos outros: no diálogo que somos. Ouvimo-nos uns aos outros ouvindo a poesia ou vice-versa, porque a linguagem, como imensa rede dialógica em que somos colhidos, é a caixa de ressonância de uma disposição de ânimo. "Não somos nós que possuímos a linguagem, é a linguagem que nos possui para o melhor e para o pior" (Heidegger 1980, p. 24). Essa posse independe de nós, como sujeito da vontade e da ação. Já estamos sob o seu domínio quando o poema, que não é uma simples "construção da linguagem oferecida como objeto" nem um "processo psíquico de produção" de vivências, toma a palavra. Poetizar é dichten, "um dizer (sagen) sob o modo do signo que torna manifesto" (Heidegger 1980, p. 30), ajustado a um tom: "o tom como tom faz ocorrer a manifestação do ente em sua abertura" (Heidegger 1980, p. 86), e funda, por isso, na palavra, na sua essência dizente, o desvelamento do ser. Quando segura o que fica, quando retém o que permanece, a palavra é poética. "Was bleibt aber, stiften die Dichter" ("O que porém permanece, fundam-no os poetas").

Mas a palavra poética não delega a verdade ao Dasein. É ao próprio ser, oculto ou revelado através dela, que a verdade pertence. Se o Dasein está na verdade, ele o está como aquele que ocupa a abertura na direção da qual se move. O que, finalmente, Heidegger aprende de Hölderlin é a finitude do homem como Dasein, sujeito aos poderes contraditórios da linguagem: jogo inocente com as palavras, o exercício da poesia é a mais perigosa das ocupações, porque, mexendo com a linguagem, mexe com a abertura e seu velamento, com a verdade e a não verdade.

Em "Germânia", Hölderlin move-se na direção das divindades pagãs:

Os antigos deuses visitam de novo a terra Pois aqueles que vão chegar nos apressam, E a tropa sagrada dos deuses não se demorará no céu azul.5

Graças à fundação pela poesia do ser na linguagem é que o homem pode, como Hölderlin, escutar os deuses, interpretando-lhes os signos, que integram a vida do povo. Por via de conseqüência, a poesia é força histórica formadora.

Do fato que o signo como gesto dos deuses é por assim dizer argamassado pelos poetas nas fundações da língua de um povo, sem que talvez o povo o suspeite, o ser é instaurado na existência histórica do povo e, neste ser uma indicação e uma dependência são depositadas. (Heidegger 1980, p. 43)

Dessa forma, tanto vale dizer, como em "Hölderlin e a essência da poesia", que a "poesia é a língua primitiva de um povo histórico" (Heidegger 1951 [1937], p. 43), ambas, poesia e língua, abrangidas pela categoria da historicidade, quanto afirmar, nas preleções de Introdução à metafísica, que

a língua é a poesia originária em que um povo poetiza [dichtet] o ser. Inversamente, vale dizer: a grande poesia pela qual um povo entra na história inicia a configuração de sua língua. Os gregos, com Homero, criaram e conheceram essa poesia. A língua estava presente ao seu Dasein como irrupção no ser, como uma formação [Gestaltung] da abertura do ente. (Heidegger 1958, p. 131)

Poesia e língua formam a história por onde transitam os signos dos deuses mediados pelos poetas - desse ponto de vista núncios sempre tardios, como teria sido Hölderlin para as divindades gregas já perecidas e para o Deus cristão, morto, assassinado pelos homens, no mundo secularizado sob a ação do próprio cristianismo, como anunciaria o Zaratustra de Nietzsche. Os poetas nomeariam o sagrado. Mas o que podem nomear esses retardatários, entre a defunta religião dos deuses antigos e a aparentemente viva religião cristã, senão um sagrado erradio, promessa incumprida de ambas?

Mas, ó amigo, chegamos muito tarde! Os deuses
vivem de verdade,
Mas acima de nossas cabeças, num outro mundo.6

Fundando o ser, a poesia também nomearia o sagrado, dando acesso ao lugar onde "os filhos da terra devem habitar, se eles residem poeticamente nesta terra" (Heidegger 1951, p. 149).

Residir poeticamente nesta terra? O que significa isso?

Talvez signifique, numa conversão poética do pensamento - paradoxal conversão por certo, em contraste com a diretriz calculadora, utilitarista da civilização técnica dominante da época - usufruir da terra como terra . E que é usufruir da terra como terra senão habitar a linguagem como linguagem, que é o que permite ligar a ter- ra ao céu pela palavra fundadora? "Habitar poeticamente quer dizer: estar diante da presença dos deuses e ser atingido pela presença essencial das coisas" (Heidegger 1951, p. 42). Habitar poeticamente a terra não se extrapolaria nem para cima nem para baixo: é um ficar ético ou ontológico, no entre-dois, que são quatro (die Vier, a Quadrindade), entre o céu e a terra, entre os deuses e os homens, ou entre os mortais e os imortais, mas como uma força de cultivo, mais primitiva do que a cultura, misto do colere (amanho da terra, trato do solo) e do aedificare latinos, pelo qual o poético antecederia e ultrapassaria a literatura.

A poesia poderia então aparecer dentro e fora da literatura, como a mobilidade da palavra fundadora, fronteiriça entre logos e mythos. Como logos, a poesia mostra, faz ver; e o que faz ver é o longínquo que o mito assinala. A dialética do próximo e do longínquo rege a palavra projetiva. Não é algo de determinado o que a poesia mostra; e o longínquo que ela faz ver nada é. "Ela mostra alguma coisa que há e que não é" (Heidegger 1959, p. 193). Anula-se a palavra poética como doação de si mesma para fazer aparecer o que há. Quando faz aparecer o que há, a linguagem fala, a língua (die Sprache) então retomada pelo discurso (die Rede). Investigar a poesia seria, ainda, postulando-se, como Heidegger, um conceito extralingüístico de linguagem, isto é, um conceito à margem da lingüística que tem por fundamento uma teoria do signo, investigar a linguagem como fala.

Diz Heidegger que a teoria do signo, através do qual se perdeu todo o lastro da verdade no sentido de aletheia, ainda conservado por Aristóteles, estabeleceu um ajuste entre palavra e objeto representado:

As letras mostram o som da voz. Os sons da voz mostram o que é experimentado na alma, que, por seu lado, mostra as coisas que atingem a alma [...]. Mostrar, sob múltiplas formas, velando ou desvelando, é fazer com que a coisa apareça, é deixar apreender [vernehmen lassen] o que assim aparece, e deixar que seja retomado o que foi apreendido. O traço que liga o mostrar ao que ele mostra, traço que jamais foi desenvolvido puramente a partir de si mesmo e de sua proveniência, se transforma, com o passar do tempo, numa relação, estabelecida por convenção entre um signo e seu significado. (Heidegger 1959, p. 193)

Antes porém o signo (das Zeichen) estaria correlacionado a uma experiência de mostrar (das Zeigen). Só se poderia designar ou representar depois que a palavra mostrasse o que é objeto de representação ou designação. De que maneira a linguagem mostra, senão dizendo-o em palavras? E quando se estabelece equivalência entre dizer (sagen) e mostrar (zeigen), em torno do que se desvela como aletheia, como verdade originária do ser desencoberta na linguagem, as palavras se tornam poéticas. Já Heidegger emprega a palavra "palavra" (das Wort) numa chave poética, que a converte de signo representacional em sinal vocativo: aceno e apelo (Winken, Ruf).

As palavras nos acenam para o ser que desvelam, e que, tanto nos textos dos primeiros filósofos quanto nos poemas, apelam para nós, chamando-nos o pensamento. O pensamento segue este único apelo: das Ruf des Seins, o apelo do ser que não apenas repercute na linguagem, mas que somente nela aparece, quando nomeado, no sentido fenomenológico do vir a furo, sair à luz e mostrar-se.7 Daí a estranha e metafórica afirmativa constante da Carta sobre o "humanismo": "A linguagem é a casa do ser. Em seu abrigo habita o homem. Os pensadores e poetas são os guardiões desse abrigo [...]" (Heidegger 1957a, p. 25). Mas quem constrói a casa?

O pensamento, que se autêntico, é sempre pensamento do ser ou o próprio ser que se desvela construindo a casa da linguagem? Num caso e noutro ocorreria uma sobreposição entre poetar (dichten) e pensar (denken). Pensar o ser e dizê-lo se distanciariam entre si por um mínimo afastamento: a forma poética. A primeira nota da forma poética é a "configuração rítmica": exprime o sentido, presidindo a colocação, a escolha, a distribuição das palavras. Poetizar, dizer poeticamente é, antes de tudo, "dichten": mostrar, tornar a coisa visível, manifestá-la de forma particular numa configuração rítmica, que, por sua vez, atende a uma disposição anímica. Hölderlin teria nomeado os deuses, expressando os sinais que os tornassem visíveis. Mas a nomeação nunca é a direta imposição de um nome; se o fosse, ela se deteria num ente estabilizado. A nomeação, que não se esgota em dar nomes, chama, diz, invoca e evoca, trazendo à presença as coisas nomeadas - reunidas num só sítio (Ort). Esse apresentar que mostra reunindo é o canto, melos.

O canto corresponde, então, à confecção de uma forma, que é forma da linguagem ou da língua (die Sprache). Esta "conserva a visão", (Heidegger 1951, p. 13) para a qual convergem o dito e o não-dito, entremeados de silêncio (Geläute der Stille). Assim a poesia só pode nascer do "fervor pensante da recordação" (Heidegger 1954, parte 2, p. 11) - recordação retrocessiva até aos mananciais de que surge: o céu e a terra, os mortais e os imortais, os homens e os deuses, nela trazidos à colação. De qualquer maneira, atingiríamos, nesse ponto, aquele limite "literário" ou "textual" da poesia a que já nos referimos, e que é o pensamento do ser. Mas o poeta, como Hölderlin no hino "Como em dia de festa", nomeia o sagrado e o pensador diz o ser.8

Mas eis o dia! Eu o esperava e vi-o chegar
E do que vi, que o Sagrado seja a minha palavra!

Nomear, diz Heidegger, é dar nome ao que pede nova designação: o longínquo dos deuses, e portanto do mito, chamados para que se tornem visíveis. Dizer o ser é apenas o pronunciar-se do pensador sobre a sua constante evidência? Aparentemente divergem o poeta e o pensador, aquele nomeando para fazer existir, o último declarando o que já existe. Nomearia o poeta sem dizer, diria o pensador sem nomear. Se aceitamos essa separação, aceitaríamos que o poeta estivesse à margem do ser e que o pensador estivesse à margem do sagrado. Mas o sagrado ainda é ser e o ser também é nomeável se tanto como o anterior ingressa no mostrar reunindo do canto. Tanto quanto nomear o sagrado, dizer o ser recai na modalidade da palavra projetiva, poética. Sagrado e ser se aproximam tanto quanto o pensador se aproxima do poeta. Mas o ser apropriado pelo pensamento é, para Heidegger, congenitamente poético.

"O pensamento do ser é o modo original do dizer poético. Nele a linguagem acontece como linguagem, em sua própria essência [...]. O pensamento é a poesia original" (Heidegger 1957b, p. 303). Inversamente, poder-se-á afirmar que o dizer poético, contém, como pensamento do ser, a essência da linguagem. No fundo, poetas e pensadores diriam sempre o mesmo, e porque isso acontece, eles não são apenas, segundo aprenderá Heidegger com Hölderlin, os guardiões da casa do ser, mas seus co-fundadores, uns e outros concordantes na vocação da poesia enquanto dom da palavra no dizer mostrando e no mostrar dizendo. A poesia se faz com a linguagem e como linguagem (die Sprache), sempre que repassada numa Stimmung, numa tonalidade fundamental correlata. Embora descartado, depois de Ser e tempo, o termo anterior, die Rede, é na fala, contra a usura da parolagem - a "moeda corrente da fala", contra a qual Mallarmé se insurgiu - que a poesia doa-se aos outros; mas doa-se no dizer de cada texto, em sua fala, pela qual a linguagem, convertida em diálogo, transmite sempre para todos um renovado bem sem desgaste. A conversão em diálogo é possível porque remissiva ao Dasein e sua abertura. Respondida fica assim a primeira pergunta que fizemos no início.

Mas quem dialoga com quem? O diálogo se estabelece entre o pensador que lê e interpreta e a poesia que a ele se doa na leitura. Os locutores, nesse diálogo, não são o pensador e o poeta; a poesia deixa em suspenso a existência biográfica deste último, produzindo "o desaparecimento elocutório do poeta", que "cede a iniciativa às palavras mo- bilizadas pelo choque de suas desigualdades" (Mallarmé [1895-6] 1945, p. 366).

"Das Wort: das Gebende" ("A palavra: o que doa") (Heideg- ger 1959, p. 193). Porque doação, a palavra não é, não tem ser. Heidegger toma essa dádiva para guiá-lo em sua investigação filosófica, quer para traduzir, no estudo dos pré-socráticos, as palavras essenciais de Parmênides e Heráclito, colhidas em seus fragmentos, quer, desde as páginas de Ser e tempo, para criar substantivos e verbos ou renovar-lhes o significado.

Traduttore, traditore; como tradutor, Heidegger aceita o papel de traidor das significações, tradicionalmente estabilizadas, em benefício de uma "arqueologia" que arranque dos estratos mais profundos da língua grega, de seus mananciais, o sentido prístino. Assim se dá com logos, traduzido por colher e recolher, de acordo com sua recuada etimologia de legein, e com physis, derivado de fo e fa, que designam phyein e phainestai, aquilo que se põe a luzir, aparece e se mostra. Physis significa presença surgente; e esta terá sido a original manifestação do ser para os gregos, antes da tradução de physis por natura (natureza), que lhes trouxe a fase helenística. Do mesmo modo, aletheia, enquanto velamento e desvelamento do ser, que em sua própria economia de presença ora se oculta ora se revela, teria precedido a noção de verdade no sentido estrito. Em toda filosofia, dos primeiros pensadores gregos a Platão e Aristóteles, entre os estóicos e depois entre os escolásticos e os modernos, de Descartes a Kant e de Kant a Hegel, um grau maior ou menor de criação verbal investe-se na formação de uma terminologia, de um vocabulário específico, de que é rica a fenomenologia de Husserl e, mais rica ainda, a fenomenologia hermenêutica de Heidegger.

Ser e tempo nos oferece um repositório de palavras comuns da língua alemã, renovadas, a começar por Dasein, e prosseguindo em verdadeiras séries semânticas, como os vocábulos da mesma família - Sorge, Besorgen (preocupação, ocupação), Welt, weltlich (mundo, mundanamente) - e tantos outros na leitura de um texto, em que substantivos de uma mesma classe proliferam - Zeit, Zeitigung, Zeitlichkeit, Raum, Raumlichkeit (tempo, temporação, temporalidade, espaço, espacialidade) -, gerando verbos - zeitigen (temporar), räumen (espaciar), dingen (coisar) - que podem ser indicativos de ação própria do espaço, do tempo e da coisa (die Zeit zeitigt, das Raum räumt, das Ding dingt). A essa primeira geração de palavras acrescenta-se uma segunda, a de termos como Ereignis (a juntura do ser e do homem), Gestell (o desvelamento da técnica, de que se dirá algo mais adiante) e Geviert (a relação dos quatro, céu e terra, mortais e imortais na Quadrindade), criados, para citarmos apenas três dos mais importantes, a fim de assinalar a emergência de novos conceitos.

Se o tradutor-traidor se comporta como intérprete, o escritor se comporta como poeta, tratando as palavras, desde Ser e tempo, não como simples vocábulos, mas como, segundo dirá em O que significa pensar? (Was heisst denken?), "mananciais, que o dizer (sagen) perfura, mananciais que têm que ser encontrados e perfurados de novo, fáceis de obturar, mas que, de repente, brotam de onde menos se espera" (Heidegger 1961, p. 89).

Assim Heidegger procede à perfuração de palavras-fonte em não poucos textos, alguns restabelecendo a já raríssima forma dialogal em filosofia, como em "Comentáriosobre a Gelassenheit", empenhado em reformular, com novas palavras, os conceitos de abertura e horizonte, e como "De um diálogo sobre a linguagem - entre um japonês e um questionador" ("Aus einem Gespräche von der Sprache - Zwischen einem Japaner und einem Fragenden"), no qual discute a possibilidade de verter significações específicas da cultura ocidental, como estética e linguagem, para o âmbito conotativo das palavras iki e koto ba do japonês aí referidas. É possível que, nesse último caso, conforme observou Haroldo de Campos, no seu poema "Aisthesis, Kharis: Iki" de A educação dos cinco sentidos, Heidegger não tenha visto - e nem os teria decifrado se os visse - os ideogramas respectivos quando tratou dessas palavras:

Se Heidegger tivesse olhado
para o ideograma
enquanto escutava o discípulo
japonês
(como Pound olhou para ming sollua
com o olho cubista de Gaudier-brzeska
depois de dar ouvido a Fenollosa)
teria visto que a cerejeira cereja koto ba
das ding dingt
florchameja
no espaço indecidível
da palavra
iki.9

Para Heidegger, o "espaço indecidível" das palavras é, também, o do pensamento, que ele interligou, escrevendo poeticamente a composição mista em verso e prosa, "Aus der Erfahrung des Denkens" ("Da experiência do pensamento"), à imagem do "caminho do campo" (Feldwege, Holzwege). Entre versos iniciais e finais, exibe, nessa com- posição, a conflitante experiência do pensamento consigo mesmo, ex- presso em aforismos de um lado da página e em frases interruptas de outro lado, que o escandem no quadro das rápidas mudanças da natureza exterior - o céu, as montanhas, a tempestade, o sol - como no exemplo a seguir:

Quando, no inverno, a borboleta se detém sobre uma flor, e, fechando as asas, com ela se balança sobre o vento da pradaria ..../ Toda coragem que enche o coração é a resposta a um toque do ser que congrega o nosso pensamento unindo-o ao jogo do mundo. (Heidegger 1954b, pp. 16-7)

Assim, pois, o jogo do mundo, metáfora das metáforas, desfere-se, nesses textos poéticos de Heidegger, num "caminho do campo": caminho de palavras, no qual a experiência se faz pensamento. Assim ocorre no poema final de Aus der Erfahrung des Denkens:

As campinas estão à espera
As fontes jorram
Os ventos preenchem o espaço
O pensamento bendito
medita.10

É uma experiência feita pensamento que também surpreende, nas latências da abertura em cada época, com os seus subterfúgios, retrações e metamorfoses, uma história profunda, determinante, do próprio ser, na direção da qual se põe a caminho, interpretado como physis em Heráclito, como idea em Platão, ousia em Aristóteles, pensamento em Descartes, espírito em Hegel, vontade de potência em Nietzsche. São idéias que se detêm no ente, atestando, no esquecimento do ser como sua contraparte, o regime metafísico do pensamento, aguçado, em nossa época, pela técnica e seu fastígio.

Ora, ao indagarmos sobre a técnica, veremos que o defini-la como conjunto de meios disponíveis para a consecução de fins, é insuficiente para formular-lhe a essência. Esses meios disponíveis, bem como os fins atingidos, são engrenagem de um processo de produção e de consumo. O encadeamento de uns e outros ao sistema que integram depende do desencadeamento de uma provocação ao ente natural, desencoberto como fundo de reserva calculável e manipulável (Gestell), de que o homem se torna elemento integrante. Seria esse desencadeamento de meios e fins a essência da técnica - essência não técnica ou fora da técnica, que constitui a verdade que lhe é própria. Embora seja outra a verdade operante da arte, técnica e arte, que se opõem entre si pelo que em cada uma é descoberto, aparentam-se porque ambas resultam de um produzir, de um producere, que é inerente à poiesis. Antigamente, observa Heidegger (1954b, p. 27), dava-se à arte o simples nome de técnica. "A poesia das belas-artes também se chamava técnica." Daí a situação paradoxal adiante delineada.

A dominância da técnica nos fecha para o ser pelo esquecimento, mas é graças a tal dominância que temos, por contraste, a experiência da arte como o pôr-se em obra da verdade, e da poesia como uma "técnica da vida" que nos habilitasse a habitar poeticamente a terra. Nesse sentido, arte e poesia se igualariam à técnica, enquanto meios de "salvar", de plenificar o homem em seu redimensionamento ao ser.

Mas, desse ponto vista, a verdade não pertence ao Dasein; pertence ao ser, que une o seu destino ao da Metafísica. Seja qual for a modalidade entitativa predominante, idea, physis ou vontade de potência, nenhuma esgota o ser; e cada qual deixa atrás de si um rastro de impensado e um esboço do que ainda se pode pensar. Contaminado pela Metafísica, o pensamento racional, de ordem representativa, é incapaz de seguir o rastro do não pensado e de desenvolver o que ainda resta a pensar. Somente o pensamento afim à poesia estaria apto a fazê-lo, descobrindo o ser nos filósofos que desdenham o sistema e no dizer-mostrar da pala- vra dos poetas. Nessas condições, o pensador, que é quem está traba- lhando com os textos de uns e de outros, passaria à função de assis- tente dos filósofos e dos poetas, ao mesmo tempo que intérprete da técnica, do ambíguo perigo de sua abertura, tendente a destruir-nos ou a salvar-nos.

Tal é, resumidamente, a virada do pensamento de Heidegger, que o levou da ontologia fundamental à História do ser na segunda fase de sua filosofia. Essa virada é, segundo nosso ponto de vista, inseparável daquela ocorrida nas relações entre poesia e linguagem. Por tudo quanto expressamos anteriormente a respeito, pode-se concluir que, para Heidegger, não é a poesia uma possível forma de linguagem; a linguagem mesma já é poética em sua forma original. A poesia mesma "possibilita por primeiro a linguagem" (Heidegger 1937, p. 43). Não haveria linguagem sem poesia. Poesia e linguagem são conascentes.

Outra conclusão se impõe: a impropriedade de admitir-se uma poética heideggeriana, a não ser que poética signifique, ao mesmo tempo, o princípio da poesia na linguagem ou da linguagem na poesia. Nesse caso, então, nenhum lugar à parte, reservado, na filosofia heideggeriana, pode haver para a poética, que a ocupa inteiramente, formando-lhe o núcleo mais denso e problemático. Daí que poesia e pensamento nela se avizinhem sem se confundirem. "Cantar e pensar [singen und denken] são os dois troncos vizinhos do ato poético [sind die nachbarlichen Stämme des Dichtens]", lê-se em Da experiência do pensamento (Heidegger 1954b, p. 25).

Como se dá essa vizinhança, que repassa um no outro cantar e pensar, e ambos no ser, também algumas vezes denominado sagrado, senão pelo ato poético que a dominância da técnica ao mesmo tempo aclara e obscurece? E quem, senão um filósofo-poeta, poderia reconhecer a poesia em ato?

O pensamento de hoje, mais calculista e previsor, prepara-se para deixar a habitação terrestre em demanda de uma habitação cósmica - o "espaço esvaziado do mundo", que, no entanto, continuaria sendo belo para aqueles eventuais astronautas ainda suscetíveis de experimentar o ancestral sentimento de admiração e de estranheza, repetindo, talvez, diante do aparente vazio, os versos de Álvaro de Campos/Fernando Pessoa:

"Porque há qualquer coisa, porque há qualquer coisa, porque há qualquer coisa."

 

Referências bibliográficas

Appolinaire, Guillaume: "La Victoire", in Calligrammes. Oeuvres poétiques, Librairie Gallimard, Paris, 1956.         [ Links ]

Campos, Haroldo de 1985: A educação dos cinco sentidos. São Paulo, Brasiliense.

Heidegger, Martin 1927: Sein und Zeit. 8ª ed., Tübingen, Niemeyer, 1957.

______1951 [1937]: "Hölderlin und das Wesen der Dichtung", in Heidegger 1951, pp. 31-45.

______1943: "Nachwort zu `Was ist Metaphysik?'". GA 9. Frankfurt a/M, Klostermann, pp. 303-12.

______1951: Erläuterungen zu Hölderlins Dichtung, 2ª ed. Frankfurt a/M, Klostermann. ______1954a: Vorträge und Aufsätze. Pfullingen, Neske.

______1954b: Aus der Erfahrung des Denkens. Pfullingen, Neske.

______1954c: "Die Frage nach der Technik", in Heidegger 1954a, pp. 13-44.

______1957a: Brief über den "Humanismus". Lettre sur l'"humanisme" (ed. bilíngüe). Paris, Aubier, Montaigne.

______1957b: Holzwege. Frankfurt a/M, Klostermann.

______1958: Einführung in die Metaphysik. Tübingen, Niemeyer.

______1959: Unterwegs zur Sprache. Pfullingen, Neske.

______1960: Der Sprung des Kunst-Werkes. Stuttgart, Reclam.

______1961: Was heisst Denken?. Tübingen, Niemeyer.

______1980: Hölderlins Hymnen "Germanien" und "Der Rhein". 2ª ed., GA 39. Frankfurt a/M, Klostermann.

Mallarmé, Stéphane 1945 [1895/6]: "Variations sur un sujet", in Mallarmé, Stéphane : Oeuvres complètes, Bibliothèque de La Pléiade, pp. 353-420. Paris, Gallimard.

 

 

1 "Só se dá verdade na medida em que o Dasein é. [...] Nós pressupomos verdade, porque nós, sendo no modo de ser do Dasein, somos e estamos na verdade" (Heidegger 1927, § 44, p. 227)
2 "O discurso é a articulação "significativa" da compreensibilidade do ser-no-mundo, a que pertence o ser-com, e que já sempre se mantém num determinado modo de convivência ocupacional" (Heidegger 1927, § 34, p. 16)
3 "Die Mitteilung der existenzialen Möglichkeiten der Befindlichkeit, das heisst das Erschliessen von Existenz, kann eigenes Ziel der `dichtenden' Rede werden".
4 Hölderlin, apud Heidegger 1951 [1937], p. 31.
5 Hölderlin, apud Heidegger 1980, p. 10.
6 "Aber Freud, wir kommen zu spät/ Zwar leben di Götter,/ Aber über dem Haupt droben in anderer Welt" (Heidegger 1951 [1937], p. 48).
7 "Das Nennen verteilt nicht Titel, verwendet nicht Wörter, sondern ruft ins Wort." (Heidegger 1959, p. 21)
8 "Der Denker sagt das Sein. Der Dichter nennt das Heilige." (Heidegger 1943, GA 9, p. 312).
9 Campos 1985, p. 50.
10 Heidegger 1954b, p. 27.