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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.2 n.1 São Paulo jun. 2000

 

ARTIGOS

 

Sobre a ética em Heidegger e Wittgenstein

 

On ethics in Heiddeger and Wittgenstein

 

 

Zeljko Loparic

Departamento de Filosofia da Unicamp, Curso de Etudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP

 

 


RESUMO

O artigo se inicia traçando um paralelo entre a pergunta pelo ser tal como colocada pelo primeiro Wittgenstein e pelo primeiro Heidegger. Segue expondo a tese de que, nos dois autores, a problemática da ética ocupa um lugar tão central como a do ser e de que as suas posições divergem principalmente em decorrência do desacordo sobre a essência da linguagem. Prossegue mostrando que esse desacordo cresce com o tempo, Wittgenstein tornando-se cada vez mais cético e Heidegger, pelo contrário, cada vez mais afirmativo de um discurso não-objetivante. Termina apontando para um possível ultrapassamento (Überwindung) do segundo Wittgenstein a partir do segundo Heidegger.

Palavras-chave: Heidegger, Wittgenstein, Ser, Ética, Linguagem.


ABSTRACT

The article starts by drawing a parallel between the question of being in the early Wittgenstein and the early Heidegger. It goes on by explaining the thesis that, in both authors, the problem of ethics is as central as the problem of being in order to conclude that what separates them is a desagreement concerning the essence of language. It continues by showing that this desagreement increaces with time, Wittgenstein becoming more and more sceptical and Heidegger, to the contrary, more and more assertive of a non-objetifying mode of speach. At the end, a hint is given on how the late Wittgenstein might be "bypassed" in the light of the second Heidegger.

Keywords: Heidegger, Wittgenstein, Being, Ethics, Language.


 

 

1. A questão do ser no primeiro Wittgenstein e no primeiro Heidegger

Ao mesmo tempo que propunha a teoria da linguagem como imagem do mundo dos fatos (estados de coisas subsistentes), o primeiro Wittgenstein fazia uma distinção capital entre dizer e mostrar. Essa distinção lhe permitia fazer uma outra, correlativa, entre fatos "naturais" que podem ser mostrados (num certo sentido de mostrar) e também ditos, e "coisas" que só podem ser mostradas mas não ditas. Que coisas são essas? Em dezembro de 1929, depois de ter lido Ser e tempo, Wittgenstein admite, diante de seus interlocutores do Círculo de M. Schlick, em Viena - empenhados na busca de uma linguagem unitária da ciência e da filosofia (na qual seria possível, como diz o Tractatus, pintar uma imagem do mundo, ou como dirá Carnap, "construir logicamente" o mundo) - que "pode muito bem pensar o que Heidegger quer dizer com ser e angústia". O homem tem o impulso (Trieb), explica Wittgenstein, de ir contra os limites da linguagem. Wittgenstein constata, apoiando-se em Kierkegaard, a existência, em nós, de uma tendência paradoxal de irmos contra o afigurável. É esse mesmo impulso que estaria movendo Heidegger. Pensemos, para entender Heidegger, "no espanto diante do fato de que algo existe". Esse espanto não pode ser expresso como uma pergunta verbal e tampouco admite uma resposta bem formulada. Tudo que poderia ser dito, no sentido de verbalizado, sobre esse assunto, será a priori um sem-sentido.1 No entanto, nós temos a tendência de expressá-lo, de pintá-lo com palavras.

Em A Lecture on Ethics, proferida em novembro de 1929, em Cambridge, Wittgenstein abordou o mesmo tema, com uma precisão maior. As nossas palavras, tal como as usamos na ciência, "como veículos capazes apenas de conter e transportar significados e sentidos naturais" e, desta maneira, "expressar os fatos", não podem ser usadas para expressar o fato de que o mundo existe. Isso porque a existência do mundo não é um fato. Não obstante, "no meu caso", aqui Wittgenstein assume um tom pessoal, "ocorre sempre de novo que a idéia de uma experiência particular se me apresenta sendo, num certo sentido, a minha experiência par excellence". A melhor maneira de descrever essa experiência, continua Wittgenstein, "é dizer que, quando a tenho, eu me espanto diante da existência do mundo". Ele então se vê "inclinado a usar frases tais como: `Que extraordinário que algo exista' ou `Que extraordinário que o mundo exista'". Wittgenstein sabe de uma outra experiência ainda, a que poderia ser chamada de "experiência de se sentir absolutamente seguro". Ele não considera essas experiências irreais ou falsas. Ele apenas as considera não-naturais, "sobrenaturais", no sentido de não serem fatos do mundo. Por isso, ele não hesita em declarar que as expressões verbais pelas quais tende a formular a sua experiência mais espantosa são um "nonsense". A linguagem humana, a única que temos, foi feita para afigurar os fatos do mundo, fatos naturais, e não fatos "fora" do mundo.2

Ora, desde 1919, ao longo de toda a sua obra, Heidegger não deixará de dizer o mesmo, ainda que não da mesma maneira. Que significa, pergunta Heidegger já nas suas primeiras preleções, a expressão "algo existe"? Na origem, responde ele, o "há algo" significa que "algo me é dado, a mim, que pergunta". Mas o meu perguntar inicial não é um ato verbal, menos ainda um evento/processo (Vorgang) objetivo que ocorresse no mundo, e sim uma apropriação (Ereignis), por minha parte, do perguntado, algo inteiramente peculiar, que não é nem físico nem psíquico, nem interno, nem externo. Portanto, algo que não pode ser expresso na linguagem objetivante que fala de fatos ou estados de coisas. O "algo existe", dado na experiência primária do perguntar, não pode ser captado por nenhum "sistema conceitual", nem expresso na linguagem "teórica", isto é, na linguagem que generaliza e objetiva,3 mas tão-somente por meio da linguagem indicativa que fala por meio de índices formais, tomado no sentido determinado anteriormente, de expressão não objetivadora que expressa a "motivação tendente" a se estampar na vida.4

O primeiro Heidegger sabe, tal como o primeiro Wittgenstein, que a exposição ao lugar onde se origina a filosofia, isto é, à pergunta primária pelo que há, provoca espanto e que esse espanto não pode ser verbalizado. A diferença entre os dois pensadores, na primeira fase de cada um, não diz respeito tanto ao problema da verbalização da questão do ser (do ente)5, já que ambos concordam que ela não é verbalizável na linguagem objetivante. Eles diferem quanto à existência ou não de diferentes linguagens ou, mais precisamente, de diferentes modos de dizer (dicere). Desde o início, Wittgenstein procura submeter o dizer humano ao modelo do dizer científico, isto é, do dizer controlável, no limite mesmo efetivamente decidível, sobre os fatos do mundo. No quadro desse paradigma, ele busca, na sua primeira fase, a linguagem que satisfaça tais condições e possa assegurar o controle efetivo sobre tudo o que está dito.6 O primeiro Heidegger, pelo contrário, sustenta que é um erro grave to mar o paradigma do dizer científico como sendo o único a ser reconhecido pela filosofia. Esse modo de usar as palavras, insiste ele, fecha-nos o acesso a experiências essenciais; mais ainda, à própria experiência de viver. A solução não é declarar, como faz Wittgenstein, que toda e qualquer maneira de dizer essas experiências é um nonsense. Ela consiste antes em afirmar o nonsense da tese da linguagem única. Na sua fase posterior, Wittgensteinsubstitui a linguagem pelosjogos de linguagem que evitem patologias na comunicação social ou sejam eficientes sob um ou outro ponto de vista. O segundo Heidegger não irá em busca de uma teoria da linguagem como prática social. O seu esforço em dar conta dos direitos respectivos de uma multiplicidade de dizeres - os quais reconheceu desde o início - será guiado por uma outra idéia: a de que a essência mesma da linguagem não está no verbalizar ou afigurar (racionalmente decidível ou, pelo menos, socialmente controlável), mas no indicar ou apontar para o "dito".

2. Sobre a ética no primeiro Wittgenstein e no primeiro Heidegger

Na seqüência da conversação no Círculo de Schlick, mencionada anteriormente, depois de constatar a existência em nós de uma tendência paradoxal de irmos contra os limites da linguagem, Wittgenstein afirma que esse movimento "é a ética".7 Trata-se de um movimento que se direciona para além do verbalizável, para o "sobrenatural". Wittgenstein não deixa dúvida: o ético não é um estado de coisas (Sachverhalt) subsistente.8 O bem (ético) nada tem a ver com fatos, ele está fora do mundo, fora do espaço dos fatos (Tatsachenraum).9 Na mais completa descrição do mundo, nunca ocorre um só enunciado de ética, mesmo quando descrevo um assassino.10 Querer definir "o que" é ético ou "por que" algo é ético é confundir enunciados psicológicos com éticos.11 Dizer tais coisas não acrescenta nada ao nosso conhecimento do mundo. Por isso mesmo, a essência do bem não pode ser "explicada". Wittgenstein considera importante "pôr fim a todo esse falatório [Geschwätz] sobre a ética - se existe um conhecimento [ético], se existem valores, se o bem se deixa definir etc.". E completa: "Uma coisa é certa a priori: qualquer que seja a definição do bem, ela será sempre um mal-entendido".12 A palavra "dever", se não for definida em termos do empiricamente agradável ou desagradável, não significa nada, pois o dever, em si mesmo, é algo sem sentido (unsinnig). Na linguagem que temos, fica impossível fundamentar a moral.13 Por isso mesmo, a ética tampouco pode ser "ensinada".14

Teríamos que abandonar de vez qualquer "discurso" ético? Paradoxalmente, a resposta de Wittgenstein é "não". Não devemos inibir a nossa tendência de ir contra os limites da linguagem. Mesmo que a tentativa de dizer algo na ética nunca alcance nem possa alcançar a essência do assunto, essa tendência aponta para algo (deutet auf etwas hin) que não podemos nem devemos desconsiderar.15 "Eu só posso dizer: eu não ridicularizo essa tendência no homem, eu me descubro diante dela." Estamos numa situação que pode ser comparada com a da religião. "A essência da religião" nada tem a ver com o fato de eu falar. O uso das palavras, se ocorrer, faz parte da atuação religiosa e não expõe teorias. Os limites da linguagem são os limites do mundo, mas não da existência humana. A linguagem, enfatiza Wittgenstein, "não é uma gaiola". Podemos falar eticamente, sim, podemos até atuar eticamente, mas tão-somente em primeira pessoa. Nesse território, onde não se pode "constatar" nada, nem ensinar nada, "eu só posso expor-me como pessoa que sou", só posso dar o meu testemunho.16

Análogas observações podem ser encontradas em A Lecture on Ethics, já citada. "Eu me sinto tentado", diz Wittgenstein no mesmo tom pessoal, a usar tais expressões como "bem absoluto", "valor absoluto" e "segurança absoluta". "Eu sei", continua ele, "que, ao fazer isso, eu estou querendo ir além do mundo, exatamente como no caso em que verbalizo o meu espanto diante da existência do mundo". Sem identificar o seu interesse pela "existência do mundo" (e não pela existência dessa ou daquela coisa) com o interesse pelo "bem" (e não por esse ou aquele objeto de valor) ou pela "segurança", Wittgenstein assinala que todos esses interesses surgem da mesma vontade: a de transcender omundo e os limites da linguagem objetivante. Embora se veja condenado a calar, Wittgenstein não se vê só. "Toda a minha tendência de ir além do mundo", diz ele, é a "de todos os homens que jamais tentaram escrever ou falar da ética ou da religião". "A ética", prossegue Wittgenstein, "na medida em que surge do desejo de dizer algo sobre o último sentido da vida, o bem absoluto, o valor absoluto, não pode ser ciência [science]". Mas nem por isso o movimento em que ela consiste pode ou deve ser censurado. Pois ele "documenta uma tendência da mente humana que eu pessoalmente não posso deixar de respeitar profundamente e que por nada no mundo exporia ao ridículo".17

Já em 1919, Heidegger afirmava que "o valor é um em-si-e-para-si que não é um dever, nem tampouco um ser". "O valor não é", acrescenta Heidegger, "ele vale". Aqui, "valer" tem um sentido transitivo: "na experiência de valor, `algo vale' para mim, sujeito que julga". A experiência de valor é um fenômeno originário, "um momento constitutivo da vida em-si-e-para-si". "Valer" torna-se objeto somente pela formalização, mas, nesse caso, "objeto" é uma "designação enganosa". A nossa linguagem "não está a altura desse novo tipo de vivência fundamental".18

Quando definem as posições básicas das fases iniciais respectivas, os dois pensadores concordam, portanto, em vários pontos capitais: 1) que vivenciam experiências pessoais decisivas, relativas ao sentido ou ao valor da vida, 2) que necessariamente falha qualquer tentativa de expressar essas experiências na linguagem da ciência, pictórica, segundo um, objetivante, segundo o outro, 3) que, por essa razão, as experiências mencionadas constituem um movimento de transcender o mundo de (es- tados de) coisas "expressáveis".19 Discordam sobre a lição a tirar dessa constatação. Wittgenstein conclui que não há o que fazer, pois dizer algo significa necessariamente afigurar algo, não existindo qualquer "análise lógica" da linguagem afigurativa que pudesse garantir o significado das expressões referidas a experiências pessoais mencionadas. Heidegger, pelo contrário, abandona a tese de que dizer algo é imagear algo e, por conseguinte, a idéia de buscar a solução por meio de uma análise lógica da linguagem pictórica. Esta é uma herança metafísica, dirá Heidegger, que tem todos os seus direitos no domínio de entidades constituídas na atitude teórica, mas não prova que afigurar fatos naturais é o único modo de dizer "o que há". E para pode falar do que se manifesta na experiência da vida como tal, Heidegger conceberá uma linguagem indicativa pré-objetal, pré-mundana, a dos índices formais.20

Durante a conversa sobre a religião, de dezembro de 1930, Wittgenstein fez uma outra afirmação valorativa surpreendente. "Para mim", disse ele no mesmo tom testemunhal, "a teoria não tem valor algum. Uma teoria não me dá nada".21 Ele acrescentou: "Para mim, os fatos não são importantes. Mas estimo muito o que os homens têm em vista, quando dizem que `o mundo está aí'".22 F. Waismann, um dos seus interlocutores, suspeitou que Wittgenstein poderia estar ligando o que em Heidegger também estava essencialmente ligado, a questão do ser com a questão do bem, e perguntou a Wittgenstein: "A existência do mundo está conectada com o ético?". Wittgenstein respondeu: "Que aqui existe uma conexão, os homens o têm sentido e expressado da seguinte maneira: Deus Pai criou o mundo, enquanto o Deus Filho (ou a Palavra procedente de Deus) é o ético". Que uso de palavras é esse? Não objetivante, bem entendido, mas assim mesmo respeitável e mesmo "dizente". Pois, o "fato de que a divindade é pensada como dividida e, ao mesmo tempo, como una indica [deutet an] que aqui existe uma conexão" entre o ser e o ético.23

Se assumirmos a perspectiva histórica (e não nos deixarmos seduzir pela ilusão do caráter paradigmático da "análise da linguagem" do segundo Wittgenstein), forçosamente notaremos que existe um paralelo notável entre o que para o primeiro Wittgenstein importa mostrar e o que o primeiro Heidegger tem-que indicar numa linguagem indicial: o ser do mundo como "valor". Também poderemos constatar a dificuldade que há em qualquer instrumentalização iluminista de um contra o outro. Pois o Wittgenstein do Tractatus ainda mantém viva a dimensão indecidível e, por isso, enigmática do mundo e da vida humana. Por ter identificado o dizer com a verbalização controlável (decidível) do mundo dos estados de coisas, o primeiro Wittgenstein só pode aceder à questão do ser e da ética pelo movimento de infringir as regras da linguagem. Em vez de criticar Heidegger, como fazem alguns comentadores, pelo fato de querer dizer aquilo de que Wittgenstein só podia dar um testemunho pessoal, poderíamos até mesmo conceber a tarefa inversa: examinar a fundamentação do pressuposto de que existe só uma linguagem capaz de dizer al- go, a saber, a linguagem da ciência (tal como definida no Tractatus). Inevitavelmente, teríamos que questionar, seguindo Heidegger de Ser e tempo, a suposição de Wittgenstein, herdada de Frege, de que a lógica, e só ela, fornece a base de uma explicitação da dizibilidade, herança dei- xada pela ontologia da objetidade (representidade). Teríamos também a oportunidade de perguntar pelas razões de se considerar que todas as coisas existem só num único sentido, o de serem objetos afiguráveis verbalmente.

 

3. A ética no segundo Wittgenstein vista a partir do segundo Heidegger

Com o tempo, a distância entre os dois pensadores aumentará. O segundo Wittgenstein substitui a linguagem única por uma multiplicidade aberta de jogos de linguagem - abrindo, sem lamentar, o caminho aos filósofos que proclamarão o pluralismo e a inco- mensurabilidade radical dos esquemas conceituais - e borra a distinção cristalina que fazia, na época de Tractatus, entre verbalizar (afigurar) e mostrar (apontar). Ele não parece mais ser visitado pelas experiências que o levaram a bater contra os limites da linguagem. Rorty tem toda razão quando diz que, nas Investigações, Wittgenstein "deixou de sentir a necessidade de se colocar contra o mundo" e de "ver o limite da linguagem".24 Tal comportamento ou é um mero fury and sound ou mais um jogo de linguagem. A linguagem, reduzida à prática social, parece mesmo ser uma gaiola do tipo que não apenas impossibilita pensar a transcendência mas também torna impraticável esboçar qualquer gesto em direção do "fora". A tendência ética de sair do mundo é substituída pelo exame de um número infindável de bifurcações dos modos de falar, todos mundanos, horizontais. Esse "método antropológico" da filosofia da linguagem do Wittgenstein tardio reflete-se na sua nova concepção da ética. Esta aparece, por exemplo, nas conversações com Rush Rhees, em diferentes ocasiões. Em 1942, Wittgenstein afirmara que os livros de ética não formulam "problemas genuínos", isto é, problemas com soluções que podem ser ima- ginadas ou reconhecidas (Rhees 1965, pp. 21-22). Da mesma maneira, nós não temos critérios para decidir quais éticas são "corretas", nós sequer sabemos o que se pretende pela pergunta se uma entre as diferentes éticas, por exemplo a cristã ou aquela que poderia ser proposta por um nietzscheano, é a mais correta. Rhees resume as suas discussões com Wittgenstein de 1945 da seguinte maneira: "Não existe [segundo Wittgenstein] nenhum sistema em que seria possível estudar, na sua pureza e essência, o que é a ética". As pessoas andam fazendo juízos éticos e de valor, mas daí não se segue que o que essa gente diz "deva ser expressão de algo mais fundamental" (p. 24). Numa ocasião, Rhees lhe mencionou a frase de Hermann Goering, comandante-chefe da Luftwaffe, condenado à morte pelo tribunal de Nürenberg por crimes de guerra: "Recht ist, was uns gefällt" (O correto é aquilo que nos agrada). Wittgenstein comentou: "Mesmo isso é uma espécie de ética. Ajuda a silenciar objeções a uma certa atitude. E deve ser considerado juntamente com outros juízos e discussões éticas que possamos ter que enfrentar" (ibid., p. 25, itálicos meus).

Vê-se, portanto, para onde se encaminham as análises sobre a ética do tipo do segundo Wittgenstein: para o fim da filosofia e a sua substituição pela administração de jogos de linguagem sociais, dotados de certa eficácia na comunicação social, mas incapaz de determinar, com qualquer grau de generalidade não meramente grupal, a nossa responsabilidade para com os nossos modos de falar e agir. Muitos reconheceram que o segundo Wittgenstein franqueava, sem remorsos, um modo de falar que "tornava impossível qualquer ciência séria do comportamento".25 Os filósofos da ciência se sentiram, por conseguinte, obrigados a combater esse laxismo verbal extremo e propuseram, em seu lugar, jogos de linguagem menos liberais. Smart, por exemplo, pensa que deveríamos falar como materialistas. Já Quine está mais preocupado em abrir o caminho para uma linguagem puramente extensional. Davidson fica com o melhor dos dois mundos e sustenta que "a melhor maneira de entender o nosso esquema [conceitual] efetivo e a nossa linguagem é tratá-los como exten- sionais e materialistas".26 Quanto à responsabilidade pelo agir, a mesma situação ocorre: não há como fundamentar quaisquer obrigações para com aqueles modos de existir que não pertencem à nossa forma de vida. K.-O. Apel tentou escapar do relativismo ético do segundo Wittgenstein propondo o retorno ao a priori, no caso, ao a priori da comunidade de comunicação, que abrangeria a humanidade inteira e, segundo ele, permitiria uma fundamentação processual das regras do agir humano.27 Essa proposta foi bem recebida por alguns (Habermas, por exemplo), mas foi também fortemente criticada por outros. Lyotard, por exemplo, rejeitou a tentativa de Apel justamente em nome da idéia de jogo de linguagem, reforçada pela tese kuhniana da incomensurabilidade. As conseqüências desastrosas dessa posição pós-modernista para a teoria ética podem ser percebidas no recurso à pregação de "respeito pelo desejo de justiça e do desconhecido", na qual sucumbem as páginas finais de La condition postmoderne.28

O segundo Heidegger, por outro lado, vai adentrar paragens diferentes. Sem borrar a diferença entre o dizível e o verbalizável, persistindo na idéia de que a linguagem é de essência gestual e não objetivadora (pictórica), ele busca novos modos de gestos "dizentes", obedecendo a "medidas" peculiares, em particular, àqueles que seriam capazes de dizer a verdade do ser. Ao mesmo tempo que continua a trabalhar na concepção indicativa da linguagem, Heidegger procede à desconstrução do poder nivelador da linguagem objetivante. Em primeiro lugar, do poder da linguagem da ciência e da filosofia.29 A ciência e a filosofia - mesmo tendo abandonado o ideal de achar a verdade objetiva a ser formulada numa linguagem unitária (conforme previa o projeto inicial do positivismo lógico) - ainda permanecem submissas à vontade de achar verdades controláveis, seja por cálculo seja por convenções tidas como as mais razoáveis. Enquanto o segundo Wittgenstein se limita a autorizar modos de objetivar alternativos, Heidegger se propõe ultrapassar a objetivação do mundo como tal, quer na linguagem da ciência quer na linguagem da filosofia. Esse é o ponto central do seu projeto de desconstrução da metafísica ocidental, vista como ancila do desocultamento dos entes no seu todo, que predomina no mundo de hoje: a instalação das coisas, mediatizada pelo uso da linguagem industrializada. O ceticismo radical do segundo Wittgenstein é corrosivo para a unidade e para o funda- cionismo, mas é inócuo diante do fato de, relativistas ou não, somos todos expostos a um perigo extremo proveniente da linguagem que transforma o mundo em conjunto de dados lingüísticos a serem processados por sistemas peritos artificiais. Antropologizando radicalmente a linguagem, o segundo Wittgenstein, longe de ter fugido da metafísica, ficou indefeso diante do vigor da sua forma terminal: armação calculadora de tudo e de todos. Esta não é um jogo de linguagem entre outros, é um jogo que domina e ameaça acabar com todos os outros. Não por ser a manifestação (tardia) de algo atemporal, mas por ser esse o modo de ser dos entes que se destina ao homem na época em que vivemos. Heidegger concorda com Wittgenstein quando este diz que a filosofia enquanto busca da verdade absoluta terminou. Mas não conclui que a única alternativa que resta para o pensar humano é a de se deixar levar pela multiplicidade das falas. Ele vê nessa reconstrução da torre de Babel - tema caro a J. L. Borges e a I. Calvino - um perigo extremo do qual o ser humano só poderá ser salvo se lhe for concedido um outro começo do pensar e do dizer, desta vez não mais metafísico-científico. A busca desse novo começo pela abertura à demanda da presença é a responsabilidade primeira que a ética originária de Heidegger imputa ao homem de hoje.

Quem fizer a devida reconstrução do percurso de cada um dos dois filósofos, da primeira à segunda fase respectivas, dificilmente poderá "moralizar" Heidegger tomando como ponto de referência a filosofia da linguagem do segundo Wittgenstein. Ele poderá até mesmo conceber uma crítica do segundo Wittgenstein a partir do segundo Heidegger, perguntando se o ultraceticismo das Investigações não oculta o movimento de transcendência inerente ao ser humano, ao qual o primeiro Wittgenstein ainda fazia questão de ceder. Tal empreendimento poderia, sem dúvida, levar a que se repense a incapacidade do segundo Wittgenstein para criticar a "ética" de H. Goering. É verdade que o segundo Wittgenstein cessou de bater contra os limites da linguagem. Mas isso não nos livra da tarefa de assinalar o que isso implica para a teoria ética. Se a sensibilidade de Heidegger pela acontecencialidade do ser assusta, pelo menos num primeiro momento, a quem busca escapar do relativismo, a entrega completa do segundo Wittgenstein aos usos sociais dos termos éticos não é maior motivo de asseguramento contra a falta do sentido último, ou contra a brutalidade do sem-sentido da vida humana nos dias de hoje.

 

Referências bibliográficas30

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______1984: Werkausgabe, 8 vols. Frankfurt a/M, Suhrkamp.

 

 

1 Sobre essas declarações de Wittgenstein, cf. Werkausgabe, vol. 3, p. 68, trecho intitulado "Heidegger", de 30/12/1929.
2 Todas a citações são tiradas das páginas 40-1 de Wittgenstein 1965. Entenda-se que, também na linguagem de Tractatus, só se pode falar de fatos do mundo. O "sentido" do mundo está fora da linguagem, nada do que acontece tem valor, a ética não pode ser verbalizada (cf. prop. 6.41-6.421).
3 Cf. Heidegger 1919, GA 56/57, pp. 110-1 e 116.
4 O conceito de motivação tendente servirá a Heidegger ainda para criticar, nas mesmas preleções, o conceito prático-teórico de valor.
5 No exemplo considerado, trata-se do que Heidegger denomina "ser do ente" e não do ser ele mesmo. De qualquer maneira, trata-se do ser e não do ente (sua existência particular, suas propriedades).
6 O Tractatus não oferece uma teoria geral da decidibilidade das proposições, mas contém a sua idéia básica formal (restrita à linguagem considerada): a proposição é uma função de verdade de proposições elementares, e a proposição elementar é a função de verdade de si mesma (Tractatus, 5). Todas as proposições complexas são, portanto, decidíveis pelos procedimentos formais, "efetivamente". O que falta é o procedimento de decisão para as proposições elementares, que não pode ser puramente formal. O caráter pictórico da linguagem projetada oferece, entretanto, uma indicação do lugar onde buscar tal procedimento adicional: a percepção sensorial, produtora de imagens do mundo de maneira socialmente controlável. Por volta de 1930, Wittgenstein abandonou de vez a idéia de "fazer uma teoria geral de proposições em termos de funções de verdade" (cf. Rhees 1965, p. 19).
7 Wittgenstein 1984, p. 68 (em itálicos no original). Vários artigos importantes sobre a ética em Wittgenstein foram reimpressos em Canfield (org.) 1986, onde podem ser encontradas, também, referências bibliográficas adicionais sobre esse mesmo assunto.
8 Ibid., p. 93.
9 Ibid., p. 117n.
10 Ibid., p. 93.
11 Ibid., p. 92 e 115.
12 Ibid., p. 69.
13 Ibid., p. 118.
14 Ibid., p. 117.
15 Ibid., p. 69.
16 Ibid., pp. 117-8. As semelhanças e as diferenças em relação à ética entre o primeiro Heidegger e o primeiro Wittgenstein mereceriam um estudo específico. Alguns passos nessa direção já foram dados, cf. por exemplo, Kampits 1991. Nesse contexto, caberia, sem dúvida, lembrar uma frase de Wittgenstein, de 1914, que revela o modo como chegou nele o canto de Trakl: "Eu não as entendo [as poesias de Trakl]; mas o seu tom me torna feliz. É o tom dos homens verdadeiramente geniais" (cf. Basil 1996, p. 145).
17 Cf. Wittgenstein 1965, p. 4 (itálicos meus). O primeiro Wittgenstein não é o único filósofo analítico que reconhece ter-que-bater contra os limites da linguagem objetivante. Carnap, seguindo o Wittgenstein de Tractatus e talvez mesmo o Heidegger de Ser e tempo, admite, em Der logische Aufbau der Welt, obra máxima da sua primeira fase (1928), que nem todas as questões importantes da vida humana podem ser formuladas como perguntas na linguagem unitária da ciência. O "enigma da morte", por exemplo, nada tem a ver, afirma Carnap, com qualquer pergunta verbal que possa ser feita sobre a morte. Esse enigma se manifestaria, de maneira exemplar, no modo não verbal da angústia diante da morte e a resposta procurada também é não-verbal, pois o que se busca é uma "saída" da situação de angústia vivenciada. Sobre a questão da morte em Carnap, cf. Loparic 1996, seção 4.
18 Citações tiradas de Heidegger 1919, GA 56/57, pp. 46-8.
19 Esse paralelo entre os dois filósofos com respeito ao tema da transcendência poderia ser enriquecido substancialmente levando em conta, por um lado, as preleções e as cartas de Heidegger desde 1918/19 e, por outro, os Diários filosóficos (1914-16) e as cartas de Wittgenstein da mesma época. Numa das cartas, Wittgenstein diz que o sentido de Tractatus é ético (sobre esse material, cf. Kampits 1991, pp. 105-110).
20 Um outro indício da presença sub-reptícia da metafísica (da onto-teo-logia) no pensamento do primeiro Wittgenstein está no uso do termo "absoluto" nas expressões tais como "bem absoluto", "segurança absoluta", que ele se diz "inclinado" a usar. Já o primeiro Heidegger reconhecerá na inclinação a pensar no "absoluto" uma defesa, iniciada pelo modo de pensar metafísico, contra o fato da nossa finitude e da finitude do ser ele mesmo. Heidegger rejeitaria como herança metafísica, parece-me, não apenas a linguagem "científica" do Tractatus, mas também a linguagem íntima dos testemunhos pessoais de Wittgenstein.
21 Na proposição 6.52, Wittgenstein fala do nosso sentimento de que "mesmo todas as questões científicas possíveis tendo obtido resposta, nossos problemas de vida não terão sido sequer tocados".
22 Cf. Wittgenstein 1984, pp. 117-8. pp. 105-10).
23 Ibid., p. 118.
24 Cf. Rorty 1989, p. 50.
25 As palavras são de Davidson (1985, p. 188).
26 Ibid.
27 Cf. Apel 1973, em particular, pp. 358-436.
28 Eu mesmo apresentei uma crítica do princípio fundamental da ética do discurso de Habermas em Loparic 1990b.
29 Rorty comete sério engano quando afirma que o segundo Heidegger cai no erro do primeiro Wittgenstein de pensar que, sem a suposição de um "esquema imutável" do mundo do tipo platônico, "a linguagem ou o mundo ou o Ocidente teria que permanecer informe, um `tohubohu'" (cf. Rorty 1989, p. 65). O último Heidegger não "hipostasia a linguagem". Nele, a linguagem fundamental - a que é capaz de dizer o ser - é explicitamente apresentada como desconstrução tanto da linguagem da metafísica como da ciência, portanto também da de Tractatus. A idéia de uma condição atemporal do mundo é completamente estranha à obra de Heidegger no seu todo. Desde o início até o fim, Heidegger permanece crítico decidido do platonismo.
30 A Edição Completa das obras de Heidegger, a Gesamtausgabe, é citada pela sigla "GA", sendo que os anos usados para identificar os textos de Heidegger são os da sua produção.