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Natureza humana
versão impressa ISSN 1517-2430
Nat. hum. v.3 n.1 São Paulo jun. 2001
ARTIGOS
Fé perceptiva e experiência de realidade
Faith perspective and experience of reality
Decio Gurfinkel
Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae
RESUMO
O trabalho aborda alguns pontos de contato possíveis entre a contribuição de Winnicott e o pensamento de Merleau-Ponty, tendo como meta discutir o enigma da fé perceptiva e o problema da experiência com a "realidade" do mundo. Partindo da pergunta do filósofo: "o que nos permite afirmar que o mundo é aquilo que vemos?", o autor aponta como Winnicott, do lado da psicanálise - e a partir da clínica com pacientes borderline -, também denuncia que a relação com a realidade não pode ser tomada como natural. Após um cuidadoso exame dos termos fé, "crença em...", percepção, concepção e alucinação, a reflexão dirige-se ao conceito-chave do pensamento winnicottiano - a ilusão. O autor propõe, então, uma abordagem em paralelo do modelo freudiano da primitiva realização alucinatória do desejo com a teórica "primeira mamada" de Winnicott, e conclui com a hipótese da ilusão como o alimento do self.
Palavras-chave: Fé, Percepção, Realidade, Alucinação, Concepção, Ilusão.
ABSTRACT
This work deals with some points of possible contact between the contributions of Winnicott and the thought of Merleau-Ponty, having as its goal a discussion of the enigma of perceptive faith and the problem of experience of the "reality" of the world. Beginning with the philosophical question: "what permits us to affirm that the world is that which we see?", the author points out how Winnicott, from the perspective of psychoanalysis - and clinical experience with borderline patients - states that relations with reality cannot be taken as natural. After a careful examination of the terms faith, "belief in ", perception, conception and hallucination, the reflection directs itself to a key concept in the thought of Winnecott - illusion. The author proposes, then, an approach in parallel with the Freudian model of primitive hallucinatory wish realization with the theoretical "first suckle" of Winnicott, and concludes with the hypothesis of illusion as the food of self.
Keywords: Faith, Perception, Reality, Hallucination, Conception, Illusion.
O presente trabalho foi basicamente estimulado por um artigo de João Frayze-Pereira dedicado ao tema da ilusão, no qual propõe um olhar ao pensamento de Winnicott através de Merleau-Ponty.1 Nele se afirma a "vocação filosófica" da contribuição de Winnicott "da qual não podemos escapar, dados os termos (...) ficção, construção e realidade" (Frayze-Pereira 1996, p. 47). A aproximação entre psicanálise e filosofia é bastante delicada, mas cada vez mais necessária. Ensaiarei aqui um possível diálogo que tem se mostrado, pelo menos na minha ótica, bastante fecundo. Os pontos de contato entre alguns elementos da contribuição de Winnicott e do pensamento de Merleau-Ponty são de fato instigantes; procurarei destacar aqui alguns deles, tendo como meta discutir, ainda que brevemente, o enigma da fé perceptiva e o problema da experiência com a "realidade" do mundo.
Percepção: o problema do "homem da ciência" é o mesmo do "homem comum"
Ao tomar como foco privilegiado de atenção a percepção, Merleau-Ponty realiza uma crítica radical à ciência e à própria filosofia, ao mesmo tempo em que nos oferece um material precioso para pensar o "estar no mundo" e a experiência do homem comum. O que é essa experiência mais comum e imediata de estar no mundo, diante de e ao mesmo tempo nele imerso, experimentando as coisas como existentes sem nunca pôr isto em questão? De uma certa forma, "tudo começa" com a percepção, sendo o processo de reflexão a ela secundário, sem, no entanto, dela poder ser dissociado; temos aqui uma situação paradoxal. "A nossa segurança de estar na verdade e estar no mundo é uma só" (Merleau-Ponty 1999, p. 23); o pensamento precisa encarar o problema da gênese de seu próprio sentido, já que o mundo sensível é "mais antigo" que o universo do pensamento. Assim, nada mais distante da fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty do que uma psicologia da percepção que, tradicionalmente, dirige-se a esta última como uma coisa, um objeto dado e em si que pode ser dissecado em laboratório; ao contrário, trata-se de nela mergulhar para daí revelar o enigma que lhe é próprio e que se espalha por todo o campo do conhecimento, desde aquele do homem comum que está no mundo até o da "ciência" propriamente dita.
A questão poderia ser: como tomamos "ciência" do mundo? Mas, ao colocarmos o problema nesses termos, estamos justamente esquecendo uma pergunta anterior e mais fundamental, e que, se não for encarada, põe todo o edifício ulterior em xeque: o que nos permite afirmar que "vemos as coisas mesmas" ou que "o mundo é aquilo que vemos"? Essas fórmulas expressam, segundo Merleau-Ponty, "uma fé comum ao homem natural e ao filósofo desde que abre os olhos, [e] remetem para uma camada profunda de `opiniões' mudas, implícitas em nossa vida" (ibidem, p. 15). A fé perceptiva - tão presente na experiência humana comum -, ao ser denunciada, abala a firmeza com que apoiamos com ingenuidade e distraída tranqüilidade nossos pés sobre o chão, ou nossas idéias sobre as verdades pressupostas (literalmente: pré-supostas). Ora, "a ciência supõe a fé perceptiva e não a esclarece" (p. 25), já que trata o universo da verdade como um mundo sem fissuras e sem incompreensíveis.
A problematização do saber científico está presente desde A estrutura do comportamento, a primeira grande obra de Merleau-Ponty. A meta do filósofo, nesse trabalho, é a crítica à dicotomia sujeito-objeto instalada a partir de Descartes, no século XVII, e que está colocada tanto no objetivismo científico quanto no subjetivismo filosófico. A psicologia da Gestalt é entendida como uma inovação significativa, por romper com o elementarismo comportamentalista e priorizar a forma conforme ela emerge e se manifesta, assim como a originalidade do psíquico; mas ela mesma precisa ser criticada, pois não soube levar o seu projeto adiante até as suas últimas conseqüências. A "forma" não é idéia nem coisa; no entanto, a psicologia da Gestalt acabou por tratar a forma como coisa do mundo. Essa reanimação da forma por Merleau-Ponty nos permite sair do impasse entre materialismo e espiritualismo, e coloca a ciência agora na intersecção mesma entre sujeito e objeto, esta "senhora" até então presa, a partir do modelo da física, à região kantiana do fenômeno, deixando tudo o que se refere ao "nômeno" - ou ao intangível - para o campo da metafísica.
Com a noção de estrutura, tornou-se possível melhor distinguir as três grandes formas do ser: a ordem física, a ordem vital e a ordem humana, na qual se dá o advento da função simbólica. Se a primeira caracteriza-se por uma estrutura de atualidade, na segunda surge a capacidade de interação entre o organismo e o meio em um processo de adaptação. Mas "somente os homens vêem que estão nus". Marilena Chauí nos esclarece, em uma nota, o essencial da terceira forma:
o tempo, a história, a negação da natureza pelo trabalho, a manutenção do instrumento e sua reprodução para além das condições imediatas de uso, só podem surgir na "ordem simbólica" ou "ordem humana". Esta se caracteriza por uma relação com o possível e com o porvir. Nela emerge a dialética propriamente dita, pois a ação é mais do que interação com o meio ou adaptação a ele (...). Somente com a emergência da função simbólica e, portanto, da relação com o possível, com o ausente, podem emergir o desejo, o trabalho e a linguagem". (1980, pp. 203-4)
Vê-se como, de saída, essa "ciência do desejo" que é a psicanálise só poderia ser referida à ordem simbólica. Ora, a proposição dessas três ordens do ser nos possibilita uma reflexão que se estende ao plano do conhecimento, ainda que tal passagem não deva ser feita por uma transposição direta. Nesse plano, podemos reconhecer campos de investigação diferenciados, e os diversos ramos da ciência podem ser reconsiderados de maneira mais cuidadosa, de modo que não se reduza um ao outro; por outro lado, a noção de equilíbrio permite que se façam comparações entre as diversas ordens. Mas é preciso avançar mais e perceber que toda ciência, seja qual for o seu objeto ou campo específico de investigação, dá-se na ordem simbólica: trata-se sempre de um homem olhando para o mundo, e é neste espaço entre sujeito e objeto, entre idéia e coisa - no âmbito da estrutura da percepção - que se produz o conhecimento. O "dado" é uma representação da ciência; mas isso não deve nos levar, por outro lado, a um subjetivismo do ato de representar: a experiência do conhecimento se dá por um corpo reflexivo e transcendente, necessariamente imerso em um campo intersubjetivo.
Merleau-Ponty rediscute o lugar das ciências ditas humanas em O metafísico no homem. A metafísica, expulsa do campo científico pelo kantismo, teria sempre levado uma vida clandestina na literatura e na poesia, e agora reivindica a sua legitimidade e reaparece no horizonte das ciência do homem na voz de Merleau-Ponty. Após uma revisão da psicologia da forma, da lingüística de Saussure e da sociologia de Durkheim, o autor insiste em que a forma - nestes diversos campos - não pode ser reduzida nem à existência objetiva de um processo natural nem à existência mental de uma idéia; assim que, no caso da lingüística: "nem coisa nem idéia, a língua, como o psiquismo, só é acessível para um método de `compreensão' que reencontre na multiplicidade dos fatos algumas intenções ou miras decisivas" (1980c, p. 183).
Quanto à psicanálise, Merleau-Ponty entende que esta, quando "salva de seus dogmas, é o prolongamento normal de uma psicologia da forma conseqüente" (ibidem, p. 181). Penso que aqui o essencial é verificar, em cada caso, de que psicanálise estamos falando, uma vez que, dependente da maneira como a concebemos e a praticamos, ela pode de fato se situar no campo em que se estabelece uma comunicação entre objetivo e subjetivo ou, por outro lado, estar presa ao cientificismo que atrasou o desenvolvimento de uma ciência psicológica. Este seria o caso, segundo Merleau-Ponty, de uma certa psicanálise e de um "culturalismo decadente" que houve nos Estados Unidos, ambos resultado do fato de um tipo de pensamento dito "operatório" tomar a seu cargo o homem e a história. Segundo esse pensamento - que redunda em um "artificialismo absoluto", à maneira de uma ideologia cibernética que concebe as criações humanas como um processo de informação segundo um modelo de "máquinas humanas" -, o mundo é, por definição, o objeto X das nossas operações, o que torna absoluta a situação do conhecimento. Qual é a conseqüência desse tipo de abordagem no campo das ciências do homem? Segundo o filósofo, caímos em uma espécie de pesadelo do qual nunca mais conseguimos despertar, já que "deixa de haver verdadeiro e falso no que respeita ao homem e à história" (1997, p. 15).
Ora, essas observações nos colocam as seguintes questões: a qual psicanálise estamos voltados? Como entender essa dupla tendência - cientificismo ou "psicologia da forma" consistente - no complexo campo da psicanálise que hoje se nos apresenta? Comentarei em seguida alguns elementos do pensamento de Winnicott a fim de, a partir deles, sugerir que tal autor caberia ser prioritariamente identificado como dominado pela segunda tendência, pelo menos no que se refere às temáticas aqui levantadas.
A relação com a realidade não pode ser tomada como natural
O problema da relação do homem com a realidade, se bem que desde há muito objeto do filósofo, não deixa de ter sido colocado desde o início no campo da psicanálise. Desde que Freud abandonou a teoria da sedução, surgindo a noção de fantasia, a "realidade" dos acontecimentos em contraste com as marcas de memória foi por ele problematizada; a discussão prossegue em Lembranças encobridoras e no livro dos sonhos, texto fundador da psicanálise, que é coroado com o conceito de "realidade psíquica", realidade revelada pelo universo onírico e pelo estudo da neurose e que não deve nunca ser confundida com a dita "realidade material". Em Formulação sobre os dois princípios do funcionamento mental, Freud parte do pressuposto de que na neurose há sempre uma perda da função do real, e propõe-se a discutir a relação do homem com a realidade em geral; o debate prossegue em Neurose e psicose e em A perda da realidade na neurose e na psicose, entre outros trabalhos. As indicações, respostas e "soluções" propostas por Freud são de inestimável valor, e não creio que tenhamos ainda esgotado todo o seu potencial em termos de estimular e produzir pensamento. Quero aqui deter-me, no entanto, em algumas questões relativas à relação do homem com a realidade que o seu próprio pensamento deixou em aberto e que, por isto mesmo, propiciaram que outros psicanalistas pós-freudianos nelas se debruçassem a fim de fazer avançar a reflexão. Este é o caso de boa parte da obra de Winnicott.
Uma das principais fontes de estimulação que levaram Winnicott a dedicar-se a essa temática foi a clínica psicanalítica da psicose, complementada com sua experiência de trabalho com bebês muito pequenos na área da Pediatra. Ora, o que se manifestava nas situações psicóticas - na verdade, a sua prática maior foi com pacientes ditos borderline ou em estados de regressão profunda - era justamente uma "falha" na relação do sujeito com a realidade. Essa falha foi por ele denominada desrealização, com suas correlatas: a despersonalização e a desintegração. Winnicott concluiu que tais processos psíquicos, que são tidos como naturais ou dados desde sempre no homem, são na verdade construídos, são aquisições resultantes de um trajeto percorrido em um momento muito arcaico por cada bebê apenas acordado para a vida; essa passagem teria sido perturbada no caso da psicose. Sendo assim, Winnicott situou a etiologia da psicose nos processos iniciais de desenvolvimento do homem, nos quais o cuidado infantil seria de importância crucial.
O seu árduo trabalho com pacientes borderline, aliado à sua grande capacidade criativa, leva-o a propor uma teoria a respeito do desenvolvimento emocional primitivo, já na década de 40. Essa teoria nos interessa aqui, especialmente, por colocar em xeque, no âmbito do pensamento psicanalítico - e de uma maneira bastante particular -, a crença ingênua compartilhada de que "vemos as coisas mesmas", ou seja, a fé perceptiva que habita tanto o homem comum quanto o homem da ciência, e em alguns casos também o próprio psicanalista, tomado pela clássica separação entre sujeito e objeto. "Às vezes presume-se que, na saúde, o indivíduo está sempre integrado, assim como vivendo no seu próprio corpo e capaz de sentir que o mundo é real" (Winnicott 1992b, p. 150); é justamente essa suposição que é questionada, e especialmente a naturalidade com que ela é dada como certa. Se no campo da psicopatologia essa suposição cai por terra, o alcance da proposta winnicottiana ganha uma dimensão de fato ousada quando essas observações são estendidas para o homem em geral: o que é essa "saúde" que se apóia em tamanho realismo ingênuo, na falsa tranqüilidade de um mundo já ali, sem surpresas? Ou de um mundo a ser visto, mas não a ser olhado - segundo distinção proposta por Sérgio Cardoso a partir de Merleau-Ponty -, por uma visão que supõe "um mundo pleno, inteiro e maciço, e crê no seu acabamento e totalidade" (Cardoso 1999, p. 349)? Nesse mundo da crença ou do sonho - lembremos da "fé" perceptiva e da realidade psíquica de Freud - "tudo se compõe numa coesão compacta e lisa, indefectível, (...) [que] desconhece lacunas e incoerências e tudo acolhe e integra com naturalidade" (ibidem). É essa naturalidade que é colocada em xeque pela clínica da psicose, assim como um estado de integração que não é de forma alguma ponto pacífico na experiência do homem com o mundo: "a integração começa logo no início da vida, mas em nosso trabalho nunca podemos presumi-la como certa" (Winnicott 1992b, p. 150).
Ora, existe muita "sanidade" que "tem uma qualidade sintomática, estando carregada de medo ou negação da loucura, medo ou negação da capacidade inata que todo ser humano tem de se tornar não-integrado, despersonalizado, e de sentir que o mundo é irreal" (ibidem). Sérgio Cardoso nos propõe, com insistência, que viajar não é dado a todos; se vencermos qualquer mal-estar criado por uma aparente petulância dessa afirmação, veremos que ela nos remete ao desafio que, para cada um de nós, significa correr o risco de abandonar por alguns instantes o conforto de nossa fé perceptiva ou de nossa pobre saúde mental. Em uma conhecida e singela nota de rodapé do artigo sobre o desenvolvimento emocional primitivo, Winnicott nos adverte que ficamos realmente empobrecidos se somos apenas sãos, e já aponta para a criatividade como o caminho para transcendermos as limitações da experiência de um mundo sem fraturas: "através da expressão artística, nós podemos ter a esperança de ficarmos em contato com nossos selves primitivos, onde se originam os sentimentos mais intensos e mesmo as sensações mais assustadoramente agudas" (ibidem). Essa nota prenuncia uma série de importantes desenvolvimentos da obra de maturidade do autor - e que culmina em O brincar e a realidade: a conexão entre brincar, sonhar e viver criativo; a criatividade no trabalho artístico, no viver em geral e na prática psicanalítica; o problema clínico da impossibilidade de experimentar a criação; os conceitos de espaço intermediário, transicional ou potencial; a cultura como "lugar" de encontro, repouso e criação; e, como versão posterior da noção de não-integração, uma formulação da maior importância: a área do informe.
Encontramo-nos aqui com um analista viajante na plenitude de sua forma, em busca de um tempo perdido. A sua companheira de viagem - uma certa paciente - sofre de uma doença muito especial: a doença do não-olhar; presa em um "fantasiar" ruminativo, a sua atividade imaginativa havia perdido total contato com a substância mesma do viver criativo, que para Winnicott é identificada ao sonhar (vale observar aqui que o uso que Sérgio Cardoso faz do termo sonho é mais próximo do fantasiar do que do sonhar, na terminologia de Winnicott).
Essa mulher possui, particularmente, talentos razoavelmente excepcionais ou potencial para diversos tipos de auto-expressão artística, e sabe o suficiente a respeito da vida e do viver, e de seu próprio potencial, para compreender que, em termos de vida, ela está perdendo o barco, e tem estado sempre perdendo o barco. (Winnicott 1996b, pp. 27-28)
Presa em seu ver, a paciente estava cega para o olhar; essa viagem analítica pode, se quisermos, ser correlacionada à epopéia criada por Saramago em seu Ensaio sobre a cegueira.
O fazer analítico bem poderia ser compreendido como a busca do invisível do olhar, aquela face do mundo que nunca se apresenta de imediato ao ver, colocando a experiência perceptiva no jogo contínuo de ilusão e desilusão, na atividade infindável de perscrutar um mundo em aberto, habitado por brechas, fissuras e invisíveis e que nos oferece a oportunidade, nem sempre aproveitada, de uma experiência de transcendência. Esse milagre da percepção nos é apresentado por Merleau-Ponty quando comenta o contraste entre a visão binocular e a monocular; a primeira não é uma síntese de duas imagens monoculares, mas uma metamorfose>
pela qual as aparências são instantaneamente destituídas de um valor que possuíam unicamente em virtude da ausência de uma percepção verdadeira. Assim, a percepção nos faz assistir a este milagre de uma totalidade que ultrapassa o que se acredita serem suas condições ou suas partes. (Merleau-Ponty 1999, p. 19)
Compreendemos, aqui, a importância de uma filosofia da forma inspirada na teoria da Gestalt; uma totalidade que não é síntese de partes implica uma metamorfose e uma espécie de milagre que nos remete ao invisível da forma, impossível de ser encontrada exclusivamente quer na coisa, quer na idéia. Entendo que a proposição de "uma psicanálise que seja o prolongamento normal de uma psicologia da forma consistente" ganha inteligibilidade quando considerada nesses termos.
A paciente de Winnicott só encontra uma saída de seu labirinto do fantasiar quando pode atingir e experimentar a área do informe. Nesta, encontramo-nos com um material antes de ele ser moldado, cortado, ajeitado ou agrupado; esta é a matéria mesma do sonhar, o qual, ao contrário do fantasiar, é pleno de valor poético, ou seja, constituído de "camada sobre camada de significado relacionado ao passado, ao presente e ao futuro, ao interior e ao exterior, e sempre, fundamentalmente, a respeito dela [a paciente] mesma" (Winnicott 1996b, p. 35). Winnicott nos lembra que no sonhar a mente está fora de foco; estamos aqui, pois, no campo da ilusão e de suas sombras.
Assim, é a partir do estudo das experiências de desrealização, despersonalização e desintegração que Winnicott vai paulatinamente descobrindo e nos revelando a importância vital dos estados de não-integração e da área do informe, espaço de ilusão no qual se dá o milagre da criação - ou, se quisermos, da própria experiência paradoxal da percepção/concepção.
Fé e percepção2
Antes de seguirmos adiante, alguns pontos merecem ser esclarecidos. Quando abordamos comparativamente conceitos e termos utilizados por dois autores ou, mais amplamente, quando trabalhamos em conjunto dois pensamentos, estamos correndo certos riscos, mas, também, podemos sair ganhando em termos de uma mútua fertilização e da produção de uma reflexão que se dá "entre" os dois elementos em jogo. A situação aumenta em complexidade quando se trata, como no presente caso, de pensamentos concernentes a campos do saber distintos: a filosofia e a psicanálise. O que entendemos por fé, percepção - e ainda - concepção, alucinação e ilusão?
A questão da "fé", presente na noção de fé perceptiva de Merleau-Ponty, pode ser reencontrada, curiosamente, na atenção dada por Winnicott à "crença em...". Para ele, a capacidade de crer é uma aquisição fundamental, que tem sua base construída na primeira fase do desenvolvimento emocional, sendo que os objetos que irão preencher a sentença - crença em Deus, crença em um futuro promissor, crença em um outro ser humano, etc. - podem variar e são secundários à "crença em...". O que é primário e possibilita o surgimento da crença não é, a rigor, um objeto, mas o ambiente-mãe antes desta emergir como objeto propriamente dito. Se há algum atributo primário da crença é a confiabilidade:
o bebê é geralmente cuidado de maneira confiável, e este ser suficientemente bem cuidado faz crescer nele embutida uma crença na confiabilidade; sobre esta base, uma percepção da mãe, do pai, do avô ou da babá pode ser acrescida. (Winnicott 1990b, p. 97)
Essa crença primária está evidentemente perturbada, por exemplo, na personalidade borderline, para a qual, conforme propôs Bollas, a grande busca inconsciente é de uma turbulência emocional, que veio a se tornar a própria forma do objeto do desejo.3
O mesmo princípio é reencontrado ao longo do desenvolvimento da criança, sendo a questão da moralidade um ponto crítico, que surge de forma aguda na época do controle esfincteriano. Esta etapa pode ser entendida como uma luta entre os próprios impulsos - sujar o mundo de maneira pouco elegante ou até sádica - e uma exigência de submetimento à ordem; mas, com Winnicott, podemos reconsiderá-la em termos da oportunidade de experimentar uma conquista e uma sensação de "fé na natureza humana" (Winnicott 1990b, p. 100). Ora, isso só ocorre se houver "um progresso natural" em direção ao controle esfincteriano, ou seja, se o "treinamento" da criança não preceder o momento em que o autocontrole faz sentido para ela. Pois a criança pode vir a querer ser igual às outras pessoas que estão à sua volta! A luta e o sofrimento atroz que vive o neurótico obsessivo através de sua dúvida torturante - muitas vezes discretamente presente dentro de todos nós -, talvez pudesse ter um destino mais suave...
Ora, o que é esta "fé na natureza humana"? E como articular a "crença em..." primária com sua posterior transitividade objetal? E ainda: podemos equiparar a "crença em..." de Winnicott com a fé perceptiva de Merleau-Ponty? A crença primária sugerida por Winnicott seria propriamente perceptiva?
Para Winnicott, a crença surge a partir da experiência de confiabilidade, ou seja, a partir dos cuidados da mãe-ambiente. A decorrência fundamental disso é que é a mãe que cuida de apresentar o mundo ao bebê. Não é possível pensar aqui na percepção direta do mundo preexistente, e sim em um ser introduzido, ser apresentado - como quando alguém nos apresenta a um desconhecido: este é fulano. Passamos a perceber um mundo que nos é oferecido, e não um suposto mundo existente por si mesmo. A percepção se dá no campo humano e intersubjetivo. A crença é a própria forma humana de experimentar o mundo como uma realidade a serviço do homem, povoada de objetos criados-percebidos para serem por ele usados. O mundo no qual o homem crê a partir do processo de realização é um mundo humanizado, talhado nas suas medidas por um alfaiate singular; é um mundo ordenado espacial e temporalmente, guardando um passado e um futuro no qual ele pode depositar e reencontrar suas esperanças.
Podemos assimilar a "crença em..." winnicottiana à fé perceptiva de Merleau-Ponty? Talvez sim, com ressalvas; talvez sim, antropofagicamente. Ou, melhor: mais do que assimilar, podemos aproximá-las, fazerem "se tocar". De qualquer maneira, o que aqui propus aproximarmos é a fé perceptiva e a ingênua naturalidade com que somos capazes de sentir que o mundo é real, conforme apontou Winnicott; provavelmente essa é uma das dimensões da "crença em..." - o que mereceria um maior desenvolvimento -, mas este não é o foco da presente discussão.
A crença na confiabilidade é originariamente perceptiva? Eis uma importante indagação, mas que nos exige precisar o que entendemos por percepção. Os comentários de Winnicott a respeito da "crença em..." aumentam a nossa compreensão a respeito da passagem, no desenvolvimento emocional primitivo, de uma mãe-ambiente para uma mãe-objeto. De fato, há inicialmente uma crença inespecífica, sem objeto delimitado, cujo meio que permite a sua emergência é uma mãe-ambiente suficientemente boa; aliás, poderíamos acrescentar: uma mãe-ambiente necessariamente psicossomática. Trata-se de uma crença na confiabilidade, ou uma crença quase que intransitiva. Quase que - e aqui chegamos na raiz do problema, pois nos reencontramos com o paradoxo essencial postulado por Winnicott. Penso que, mesmo não havendo um objeto da crença - já que estamos em um estágio inicial do desenvolvimento, em que Eu e objeto não estão diferenciados e, portanto, ainda não constituídos como entidades que ganham uma relativa independência progressiva -, não se trata de uma situação de intransitividade do verbo crer, nem de um isolamento perceptivo. Não podemos confundir a ausência de objeto correlata à ausência de um Eu constituído com a falta de comunicação, pois, se assim o fizéssemos, estaríamos esquecendo o princípio metodológico básico proposto por Winnicott no estudo desse período inicial da vida: a unidade a ser considerada é um conjunto organizado ambiente-indivíduo (an environment-individual set-up) (Winnicott 1992c, p. 221). O paradoxo percepção-concepção ressurge, assim, sob nova roupagem: estamos lidando com uma crença a um só tempo intransitiva e transitiva, cujo objeto está prenunciado por um ambiente facilitador. As reticências da "crença em..." exprimem, ao meu ver, o espaço potencial do objeto que será oferecido - ou que se oferecerá a ser usado. Lembremos como Winnicott propôs, em seu diagrama do clássico artigo sobre os objetos e fenômenos transicionais, que estes últimos são a forma - singular - que ganha a área da ilusão; o objeto percebido no qual se crê - a mãe, o pai, o avô, a babá, etc. - nada mais é do que a forma singular tomada pela experiência de confiabilidade.
Ora, mesmo no estágio primitivo indiferenciado há uma comunicação, mas de um tipo especial: silenciosa e não explícita. Ela guarda uma relação direta com a questão da confiabilidade:
para o bebê, talvez, ocorra uma comunicação com a mãe-ambiente, posta em evidência pela experiência da não confiabilidade. O bebê está atormentado/estilhaçado (shattered), e isto pode ser tomado pela mãe como uma comunicação se ela puder colocar-se no seu lugar e reconhecer o estilhaçamento no estado clínico do bebê. Quando a confiabilidade domina a cena, pode-se dizer que o bebê se comunica simplesmente por seguir existindo, e seguir desenvolvendo-se de acordo com os processos pessoais de maturação; mas isto dificilmente merece o epíteto comunicação. (Winnicott 1990c, p. 183)
Trata-se ou não de uma comunicação? A resposta talvez seja que, ao lidarmos com esse estágio inicial, já estamos modificando sobremaneira o próprio conceito de comunicação, em uma ampliação que pode ser considerada indevida. Por outro lado, assim procedendo, temos a vantagem de poder observar a raiz da potencialidade humana de se comunicar verdadeiramente na experiência primitiva do seguir existindo; isto só é possível devido a uma mãe-ambiente que entende os sinais do bebê de que há uma ameaça como uma comunicação que pede um gesto correlato da sua parte (holding e manejo adequados). É justamente uma "identificação primária" que cria as condições para tal tipo de comunicação silenciosa e não explícita. Com o tempo - e no seu devido tempo - certas falhas podem ser absorvidas pelo Eu incipiente, e a comunicação passa a ser explícita ou confusa; surgem também uma não-comunicação simples e uma não-comunicação reativa. A ausência de comunicação não é, em absoluto, um fato primário; muito ao contrário, trata-se de algo que pode ocorrer secundariamente como uma defesa esquizóide ou por uma necessidade de isolamento.
As dificuldades retornam com o termo objeto: pois "o objeto, sendo primariamente um fenômeno subjetivo, se torna um objeto percebido objetivamente" (ibidem, p. 180). Lembremos do título do artigo-matriz do pensamento de Winnicott: "Objetos transicionais e fenômenos transicionais". Ora, o objeto transicional distingue-se por sua maior visibilidade e pelo fato de dar uma forma à área da ilusão, mas aproxima-se do fenômeno transicional pela sua função comum: ligar e separar Eu e objeto, construindo, ao mesmo tempo, um espaço "entre". De um certo ponto de vista, podemos considerar o fenômeno um objeto potencial, ou o informe do objeto: a consistência que tem o material antes de ser moldado, cortado, modelado ou preenchido (como é o caso da tela em branco).4 O processo criativo pode ser pensado, nessa perspectiva, como sendo desencadeado no momento em que o artista vê - percebe subjetivamente, como uma alucinação -, no material bruto, o objeto potencial da obra de arte. Trata-se, portanto, de uma espécie de sonho premonitório - vidência - ou de uma percepção antecipatória do objeto percebido objetivamente no fenômeno concebido subjetivamente.5
Ora, o fenômeno subjetivo, também ele, não é percebido? Penso que sim: é percebido subjetivamente. Se há uma comunicação primitiva, há uma porta, uma passagem, paradoxalmente potencial e informe, através da qual se dá o ato da comunicação; por ela entram e saem fenômenos subjetivos. Temos que aceitar a existência de uma porta virtual, ainda sem paredes que a sustentem... O sentido da expressão fenômeno subjetivamente percebido, que proponho aqui, só pode ser alcançado à luz do paradoxo essencial concepção-percepção, pois esse fenômeno é, no mesmo ponto do tempo e do espaço, também concebido; não creio ser produtivo supormos um momento originário mítico, abstrato, no qual teria havido uma concepção sem percepção. Considero, por isto, até certo ponto infeliz e criticável o modo com que Winnicott se expressa na frase "estou propondo que existe um estágio no desenvolvimento dos seres humanos que vem antes da objetividade e da perceptividade" (Winnicott 1996a, p. 151). Se o bebê, em um início teórico, vive em um mundo subjetivo ou conceitual, não vejo vantagem em considerar este estágio como pré-perceptivo. Tal discussão depende, evidentemente, de como utilizamos o termo percepção, e procuro dar aqui apenas um pequeno passo neste sentido.
A percepção é, segundo penso, o meio do contato, a porta da comunicação, ou a própria porosidade do Eu-pele (ainda que este seja paradoxalmente ainda uma organização potencial). Procurei abordar, em outro trabalho, o processo de diferenciação Eu-objeto como a construção de uma pele psíquica, não apenas como um ser de superfície, mas essencialmente como um espaço de fronteira espesso, tridimensional; a clínica dos estados-limites nos mostra, justamente, um buraco nessa região de fronteira, uma falha na função de intermediação Eu-outro e psique-soma.6 Precisamos aqui retornar a Freud e observar o lugar discretamente imprescindível por ele atribuído à percepção nos seus modelos do aparelho psíquico. Na primeira tópica, a percepção é assimilada à consciência e, na segunda, à área de contato entre Eu e realidade externa. Agora, com a contribuição de Winnicott a respeito dos estágios iniciais, em que o Eu está em processo de formação, é preciso recolocar o problema da percepção a partir da situação paradoxal de uma comunicação quando ainda não existem dois, mas apenas a unidade ambiente-indivíduo.
A percepção também é, essencialmente, uma experiência emocional, que tem sua própria natureza pervertida quando se torna uma função intelectual dissociada do psicossoma, pois busca delirantemente um encontro puramente objetivo com o mundo. Lembremos que
os fenômenos transicionais representam os estágios iniciais no uso da ilusão, sem a qual não faz sentido para o ser humano a idéia de um relacionamento com um objeto que é percebido pelos outros como externo a este ser. (Winnicott 1996c, p. 11)
Ora, na saúde, a percepção objetiva é necessariamente também subjetiva, porque atingida a partir da ilusão: vemos o mundo através da lente do que concebemos. Há uma forma de patologia, tão bem denunciada por Winnicott, que é a fuga para a sanidade, cujo caso mais radical é um fenômeno alucinatório de hiper-realização ou o delírio de uma pura realidade objetiva; eis o avesso da fé perceptiva... Um paciente desse tipo, hiperadaptado, um dia olhou no espelho e não se viu ali: uma realidade "percebida" que não porta um sentido pessoal se torna a alucinação negativa do si-mesmo.7
Concepção e alucinação
E como entender o termo concepção, o outro elemento do par que constitui o paradoxo fundamental para Winnicott? Qual é sua relação com os conceitos de criatividade e de alucinação?
O sentido pleno do uso winnicottiano do termo concepção fica mais claro na comparação entre conceber (conceived) um bebê - dar à luz - e conceber (conceived of) um novo ser humano (a sua projeção e criação na vida imaginativa de seus pais). Assim como pode se dar, por uma dissociação, uma percepção de-subjetivada, objetivada artificialmente pelo processo dissociativo, "um bebê pode ser concebido de modo não criativo [conceived uncreatively], isto é, sem ser concebido [conceived of], sem ter brotado/chegado [arrived at] como uma idéia na mente" (Winnicott 1990f, p. 48). Observamos aqui uma dissociação da experiência psicossomática de criar um novo ser humano. Conceber verdadeiramente é abrir um espaço potencial, sobre uma base biológica e física, para que um si-mesmo surja. Winnicott nos alertou que os pais não produzem um bebê - como o artista produz um quadro ou o ceramista um pote -, mas apenas oferecem o setting para que ele se desenvolva (Winnicott 1990d, p. 85). O sentido que está no horizonte desse setting é a moldura de uma tela a ser pintada, a massa informe da argila a ser moldada, o fornecimento da condição - em projeto e em germe - de um vir a ser humano. É a criação imaginativa dos pais que oferece o holding para um si-mesmo nascer; trata-se de uma extensão natural ou uma outra versão do corpo da mãe que sustenta a existência do feto, que surgiu como resultado da relação sexual e amorosa com o pai.
Aqui temos um material muito instigante para refletir sobre a relação entre sexualidade e criatividade. Conceber condensa os aspectos biológico e psíquico - indissociáveis - de certas dimensões fundamentais da vida humana: a relação de amor (que integra, como protótipo, o encontro psicossexual), a gestação de um novo ser (incluindo necessariamente sua dimensão simbólica e por vezes sublimada, como, por exemplo, na construção de algum projeto comum), sua concepção e criação através do cultivo cuidadoso e cotidiano. A reprodução, que em certo momento da história da psicanálise precisou ser deslocada para permitir uma ampliação indispensável do conceito de sexualidade, ressurge no horizonte em sua dimensão propriamente humana, como um modelo extremamente rico para pensar a criatividade.
A referência a esse sentido de conceive (em paralelo a perceive) nos ajuda na compreensão do substantivo conception (em contraste com perception). Conceber um fenômeno subjetivo - objeto potencial - é gestá-lo no útero do próprio ser, sem que seja relevante alguma tópica que delimite lugares (interno ou externo, por exemplo). O essencial da criação é justamente a ausência de espacialidade.
O trabalho de Sérgio Cardoso nos ajuda a avançar na compreensão essencialmente temporal e não espacial da criatividade, se pensarmos esta última como uma variação do viajar verdadeiro, conforme proposição do autor. A "vertigem da desestruturação" é a sua marca, expressão que bem pode ser aplicada às experiências da não-integração e do informe, propostas por Winnicott como sendo a base da criatividade. O talento expressivo do filósofo pode ser "roubado" para retratar algo que é próprio da prática psicanalítica, naquilo que ela guarda de essencialmente criativo:
quando consideramos o caráter temporal das viagens, compreendemos que o dépaysement [desterro] não testemunha a exterioridade e estranheza do mundo circundante, ou mesmo a intersecção ou sobreposição imaginária de extensões diversas (...), mas assinala sempre desarranjos internos ao próprio território do viajante, advindos das fissuras e fendas que permeiam sua identidade. Pois, as viagens, na verdade, nunca transladam o viajante a um meio completamente estranho, nunca o atiram em plena e adversa exterioridade (...); mas, marcadas pela interioridade do tempo, alteram e diferenciam seu próprio mundo, tornando-o estranho para si mesmo. Assim, nesse sentimento de estranheza, de "alheamento" e distância, seu mundo não se estreita, se abre; não se bloqueia, mas experimenta a vertigem da desestruturação (sempre, em alguma medida, marcada pela perda e a morte) que lhe impõem as alterações do tempo. (Cardoso 1999, p. 359)
Ora, esta dimensão da aventura analítica foi também assinalada, de uma certa forma, por Fédida, quando conceitua sobre a "vertical do estrangeiro".8
Também o termo alucinação é reconsiderado por Winnicott: "o potencial criativo do indivíduo, que emerge da necessidade, produz prontidão para uma alucinação" (Winnicott 1992c, p. 223). O que entende Winnicott por alucinação? Basicamente, tal noção é assimilada à de criatividade (primária?), e o seu uso tem também como intenção, como procurarei apontar adiante, possibilitar um diálogo com o pensamento freudiano no qual semelhanças e diferenças podem ser reconhecidas. Há uma certa imprecisão - aliás nada incomum - no uso que faz do termo, às vezes equiparado à criatividade primária como processo fundante, às vezes tratado como um segundo tempo da mesma, no qual teria surgido um material mnemônico para ser usado nesse processo. A delicadeza da linguagem de Winnicott deve ser ressaltada, já que em diversas passagens utiliza o tempo verbal condicional - "haveria uma alucinação se..." -; e, ainda, na frase acima destacada, encontramos a expressão "prontidão para uma alucinação", muito feliz por trazer em si o espírito paradoxal do pensamento de seu autor. Em Freud, a alucinação não é primária, já que é necessária uma experiência originária de satisfação e uma experiência perceptiva arcaica anteriores para construir um "objeto" do desejo primário a ser alucinado. Em Winnicott, a rigor, talvez também não o fosse; mas há, primariamente, uma "prontidão para alucinação" e, portanto, uma alucinação potencial presente em germe ou intenção: trata-se novamente das reticências a serem preenchidas pelos objetos potenciais...
A alucinação é remodelada à luz do gesto espontâneo do bebê; a prontidão para alucinação e o gesto do bebê são duas dimensões de um mesmo processo, que pode também ser descrito como um movimento de comunicação - psicossomático - que busca uma contrapartida do ambiente; este último pode vir a ganhar a forma de um objeto. A alucinação é retrabalhada a partir de uma ampliação do campo psicanalítico: a inclusão da pesquisa a respeito da busca de um si-mesmo, construído na experiência do "seguir existindo". Não há dúvida de que há uma transformação significativa de seu sentido - como não poderia deixar de ser -, o que não invalida o reconhecimento de sua origem - ou apoio, se quisermos - na obra freudiana. Winnicott afirma que o potencial criativo emerge da necessidade ("arising out of need") (Winnicott 1992c, p. 223), e aqui ele entra em comunicação, penso, com a idéia freudiana do "apoio" - tomada de modo ampliado - segundo a qual o desejo nasce apoiado na necessidade.
A originalidade de Winnicott
Há uma discussão em pauta sobre a originalidade do pensamento de Winnicott, em especial quanto à pertinência em derivá-lo das contribuições dos psicanalistas que o antecederam. Não quero aqui alongar-me sobre o tema, mas apenas assinalar a maneira como me posiciono sobre o assunto. Considero que há uma relação complexa de continuidade e ruptura a ser considerada, como ocorre em diversos campos e com diversos pensadores de peso. As diferenças devem ser conhecidas e reconhecidas; em certos momentos estratégicos elas são até exageradamente ressaltadas, justamente para ganharmos uma compreensão mais acurada da força e da especificidade do pensamento, especialmente diante do risco de uma absorção fácil e redutora do novo pelo já conhecido. A relação de continuidade, por outro lado, quando reconhecida de modo criterioso e crítico, põe em perspectiva o pensamento estudado, tanto no seu contexto histórico quanto na sua intenção comunicativa implícita e sempre presente.
Winnicott buscava incessantemente dialogar com os analistas de seu tempo e, simbolicamente, com os que o antecederam, assim como com um grande número de interlocutores em diversas áreas. Daí a quantidade de conferências proferidas, comunicações radiofônicas, cartas e artigos em jornais, dirigidos ao mais variado público. Em carta a Melanie Klein, notamos o sofrimento de Winnicott pela ausência de comunicação que sentia com uma figura tão fundamental no seu processo de ser analista, especialmente devido à falta de uma contrapartida de Klein e seu grupo a seu próprio gesto; essa dor se estendia à sua ex-analista, Joan Riveire.9 A função de reconhecimento - ou de espelho do rosto da mãe - parece ter sido, nesses relacionamentos tão importantes, deficiente. É visível que ele buscava se comunicar dentro do paradoxo de uma linguagem pessoal e viva - não submissa e mortificada - que pudesse ser ao mesmo tempo compartilhada.10 Como Winnicott mes mo ressaltou, a respeito do jogo de esconde-esconde: "é uma grande alegria [joy] estar escondido, mas um desastre não ser encontrado" (Winnicott 1990c, p. 186). O seu projeto parece, por vezes, um tanto utópico...
Em uma direção semelhante podemos considerar a aproximação entre Winnicott e Merleau-Ponty, assim como a diversidade de acepções dos termos anteriormente comentados. Não considero proveitosa e pertinente uma assimilação dos diversos usos dos conceitos pelos autores, mas sim um diálogo fecundo entre eles. O psicanalista está habituado a "fazer trabalhar" a máquina do tecimento psíquico própria do humano, "fantasiando metapsicologicamente", como já propunha Freud. Podemos reconhecer os frutos e os erros inevitáveis de tal princípio metodológico. Sabemos, do lado da psicanálise, que a metapsicologia nunca poderá se tornar - ao preço de perder o seu próprio sentido e finalidade - um sistema conceitual totalmente coerente e fechado em si mesmo: ela é forjada por uma contínua relação de mútua alimentação com a clínica psicanalítica.11
Não creio, pois, que a concepção exclua a percepção. Proponho que consideremos diversas dimensões da perceptividade, partindo daquela referida ao fenômeno subjetivo (alucinação), passando pela experiência fundante da ilusão e chegando ao objeto objetivamente percebido (próprio do mundo compartilhado, que implica a "fé perceptiva" do "mundo adulto"). Só assim podemos compreender o uso, por Winnicott, da expressão "prontidão para alucinação" para descrever o potencial criativo do bebê.
O enigma da "fé perceptiva" pode ser recolocado em termos do que possibilita a passagem de um fenômeno subjetivamente concebido a um objeto objetivamente percebido. A concepção subjetiva do fenômeno não implica necessariamente a ausência de percepção, e, sim, a presença de uma forma paradoxal e primária de percepção potencial. O advérbio "objetivamente" não descreve o acesso direto a um mundo existente em si mesmo, mas a construção de uma "crença em..." transitivada no mundo de objetos compartilhados. Nem materialismo, nem espiritualismo. Pois, reafirmando o que Merleau-Ponty havia apontado, devemos cuidar de não cair no erro oposto - e no fundo semelhante: o subjetivismo. A "crença em..." só surge com a experiência da confiabilidade, sendo a mãe suficientemente boa - protótipo de um mundo que se apresenta à prontidão alucinatória do ser humano - parte integrante da mesma: a experiência do conhecimento se dá por um corpo reflexivo e transcendente necessariamente imerso em um campo intersubjetivo. O objeto, em psicanálise, merece, neste sentido, ser reconsiderado como forma: nem coisa, nem idéia.
Devemos romper uma dicotomia, ainda presente, entre percepção e experiência, já que a percepção é experiência. A percepção não precisa ser considerada no campo restrito da representabilidade verbal, e nem no da apreensão intelectual de uma "mente". A "fenomenologia da percepção" de Merleau-Ponty abarca, a meu ver, todo esse sentido ampliado da percepção, daí a sua riqueza para um diálogo com Winnicott.
Uma das vantagens em não adotarmos a idéia de uma crença e de uma criatividade pré-perceptiva está relacionada a algo que às vezes se observa no interior do campo psicanalítico. A riqueza da quase-revolução winnicottiana do conceito de si-mesmo [self] pode ser gradualmente dilapidada por uma tendência mistificante de um pré-perceptivo inefável. Winnicott desenvolve sua idéia de self a partir da problemática do Eu, que foi se mostrando limitada para abarcar certas questões clínicas e metapsicológicas que puderam ser melhor compreendidas com o conceito de si-mesmo. Não creio ser produtivo, porém, apagar essa origem e erigir em seu lugar um endeusamento auto-referente do self, reconhecido, aliás, por Winnicott mesmo como um dos problemas do pensamento de Jung, expresso na forma circular e fechada da mandala.
A mandala é uma coisa verdadeiramente temerosa para mim devido à sua falha absoluta em compor com a destrutividade, assim como com o caos, a desintegração e outras formas de loucura. É um vôo em fuga obsessivo da desintegração. (...) O centro do self é um conceito relativamente inútil. (Winnicott 1989b, p. 491)
Winnicott se dá a liberdade de uma interpretação biográfica do pensamento de Jung, entendendo sua insistente busca do self como resultado da psicose infantil que marcou sua personalidade. Isto teria propiciado um trabalho rico e inspirado em diversas regiões do psiquismo não exploradas por Freud, mas a solução pessoal encontrada trouxe algumas limitações sérias. A figura da mandala expressa justamente o "efeito colateral" possível de uma psicologia do self: a criação e o oferecimento de um dispositivo de defesa - evidentemente não analítico - diante do horror do informe.12 Isso serve como advertência para a psicanálise contemporânea, incluindo nela a leitura e o uso que fazemos da obra de Winnicott.
A questão que deveria ser colocada, caso adotássemos a idéia de uma crença pré-perceptiva, seria: como um bebê tem a experiência da confiabilidade sem ser através de alguma via perceptiva, seja qual for sua natureza? Esse é um debate já conhecido no campo psicanalítico, bastante estimulado pela crítica de Laplanche ao conceito de narcisismo primário, que poderia ser entendido como um momento mítico inicial do ser humano caracterizado por uma "mônada fechada". Mas encontramos também na posição adotada por José Bleger, não tão difundida, uma contribuição importante quanto ao tema. Ele assume como postulado básico
a recusa da afirmação de que os primeiros estágios da vida do ser humano caracterizam-se pelo isolamento, a partir do qual o sujeito vai gradualmente se relacionando com os outros seres humanos; (...) em substituição a tal hipótese, fui levado a conceber um estado de indiferenciação primitiva como ponto de partida do desenvolvimento humano. (Bleger 1997, p. 10)
Essa posição aproxima-se da de Winnicott por tomar o ambiente-indivíduo como a verdadeira unidade de início, na qual a questão da dependência é central. Há uma diferença quanto à questão do isolamento; neste ponto, o trabalho de Winnicott foi bastante original em postular a positividade da experiência de isolamento na constituição do si-mesmo. Não devemos confundir tal dimensão, no entanto, com um suposto estado originário fechado, pré-perceptivo, e por isso mesmo sujeito a mistificações de diversas ordens.13
A proposta que formulo aqui não é definitiva, e talvez merecesse melhor fundamentação. Trata-se de uma tentativa de organização do pensamento nesse emaranhado de contradições e paradoxos; mantém, ainda, as limitações da capacidade argumentativa do autor - especialmente quanto ao campo da filosofia, considerando-se o viés inevitável do psicanalista. Não deve ser tomada de maneira excessivamente literal, rígida ou obsessiva; trata-se unicamente de um "objeto intermediário" para um diálogo interpensamentos e intercampos do saber. O que não deve se perder é a força da reflexão e do pensamento vivo ou a vivacidade da linguagem. Fé, percepção, concepção e alucinação: todas essas noções têm seu lugar e seu sentido transfigurado - ou pelo menos alterado em algum aspecto - a partir do conceito de ilusão. Com a introdução do paradoxo e da terceira área, podemos dizer que foram embaralhadas e redistribuídas essas cartas.
Ilusão, alimento do self
É curioso notar como Winnicott, ao propor um modelo para compreendermos o fenômeno da ilusão, reelabora um outro, anteriormente proposto por Freud. Refiro-me ao fato de a chamada "primeira mamada teórica" ser evidentemente inspirada na "experiência originária de satisfação", proposta por Freud no capítulo VII de A interpretação dos sonhos.
Freud formula, nesse capítulo fundamental, uma espécie de mito de origem do sujeito de desejo e de um aparelho psíquico primitivo. Os mitos de origem nunca deixaram de estar presentes na metapsicologia freudiana, à maneira de uma espécie de "teogonia". Em um momento originário, temos um protopsiquismo regido pelo princípio do arco reflexo, segundo o qual toda estimulação que a ele chegue deva ser automaticamente descarregada; logo surgem os estímulos endógenos - as pulsões -, que não podem ser eliminados por simples atividade de fuga. À dor da fome segue-se uma reação de descarga motora desordenada, que não redunda em sua cessação; mas, por uma "coincidência" do acaso, ocorre a satisfação da fome por parte de um objeto externo, ao mesmo tempo em que se dá uma inscrição psíquica originária deste - um traço de memória -, para sempre ligado à vivência de prazer implicada na descarga da tensão da excitação. Em um segundo tempo desse processo originário, retorna a fome; a reação do psiquismo nascente será não mais apenas a descarga motora desordenada, mas um processo psíquico novo e fundante: a realização alucinatória do desejo. Reinveste-se aquele traço de memória do objeto que produziu satisfação na esperança de repetir o prazer experimentado por uma "identidade de percepção"; aqui surge o desejo, que não é nada mais do que o impulso que conduz o psiquismo a produzir tal investimento. Eis a essência do processo primário ou do que será futuramente denominado princípio do prazer; sabemos que, na seqüência desse mito de origem, surgirá o processo secundário ou o princípio de realidade, "realidade" esta sempre problemática na sua própria definição, como toda história da filosofia tem sido testemunha. Mas o que nos importa observar agora é como esse mito será reorganizado.
Winnicott assim nos descreve uma teórica "primeira mamada":
o potencial criativo do indivíduo, que emerge da necessidade, produz prontidão para uma alucinação. O amor da mãe e sua intensa identificação com o bebê a torna capaz de perceber as necessidades deste, de tal forma que ela passe a oferecer algo mais ou menos no lugar certo e na hora certa. Isto, repetido diversas vezes, dá início à habilidade do bebê de usar a ilusão, sem a qual não é possível qualquer contato entre a psique e o meio ambiente. Se no lugar da palavra ilusão pusermos o dedo, ou aquele pedaço de cobertor, ou aquela macia boneca de pano (...), poder-se-á compreender o que tentei descrever em outro lugar pelo termo objeto transicional. (Winnicott 1992c, p. 223)
A ilusão é uma experiência de encontro, que se dá em um campo intersubjetivo. A alucinação, por outro lado, é o revés de um encontro, é um ensaio de gesto espontâneo que não encontrou o seu correlato na realidade compartilhada. É a persistência no tempo do fenômeno subjetivo sem a transitividade para o objeto objetivamente percebido: um gesto abortado, parado no ar, que não encontrou apoio no outro da comunicação. Winnicott, que já apresenta a noção de ilusão no texto de 1945, concebe-a como o ponto de intersecção entre duas linhas:
penso neste processo como se duas linhas viessem de direções opostas, com a possibilidade de se aproximarem uma da outra. Se elas se sobrepõem, há um momento de ilusão, uma experiência que o bebê pode tomar, ou como alucinação sua, ou como algo que pertence à realidade externa". (Winnicott 1992b, p. 152)
As duas linhas são a prontidão alucinatória do bebê - para Winnicott, expressão de uma criatividade primária - e o movimento da mãe de ir ao encontro da necessidade dele, apenas possível por sua profunda identificação com ele. Sempre que ocorre esse feliz encontro, temos a experiência da ilusão; o bebê encontra um suporte para sua potencialidade criativa, e a mãe inicia a sua tarefa fundamental de apresentar a ele a realidade, em pequenas doses. É a partir da experiência de sermos o criador que conhecemos o mundo. O segundo tempo desse mito de origem é a desilusão, ou seja, a gradativa - e também imprescindível - função da mãe de não mais prover uma coincidência absoluta, introduzindo um diferencial entre concepção e percepção. É nessa brecha que "surge" o mundo e a experiência da percepção, "objetiva", reconhecida pelo homem ingênuo, por obra da fé perceptiva, como "a" percepção propriamente dita. Essa experiência se dá, na verdade, por um perpétuo jogo de ilusão e desilusão, movimento que poderíamos qualificar de dialético. A realidade do mundo, fundada dessa maneira, é sempre e paradoxalmente criação do próprio sujeito que percebe, e é nesse sentido que podemos dizer que rompe-se aqui - no campo da psicanálise - a dissociação entre sujeito e objeto, tão bem denunciada por Merleau-Ponty.
Ora, com a introdução do conceito de ilusão14 em seu mito de origem, Winnicott recoloca o problema da relação do sujeito com a realidade em um campo que não podemos deixar de reconhecer como sendo o da "fenomenologia da percepção". O enigma da fé perceptiva é recolocado quando se duvida de um acesso direto às coisas mesmas, ou de que o mundo é aquilo que vemos; o mundo, segundo Winnicott, é aquilo que a um só tempo criamos e nos é apresentado por um outro - e assim o percebemos; a realidade não é algo em si a que se acede, mas uma experiência construída no campo intersubjetivo. Ela se encontra em um espaço potencial, um espaço entre, entre eu e outro, sujeito e objeto: o espaço intermediário. A forma da percepção não está nem na coisa, nem na idéia. A realidade "externa" é, na verdade, realidade compartilhada, e por isto mesmo sempre um pouco intermediária - logo, nunca inteiramente exterior.
Não há possibilidade alguma de um bebê progredir do princípio de prazer para o princípio de realidade, ou em direção à identificação primária e para além dela, a menos que exista uma mãe suficientemente boa. (Winnicott 1996c, p. 10)
Como já havia postulado Winnicott, não existe tal coisa chamada "o bebê"; a unidade a ser tomada em conta é uma organização meio ambiente-indivíduo. É no campo intersubjetivo - e apenas nele - que ocorre a "primeira mamada teórica" e que se abre, para o novo viajante, a infindável dialética da ilusão-desilusão, a errância sem retorno em um mundo em aberto que, como apontou Cardoso, é sempre uma aventura na dimensão temporal. Essa "doença" não tem cura, e qualquer tentativa da psicanálise em fazê-lo redunda em um processo de auto-esterilização do próprio fazer analítico, tornando a psicanálise, assim - e nesse mesmo movimento -, uma pobre ciência de sobrevôo. Quanto esforço e suor experimentou Winnicott até poder formular isso com clareza para si mesmo, e poder responder a um sentimento de ameaça de aniquilamento do potencial criativo da psicanálise através de um gesto significativo - a famosa carta a Melanie Klein que encerra com as seguintes palavras: "minha doença é algo com que posso lidar a meu modo, e que não está longe de ser a dificuldade inerente ao contato humano com a realidade externa" (1990h, p. 33).
E como devemos interpretar a questão da alimentação, presente no modelo mítico aqui apresentado? Se, por um lado, observamos que Winnicott se afasta de um modelo exclusivamente pulsional para compreender o desenvolvimento emocional primitivo - dando maior ênfase às "necessidades do ego" do que às "necessidades do id" -, vemos, por outro, como ele conserva desse modelo aquilo que concerne a uma base corporal na qual se apóia a experiência perceptiva. Se ele concebe o psicossoma como uma unidade - sendo o corpo a morada do self -, de que se alimenta o sujeito da percepção? Não apenas da experiência de satisfação pelo decréscimo da estimulação no interior do aparelho psíquico - segundo proposição de Freud -, mas também e essencialmente da experiência de ilusão. A mãe suficientemente boa - também um ser psicossomático -, no mesmo momento em que alimenta o seu bebê com o leite, alimenta-o de ilusão e de experiência de realidade, e oferece-lhe o próprio seio para que seja por ele recriado.
* * *
Em Apontamentos para uma crítica da psicologia humanística, Frayze-Pereira retoma Merleau-Ponty para concluir que "entre filosofia e ciência não pode haver rivalidade" (1984, p. 9). É preciso vencer os equívocos de uma "vida dupla" - conforme expressão utilizada por Merleau-Ponty em O metafísico do homem - e poder resgatar um verdadeiro fazer científico que não seja mera tecnologia e que possa, portanto, pensar os seus próprios fundamentos. A tentativa de aproximação aqui ensaiada entre Merleau-Ponty e Winnicott - o filósofo e o psicanalista - inspira-se nessa proposta; permanece em aberto até que ponto foi bem-sucedida. A esperança é poder substituir uma ciência de sobrevôo - aquela que "manipula as coisas e renuncia a habitá-las" (Merleau-Ponty 1997, p. 13) - por uma outra, que "se coloque de novo num aí prévio, in locus, sobre o solo do mundo sensível e do mundo trabalhado" (ibidem, p. 15).
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Endereço para correspondência
E-mail: deciogur@usp.br
Recebido em 9 de outubro de 2000.
Aprovado em 11 de março de 2001.
1 Na verdade, o contato com esta leitura de Frayze-Pereira se deu em uma disciplina por ele ministrada no programa de Pós-Graduação do Instituto de Psicologia da USP, oportunidade na qual nasceram estas minhas reflexões; várias das observações que se seguem baseiam-se nos conteúdos apreendidos nessa disciplina.
2 Esta seção e as duas seguintes foram elaboradas a partir de comentários críticos e pareceres do Setor Editorial da revista Natureza humana, ao qual agradeço o estímulo ao debate e a oportunidade de esclarecer o meu ponto de vista sobre alguns aspectos conceituais relevantes.
3 Cf. Bollas 1996.
4 Cf. Winnicott 1996b.
5 Ver, adiante, comentário sobre a concepção.
6 Cf. Gurfinkel 2000.
7 Este fenômeno clínico é descrito de modo especialmente claro por Bollas 1992b.
8 Cf. Fédida 1992b.
9 Cf. Winnicott 1990h.
10 Trabalhei a busca de um estilo pessoal e de uma "linguagem viva" por parte de Winnicott no artigo "O carretel e o cordão" (cf. Gurfinkel 1996a).
10 A questão do método em psicanálise, e em especial da relação entre metapsicologia e clínica, foi por mim trabalhada mais extensamente no capítulo metodológico da dissertação de mestrado A teoria das pulsões em Freud e a questão da toxicomania (Gurfinkel 1992), sendo retomada na apresentação do livro A pulsão e seu objeto-droga: estudo psicanalítico sobre a toxicomania (Gurfinkel 1996b). O uso ampliado da noção de "apoio" é também abordado brevemente no artigo "A realidade psíquica, o sonho, a sessão" (Gurfinkel 1990).
11 A questão do método em psicanálise, e em especial da relação entre metapsicologia e clínica, foi por mim trabalhada mais extensamente no capítulo metodológico da dissertação de mestrado A teoria das pulsões em Freud e a questão da toxicomania (Gurfinkel 1992), sendo retomada na apresentação do livro A pulsão e seu objeto-droga: estudo psicanalítico sobre a toxicomania (Gurfinkel 1996b). O uso ampliado da noção de apoio é também abordado brevemente no artigo A realidade psíquica, o sonho, a sessão (Gurfinkel 1990).
12 Discutir a questão fundamental da relação entre busca do self, criatividade e destrutividade nos afastaria por demais dos objetivos deste trabalho.
13 Trabalhei alguns aspectos da problemática do "narcisismo primário" em seção do livro A pulsão e seu objeto-droga: estudo psicanalítico sobre a toxicomania (Gurfinkel 1996b), pp.139-48.
14 Por uma questão de precisão, é importante ressaltar que também Merleau-Ponty utiliza o conceito de ilusão, e que este não coincide totalmente com o de Winnicott. Apesar de estar aqui me baseando no uso winnicottiano do termo, não deixo de reconhecer que um diálogo comparativo, também nesse aspecto, seria fecundo.