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Natureza humana
versão impressa ISSN 1517-2430
Nat. hum. v.4 n.1 São Paulo jun. 2002
TRADUÇÃO
Breve nota sobre Heidegger como leitor de Jünger
A note on Heidegger as a reader of Jünger
Zeljko Loparic
Unicamp/PUC-SP/PUC-RS
RESUMO
Nesta nota assinalo duas principais lições que Heidegger tirou da sua leitura de trabalhos de Ernst Jünger, em particular, do seu artigo "A mobilização total", publicado em 1930: primeiro, que o trabalho industrial, pensado a partir da metafísica nietzschiana da vontade de poder, é o sentido do ser da nossa época e, segundo, que esse sentido do ser não pode ser desconstruído no horizonte de Ser e tempo. Essas duas conclusões constituem-se no principal motivo da assim chamada "virada" (Kehre) do pensamento heideggeriano do ser, que se iniciou em torno de 1936.
Palavras-chave: Mobilização total, Técnica, Metafísica, Vontade de poder, Virada.
ABSTRACT
This note spells out two main lessons which Heidegger learned from reading of Ernst Jünger, in particular, from Jünger's article "The Total Mobilization", published in 1930: firstly, that industrial work, considered against the background of Nietzsche's metaphysics of the will to power, is the meaning of being in our epoch and, secondly, that this meaning of being cannot possibly be deconstructed within the horizon of Being and Time. These two conclusions, taken together, constitute the main motive of the so called "turning" (Kehre) in Heidegger's thinking of being which started in 1936.
Keywords: Total mobilization, Technology, Metaphysics, Will to power, Turning.
Como é sabido, o cotidiano analisado em Ser e tempo é o do uso de objetos, cujo modelo é o trabalho artesanal. Não há nenhuma menção ao trabalho industrial, no sentido moderno, tal como explicitado, por exemplo, por Marx. A partir de 1930, esse panorama muda e Heidegger começa a perceber que o que caracteriza a nossa época não é o cotidiano caseiro, analisado em Ser e tempo, mas a técnica, tal como descrita por Ernst Jünger, nos seu artigo "Die totale Mobilmachung" ("A mobilização total") , de 1930, e no seu livro Der Arbeiter (O trabalhador), publicado em 1932. A leitura de Jünger levou Heidegger às seguintes conclusões: 1) que a sua fenomenologia da facticidade (do cotidiano) de 1927 é ainda ingênua, 2) que ela não representa um ponto de partida adequado para formular a questão do ser nos dias de hoje, 3) que a técnica moderna, pensada no horizonte da metafísica nietzschiana da vontade de poder, é o sentido do ser que prevalece, 4) que, portanto, Nietzsche é o pensador decisivo a ser consultado em qualquer tentativa de compreender e ultrapassar esse sentido do ser. Essas conclusões levaram Heidegger a constatar o fracasso do projeto de repensar o sentido de ser em termos da ontologia fundamental, exposta em Ser e tempo, e a procurar outros horizontes para essa pergunta, crise que resultou na Kehre, isto é, na introdução do conceito de acontecência do ser (Seinsgeschichte), característico da segunda fase do pensamento heideggeriano.1
A importância para Heidegger da concepção da técnica apresentada por Jünger é visível em toda a sua obra, posterior a 1936. Assinalo aqui apenas alguns trechos que documentam essa afirmação. No opúsculo Das Rektorat 1933/34, Heidegger escreve:
No ano 1930, foi publicado o artigo "Die totale Mobilmachung" de Ernst Jünger; nesse artigo foram anunciadas as linhas fundamentais do livro Der Arbeiter, que apareceu em 1932. Num pequeno círculo, de que fazia parte o meu assistente Brock, eu discuti já então esses escritos, tentando mostrar como eles expressam uma compreensão essencial da metafísica de Nietzsche, na medida em que a história e o momento atual do Ocidente foram vistos no horizonte dessa metafísica. A partir desses trabalhos e, mais essencialmente ainda, de seus fundamentos, pensamos naquilo que estava por vir, isto é, tentávamos ir ao seu encontro e questioná-lo. [...] No inverno de 1939/40, comentei de novo, num círculo de colegas, partes do livro de Jünger Der Arbeiter e constatei que, ainda naquela época, esses pensamentos eram estranhos e que ainda causavam estranheza, até que foram confirmados pelos "fatos". Aquilo que Ernst Jünger pensa, nos conceitos de dominação e forma do trabalhador, e que ele vê à luz desses pensamentos, é o domínio universal da vontade de poder no interior da história vista planetariamente. É nessa realidade [Wirklichkeit] que hoje se encontra tudo, quer se chame comunismo, fascismo ou democracia mundial. É a partir dessa realidade da vontade de poder que eu comecei ver, já nessa época, o que há. (Heidegger 1983 [1945], pp. 24-5)
De que realidade se trata? Ou seja, qual é hoje o sentido do ser de todas as coisas? O da mobilização total do ente no seu todo, decorrente de um processo cujo expoente não é o artesão, mas a figura do trabalhador. No fragmento II do seu artigo "Überwindung der Metaphysik" ("Ultrapassamento da metafísica"), que reúne anotações de 1936 a 1946, Heidegger esclarece esse ponto afirmando que, nos dias de hoje, "o trabalho alcança status metafísico de objetificação incondicional de tudo que está presente e que se essencia na vontade da vontade" (Heidegger 1954, p. 72).
Em 1955, num artigo escrito em homenagem a Ernst Jünger, intitulado "Zur Seinsfrage" ("Sobre a pergunta pelo ser") Heidegger volta ao assunto e escreve: "`Trabalho', de onde a figura do trabalhador recebe por sua vez o sentido, é idêntico ao `ser'" (Wegmarken, GA 9, p. 400). De onde se determina a essência do trabalho, isto é, do ser dos entes na nossa época? Da técnica. Para documentar isso, Heidegger cita Jünger: "A técnica é o modo como a figura do trabalhador mobiliza o mundo" (ibid., p. 398).
Um estudo da leitura que Heidegger fez de Ernst Jünger constitui-se, portanto, numa tarefa que deve fazer parte de qualquer pesquisa que tenha como objetivo entender a problemática da técnica no pensamento do segundo Heidegger.
Referências
Ferreira Jr., Wanderley 2001: Heidegger - a questão da técnica e a superação da metafísica. Dissertação de Mestrado, Departamento de Filosofia, Unicamp.
Heidegger, Martin 1954: Vorträge und Aufsätze. Pfullingen, Neske.
____-1976: Wegmarken. GA 9. Frankfurt/M, Klostermann.
Endereço para coorespondência
E-mail: loparicz@uol.com.br
1 Formulei essa tese pela primeira vez num artigo publicado em 1996. Posteriormente, ela foi retomada e desenvolvida por outros leitorers de Heidegger (cf., por exemplo, Ferreira Jr. 2001).