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Natureza humana

 ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.4 n.2 São Paulo dez. 2002

 

ARTIGOS

 

A linguagem do acontecimento apropriativo

 

The language of appropriative happening

 

 

Marco Casanova

Departamento de Filosofia - UERJ

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo do presente texto é investigar as articulações essenciais de três noções decisivas para a constituição do pensamento heideggeriano posterior à assim chamada virada (die Kehre): acontecimento apropriativo (Ereignis), seer (Seyn) e linguagem. Para tanto, deter-nos-emos fundamentalmente na análise de algumas passagens importantes do escrito Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis). Através desta análise, procuraremos, ao mesmo tempo, revelar em que medida o conceito de acontecimento apropriativo possui uma relação direta com o acontecimento de uma apropriação de si mesmo por parte do homem enquanto ser-aí.

Palavras-chave: Linguagem, Acontecimento apropriativo, Diferença ontológica, Seer.


ABSTRACT

The central goal of this paper is investigating the essential liaison between three decisive concepts for Martin Heidegger's thought after the so-called "turn" (die Kehre): Event (Ereignis), Being (Seyn) and Language. In order to do this we will mainly analyse certain important passages of the book Contributions to Philosophy (From Enowning). Through this analysis we will try to show at the same time in which measure the enowning is in a fundamental relationship with the occurrence of a self-appropriation of the man as Dasein.

Keywords: Language, Appropriative happening, Ontological difference, Being.


 

 

Mas, antes, tomemos cuidado para que não nos venha a acontecer um
desastre. O de nos transformarmos em inimigos da linguagem
(misólogoi), assim como muitos se transformam em inimigos dos homens
(misánthropoi); pois não há maior mal do que o ódio à linguagem.

(Platão, Fédon, 89cd)

 

No último parágrafo da seção final de seu ensaio póstumo Beiträge zur Philosophie - Vom Ereignis(Contribuições à Filosofia - Do acontecimento apropriativo - 1936/1946), Martin Heidegger articula decisivamente os termos linguagem, seer1 e acontecimento apropriativo. O intuito do presente texto é acompanhar os traços primordiais dessa articulação, revelando, ao mesmo tempo, o seu sentido próprio. Para tanto, deter-nos-emos fundamentalmente na leitura desse último parágrafo do "Contribuições" e procuraremos conquistar, através daí, uma visualização clara da posição paradigmática do livro para a construção de alguns elementos centrais do pensamento heideggeriano posterior à "virada" (die Kehre). No que concerne a esse intuito, o título mesmo do parágrafo fornece-nos um primeiro horizonte de tematização. O parágrafo intitula-se "A linguagem (sua origem)".

A origem da linguagem. O que Heidegger entende, neste contexto, por origem não se inscreve no interior da célebre discussão romântica sobre a proveniência humana ou divina da linguagem, levada a cabo através, principalmente, das figuras de Johann Georg Hamann e Johan Gottfried Herder.2 A questão não é, aqui, absolutamente, determinar o modo de ser da linguagem através de uma investigação prévia do caráter intrínseco à sua constituição originária e de uma análise correlata de suas propriedades simplesmente dadas. Ao contrário, tudo aponta, muito mais, para a essência da linguagem, entendida como condição de sua possibilidade efetiva.3 O discurso heideggeriano trata, em outras palavras, do que funda a linguagem e a torna, assim, possível. Em que medida a essência da linguagem mostra-se em relação direta tanto com o seer quanto com um certo acontecimento apropriativo, podemos começar a considerar agora através de uma leitura atenta do texto acima mencionado. Heidegger diz-nos aí:

Quando os deuses clamam pela terra e no clamor ressoa um mundo; quando o clamor se deixa assim evocar como ser-aí do homem, então a linguagem se mostra como palavra histórica, fundadora de história.

Linguagem e acontecimento apropriativo (Ereignis). Evocação da terra, ressonância do mundo. Contenda, o encobrimento originário do esfacelamento porque a fenda mais intrínseca. A posição aberta.

Linguagem, quer falada, quer silenciada, a primeira e mais ampla antropomorfização do ente. Assim o parece. Mas ela é justamente a desantropomorfização mais originária do homem enquanto ser vivo simplesmente dado, "sujeito" e todas as outras coisas até aqui. Com isto, fundação do ser-aí e da possibilidade da desantropomorfização do ente.

A linguagem funda-se no silêncio. O silêncio é a mais velada contenção em uma medida. Ele retém a medida, conquanto instaura pela primeira vez os critérios de avaliação. Desta feita, a linguagem é instauração de medida no que há de mais interno e amplo, instauração de medida como essencialização da junção e do acolhimento do que se junta (acontecimento apropriativo). Uma vez que a linguagem é o fundamento do ser-aí, reside no ser-aí a assunção plena de uma medida; e, em verdade, como o fundamento da contenda entre mundo e terra. (1998, p. 510)

A interpretação desta difícil passagem envolve uma série de elementos a princípio apenas nomeados: clamor dos deuses, seer, acontecimento apropriativo, posição aberta, terra, mundo entre outros. Esses elementos condicionam a compreensão heideggeriana da origem da linguagem e carecem, conseqüentemente, de uma consideração atenta. Antes de explicitarmos cada um deles, porém, não é difícil percebermos a presença de uma tensão entre duas concepções de linguagem concorrentes no texto. Por um lado, temos a linguagem associada com o acontecimento apropriativo e com a "desantropomorfização mais originária do homem enquanto ser vivo simplesmente dado, `sujeito' e todas as outras coisas até aqui"; por outro, vemos a suposição de que ela aponta, inversamente, para a mais primeva e ampla antropomorfização do ente. Perguntamos, então: como precisamos pensar aqui a articulação entre a linguagem e esta dupla possibilidade de antropomorfização/desantropomorfização do ente? Em que medida a linguagem pode realmente possuir um caráter antropomórfico? A linguagem não está muito mais ligada à objetividade e ao seu modo de constituição? As palavras não possuem uma extensão imediata nas coisas por elas nomeadas?

O que Heidegger tem em vista com a associação entre antropomorfização e linguagem refere-se a certos pressupostos tradicionais relativos à essência desta última. Que pressupostos são estes, podemos investigar agora a partir da análise de uma passagem do parágrafo 33 de Ser e tempo:

Para a consideração filosófica, o lógosmesmo é um ente, e, de acordo com a orientação da ontologia antiga, um ente simplesmente dado. De início, as palavras e combinações de palavras em que as coisas se exprimem são simplesmente dadas, isto é, podem ser encontradas tal como as coisas. A primeira investigação da estrutura do lógossimplesmente dado constata o simplesmente dar-se em conjunto de várias palavras. O que gera a unidade deste conjunto? Como sabia Platão, a unidade reside no fato de o lógosser sempre lógos tinós. (ST, § 33, 1995, p. 211)

Desde o começo da filosofia, a linguagem é assumida como um ente simplesmente dado. Essa assunção aponta para a compreensão da linguagem como uma dimensão a princípio já constituída, no interior da qual várias palavras se dão simplesmente em conjunto. As palavras e as combinações de palavras estão aí presentes como entes simplesmente dados. No entanto, a presença da linguagem não se perfaz em total isolamento e sem nenhum ponto de conexão com os outros entes em geral. Ao contrário, a própria unidade deste conjunto está fundada em uma ligação entre a linguagem e os entes, entre as palavras e as coisas. Todo lógosé lógos tinós: toda fala é fala sobre algo. Assim, a linguagem enraíza-se na possibilidade mesma de alcançar, através das palavras e combinações de palavras, os entes em questão. De início, os entes aqui em questão não são outros senão os entes que se oferecem à percepção e determinação do ser-aí enquanto entes simplesmente dados. A partir da suposição do caráter originário da posição do conhecimento para a explicitação das relações entre os homens e o mundo, toma-se a ligação entre a percepção e o ser, o sujeito e o objeto, como estrutura primária para a concepção da linguagem.4 A linguagem tende a ser pensada, então, como um instrumento de ligação entre estas duas instâncias, como uma ponte entre percepções ou representações internas e a realidade exterior. Com isto, ela passa a funcionar, desde o princípio, como uma espécie de aparato de tradução da realidade em termos do ente simplesmente dado que o homem agora pensa ser, a entregar uma roupagem antropomórfica ao ente. Uma passagem do De Interpretatione de Aristóteles auxilia-nos na tarefa de esclarecimento de um tal movimento. Aristóteles afirma aí:

Sons falados são símbolos das afecções na alma, assim como marcas escritas são símbolos dos sons falados. E exatamente como marcas escritas não são o mesmo para todos os homens, tampouco o são os sons falados. No entanto, o que estes são, em primeiro lugar, signos de afecções da alma, é o mesmo para todos; e o fato de essas afecções serem similares a coisas atuais também é o mesmo. (Aristóteles 1998a, 16a 1-10. A)

Nesta passagem vemos, de maneira clara, o ponto de partida comum a uma série de concepções tradicionais da linguagem: a pressuposição dos entes na exterioridade como a origem do processo de constituição dos signos lingüísticos. O mundo exterior é pensado aí como produzindo o surgimento de afecções nas almas dos homens, à medida que sua fenomenalidade atua sobre essas almas e as mobiliza na formação de seus arranjos específicos. Esses arranjos não são da mesma natureza dos objetos exteriores, pois as afecções da alma não são idênticas aos entes que provocam seu aparecimento. Desta feita, eles são tomados em função de uma certa transposição (metaphéro) que traz consigo, necessariamente, uma certa modificação. Temos, inicialmente, o surgimento de afecções internas que se estabelecem através de uma abstração dos fenômenos. A essa abstração correspondem outras duas, que têm lugar subseqüentemente. A partir da formação das afecções nascem os sons falados enquanto "símbolos" dessas afecções, assim como a partir dos sons falados vêm à tona as marcas escritas enquanto "símbolos" desses sons. Neste contexto, além disto, o termo "símbolo" não indica senão o caráter transformador inerente ao processo de surgimento de afecções, sons falados e marcas escritas. A palavra "símbolo" provém do grego sumbállo,que significa, literalmente, reunir, conjugar coisas diversas. Os sons da fala e as marcas escritas são símbolos porque reúnem, em sua unidade, entidades lingüísticas e não-lingüísticas. Essa reunião não tem lugar de maneira arbitrária no interior da alma, mas pressupõe, sim, em sua dimensão mais primordial, a existência de um suporte ontológico para ela. Como Aristóteles procura mostrar de forma reiterada no livro IV de sua Metafísica, só podemos falar sobre os entes em geral porque eles significam, necessariamente, alguma coisa, e porque esta sua significação sempre está ancorada em uma entidade única, em uma ousía.5 No entanto, uma vez que só alcançamos uma tal entidade em meio à significação que ela tem para nós, o processo de sua enunciação implica, inexoravelmente, a paulatina assunção de crité-rios internos para a sua determinação. Por mais que a aposta da filosofia clássica seja marcada em muito pela possibilidade de se dizer plenamente o que é, os seus próprios pressupostos parecem impor a inserção cada vez mais intensa da interioridade humana como medida para a delimitação do ser dos entes. Neste sentido, todas as concreções lingüísticas parecem condenadas a um incontornável antropomorfismo. Conquanto nem as afecções da alma, enquanto pontos de partida dos sons da fala, nem os sons da fala, enquanto pontos de partida das marcas escritas, se mostrem como reproduções idênticas da exterioridade, a linguagem sempre se perfaz através de uma construção da percepção. As coisas são tal como parecem para minha percepção e a linguagem não faz senão permitir a expressão deste modo de aparecimento. Assim, a linguagem mesma não chega a encontrar outra concretude senão a que é derivada da conformação do ente segundo os moldes antropomórficos da percepção, da alma, da subjetividade. Exatamente como está formulado de maneira exemplar em uma passagem do escrito póstumo de Friedrich Nietzsche, Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral (de 1873), que procura retirar as conseqüências do subjetivismo inerente às concepções tradicionais de linguagem:

O que é uma palavra? A reprodução de um impulso nervoso em sons. Deduzir ulteriormente, porém, uma causa exterior a nós mesmos a partir de um impulso nervoso é justamente o resultado de uma aplicação falsa e injustificada do princípio da razão sufi-ciente. Como é que poderíamos, se a verdade estivesse junto à gênese da linguagem, se o ponto de vista da certeza estivesse decisivamente sozinho junto às designações, como é que poderíamos ainda dizer: a pedra é dura: como se "duro" fosse algo que conhecêssemos de outro modo e não apenas como um estímulo completamente subjetivo! (1997, KSA 1, Verdade e Mentira 1, pp.878-9)6

Mas essa concepção repousa em uma desconsideração do caráter ontológico, tanto do ser-aí quanto do mundo, e em uma conseqüente circunscrição da essência da linguagem à suposição do caráter originário do modelo dicotômico de uma alma (ulteriormente pensada como a subjetividade) que se deixa afetar pelo mundo (ulteriormente pensado como o conjunto maximamente abrangente dos objetos simplesmente dados ou como a mera objetividade).

De acordo com o que vimos acima, a asserção da linguagem como antropomorfização do ente provém de uma colocação do problema em termos da relação entre dois entes tomados como entes simplesmente dados: alma e mundo, percepção e ser, sujeito do conhecimento e objeto conhecido. A questão é que nem o sujeito está desde o princípio dado no real, nem o mundo é o conjunto maximamente universal dos entes simplesmente dados. Ao contrário, o sujeito e a objetividade só nascem a partir de um ocultamento da ek-sistencialidade7 como traço primordial do ser-aí e de uma completa cegueira frente à diferença ontológica entre seer e ente.8 No momento em que despertamos para um tal fato, abre-se uma segunda via de compreensão da linguagem: a via oriunda da "desantropomorfização mais originária do homem enquanto ser vivo simplesmente dado, `sujeito' e todas as outras coisas até aqui" (1998, p. 510). No que concerne a essa segunda via, uma outra passagem do Contribuições à Filosofia prepara o horizonte adequado de consideração:

Com a linguagem habitual que hoje é usada e esgarçada até o desgaste, a verdade do seer não se deixa dizer. Essa verdade pode ser afinal imediatamente dita, se toda linguagem é linguagem do ente? Ou pode ser inventada uma nova linguagem para o seer? Não. E mesmo se isto acontecesse e até sem a cunhagem de palavras artificiais, essa linguagem não seria uma que diz. Todo dizer precisa deixar surgir conjuntamente a possibilidade da escuta. Ambos precisam ter a mesma origem. Assim, só resta uma coisa: dizer a linguagem que cresceu maximamente nobre em sua unidade e força essencial, a linguagem do ente enquanto linguagem do seer. (Heidegger 1998, p. 78)

A passagem acima aproxima-nos da descrição heideggeriana da superação do pressuposto corrente de que a "linguagem é a primeira e mais ampla antropomorfização do ente". O texto inicia-se com a menção ao solo de enraizamento dessa superação: o fato de a verdade do seer não se deixar dizer pela linguagem habitual em sua ligação unilateral com os entes. A razão de ser desse fato repousa sobre um limite constitutivo da linguagem enquanto tal. A linguagem só está realmente em condições de dizer o ente porque ela só pode dizer o que de algum modo é. Como o seer não se confunde com um ente entre outros, nem se diferencia, tampouco, dos entes apenas em função de seu caráter supremo, a linguagem não pode dizer o seer. A linguagem! Não apenas a linguagem habitual em seu esvaecimento e opacidade peculiares, mas toda e qualquer possibilidade de concretização da linguagem. Neste sentido, a impossibilidade de a linguagem habitual hoje usada e esgarçada até o desgaste dizer o seer não pode implicar a criação de uma nova linguagem. Não é possível pensar, em última instância, em nenhuma linguagem que pudesse efetivamente dizer o seer, uma vez que essa linguagem o transformaria imediatamente em um ente entre outros. Mas isto significa que precisamos nos contentar com a linguagem habitual e cair sem travas no âmbito da linguagem corrente? A resposta é igualmente não. O que temos aqui não é nem a contraposição extrínseca entre uma linguagem decaída da qual precisamos escapar e uma outra, autêntica, que precisamos buscar, nem a mera constatação fatalista da unicidade da linguagem habitual. Tem lugar, muito mais, uma mudança que acontece em um outro âmbito e envolve elementos constitutivos de toda linguagem. As palavras de Heidegger são elucidativas quanto a isto: "Todo dizer precisa deixar surgir conjuntamente a possibilidade da escuta. Ambos precisam ter a mesma origem. Assim, só resta uma coisa: dizer a linguagem que cresceu maximamente nobre em sua unidade e força essencial, a linguagem do ente enquanto linguagem do seer". Quais são, contudo, os traços essenciais desta dimensão da linguagem? Em que medida a linguagem pode permanecer a linguagem do ente, e, não obstante, mostrar-se, ao mesmo tempo, como linguagem do seer?

De acordo com o que vimos acima, não se trata aqui, absolutamente, de criar uma nova linguagem que viesse finalmente trazer o seer para o interior de suas possibilidades de nomeação. Exatamente como está expresso claramente no texto: "mesmo se isto acontecesse e até sem a cunhagem de palavras artificiais, essa linguagem não seria uma que diz". Ainda que procurássemos por uma nova possibilidade de determinação da linguagem em vistas ao seer, essa linguagem não conseguiria efetivamente dizê-lo. Como pensar, então, a linguagem do ente enquanto linguagem do seer? A resposta a esta pergunta aponta para o cerne mesmo da compreensão heideggeriana do ser-aí. O ser-aí não é um ente simplesmente dado entre outros que possui como diferença específica o fato de possuir linguagem ou de ser racional. Muito ao contrário, ele se mostra como um ek-sistente que sempre precisa conquistar uma vez mais a si mesmo enquanto o poder-ser que é. Exatamente como se encontra formulado paradigmaticamente no parágrafo 9 de Ser e tempo:

A "essência" do ser-aí reside em sua existência. As características que se podem extrair deste ente não são, portanto, "propriedades" simplesmente dadas de um ente simplesmente dado que possui esta ou aquela "configuração". As características constitutivas do ser-aí são sempre modos possíveis de ser e somente isso. Toda modalidade de ser deste ente é primordialmente ser. Por isto, o termo "ser-aí", reservado para designá-lo, não exprime a sua qüididade como mesa, casa, árvore, mas sim o ser. (Heidegger 1995, § 9, pp. 56-7)

O ser-aí não possui, em outras palavras, nenhuma propriedade substancial constituída a priori, mas experimenta o seu ser através de uma certa abertura existencial. Essa abertura articula o ser-aí com o seu mundo e faz com que ele retire desse mundo determinado as possibilidades fáticas de sua realização. Tudo o que o ser-aí pode e não pode está originariamente enraizado no mundo, de modo que ele nunca está em condições de abstrair-se completamente daí:

Mundo enquanto "totalidade" não é nenhum ente, mas isto a partir do que o ser-aí dá a entender para si em relação a que ente e como ele pode assumir uma atitude frente ao ente. Assim, o fato de o ser-aí dar a entender para "si" a partir de "seu" mundo significa: neste advir-a-ele a partir do mundo temporaliza-se o ser-aí enquanto um si próprio, enquanto um ente que lhe é entregue para ser. No ser desse ente está em jogo o seu poder-ser. O ser-aí é de um tal modo que ele existe em virtude de si. Mas se somente em meio ao ultra-passamento em direção ao mundo temporaliza-se o si próprio, então o mundo se mostra como isto em virtude de que o ser-aí existe. O mundo possui o caráter fundamental do em virtude de... e isto no sentido originário de que ele fornece prévia e primordialmente a possibilidade interna para todo e qualquer "por tua causa", "por causa dele", "por causa disto" etc. (1997c, p. 157)

A questão é que o mundo agora cristalizado em um conjunto de relações e referências significativas aparentemente estáveis também traz sempre consigo uma força de projeto. Todas as possibilidades de configuração de mundo jamais se resumem a uma possibilidade particular qualquer, de modo que toda e qualquer possibilidade particular de uma tal configuração já sempre encerra em si algo silenciado. A partir disto mesmo que se silencia, o mundo encontra a sua essência historial.

O parágrafo acima colocou-nos diante de dois caminhos de realização do ser-aí, que possuem uma ressonância de fundo com aquelas duas dimensões da linguagem anteriormente citadas. Em primeiro lugar, vimos que o conceito de ser-aí implica essencialmente um certo enraizamento no mundo. Tudo o que o ser-aí é e pode ser surge necessariamente através da abertura de possibilidades que têm lugar a cada vez em seu mundo. Contra isto, o ser-aí não pode nada. No entanto, esta facticidade do mundo não impõe um modo de ser único e homogêneo a todo ser-aí. Ao contrário, o ser-aí sempre pode ou bem se perder no âmbito impessoal das relações e referências já critalizadas em seu mundo cotidiano, ou bem assumir sobre si o fardo do ser-aí que é em sintonia com o que está silenciado em seu mundo e que, ao mesmo tempo, espera para ser acordado.9 À medida que age desta maneira, ele não traz simplesmente à fala o silen-ciado, mas libera a sua ação para a experiência do silêncio e para o que precisa nascer do silêncio. Ao invés de se debater em meio a caminhos existenciários usados e esgarçados até o limite, ele redescobre a essencialidade de sua existência. No momento em que uma tal redescoberta acontece, vem à tona um modo diverso de compreensão da linguagem. A linguagem deixa de se mostrar aí como a mera atualização de significações e sentidos já previamente delineados em seu mundo, passando a se movimentar originariamente no interior do âmbito mesmo de criação de significações e sentidos. No interior desse âmbito, o ser-aí conquista a si mesmo enquanto ser-aí.

O ser-aí disperso em meio ao impessoal experimenta fundamentalmente a linguagem como um manancial de significações simplesmente dadas e não faz senão usar a linguagem através da mera reprodução dessas significações. Exatamente como se encontra expresso em Ser e tempo: o próprio está de início e na maioria das vezes entregue a "possibilidades existenciárias, que `circulam' nas interpretações públicas medianas e respectivamente hodiernas do ser-aí (Heidegger 1995, § 74, p. 506).10 Essa entrega primordial retira dele, imediatamente, a capacidade de decidir-se por si mesmo enquanto um ser-aí e, conseqüentemente, de despertar para o que sempre a cada vez se retrai em toda conformação de um mundo determinado. A apropriação de si mesmo por parte do homem enquanto um ser-aí repousa simultaneamente sobre o momento dessa decisão, assim como libera o ser-aí para o despontar da linguagem que nasce do aquiescimento à retração. Mas o que se retrai é o seer em sua diferença constitutiva. À medida que o seer se retrai, ele revela, simultaneamente, o abismo em toda configuração do ente na totalidade. E é do abismo que provém a força historial da linguagem em sua escuta aos caminhos possíveis da decisão. Tal como nos diz Márcia Schuback em um texto intitulado "A poética da linguagem":

Pensar e dizer ser não significam apenas um reconhecer-se como uma espécie de "produto" do ser. Pensar e dizer ser não são apenas respostas e correspondências ao apelo de ser, mas uma compreensão de que pensar e dizer ser são respostas e correspondências ao apelo de ser. Isso significa que ser é tarefa e destino, jamais dado ou fato. Ser resiste a toda definição substancial, permitindo somente a infinita infinição de ser. Por isso, pensamento e linguagem não somente se realizam desde o ser, mas também se realizam em direção ao ser. Pensamento e linguagem não somente espelham, refletem ser, mas con-sumam, conduzem ao sumo, ao extremo, "a referência do ser à essência do homem",11 "a manifestação de ser". Heidegger fala do pensamento como a ação de restituir (darbieten), de volta para o ser, o que o ser dá a pensar. Restituir ao ser a doação de ser, receber da vida para devolver à vida, implica uma elaboração. Na "Carta sobre o humanismo", Heidegger explica essa restituição do pensamento com as seguintes palavras: "essa restituição consiste em que, no pensamento, o ser se torna linguagem". (Schuback 2002, p. 88)12

Em outras palavras, o que temos no interior da linguagem do seer é realmente uma interpenetração plena entre dizer e escuta. O dizer acolhe o envio do seer, ao mesmo tempo em que aquiesce ao seu necessário recolhimento: ele diz, por um lado, o ente, mas retira, por outro, o poder de mostração do ente do silêncio abismal inerente ao seer. Neste momento, portanto, a linguagem que diz e precisa dizer tão-somente o ente passa a se mostrar como linguagem do seer. Não porque trouxe finalmente à expressão o seer, e sim porque a força de nomeação do ente nasceu aqui da escuta ao silêncio da retração. Mas o que significa isto afinal? O que está, em última instância, em jogo com a unidade originária entre dizer e escuta? Em que medida essa unidade caracteriza a "linguagem que cresceu maximamente nobre em sua unidade e força vital" (Heidegger 1998, p. 78)? Uma resposta direta a estas perguntas está presente no parágrafo das "Contribuições" citado no começo deste texto. A linguagem que diz e precisa dizer tão-somente o ente mostra-se enquanto linguagem do seer no momento em que deixa de ser "a primeira e mais ampla antro-pomorfização do ente" para ser a "desantropomorfização mais originária do homem enquanto ser vivo simplesmente dado, `sujeito' e todas as outras coisas até aqui".

A linguagem do seer não possui nada em comum com o aparecimento de uma nova linguagem. Ao contrário, ela constrói-se através de uma determinada transformação que tem lugar no interior da própria linguagem do ente. De acordo com o que vimos no início deste texto, a linguagem do ente repousa sobre "a primeira e mais ampla antro-pomorfização do ente". Isto se dá em virtude de uma compreensão específica da natureza da linguagem. A linguagem é tradicionalmente assumida como o âmbito de articulação entre dois entes simplesmente dados e não propicia, aí, senão a superação do abismo radical que separa a princípio esses entes: o sujeito e o mundo. Conquanto a superação tem lugar através de uma incessante tradução do fenômeno em linguagem perceptiva (anímica, subjetiva), ela traz consigo necessariamente uma certa antropomorfização do ente. Essa antropomorfização enraíza-se primariamente em uma assunção da percepção (alma, subjetividade) como determinante para a constituição do ser do homem. O que dá sustentação a esta concepção da linguagem, porém, não é senão o seu ponto de partida hipotético. Neste contexto, deriva-se a linguagem de uma estrutura dicotômica aparentemente originária: a posição de um ente perceptivo simplesmente dado em face do mundo. No que diz respeito a essa derivação, a afirmação heideggeriana citada no final do último parágrafo de Contribuições à Filosofia trabalha na direção contrária. A linguagem não implica "a primeira e mais ampla antropomorfização do ente", mas sim a "desantropomorfização do homem enquanto ser vivo simplesmente dado, `sujeito' e todas as outras coisas até aqui". O que ele tem em vista com essa desantropomorfização aponta para a ruptura com o modo tradicional de colocação da questão sobre o ser do homem.

Através de uma desconsideração completa do caráter ek-sistencial do homem e de sua conseqüente diferença frente aos 7outros entes em geral, o pensamento metafísico sempre tomou o homem como um ente entre outros. Assim, a Metafísica empenhou-se, desde o princípio, por determinar a hominidade do homem pela mesma via de determinação qüiditativa desses outros entes. Ele foi definido enquanto ser vivo que possui linguagem, animal racional, sujeito, consciência etc. No que concerne a estas definições, a desantropomorfização do homem produz a supressão de sua pretensa constituição ontológica como um ente simplesmente dado entre outros e abre o espaço para a conquista plena de si mesmo enquanto ser-aí. Uma passagem da preleção de 1929/30 Conceitos fundamentais da Metafísica (mundo - solidão - finitude) deixa claro o salto que precisa ser dado em direção a uma tal conquista:

Pelo que tem de se decidir o ser-aí? Pela efetiva recriação para si mesmo do saber autêntico sobre em que consiste o que é propriamente possibilitador de seu si-próprio. E o que significa isto? Que para o ser-aí enquanto tal sempre precisa ser uma vez mais iminente o instante, no qual ele é trazido para diante de si mesmo enquanto o propria-mente obrigatório. Diante de si mesmo - não como um rígido ideal e um modelo originário firmemente fixado, mas diante de si mesmo como o que arranca para si uma vez mais justamente a possibilidade própria e precisa se assumir em uma tal possibilidade (...). É preciso libertar a humanidade no homem, deixar que o ser-aí se torne essencial nele. Esta libertação do ser-aí no homem não significa colocá-lo em um âmbito de arbitrariedade, mas lançar no homem a carga do ser-aí enquanto o seu fardo mais próprio. Somente quem pode se dar verdadeiramente um fardo é livre. (Heidegger 1996, p. 247)13

Heidegger funda o acontecimento da desantropomorfização do homem enquanto um ente simplesmente dado na textura de um certo instante. Nesse instante, o que se tem não é outra coisa senão uma determinada confrontação do homem com o que ele propriamente é. O homem descobre-se aí, finalmente, diante de sua possibilidade mais efetiva, ao mesmo tempo em que retira dessa possibilidade mesma a necessidade constitutiva de seu existir. À medida que desperta para essa necessidade e obrigatoriedade características de seu ser-aí, ele não se vê lançado em uma incontornável sujeição a forças extrínsecas. Ao contrário, a necessidade caminha aqui lado a lado com uma libertação da humanidade do homem, com o deixar o ser-aí tornar-se essencial nele. Portanto, o instante da desantropomorfização do homem é marcado por um acontecimento apro-priativo. Nele dá-se o acontecimento de uma apropriação de si por parte do homem enquanto ser-aí. No interior desse acontecimento, o homem ganha o cerne da linguagem do seer e recebe dela o aceno em direção à conquista de seu ser próprio. A linguagem traz aqui à tona a diferença ontológica como o lugar originário de realização do ser-aí, abrindo-o ao mesmo tempo para a plena conquista de seu poder-ser através da escuta aos envios do seer e promovendo, enfim, a compreensão da liberdade como o "ab-ismo do ser-aí"(Heidegger 1997c, p. 174). Ao ser tocado através da linguagem pelo seer em sua retração fundamental e liberado para a participação no horizonte aberto de configuração dos entes, o homem perde o seu caráter de coisa presente por si subsistente e apropria-se de si mesmo como ser-aí. Em meio a essa apropriação, também se produz uma desantropomorfização do ente, uma vez que este se revela agora em sintonia com a verdade do seer. O homem enquanto ente simplesmente dado não é mais a medida de todas as coisas, mas essa medida passa a se mostrar em meio ao acontecimento através do qual ele se apropria de si mesmo e de sua transcendência enquanto ser-aí.14

Nós alcançamos nos últimos parágrafos uma tematização prévia da diferença entre a concepção corrente da linguagem e a concepção heideggeriana. Essa tematização aproximou-nos de uma compreensão efetiva da relação presente na passagem inicialmente citada entre "linguagem" e "acontecimento apropriativo". O acontecimento apropriativo é co-originário à linguagem do seer, porque a apropriação de si mesmo por parte do homem enquanto ser-aí o projeta ek-sistencialmente para a já descrita tensão entre dizer e escuta. Aberto para a linguagem como o solo de enraizamento do silêncio do que se recusa, o homem assume a si mesmo como ser-aí e conquista, através disto, o seu lugar junto aos envios do seer. Nas palavras de Heidegger no parágrafo 135 das Contribuições, intitulado "A essencialização do seer enquanto acontecimento apropriativo (a ligação entre o ser-aí e o seer)":

A essencialização do seer enquanto acontecimento apropriativo encerra em si o acontecimento da apropriação do ser-aí. De acordo com esta formulação, o discurso acerca de uma ligação do ser-aí com o seer é, tomando-se ao pé da letra, equivocada. Este discurso dá a entender que o seer se essencializa "por si" e que o ser-aí empreende uma ligação com ele. A ligação do ser-aí com o seer pertence à essencialização do seer mesmo, o que também pode ser dito da seguinte forma: o seer precisa do ser-aí, não se essencializa absolutamente sem o acontecimento desta apropriação.15

A linguagem do acontecimento apropriativo implica, por conseguinte, o acontecimento da apropriação do ser-aí em meio à essencialização do seer.16 Portanto, perguntamos: como se dá, afinal, uma tal essencialização? Em que medida é possível realmente afirmar que o seer precisa do ser-aí?

No começo da passagem inicialmente citada do último parágrafo do Contribuições à Filosofia, deparamo-nos com uma descrição dos elementos em jogo na transformação da linguagem em linguagem do acontecimento apropriativo. Heidegger diz-nos aí: "Quando os deuses clamam pela terra e no clamor ressoa um mundo; quando o clamor assim se deixa evocar como ser-aí do homem, então a linguagem se mostra como palavra histórica, fundadora de história" (Heidegger 1998, p. 510). Nessa passagem vêm à luz alguns dos elementos estruturais do movimento de essencialização do seer, assim como se revela o traço primordial da articulação entre este movimento e o ser-aí. A menção a um certo clamor dos deuses pela terra coloca-nos diante de um dos conceitos heideggerianos mais difíceis de serem compreendidos em seu conteúdo significativo próprio: o conceito de terra. Esse conceitopossui um lugar central na construção do pensamento heideggeriano posterior à virada e é decisivo para uma visualização efetiva da comum-pertencência originária entre a essencia-lização do seer e o ser-aí. Neste sentido, precisamos empreender agora, antes de mais nada, uma rápida tematização desse conceito. Para tanto, um pequeno trecho do ensaio "A origem da obra de arte" fornece-nos uma base primária de sustentação:

O mundo é a abertura se abrindo, a abertura das amplas vias das decisões simples e essenciais no destino de um povo histórico. A terra é o vir à tona a nada impelido do que constantemente se fecha e desta forma oculta. Mundo e terra são essencialmente diversos um do outro, mas jamais encontram-se cindidos. O mundo funda-se na terra e a terra transpassa o mundo com sua vigência. Mas a ligação entre mundo e terra não se definha absolutamente em meio à unidade vazia dos contrapostos que não se deixam em nada afetar um pelo outro. Em seu repouso sobre a terra, o mundo aspira elevar-se para além desta última. Ele não tolera, enquanto o que se abre, nada que se fecha. Contudo, a terra, enquanto a ocultadora, tem a tendência de inserir e manter em si respectivamente o mundo. (Heidegger 1997a, p. 34)

Terra e mundo não são duas dimensões mutuamente excludentes, nem tampouco meros pólos de uma contraposição formal. Ao contrário, eles dão concretude a uma "contenda originária". Exatamente como explicita Heidegger logo a seguir no texto "A origem da obra de arte": "o entrechoque de mundo e terra é uma contenda" e "na contenda essencial os contendores sempre alçam a cada vez um ao outro na auto-afirmação de sua essência".17 No que concerne a essa contenda, temos simultaneamente a unidade dual de uma mesma dinâmica de realização. Por um lado, o seer se envia para o ente que pode ser ek-sistencialmente aberto para o horizonte de toda e qualquer abertura. O envio dá-se unicamente em relação a este ente, uma vez que só ele pode alcançar a transcendência deste horizonte e entregar a esta o campo de jogo finito de sua existência. Com isto, o acontecimento desse envio promove a instauração de um modo possível de configuração do aberto e o conseqüente surgimento de uma medida vinculadora dos mais diversos comportamentos do ser-aí, tanto em relação aos outros entes quanto em relação a si mesmo.18 Tudo o que o ser-aí é e pode-ser ganha corpo originariamente através de um enraizamento nesta medida; e mesmo as decisões contra ela não são, no fundo, senão decisões em favor dela. Mundo é o termo heideggeriano para designar o aparecimento de um tal medida. Ele sempre vem junto com um tal aparecimento, se instaurando sempre a cada vez na própria abertura. Por isto mesmo, ele aponta justamente para "a abertura se abrindo", para "a abertura das amplas vias das decisões simples e essenciais no destino de um povo histórico". A designação das decisões em jogo na dinâmica de constituição de mundo como "simples e essenciais no destino de um povo histórico" não encerram, por sua vez, nenhum elemento complicador. Conquanto o ser-aí retire do seu mundo específico a medida determinante de todos os seus comportamentos e essa medida aponta para o horizonte histórico-existencial comum a todos os seres-aí pertencentes a este horizonte, conquanto mesmo as possibilidades singulares de decisão em nome de um mundo marcado pela conquista de sua solidão radical precisem ser necessariamente arrancadas do poder-ser que o mundo efetivamente é, e, finalmente, conquanto a própria singularização esteja imediatamente articulada com o envio comum, não podemos senão afirmar as decisões em geral como "simples e essenciais no destino de um povo histórico". As decisões simples e essenciais de um povo em direção a si próprio implicam, em outras palavras, a constituição historial de uma medida para todos os comportamentos, ao mesmo tempo em que essa medida se confunde com o mundo, como horizonte respectivo desses comportamentos. Mas a questão não se resume à formação de um horizonte histórico específico, que encerra em si mesmo um conjunto de significações e compreensões previa-mente dadas. O que temos aqui não é, de modo algum, a suposição da subsistência de ontologias regionais dotadas de um processo histórico singular e a circunscrição de todo o problema à análise dessas ontologias em suas peculiaridades intraduzíveis.19 Heidegger não está simplesmente lançando mão de um pressuposto antropológico, buscando, através daí, a supressão de todo um âmbito metafísico de reflexão. Ao contrário, ele está tentando libertar esse âmbito de todo o entulhamento de sentidos aí vigente, a partir de um questionamento relativo à sua essência. Esse questionamento abre o espaço para a afirmação de um elemento co-originário à abertura. Heidegger diz-nos na passagem supracitada: "A terra é o vir à tona a nada impelido do que constantemente se fecha e desta forma oculta".

O movimento de essencialização do seer não envolve apenas a constituição do aberto e o aparecimento de uma medida vinculadora de todos os comportamentos possíveis do ser-aí, mas também a retração do que incessantemente se envia para uma tal constituição. Nessa retração, o que temos não é o não-ser absoluto em sua máxima negação de toda determinação de ser, o nada tomado a partir do paradigma do ente como o não-ente por excelência. Tal como Heidegger afirma logo no início do ensaio "Da essência do fundamento": "O Nada é a negação do ente, e, assim, o ser experimentado a partir do ente. A diferença ontológica é o não entre ente e ser. Mas exatamente como o ser enquanto o não ao ente não é um nada no sentido do nihilnegativum, a diferença ontológica enquanto o não entre ente e ser também não é apenas a configuração de uma distinção do entendimento (ens rationis)" (Heidegger 1997c, p. 123). A retração e a diferença ontológica daí emergente não são, em última instância, passíveis de serem estabelecidas pelo entendimento a partir da mera negação do ente; elas possuem muito mais uma positividade própria. Elas não são instauradas através do acontecimento da negação, elas tornam inversamente possível a dinâmica de realização da abertura. Portanto, a terra vem realmente à tona. Não como um dos elementos integrantes do próprio horizonte que o mundo é, mas como a dimensão velada que traz em si mesma a possibilidade desse horizonte. Desta feita, no vir à tona de terra, esta permanece muito mais silenciada enquanto o solo de enraizamento de toda e qualquer decisão dessa possibilidade. Michel Haar descreveu este estado de coisas em um trecho do livro "Le chant de la tèrre", que visa diferenciar as noções de physis e de terra: "Se a Phusis grega corresponde antes ao esclarecimento do ser, à iluminação, a terra reenvia antes ao velamento (Verborgenheit, Bergung) essencial que pertence a todo desvelamento e que o desvelamento ignora" (Haar 1998, p. 108). A terra não nomeia, em suma, o solo sobre o qual andamos ou o planeta que habitamos, mas a vigência irrepresentável da retração. Essa vigência repercute em si a recusa constitutiva do seer em todo desvelamento, assim como transpassa originariamente a sua força de mostração. Assim, o clamor pela terra requer a superação da mera disponibilidade dos entes presentes em sua aparição e a conquista de uma escuta em relação ao que se cala em toda fala dos entes. Em que medida esta concepção possui uma relação de fundo com a linguagem do acontecimento apropriativo, podemos acompanhar agora em um rápido e derradeiro movimento.

"A linguagem funda-se no silêncio." Com esta sentença, ante-riormente citada, Heidegger não procura marcar a supressão total da linguagem em meio à sua fundação. A linguagem não se funda aí, absolutamente, na ausência total de palavras, mas sim no calado constitutivo de toda linguagem do seer. No que concerne a esse silêncio, o autor nos fala a princípio de um certo clamor dos deuses pela terra e da ressonância desse clamor no mundo. Os deuses constroem aí sua morada em meio à contenda originária entre mundo e terra. Mas os deuses não são aqui entidades religiosas simplesmente dadas, que surgem para dirimir a ferida humana da existência. Como o deus heraclítico, eles são o ponto de unificação de uma tensa harmonia de dois contrários: velamento e desvelamento.20 Eles pertencem, por um lado, à physis, exatamente como se abrem primevamente para o que se retrai em todas as suas configurações. À medida que dão concretude ao sagrado enquanto o nome do que escapa a toda aparição, eles se deixam tocar pelo clamor da terra na força de coesão de seu retraimento. Neste sentido, o que temos, em seguida, é a abertura de um determinado horizonte na totalidade e a exposição ek-sistencial do ser-aí para ele: uma decisão do ser-aí em sua comum-pertencência a mundo e terra, expansão e retração. Através dessa decisão, o ser-aí apropria-se de si mesmo enquanto ser-aí, ao mesmo tempo em que se deixa apropriar pelo seer em um de seus envios possíveis. Dessa dupla apropriação, o dizer ganha, conseqüentemente, a dimensão da "palavra histórica, fundadora de história"; e isto não porque o ser-aí altera especificamente um estado de coisas previamente dado e constituído, mas porque a existência singular do ser-aí passa a vigorar em meio à articulação com o poder historial da retração. Dessa dupla apropriação surge, finalmente, a linguagem do ente enquanto linguagem do seer. Heidegger explicita o caráter próprio desta linguagem em uma outra passagem do Contribuições: "Todo e qualquer dizer do seer precisa nomear (portanto) o acontecimento apropriativo, aquele entre característico da relação entre deus e ser-aí, mundo e terra, alçando, ao mesmo tempo, decisivamente, entre-sentidos, o entre-fundamento enquanto ab-ismo em meio à obra afetivamente afinadora" (Heidegger 1998, p. 484). descreve, assim, em última análise, o despontar de uma dupla apropriação: a apropriação de si mesmo por parte do homem enquanto ser-aí e a conseqüente apropriação do ser-aí pelo seer na historicidade de seus envios. No momento em que essa dupla apropriação tem lugar, "a linguagem se mostra como palavra histórica, fundadora de história". Não porque promove de fora certas transformações na realidade simplesmente dada, mas sim porque se mostra como o campo de jogo das decisões originárias do seer em meio à contenda entre mundo e terra. A linguagem do acontecimento apropriativo implica, com isto, a história do seer, exatamente como requisita o destino aberto para os desdobramentos dessa história. A tão falada virada (Kehre) do pensamento heideggeriano vive da força desta articulação e não é senão virada em direção a uma tal linguagem.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: apto103.1@botanicdream.com.br

Recebido em 02 de maio de 2002
Aprovado em 12 de setembro de 2002

 

 

1 O termo "seer" remete-nos a um recurso utilizado por Heidegger para diferenciar a pergunta metafísica pelo Ser e o pensamento interessado em colocar uma vez mais a questão acerca do sentido do ser. Enquanto a Metafísica, desde o seu primeiro começo, com Platão e Aristóteles, compreende o ser como o ente supremo (óntos ón), o pensamento imerso no outro começo da filosofia aquiesce radicalmente à impossibilidade de transformar o ser em objeto de tematização. Para acompanhar essa diferença, Heidegger cria uma distinção pautada no étimo originário do verbo "ser" em alemão. Surgem, assim, os termos "Sein" e "Seyn". Nós traduzimos esses termos, respectivamente, por "ser" e "seer", em função do fato de a grafia arcaica de ser em português ser feita com duas letras "e". Quanto a esse fato, cf. Augusto Magne, A demanda do Santo Graal, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1944, pp. 37-9, entre outras.
2 Cf. os livros Tratado sobre a origem da linguagem (Abhandlung über den Ursprung der Sprache), de Herder (1988), e Escritos seletos (Ausgewählte Schriften), de Hamman (1987).
3 Quanto à compreensão heideggeriana do termo "origem", cf. o ensaio "A origem da obra de arte", em Caminhos da floresta (Holzwege). Heidegger afirma, logo na abertura do texto: "Origem significa aqui aquilo, desde onde e através de que uma coisa é o que é e como é" (GA 3, 1997a, p. 6). Quanto ao termo "essência", cf. o ensaio "A essência da verdade", em Marcas do caminho (Wegmarken). Heidegger diz-nos aí: " `Essência' é aí compreendida como o fundamento da possibilidade interna do que inicialmente e de maneira universal é assumido como conhecido" (GA 9, 1997b, p. 187). Cf. também Michel Haar, O canto da terra (Le chant de la terre), 1998, pp. 166-67.
4 Cf., quanto a este ponto, os parágrafos 12 e 13 de Ser e tempo.
5 Cf. por exemplo Aristóteles 1988b, 1006a-1007a.
6 É importante ressaltar aqui o fato de Nietzsche ainda estar, neste tempo, sob a influência marcante do pensamento kantiano e apresentar, por conseguinte, o problema da linguagem a partir da dicotomia sujeito/objeto. Estas injunções só se alteram efetivamente a partir do pensamento da vontade de poder.
7 O próprio conceito de ek-sistência traz consigo uma superação do pressuposto moderno de que o ser-aí se encontra primeiramente isolado em uma subjetividade autônoma e a priori, que só ulteriormente assume relações com a objetividade. Ao hifenizar o termo "existência", Heidegger realça o fato de o ser-aí ser constitutivamente um ser-para-fora: jogado no mundo, o ser-aí se encontra imediatamente disposto para o mundo enquanto o espaço transcendental de constituição do poder-ser que é. Neste sentido, ele nunca é primeiro dentro para depois ser fora, mas já é sempre fora.
8 Cf. Ser e tempo, § 43-a, "Ser-aí, mundaneidade e realidade (realidade enquanto problema do ser e a demonstrabilidade do `mundo exterior')", 1995, pp. 272-4.
9 Cf., quanto a este ponto, Heidegger 1995, § 29.
10 Ainda em Ser e Tempo, Heidegger afirma: "A interpretação preparatória das estruturas fundamentais do ser-aí em seu modo de ser mais próximo e mediano, no qual ele é antes de tudo histórico, há de revelar o seguinte: o ser-aí não tem somente a tendência de de-cair no mundo em que está e é, e de interpretar a si mesmo a partir da luz que dele emana. Juntamente com isto, o ser-aí também de-cai em sua tradição, apreendida de modo mais ou menos explícito. A tradição lhe retira a capacidade de se guiar por si mesmo, de questionar e escolher a si mesmo" (Heidegger 1995, § 6, pp. 28-9).
11 Heidegger 1997d, p. 24.
12 Idem, p. 24.
13 Cf. também pp. 257-58 e Ser e tempo, § 29.
14 É interessante perceber como o termo "acontecimento apropriativo" vem se preparando no interior da obra de Heidegger. Tal como vimos acima, esse termo diz fundamentalmente "o acontecimento da apropriação de si mesmo por parte do homem enquanto ser-aí". Esse acontecimento implica uma transformação radical no homem, uma mudança de uma concepção do homem enquanto ente simplesmente dado para a sua assunção enquanto ser-aí. Pois justamente essa transformação é descrita, por exemplo, na parte final da preleção de 1929/30, Die Grundbegriffe der Metaphysik (Welt - Einsamkeit - Endlichkeit), através da expressão "acontecimento fundamental" (Grundgeschehen). Cf. Heidegger 1996, GA 29/30, § 74, "Formação de mundo enquanto acontecimento fundamental do ser-aí".
15 Ibid, p. 254.
16 Cf. a anotação de Ser e tempo presente no parágrafo 29. Heidegger diz-nos aí: " `Peso': o que há para portar; o homem está entregue à responsabilidade do ser-aí, super-apropriado por ele. Portar: assumir a partir do pertencimento ao ser mesmo". Aqui já é possível perceber embrionariamente o pensamento do acontecimento apropriativo.
17 Idem.
18 Cf., quanto às noções de abertura e de medida vinculadora, o ensaio "Da Essência da Verdade" (Heidegger 1997b, GA 9, Wegmarken).
19 Cf. Quine 1993 e 1997.
20 Heráclito 1996, Fragmento 67, Diels/Kranz, p. 165: "Deus é dia noite, inverno verão, guerra paz, sobriedade fome".