Natureza humana
ISSN 1517-2430
Nat. hum. v.5 n.1 São Paulo jun. 2003
ARTIGOS
Corpos em fabricação
The bodies under construction
Oswaldo Giacoia Junior
Departamento de Filosofia. IFCH/Unicamp
RESUMO
O objetivo do presente artigo é, com base em contribuições retiradas da filosofia de Nietzsche, refletir sobre questões éticas de atualidade, concernindo o sentido do progresso tecnológico e o futuro da natureza humana.
Palavras-chave: Ética, Liberdade, Dignidade, Genética, Biotecnologia, Natureza humana, Futuro pós-humano.
ABSTRACT
The aim of this article is to consider, on the basis of some theoretical views in Nietzsche's philosophy, ethical questions of the present time concerning the sense of the technological progress and the future of the human nature.
Keywords: Ethics, Freedom, Dignity, Genetics, Bio-technology, Human nature, Post human future.
"Leib bin ich ganz und gar und Nichts ausserdem"1
O espírito da moderna racionalidade técnico-científica recebeu sua enunciação, em formulação programática, em dois textos que figuram como precursores documentos germinais da grande época das Luzes, proclamando o advento de uma nova figura do mundo.
Num deles encontramos a promessa contida no The New Organon, de Francis Bacon, de acordo com a qual, por meio da nova ciência e da técnica que dela decorre, a humanidade teria seu entendimento emancipado, alcançando a maioridade da razão, bem como o domínio sobre a natureza; esta, com isso, se "vê obrigada a conceder o pão à humanidade; o pão, isto é, os meios de vida" (Bacon 1960, p. 267).
No extremo oposto do empirismo inglês - embora comungando com ele no mesmo otimismo -, o racionalismo cartesiano dá voz àquela mesma percepção de Bacon, a consciência de que já era passado o tempo das estéreis disputas escolásticas, de que se tratava, então, de proclamar a virtude emancipatória de uma ciência nova.
Com noções gerais relativas às matemáticas e às ciências da natureza, Descartes, por sua vez, celebrava o advento dos novos tempos com a perspectiva de:
[...] conhecendo a força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos cercam, tão distintamente como conhecemos os diversos misteres de nossos artífices, poderíamos empregá-los da mesma maneira em todos os usos para os quais são próprios, e assim nos tornar como que senhores e possuidores da natureza. (Descartes 1983, p. 63)
Tal como se atesta nessa inspiração dos pioneiros da moderna Aufklärung, um otimismo triunfalista está colocado na base do credo científico desses pensadores: a razão, com base na ciência e na técnica que dela decorre, pode enfrentar e resolver com sucesso os mais importantes problemas humanos, de modo a garantir o domínio sobre as forças da natureza, assim como realizar a justiça nas relações entre os homens.
Partilhando, a seu modo, desse mesmo espírito dos novos tempos, e tendo em vista as imensas e desconhecidas virtualidades do corpo, Spinoza formulava, em sua Ética, a seguinte constatação:
Ninguém, na verdade, até o presente, determinou o que pode o corpo, isto é, a experiência não ensinou a ninguém, até ao presente, o que, considerado apenas como corporal pelas leis da Natureza, o corpo pode fazer e o que não pode fazer, a não ser que seja determinado pela alma. Efetivamente, ninguém, até ao presente, conheceu tão acuradamente a estrutura do corpo que pudesse explicar todas as suas funções, para já não falar do que se observa freqüentes vezes nos animais e que ultrapassa de longe a sagacidade humana, nem do que fazem muitas vezes os sonâmbulos durante o sono, e que não ousa-riam fazer no estado de vigília. (Spinoza 1974, p. 186)
Na encruzilhada desses três documentos filosóficos, ilustrativos da instauratio da racionalidade moderna, bem que seria pertinente formular a seguinte indagação: É verdade que as profecias de Francis Bacon e de René Descartes transformaram-se em figuras do mundo por meio do desenvolvimento da moderna tecno-ciência. O que dizer, entretanto, da pergunta-constatação de Spinoza?
Teria ela, enfim, encontrado uma resposta - ou teria a moderna consciência científica ao menos percorrido uma boa parte do caminho completo para uma resposta àquela questão - por meio dos recentes desenvolvimentos na área das ciências biológicas, particularmente da genética? Tendo em vista a atual perspectiva, teórica e prática, de decodificação e recombinação de genes - e com ela a correspondente possibilidade de "fabricação de corpos" - saberíamos, enfim, integralmente, o que pode um corpo? Mais do que isso: tendo aprendido como se podem fabricar corpos, estaríamos hoje em condições de produzir corpos melhores.
É certo sabermos hoje que aqueles sonhos da razão produziram monstros e nutriram fantasias perigosas. Adorno e Horkheimer, em sua Dialética do Esclarecimento, expuseram os compromissos espúrios entre a razão completamente esclarecida, a barbárie mítica e a dominação integral levada a efeito pela tirania compulsiva da administração total da vida. Hoje em dia, num sinistro revival das intuições dos frankfurtianos, a crise ecológica em que parece mergulhar irreversivelmente o planeta transforma o almejado paraíso em terrível pesadelo, revelando dramaticamente que o desejo de dominação humana sobre a natureza parece nos conduzir ao perigoso labirinto da tragédia.
Em apontamentos coligidos entre 1936 e 1940, que deram origem ao ensaio denominado Überwindung der Metaphysik (Superação da metafísica), o filósofo alemão Martin Heidegger, com aguçada percepção, antecipara reflexivamente o que viria a se transformar na realidade desconcertante de nossos dias, a saber, a produção técnico-científica e industrial da vida:
Uma vez que o homem é a mais importante matéria-prima, pode-se contar com que, com base nas pesquisas químicas atuais, serão instaladas algum dia fábricas para a produção artificial de material humano. As pesquisas do químico Kuhn, distinguido esse ano com o prêmio Goethe da cidade de Frankfurt, já abrem a possibilidade de dirigir planificadamente a produção de seres vivos machos e fêmeas, de acordo com as respectivas necessidades. (Heidegger 1945, p. 91)
Da mesma maneira como os progressos alcançados no domínio da física nuclear e da química transformaram o homem no "senhor dos elementos", desarraigando-o da terra e abrindo horizontes para a exploração do espaço intergaláctico, os avanços do conhecimento técnico-científico na área da bioquímica e da biologia molecular permitem desvendar os até então insondáveis mistérios da vida e decifrar os mapas genéticos responsáveis pela estruturação dos organismos superiores.
Desse modo, o homem teria, aparentemente, conquistado, por fim, a sempre sonhada supremacia sobre todas as criaturas do universo. Senhor da ciência e da técnica, ele poderia doravante tomar integralmente nas próprias mãos a planificação e o controle das condições de existência no planeta.
Atualmente, esse diagnóstico se agrava ainda muito mais, quando os avanços registrados pelas biociências e pelos estudos no campo da inteligência artificial fazem brilhar a luz da racionalidade tecnológica sobre os até então insondáveis mistérios da vida, franqueando progressivamente o acesso a um território considerado como privativo da natureza, em sentido indisponível e sagrado: a base somática e psicológica da natureza humana.
Nesse contexto, em que se coloca dramaticamente em questão a ancestral diferença entre as experiências de ter um corpo e ser um corpo, ressurge com vigor renovado um tema que, de algum modo, esteve sempre associado ao pensamento de Nietzsche: o domínio do homem sobre a natureza traz consigo a possibilidade, senão mesmo a inexorabilidade, da superação do homem; ou, formulado de outra maneira, a superação do humano no e pelo Além-do-Homem. Essa questão perde agora toda coloração de fantasia onírica, com a real possibilidade de alteração radical na autocompreensão tradicional da natureza humana.
Seria possível estabelecer uma aliança entre a antevisão nietzscheana de superação do humano e as atuais possibilidades abertas pelos desenvolvimentos das pesquisas biogenéticas, vislumbrando aí uma possível via de resposta satisfatória para a questão formulada na Ética de Spinoza a respeito das possibilidades do corpo?
Nos termos em que Nietzsche equaciona sua resposta, tendo em vista a sociedade européia de seu tempo e suas tendências mais vigorosas, deveríamos crer, antes, no contrário: que precisamente a configuração moderna do mundo - mediada pelo tipo de vontade coletiva de poder que vem à luz na moderna racionalidade científica - não dá lugar a um saber que se torna senhor das virtualidades do corpo, mas constitui, antes, como a expressão inconsciente de um corpo agonizante.
Uma das melhores ilustrações desse diagnóstico nietzscheano pode ser encontrada no macroempreendimento sociocultural de maqui-nalização do humano - em seu corpo e nas virtudes desse corpo -, que constitui o signo inquietante da moderna barbárie civilizada. Depois da "morte de Deus" e da conseqüente dissolução da crença na alma, Filosofia e Pedagogia parecem ter sido mobilizadas numa formidável tarefa de maquinalização de corpos e mentes, mais característica do "último homem" e da tirania universal do "rebanho uniforme" do que de um ideal de conhecimento libertário, que fosse a celebração de um corpo transfigurado e transfigurador.
Para Nietzsche, a tarefa colossal da barbárie tecnologicamente civilizada
[...] consiste em fazer o homem tanto quanto possível utilizável, e aproximá-lo, tanto quanto possível, de uma máquina infalível: para essa finalidade, ele tem que ser equipado com virtudes de máquina (ele tem que aprender a sentir os estados nos quais trabalha de maneira maquinalmente utilizável como os de mais elevado valor: para tanto é necessário que os outros [estados, OGJ.] sejam tornados tanto quanto possível penosos para ele, tanto quanto possível perigosos e suspeitos...).2
Esse sentido metafórico do corpo-mente-máquina constitui, a meu ver, uma das mais produtivas chaves interpretativas que permitem compreender o sentido mais autêntico da problemática tese nietzscheana, de acordo com a qual, a despeito do irresistível predomínio do ideal democrático, a escravização permanece incrustada no seio da civilização moderna, como o abutre a dilacerar o fígado de Prometeu.
Como observa Erwin Hufnagel, a sociedade do trabalho e do rendimento maximizado
[...] entronizada e consagrada pelo Esclarecimento como emancipação, e realizada passo a passo, pode ser profundamente desumana. A anelada libertação política [...] pode terminar em escravidão mental. Nada de menor do que vê, mais tarde, a dialética do esclarecimento desenvolvida por Adorno e Horkheimer, vê Nietzsche como um problema de história da filosofia e de história mental. (Hufnagel 2000, p. 122 e s.)
Essa nova figura da escravidão - a escravidão mental que brota da conversão do esclarecimento em mito - pode ser também tematizada em alguns aspectos complementares, da mais intensa contemporaneidade, implicando a relação do homem com seu próprio corpo, como, por exemplo, no predomínio da categoria jurídico-econômica da propriedade privada, tanto no plano das relações intersubjetivas, quanto na ética das relações consigo mesmo.
Sob essa ótica, e projetando as intuições de Nietzsche alguns séculos à frente de sua própria época, podemos reconhecê-las, atualmente, na versão degradadada concepção mecânica clássica do corpo como máquina, que ressurge agora nas tentativas contemporâneas de desdobramento metafísico das pesquisas genéticas. Elas podem ser reconhecidas também na obscena mercantilização e consumo do corpo, de que são exemplo formulações cruas, raiando o cinismo grosseiro, como as seguintes:
Segundo Lemennicier, do mesmo modo que segundo Harris [...] o corpo não é diferente de um carro: se há um elemento no corpo que não funciona mais, pode-se trocá-lo, como no caso de um carro; se existe a possibilidade de utilizar uma nova técnica genética para tornar nosso corpo mais potente, nós a utilizamos para trocar nosso corpo; como no caso de um carro, que se decide trocar, se existe no mercado um novo modelo mais potente. Os filmes de David Cronenberg representam, nesse contexto em que o corpo é sempre reduzido a um objeto de manipulação, parcelização, decomposição e reconstrução sintética, uma nova metáfora dessa nova concepção do corpo-máquina. Suas primeiras realizações (Stereo, 1969 e Crimes do futuro, 1970), por exemplo, são caracterizadas pela obsessão dos transplantes, cuja prática pode conduzir o homem não apenas a uma nova forma de sexualidade, mas também a novas relações de poder. Mas é sobretudo em seu filme de 1996, Crash, que Cronenberg constrói a metáfora por excelência do corpo-máquina de que falam Harris e Lemennicier: a partir do romance de Ballard, Cronenberg realiza um filme absolutamente minucioso, onde o corpo desejável não é senão o corpo destruído pela violência e reconstruído pela técnica: o laço entre Eros e Thanatos passa doravante através de um corpo mecânico enfim realizável; o único paraíso para o homem contemporâneo é construído em plástico e metal inoxidável, matérias-primas a partir das quais o corpo pode ser enfim reconstruído e aperfeiçoado. (Marzano-Parisoli 2002, p. 132 e s.)
Levando adiante e aprofundando essas especulações, um panfleto incendiário de Peter Sloterdijk, ainda recentemente, determinou, com sua provocação, o tom da nova polêmica filosófica. Em julho 1999, quando ainda se comemorava o final do século XX - e a propósito de apresentar uma resposta à Carta sobre o "humanismo",de Martin Heidegger -, o autor põe em questão o sentido e o papel da educação humanista na história do Ocidente, reformulando o léxico em que até então se formulara o problemático binômio domesticação (Zähmung) e seleção (Züchtung), entendidas como cruzamento fundamental no processo antropológico de autoconfiguração da humanidade.
Para Sloterdijk, a história cultural do Ocidente foi marcada pela tensão entre as técnicas de cultura seletiva (Züchtung) e as forças civilizatórias de amansamento e domesticação (Zähmung) do "bicho homem". Para ele, o humanismo - insuficientemente fulminado pela desconstrução heideggeriana da metafísica - constitui, em verdade, um longo e importante capítulo dessa história; com ele se empreende uma colossal tarefa de amansar as forças selvagens e domesticar o homem pela via da escola e da leitura: de acordo com sua posição, é em chave antropológica que se deve complementar a Lichtung (clareira) heideggeriana, entendida como abertura para a transformação do homem em animal doméstico (Haustier).
A clareira (Lichtung) encontraria, portanto, seu espaço de pertinência antropológica no contexto civilizatório da criação e regulação da vida humana em casas e cidades:
A clareira é, ao mesmo tempo, uma praça de combate e um lugar de decisão e seleção. Em relação a isso nada mais se pode reparar com formulações de uma pastoral filosófica. Onde se erguem casas, aí tem que ser decidido o que deve ser dos homens que as habitam; decide-se, de fato e pelo fato, que espécies de construtores de casas vêm a prevalecer. Na clareira, fica demonstrado por quais empenhos os homens combatem, na medida em que aparecem como seres que constróem cidades e impérios. (Sloterdijk 1999, p. 11 e s.)
De acordo com Sloterdijk, foi Nietzsche - o mestre do perigoso pensar - um dos filósofos que mais longe e mais claro enxergou no domínio das relações entre a vida e política. Para o autor de Assim falou Zaratustra, o homem do presente seria sobretudo um selecionador bem-sucedido: ele teria conseguido transformar o homem selvagem em "último homem", isto é, no animal domesticado, útil e dócil, anônimo, uniforme, comprazendo-se no próprio rebaixamento e mediocridade.
Compreende-se por si mesmo que isso não pode acontecer apenas com meios humanísticos de domesticação, direcionamento e ensino. Com a tese do homem como criador-seletivo do homem rompe-se o horizonte humanista, na medida em que o humanismo jamais pode ou está autorizado a pensar mais adiante do que até a questão da domesticação e da educação. O humanista apresenta-se ao homem, e então aplica a ele seus meios domesticatórios, disciplinadores, formativos - convencido, como ele o está, da conexão necessária entre ler, assentar e abrandar. (Ibid., p. 12)
O mérito de Nietzsche consistiria em ter pressentido, como o apóstolo Paulo e Charles Darwin antes dele, por detrás desse pacífico e sedentário horizonte escolar de formação, um cenário mais sombrio:
Ele fareja um espaço no qual começarão inevitáveis combates sobre as direções da seleção humana - e esse espaço é aquele no qual se mostra a outra face da clareira, a oculta. Quando Zaratustra caminha pela cidade na qual tudo se tornou menor, ele observa o resultado de uma política de seleção até então exitosa e indisputada: os homens conseguiram - assim lhe parece -, com auxílio de uma adequada ligação entre ética e genética, tornar menores a si próprios, por seleção. Eles se submeteram à domesticação e colocaram em marcha, para si mesmos, uma escolha seletiva na direção de formas de convivência entre animais domésticos. A partir desse discernimento, a crítica ao humanismo, própria de Zaratustra, surge como refutação da falsa inocuidade, com a qual se envolve o bom homem moderno. (Ibid., p. 13)
Nesse ponto preciso, percebe-se a importância estratégica que a crítica nietzscheana do humanismo adquire no ataque de Sloterdijk à tradição humanista. Segundo ele, Nietzsche denuncia justamente a falsa aparência de inocência dissimulada nesse tipo de pedagogia, a auto-edulcoração de uma vontade coletiva de poder, responsável pela escolha seletiva de uma determinada figura do humano como normativa no Ocidente: a do homem bom, como animal doméstico e virtuoso. Com isso, dissimula-se sob a capa de ensino e disciplina uma "antropotécnica" de seleção, de cultura seletiva de um tipo humano.
É justamente com essa forma de (auto)mistificação que somos concitados a romper. O avançado grau de desenvolvimento técnico-científico, especialmente os progressos alcançados no campo da biologia molecular, da genética e da medicina, habilitam-nos a tomar conscientemente em nossas próprias mãos a tarefa cultural da seleção e, dessa maneira - assim o pretende Sloterdijk -, a reescrever as regras do parque humano:
É a marca da era tecnológica e antropológica que os homens sejam mais e mais colocados no lado ativo e subjetivo da seleção, mesmo sem que tivessem voluntariamente ingressado no papel do selecionador. Devemos constatar: existe um mal-estar no poder da seleção, e em breve será uma opção pela inocência, se os homens explicitamente se recusarem a exercer o poder de seleção, que eles de fato alcançaram. Porém, desde que, num certo campo, estejam desenvolvidos poderes de conhecimento, os homens farão má figura se - como nos tempos de uma antiga impotência - quiserem deixar agir em seu lugar um poder superior, seja ele Deus, ou o acaso, ou os outros. Na medida em que a mera recusa ou abdicação costumam fracassar em sua esterilidade, importa assumir ativamente o jogo, no futuro, e formular um código das antropotécnicas. Um tal código alteraria retroativamente também a significação do humanismo clássico - pois, com ele, tornar-se-ia manifesto e registrado que humanitas não compreende apenas amizade do homem para com o homem; ela sempre implica também - e com crescente explicitação - que o homem representa para o homem o poder superior. (Ibid., p. 14)
Duas idéias merecem destaque especial nessa passagem, em virtude das conseqüências que acarretarão para o desenvolvimento do presente trabalho: em primeiro lugar, essa condição sui generis do homem contemporâneo, a que mais acima foi feita referência: a faculdade ou possibilidade de colocar-se deliberadamente à altura da tarefa de seleção biopolítica, para exercer um poder que, de fato, encontra-se conquistado. No grau de autodeterminação a que nos alçamos com a moderna tecnociência, já não poderíamos mais impunemente nos furtar a assumir ativamente o jogo, como postula Sloterdjik, deixando agir em nosso lugar um hipotético poder superior.
Em segundo lugar, aquele insight profundamente nietzscheano de que humanitas contém mais do que simples laços de amizade, sendo também inseparável de relações de domínio, em que o homem representa para o homem também um poder superior.
Gostaria de aproximar essas idéias dos problemas mais importantes da filosofia de Nietzsche, considerando, em primeiro lugar, a questão da autodeterminação: também para Nietzsche, a moderna consciência científica não pode mais demitir-se da responsabilidade inerente ao demiúrgico poder que ela própria liberou.
Se, depois da "morte de Deus", não se pode mais acreditar nem numa legalidade na natureza, nem numa ordenação moral do mundo - universalmente gravada nas tábuas de carne dos corações humanos -, então os "espíritos livres, muito livres" - como legítimos e cumulados herdeiros da emancipação iluminista - terão de tomar em suas próprias mãos a instituição de novas tábuas de valor, que darão sustentação à legislação para os próximos milênios.
Também para Nietzsche o homem moderno não tem mais escolha: já não lhe é possível recuar dos limiares de autodeterminação definitivamente conquistados; o caminho é para frente e ascendente: o "último homem" deve ser superado, o homem deve superar a si mesmo, dando lugar ao Além-do-Homem. No capítulo sobre a "Auto-Superação", do segundo livro de Assim falou Zaratustra, Nietzsche afirma que lá onde há vida, há também obediência. Entretanto, obediência sempre pressupõe comando: "Mas, onde encontrei viventes, lá ouvi também o discurso sobre obediência. Todo vivente é alguém que obedece. E o segundo é isso: manda-se naquele que não pode obedecer a si próprio".3
Outro aspecto, essencialmente vinculado ao tema da moderna fabricação dos corpos, diz respeito à inevitabilidade das relações de poder: no caso específico, à inevitabilidade de se assumir a tarefa do domesticador ou do selecionador - ou ainda do criador seletivo por amansamento e domestificação. A esse respeito, convém citar mais um trecho da provocação de Sloterdijk:
Esse é o conflito fundamental de todo futuro, postulado por Nietzsche: o combate entre os cultivadores seletivos do homem para o pequeno e para o grande - poder-se-ia também dizer entre humanistas e trans-humanistas, filantropos e trans-filantropos. Nas reflexões de Nietzsche, o emblemático Além-do-Homem não é colocado para o sonho de uma rápida desinibição ou de uma evasão para o bestial - como supunham os encoturnados maus leitores de Nietzsche dos anos 30. A expressão também não é colocada para a idéia de uma retro-seleção do homem para o status do tempo de animal pré-doméstico e pré-eclesiástico. Quando Nietzsche fala do Além-do-Homem, ele pensa, então, em uma era do mundo profundamente além do presente. Ele toma medida em milenares processos retrojacentes, nos quais, até agora, foi empreendida a produção de homens, graças à íntima confrontação entre seleção, domesticação e educação - numa empresa que, em verdade, soube em grande parte fazer-se invisível, e que sob, a máscara da escola, tinha por objeto o projeto de domesticação.(Ibid., p. 13)
Esses termos deixam entrever, com rude evidência, o fulcro de interesse da questão formulada: não teria, enfim, soado a hora em que o biopoder tivesse que incluir, entre as metas estratégicas da "produção de homens", também a tarefa de intervenção eugênica no patrimônio genético da espécie - colocando em nova chave e em novo patamar de auto-determinação a antiga e tensa alternativa biopolítica entre seleção e amansamento?
As atuais pesquisas biotécnicas com embriões e genoma não preconizam justamente a intervenção positiva, no sentido de uma produção tecnológica da vida, para além dos limites restritivos, determinados pelo interesse terapêutico de identificar, prevenir e/ou tratar convenientemente enfermidades geneticamente causadas, afetando indivíduos e populações?
Com a possibilidade técnica de decifrar e recombinar a composição dos códigos e cadeias de genes, não se teria aberto também uma nova clareira epocal, a partir de cujo limiar se diferenciam os novos selecionadores e os selecionados - ou, provocativamente formulado -, os programadores e os programados, rompendo relações de simetria e reciprocidade profundamente arraigadas em princípios religiosos, éticos e jurídicos, e inaugurando-se a perspectiva de uma instrumentalização em grande estilo das condições de existência humana?
Nessas condições, a pergunta de Spinoza, acerca do que pode um corpo, não poderia ser respondida de modo inequívoco? Um corpo pode fabricar tecnologicamente outros corpos - eventualmente melhores corpos. Teríamos, portanto, conquistado, com isso, precisamente aquele ideal de onipotência, cuja latência Nietzsche já discernira no logos socrático, a saber, aquele otimismo ínsito à lógica e à dialética, de acordo com o qual a razão, guiada pelo fio condutor da causalidade, seria capaz de não somente desvendar todos os enigmas do universo, mas também de corrigi-los.4
É por isso que, para Jürgen Habermas, muito mais importante do que a provocação de Peter Sloterdijk é fazer um correto diagnóstico filosófico do novo panorama biopolítico:
Quando se acrescenta a isso que médicos out siders já trabalham hoje na clonagem reprodutiva de organismos humanos, impõe-se a perspectiva de que a espécie humana em breve poderia tomar nas pró-prias mãos sua evolução biológica. "Parceiros da evolução" ou até "brincar de Deus" são metáforas para uma, como parece, autotransformação da espécie em extensão iminente. (Habermas 2001, p. 42)
Nesse novo cenário histórico, não é de somenos importância notar que o diagnóstico habermasiano das ameaças que ensombrecem o futuro da natureza humana relacione estreitamente as considerações, em certa medida fantásticas, de Sloterdijk ao perigoso precedente das "fantasias nietzscheanas".
Seguramente, também não faltam especulações tornadas selvagens. Um punhado de excêntricos intelectuais procura ler o futuro a partir do princípio, de salão-de-café, de um pós-humanismo natura-listicamente transmudado para, no entanto, continuar a elocubrar no presumível muro do tempo apenas - "hipermodernidade" contra "hipermoral" - os motivos, conhecidos à saciedade, de uma muito velha ideologia alemã. Felizmente, ainda falta ao rechaçamento elitista da "ilusão da igualdade" e do discurso de justiça a amplitude de efeitos da força de contágio. As fantasias nietzscheanas dos auto-representantes que, no "combate entre os cultivadores seletivos do homem para o pequeno e para o grande" vêm o "conflito fundamental de todo futuro" - e encorajam as "principais frações culturais" a "exercer o poder de seleção que elas factualmente conquistaram" -, [tais fantasias, OGJ.] chegam por enquanto apenas a espetáculo de mídia. (Ibid., p. 43)
Muito mais sérios e perigosos do que arrebatamentos de (má) ficção científica são os precedentes contemporâneos concretos, como os diagnósticos de pré-implantação, a pesquisa puramente experimental feita em embriões, as possibilidades de decifração e recombinação de cadeias genéticas com objetivos de intervenção seletiva, que teórica e experimentalmente ultrapassam e tornam instáveis as fronteiras entre pesquisa genética com fins terapêuticos (evitar os sofrimentos exorbitantes) e engenharia genética que produz tecnologia para transformação qualitativa de caracteres genéticos.
Para Habermas, não se pode oferecer criticamente uma resposta normativa satisfatória para tais problemas recorrendo às proteções e garantias juridicamente estabelecidas nas declarações constitucionais de direitos humanos ou a argumentos morais, fundados na dignidade da pessoa. Com efeito, "sob as condições do pluralismo de cosmovisões, não podemos atribuir `desde o início' ao embrião a `proteção absoluta de vida', de que gozam pessoas como portadoras de direitos fundamentais" (ibid., p. 78).
Portanto, uma proteção absoluta, fundada no conceito de dignidade da pessoa como sujeito moral e jurídico, é uma prerrogativa que, sem que se incorra em petições de princípios metafísicos e substancialistas - ou sem recorrer a artigos de fé religiosa -, não pode ser estendida a uma situação e condição existencial de que ainda está ausente uma pessoa, no pleno sentido do termo.
É por essa razão que, para Habermas, o argumento contrário à instrumentalização da vida humana por uma eugenia liberal não deve ser buscado direta e imediatamente no âmbito jurisdicional ou constitucional - portanto, no plano da proteção assegurada às pessoas -, mas num limiar bem mais recuado e fundamental: no terreno normativo das intuições, sentimentos, convicções e razões que estão na base da moral racional dos direitos humanos. Esse plano, por assim dizer infrajurídico, o autor denomina autocompreensão ética da espécie, na medida em que é partilhada por todas as pessoas morais (cf. ibid, pp. 72-80, especialmente p. 74).
A partir dessa perspectiva impõe-se a pergunta sobre se a tecnização da natureza humana altera a autocompreensão ética, própria da espécie, de tal modo que nós não podemos mais nos compreender como seres vivos, livres e moralmente iguais, orientados por normas e fundamentos. Só com o surgimento imprevisto de alternativas surpreendentes fica abalada a auto-evidência de hipóteses de fundo. (Ibid., p. 74)
E, a partir dessa preocupação, Habermas complementa:
A manipulação da composição do genoma humano, em larga medida decifrado, e a expectativa de alguns geneticistas de poder tomar de imediato a evolução em suas próprias mãos, abalam, de qualquer modo, a diferenciação categorial entre subjetivo e objetivo, entre aquilo que cresce naturalmente e aquilo que é produzido, naquelas regiões até agora subtraídas à nossa disponibilidade. Trata-se da indife-renciação biotécnica de distinções categoriais profundamente enraizadas, que tínhamos até agora presumido como invariantes. Isso poderia alterar de tal maneira nossa autocompreensão ética, própria da espécie, que com isso seria afetada também nossa consciência moral - a saber, as condições de crescimento natural sob as quais unicamente podemos nos compreender como autores de nossas próprias vidas e como membros igualmente legitimados da comunidade moral. Suspeito que o conhecimento da programação do próprio genoma poderia perturbar a evidência com a qual existimos como corpo, ou em certa medida "somos" nosso corpo, e que com isso surge também um novo tipo de peculiar relação assimétrica entre pessoas. (Ibid., pp. 76 e s.)
A pergunta pela legitimidade de limites morais impostos ao projeto de eugenia liberada passa, portanto, aos olhos de Habermas, por duas pressuposições que afetam essencialmente aquele substrato ético de autocompreensão das pessoas, consideradas como fins em si mesmas: a possibilidade de uma condução autônoma da vida e as condições de um tratamento igualitário com outras pessoas.
São exatamente esses dois pressupostos - manifestamente decorrentes de uma reconstrução do universalismo moral kantiano segundo os moldes da teoria do agir comunicativo - que a eugenia positiva coloca em suspenso. É precisamente por isso que a argumentação de Habermas tem necessidade de uma reinterpretação peculiar da doutrina kantiana da pessoa como "fim em si mesmo".
A "fórmula do fim em si" do imperativo categórico contém a exigência de considerar cada pessoa "ao mesmo tempo também como fim em si mesma" e nunca utilizá-la "apenas como simples meio". Os participantes [de uma prática comunicativa, OGJ.], também em casos de conflito, devem prosseguir sua interação na posição do agir comunicativo. A partir da perspectiva do participante em primeira pessoa, eles devem se colocar na perspectiva do outro, como na de uma segunda pessoa, com o propósito de se entender com ela sobre alguma coisa, ao invés de objetivá-la, a modo da perspectiva de observação de uma terceira pessoa, instrumentalizando-a para suas próprias finalidades. A fronteira moralmente relevante da instru-mentalização é marcada por aquilo que, diante de uma segunda pessoa, necessariamente se furta a todos os ataques da primeira pessoa, por tanto tempo quanto permanece em geral intacta a relação comunicativa; portanto, pela possibilidade de resposta e posicionamento - por meio daquilo, pois, com o que e pelo que uma pessoa é ela mesma, quando age e contrapõe a seus críticos o discurso e a resposta. O "si próprio" do fim em si, que devemos respeitar na outra pessoa, exprime-se especialmente pela autoria na condução de uma vida, que se orienta, a cada vez, por exigências próprias. (Ibid., pp. 96 e s.)
É, portanto, contra esse pano de fundo, em que a moral racional dos direitos humanos se liga a uma autocompreensão ética, própria da espécie, que ganha legitimidade a exigência de tornar indisponível - pela via da normatização - aquilo que, por meio da ciência e da tecnologia, foi tornado disponível (ibid., p. 46). A instrumentalização da vida humana pelas novas técnicas de pesquisa genética encontra sua barreira moral na possibilidade de rompimento do plano de simetria e reciprocidade exigido pelo status virtual de futuro participante no circuito do agir comunicativo, portanto, de futuro e potencial membro da comunidade moral.
Chegados a esse ponto, torna-se indispensável um retorno a Nietzsche. Em toda essa recente controvérsia sobre o futuro da natureza humana, assim como a propósito da polêmica relativa à possibilidade de fabricação industrial de corpos, seria Nietzsche - e, de modo particularmente relevante, sua permanente insistência no status fundamental do corpo na história da humanidade - uma referência adequada, no sentido em que até agora seu testemunho tem sido invocado, por um lado ou outro dos polemistas?
Para me limitar aqui a Habermas e Sloterdijk, creio que ambos se equivocam ao enredar a filosofia de Nietzsche num programa deliberado de automodificação da espécie humana, regulado por "códigos de antropotécnica", programa levado a efeito a partir do cruzamento entre genética e educação.
A mim não me parece que seja esse um caminho genuinamente nietzscheano para a auto-superação da humanidade; antes pelo contrário, talvez esse seja o meio eficaz para uma rendição definitiva ao eterno retorno do último homem; isto é, a efetivação da sinistra possibilidade de reprodução permanente de um produto histórico-culturalmente degradado, como já afirmado acima.
A despeito de todo prodigioso desenvolvimento das ciências e das tecnologias, permanece como instância central desse progresso uma perspectiva reificadora e instrumental, que fornece sua diretriz dominante a todo programa teórico e experimental avançado. Ora, justamente isso se choca de modo irreconciliável com as posições mais viscerais de Nietzsche a respeito do corpo e de suas complexas e misteriosas relações com o "espírito":
O corpo humano, no qual torna-se novamente vivente e corpóreo o inteiro, remoto e próximo, passado de todo vir-a-ser orgânico; através do qual, por sobre o qual, para além do qual, parece fluir uma imensa e insondável corrente: o corpo é um pensamento mais admirável do que a antiga "alma".5
Nesse sentido, o corpo é, para Nietzsche, não um mero objeto disponível à apropriação da curiosidade científica, sujeito à apropriação do fazer humano, mas "um pensamento admirável"; sendo assim, somente se resgatado da armadilha da fabricação mecânica é que pode se apresentar como o autêntico umbigo do universo, que é como Nietzsche efetivamente o considera. Insondável em sua natureza labiríntica, ele é, ao mesmo tempo, o fio de Ariadne que nos guia pelos percursos mais abissais e inauditos, pelo labirinto do universo entendido como feixe de configurações e ramificações da infinitamente proteiforme vontade de poder.
Em Nietzsche, corpo não pode, pois, ser adequadamente tomado no mero registro do físico-somático, biológico, daquilo que stricto sensu se determina como o objeto da fisiologia. O corpo tem a impalpável concretude de um campo de forças ou de uma superfície de cruzamento entre múltiplas perspectivas. No corpo fala a linguagem dos sinais, sua natureza íntima é uma semiose infinita.
Por isso, é preciso renunciar às arcaicas fantasias de onipotência a respeito do corpo. "Nós" não sabemos o que pode um corpo. E, num certo sentido, jamais saberemos, pois o si próprio, que é nosso corpo, ultrapassa infinitamente a potência desse orgulhoso "nós". "Prodígio dos prodí-gios", o corpo é também o "ominoso":
O mais espantoso é antes o corpo; não se pode admirar até o fim como o corpo humano se tornou possível: como uma tal imensa reunião de seres vivos, cada um dependente e submetido e, todavia, em certo sentido, de novo comandando e agindo por vontade própria; como pode, enquanto totalidade, viver, crescer e subsistir por um lapso de tempo: e tudo isso, visivelmente, não ocorre por meio da consciência. Para esse "milagre dos milagres", a consciência é justamente apenas uma "ferramenta" e nada mais, de igual modo que o entendimento, o estômago, são uma ferramenta. A luxuriante ligação em conjunto da mais múltipla vida, a coordenação e subordinação entre atividades superiores e inferiores, a miríade de obediência, que não é nenhuma obediência cega, menos ainda mecânica, porém seletiva, perspicaz, ponderada, até mesmo uma obediência que resiste - todo esse fenômeno "corpo", considerado segundo uma medida intelectual, é tão superior à nossa consciência, ao nosso "espírito", nosso pensar, sentir, querer conscientes, como a álgebra o é sobre o um mais um.6
O que Nietzsche pretende é justamente despertar a atenção para a dignidade do corpo, mediante renúncia a toda antecipação de um sentido fundamental, de uma significação última, nos termos e registros com que a tradição conferiu dignidade metafísica a seus objetos ou realidades. Nesse terreno, como permanentemente em Nietzsche, é a arte que fornece a pista definitiva: "Naquilo que é a coisa principal, dou mais direito aos artistas do que a todos os filósofos até agora: eles não perderam a grande pista sobre a qual a vida caminha, eles amaram as coisas `deste mundo' - eles amaram seus sentidos".7 O que o corpo significa para nós é, pois, nada mais do que as pegadas, o rastro seguido e deixado pela vida em sua caminhada.
Percebe-se, nessa citação, uma limitação, ao mesmo tempo que uma grandeza ligadas ao corpo: em primeiro lugar, o reconhecimento da dignidade ontológica do corpo não elide, antes exige a renúncia a insensatos arroubos metafísicos a respeito de sua significação última. Em seguida, o corpo deve ser entendido como uma pegada do orgânico, como uma marca seguida pela vida, em seu conjunto - porém um traço de memória cósmica que nos é íntimo, familiar:
O mundo visto, sentido, interpretado de tal modo que a vida orgânica se conserva nessa perspectiva de interpretação. O homem não é apenas um indivíduo, mas totalidade do orgânico continuando a viver numa determinada linha. Que ele se conserva - com isso fica demonstrado que uma espécie de interpretação (ainda que sempre alargada) também subsistiu, que o sistema de interpretação não mudou.8
Com essa convicção, determina-se complementarmente uma aventura inteiramente inaudita para o pensamento: "A tarefa de continuar a tecer a inteira rede da vida, e de tal modo que o fio se torne mais forte - esta é a tarefa".9
Compreendamos, porém, de maneira apropriada a importância do novo ponto de partida: como unidade de organização, o corpo nos abre a perspectiva para a compreensão da totalidade do orgânico, pois o homem não é senão essa mesma totalidade continuando a viver numa determinada direção:
Com isso, em última instância, também se tornaram inutilizáveis as antigas oposições entre "natureza" e "espírito", e até mesmo as diferenciações meramente formais entre "orgânico" e "inorgânico"; a saber: na medida em que encontramos no homem todo orgânico já como síntese incorporada de forças inorgânicas, e com isso - para além de causa e efeito - sempre reencontramos novamente tudo aquilo que em nós está tão "firmemente incorporado". Que o gato homem sempre de novo recaia sobre suas quatro pernas, eu quis dizer sobre sua única perna "Eu", é apenas um sintoma de sua unidade fisiológica, mais corretamente, de sua "reunião": motivo nenhum para se crer numa "unidade anímica". (Schipperges 1975, p. 62 e s.)
É a partir dessa profundidade vulcânica que devemos apurar os ouvidos para a exortação de Zaratustra: a voz do corpo saudável fala do sentido da terra:
Enfermos e moribundos eram os que desprezaram o corpo e a terra e inventaram as coisas celestes e as gotas de sangue redendoras: mas ainda mesmo esses doces e sombrios venenos, eles o tomaram do corpo e da terra!
Quiseram escapar de sua miséria, e as estrelas eram para eles dema-siadamente distantes. Por isso suspiraram: "Oh, se houvesse caminhos celestes para nos deslizarmos furtivamente em um outro ser e em outra felicidade"! - então inventaram para si seus caminhos furtivos e suas pequenas beberagens de sangue!
Então esses ingratos se imaginaram subtraídos de seu corpo e dessa terra. Entretanto, a quem deviam eles as convulsões e as delícias de seu êxtase? A seu corpo e a esta terra.
Zaratustra é indulgente com os enfermos. Em verdade, ele não se ira com suas espécies de consolo e ingratidão. Que eles possam se tornar convalescentes e superadores e criar para si um corpo superior.10
Criar para si um corpo superior. Ensinar aos homens uma nova vontade, fiel ao sentido da terra e que os capacite para querer como próprio o mesmo caminho que, até aqui, foi percorrido às cegas; assumi-lo como bom e dele não se evadir ignominiosamente, como o fazem os impotentes e os agonizantes.
Sobretudo em nossos dias, essa palavra tem o peso de um legado prodigioso, ao mesmo tempo em que, como exortação, impinge-nos uma tarefa assustadora: a de criar um corpo superior e, a partir da própria vontade, transfigurar e redimir a physis, também no que diz respeito ao próprio corpo.
À sombra do niilismo extremo, toda dimensão de sentido - esteja ela inscrita na natureza ou na história - revelou-se como dependente de uma vontade humana. Estaríamos então, finalmente, em condição de tomar em nossas mãos o nosso destino e o nosso futuro, de criarmos esse corpo superior, talvez o casulo do Além-do-Homem. Mediante a condição, porém, de que possamos evitar a tentação do artefato, de subverter e transvalorar as relações entre o corpo (a grande razão) e a nossa pequena razão, potencialmente tirânica; sob a condição, pois, que renunciemos à compulsão tecnológica de fabricar artificialmente corpos, como os últimos homens fabricaram sua felicidade degradada.
Para Nietzsche, a sociedade européia do final do século XIX, que tomava a forma de uma sociedade de massas adaptada às exigências da revolução industrial, constitui-se como o pior agenciamento de condições para a elevação do ser humano, e, conseqüentemente, para a criação de um corpo superior. A auto-superação dessa condição é uma tarefa que, para Nietzsche, não pode ser resolvida pela via da fabricação técnica, que implica cálculo econômico, planificação e produção em série.
A compulsiva apropriação tecnológica da natureza - de cuja fúria desencadeada não escapa o próprio homem - é insensata e carece de auto-reflexão. A racionalidade técnico-científica precisa receber uma dimensão de sentido, que só pode ser dada pela reflexão, pela meditação e pela crítica filosófica.
Essa tendência, como toda compulsão, é patológica e conduz antes à reificação, à "administração econômica global de interesses e rendimentos" do que a qualquer perspectiva de salvação. Ela não é um caminho que conduz à grandeza pensada por Nietzsche como autêntica emancipação e autonomia. Nesse sentido, creio que poderíamos associar à intenção e à letra de Nietzsche o diagnóstico amargo do próprio Heidegger a propósito do desgaste universal do ente.
Desse modo, mesmo depois de termos conseguido, com nossas naves espaciais e expedições interplanetárias, "imprimir no céu da terra à lua uma trajetória de fogo", não teríamos chegado à plenitude dos tempos, à era da absoluta autodeterminação. Seríamos muito mais os infelizes herdeiros de um corpo diminuído em suas forças, portanto, justamente não os artistas criadores de um corpo superior.
Penso que podemos vislumbrar aqui, paradoxalmente, uma estranha cumplicidade entre Heidegger e Nietzsche - pelo menos quanto a certos aspectos de seu pensamento ligados à sua intransigente recusa da sociedade dos últimos homens.
Penso que, em ambos os filósofos, podemos discernir uma denúncia do delírio onipotente, configurado na vontade coletiva de poder que determina o modo de ser do mundo moderno. Em Nietzsche, ela assume mais a forma de uma reflexão sobre o aprofundamento e a extensão do niilismo, enquanto que em Heidegger ela se apresenta mais como uma meditação sobre a essência da técnica. Em comum entre ambas existe uma tentativa de alertar para os perigos inerentes à cega confiança nas virtualidades do fazer humano, potencializado pela ciência moderna.
Para Nietzsche, em particular, o agir técnico do homo faber é antes dirigido pela natureza e pela constituição adquirida pelo corpo, inserido e interagindo em múltiplas relações de poder ao longo da história de sua formação; não é esse agir da racionalidade técnica a potência demiúrgica que o teria produzido em sua infinita riqueza e poder de va-riação. A configuração moderna do corpo e da vida em termos de produção e consumo são antes o sintoma do avançado grau de degradação da existência humana, para a qual muito contribuiu a reificação do corpo próprio.
No inteiro desenvolvimento do espírito, trata-se talvez do corpo: ele é história sensível de que um corpo superior se configura. O orgânico ascende para degraus ainda superiores. Nossa ânsia de conhecimento da natureza é um meio pelo qual o corpo quer se aperfeiçoar. Ou antes: são feitos milhares de experimentos, para modificar a nutrição, habitação, modos de vida do corpo; a consciência e as avaliações nele, todas as espécies de prazer e desprazer são signos dessas modificações e experimentos. Por fim, não se trata, de modo algum, do homem: ele deve ser superado.11
Creio que, em derradeira instância, as reflexões de Nietzsche e Heidegger culminem em exortações à prudência, à medida, à moderação, a uma postura reverente e distante da tagarelice e agitação febril que caracterizam as expectativas atuais de, mantidas as coisas como estão, efetivamente assumirmos uma posição de sujeitos perante a lógica e a dinâmica autonomizadas da "mobilização total".
Tudo se passa como se em ambos a tarefa de superação do niilismo exigisse mais silêncio e recolhimento meditativo (andenkendes Denken), diálogo silencioso com o legado espiritual da tradição, do que grandi-loqüentes programas de ação. Para esse tipo de postura, o pensamento enraizado no corpo (sempre entendido no sentido de "grande razão") seria um delicado, hiperacurado e plurifacetado sensório do mundo:
Discernimento: em toda estimativa de valor, trata-se de uma determinada perspectiva: conservação do indivíduo, de uma comunidade, uma raça, um estado, uma igreja, uma fé, uma cultura
- em virtude do esquecimento de que só existe um avaliar perspectivo, fervilham miríades de avaliações contraditórias e conseqüentemente de impulsos contraditórios em um homem. Isso é a expressão da enfermidade no homem, contrariamente ao animal, onde todos os instintos presentes se prestam a tarefas totalmente determinadas.
- essa criatura repleta de contradições tem, porém, em seu ser (Wesen) um grande método de conhecimento: ele sente muitos prós e contras - ele se eleva à justiça - ao compreender para além do apreciar de bem e mal.
O homem mais sábio seria o mais rico em contradições, o que tem como que órgãos do tato para todas as espécies de homem: e, em meio a isso, seus grandes instantes de grandiosa consonância - o elevado acaso também em nós!
- uma espécie de movimento planetário.12
Essa espécie de meditação se colocaria, a meu ver, no extremo oposto do açodamento tecnológico, sociológico, antropológico, psicológico, logístico. De acordo com o ensinamento corporal de Nietzsche, é o orgânico em seu conjunto que, no homem, continua sua escalada no horizonte do infinito, em movimento planetário. Enquanto linha de fuga do orgânico-total, o homem persiste apenas como o animal não fixado, o experimentador consigo mesmo, o mais instável e sofredor dos animais. Como ominoso, o corpo se abre em campo de experiências e nos ensina, por derradeiro, que a maioridade, enfim conquistada, não prorrompe em marcha triunfal do otimismo antropomorfista.
Ao contrário, essa emancipação nos situa na modesta condição de perplexidade, de quem desperta de um pesadelo e se abre para uma perspectiva ampliada do "sentimento cósmico". O que pode um corpo? A pergunta de Spinoza permanece, para Nietzsche, irrespondida. Jamais saberemos integralmente o que ele pode, pois o corpo é o absolutamente paradoxal.
Referências bibliográficas
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Endereço para correspondência
E-mail: giacoia@tsp.com.br
Recebido em 15 de março de 2003
Aprovado em 25 de junho de 2003
1 Nietzsche, F. Also Sprach Zarathustra. I : Von den Verächtern des Leibes. In: Nietzsche, Friedrich 1980: Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA). Ed. G. Colli e M. Montinari, Berlin/New York/ München, W. de Gruyter/DTV, 1980, v. 4, p. 39 e s. Não havendo indicação em contrário, todas as traduções são de minha autoria. (N. E.: as obras de Nietzsche serão citadas segundo a KSA.)
2 Nietzsche, F. Fragmento póstumo do outono de 1887, nr. 10 [11]. In: KSA, v. 12, p. 459 e s.
3 Nietzsche, F. Also Sprach Zarathustra II. Von der Selbst-Überwindung. In: KSA, v. 4. p. 147.
4 Cf. Nietzsche, F. Die Geburt der Tragödie. In: KSA, v. 1, p. 97 e s.
5 Nietzsche, F. Fragmento póstumo de junho - julho de 1885, número 36 [35]. In: KSA, v. 11, p. 565.
6 Curiosamente, o fragmento continua da seguinte maneira: "E como se poderia deixar de falar moralmente! - Assim cavaqueando, entreguei-me sem freio ao meu impulso pedagógico, pois eu estava feliz em ter alguém que suportasse ouvir-me. Todavia, justamente nesse ponto, Ariadne não suportou mais - a história ocorreu, com efeito, durante minha primeira temporada em Naxos: `mas meu senhor, disse ela, o senhor fala em suíno-alemão!' - `Alemão, respondi bem-humorado, simplesmente alemão! Deixai fora o suíno, minha deusa! Vós avalais por baixo a dificuldade de dizer coisas refinadas em alemão.' - `Coisas refinadas!' Gritou Ariadne espantada; mas isso foi apenas positivismo! Filosofia de focinho! Mingau de conceitos e esterco de cem filosofias! O que se quer ainda daí para diante!' - enquanto isso, ela brincava impacientemente com o célebre fio, que uma vez guiou seu Teseu através do labirinto. - Revelou-se, portanto, que Ariadne, em sua formação filosófica, estava atrasada em dois milênios". Nietzsche, F. Fragmento póstumo de junho-julho de 1885, número 37 [4]. In: KSA, v. 11, pp. 576 e s.
7 Ibid., 37 [12], p. 587s.
8 Nietzsche, F. Fragmento póstumo do fim de 1886 - primavera de 1887, número 7 [2]. In: KSA, v. 12, p. 251 e s.
9 Ibid., 11 [83], p. 39 e s.
10 Nietzsche, F. Also Sprach Zarathustra I. Von den Hinterweltlern (Dos Transmundanos). In: KSA, v. 4, p. 35 e s.
11 Nietzsche, F. Fragmento póstumo do inverno de 1883 - 1884, número 24 [16]. In: KSA, v. 10, p. 653 e s.
12 Nietzsche, F. Fragmento póstumo do verão-outono de 1884, número 26 [119]. In: KSA, v. 11, p. 181 e s. A divisão do trecho citado reproduz a disposição interna do manuscrito do próprio autor.