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Natureza humana

 ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.5 n.2 São Paulo dez. 2003

 

RESENHAS

 

Edna Vilete

Psicanalista, membro da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro
Fundadora do Espaço Winnicott, Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 

Mario Bertolini et. al., 2001: Squiggles & spaces. Revisiting the Work of D. W. Winnicott. v. 1 e 2. London, Whurr Publishers. ISBN: 1 86156 271 3 (v. 1) ISBN: 1 86156 278 0 (v. 2)

Em abril de 1997, para celebrar o 25º aniversário da publicação de O brincar e a realidade, um grupo de instituições - tais como a Universidade de Milão, a Federação Européia de Psicanálise, a Associação Italiana de Psicanálise, juntamente com a Fundação Squiggle - organizou, em Milão, uma conferência internacional sobre a obra de Winnicott denominada "O psyche-soma: da pediatria à psicanálise". Os textos apresentados nesse encontro foram reunidos e publicados sob o título Squiggles & Spaces - Revisiting the Work of D. W. Winnicott, compondo dois volumes com 52 trabalhos e somando mais de 500 páginas.

Os autores de diferentes procedências (Itália, Inglaterra, França, Suíça, Espanha, Bélgica, Alemanha, Argentina, Brasil, Uruguai e Peru), e de formações diversas (pediatras, neuropsiquiatras, hematologistas, psicoterapeutas, além de psicanalistas de tendências teóricas variadas, incluindo os junguianos)encontraram, no pensamento de Winnicott, o elo que os aproximou. De acordo com a introdução dos editores, os diálogos e as discussões trouxeram, durante a apresentação dos trabalhos, o benefício de uma mútua fertilização, proporcionada pelas experiências e tradições singulares.

O livro principia com três autores que tiveram um convívio próximo com Winnicott e que dispunham, portanto, de conhecimento para falar sobre "O homem e o clínico", título que nomeia essa primeira parte. John Padel, colega de Winnicott na Sociedade Britânica, fazendo referência à "terceira área", onde o brincar e a criatividade têm lugar, relembra o desconforto do espaço que ficava entre os seguidores de Anna Freud, por um lado, e os de Melanie Klein, por outro, ocupado pelos que, nos anos 50, constituíram o Middle Group. Nesse período, Winnicott foi eleito presidente da Sociedade Britânica pela primeira vez e ele conseguia, informa-nos o Dr. Padel, manter as discussões científicas tão calmas e objetivas quanto era humanamente possível.

James Innes-Smith, por sua vez, recorda a forte impressão que Winnicott lhe provocou em seu primeiro encontro: "Há sempre um elemento de surpresa, mesmo de espanto manifestado (...) Quando nós relemos alguns de seus ditos mais conhecidos, tais como: `não há esta coisa que se chama um bebê', `nós somos realmente pobres se somos somente sãos' ou `é uma alegria estar escondido, mas é um desastre não ser encontrado', imediatamente nos sentimos impressionados e admirados. Por que ninguém disse isto antes? Parece ser tão simples e no entanto tão verdadeiro" (p. 18). Mais adiante, referindo-se a essa aparente simplicidade, Innes-Smith comenta as dificuldades que ela acarretou - "Winnicott tem sido freqüentemente mal compreendido, é muito difícil traduzi-lo em outra língua e mesmo leitores que estão acostumados com sua maneira de pensar podem se perder vez por outra (...) pois estamos aqui no domínio do paradoxo que impregna seu pensamento e escritos. É um paradoxo que tem de ser tolerado e não resolvido, pois qualquer tentativa de fazê-lo põe em risco o elemento essencial de sua comunicação" (p. 19). Ao final de seu texto, em que desenvolve idéias sobre "Colapso, loucura e saúde", o Dr. Innes-Smith nos presenteia com uma comunicação pessoal, reveladora da personalidade e da atitude clínica de Winnicott: "Em um seminário de um pré-congresso em Londres, há muitos anos atrás, Winnicott e um de seus supervisionandos apresentaram uma sessão de supervisão ante uma audiência de analistas de todo o mundo. Durante a sessão, quando foi citada a freqüente referência que o paciente fazia sobre suicídio, eu entreouvi dois jovens membros da audiência, sentados à minha frente, expressar consternação. "Mas este paciente é um suicida! Winnicott não está pensando em hospitalização? Ele não está tomando esta ameaça a sério?", eles comentaram preocupados. Quando esta questão veio à tona, um deles se levantou: "Dr. Winnicott, parece-me que o paciente está, a toda hora, expressando sérias ameaças de suicídio. O sr. não sente que poderia ter sido discutido com seu supervisionando a possibilidade de hospitalização?" Winnicott ficou calado por um momento, de um modo muito característico seu, e então disse: "Mas você vê, talvez o paciente necessitasse sentir que ele poderia cometer suicídio". O tempo não permitiu uma discussão posterior, e eu temi pensando que pelo menos dois membros da audiência foram embora sem estar absolutamente reassegurados do senso de responsabilidade de Winnicott. Menciono esta anedota porque ela ilustra vários aspectos diferentes de Winnicott que temos de reconhecer para chegarmos a uma apreciação de seu verdadeiro valor.

À parte um lado seu de caráter levemente travesso e provocativo, que era freqüentemente evidenciado nas trocas com aqueles que lhe pareciam rígidos ou insensíveis, nós podemos deduzir de sua resposta várias qualidades particulares de seu pensamento e atitude (...) ele confrontou seus detratores com o paradoxo de que alguns pacientes precisam sentir que eles podem cometer suicídio, a fim de sentir que estão realmente vivos (...). Discutindo as diferentes categorias de organizações falso self, por exemplo, Winnicott postulou que o verdadeiro self tem como principal objetivo a busca de condições nas quais o self verdadeiro pudesse emergir. O fracasso em encontrar essas condições pode conduzir ao suicídio, organizado pelo falso self. No momento em que o analista começa a entrar em contato com o self verdadeiro do paciente, falar em suicídio pode ser o início do reconhecimento de sua existência. Winnicott cita o paciente que disse: "A única vez em que eu senti esperança foi quando você me falou que não podia ver esperança alguma, e você continuou com a análise".

(...) Ele tinha uma coragem fundamental ante as manifestações primitivas do inconsciente arcaico, que ajudou muitos de seus pacientes a sobreviver à sua própria destrutividade, inveja e ódio. (pp. 28-9)

A propósito, Saul Peña, que fez supervisões com Winnicott, termina o seu depoimento trazendo palavras que dele ouviu: "A Psicanálise mudará e crescerá em direções que não podem ser previstas, através da coragem, confiança, franqueza, independência e originalidade, nossa e de nossos pacientes" (p. 36).

O primeiro volume prossegue com os sucessivos autores abordando os textos e conceitos de Winnicott como o espaço potencial e o fenômeno transicional, a personalização, a capacidade de estar só, o "psyche-soma", o retraimento e a regressão. Alguns oferecem contribuições bastante curiosas, como a de Alain Gibeault, que mostra representações gráficas da pré-história como um testemunho de espaço potencial onde a criatividade se expressa. Na impossibilidade de resumir um tão grande número de trabalhos, pleno de vinhetas e interessantes casos clínicos, podemos tomar de empréstimo as palavras de Joyce McDougall, apresentando a publicação, na contracapa do livro: "Este livro faz mais do que oferecer um estudo notável das idéias imaginativas e inovadoras de Winnicott. Os colaboradores, eles próprios, são pensadores inventivos e escritores natos, e trazem ao leitor um insight enriquecido da herança incomparável que Winnicot ofertou ao mundo psicanalítico".

Nenhum outro autor corresponderia melhor a essa imagem de um enriquecimento das idéias de Winnicott quanto André Green, ao desenvolver "A intuição do negativo em O brincar e a realidade" (p. 43). Nesse seu texto, André Green rastreia o conceito do negativo (sua criação de 1993) na obra citada de Winnicott e nos oferece, por exemplo, esta redescoberta: (...) "definindo o objeto transicional como uma possessão não-eu, [Winnicott] propõe um novo ângulo ao conceito de objeto, diferente de sua conotação usual positiva, quer como um objeto que satisfaz a necessidade, um objeto de desejo ou um objeto fantasiado. O objeto é aqui definido como um negativo de mim" (p. 44). Após esta conceituação relacionada ao desenvolvimento normal, Green mostra que a idéia do negativo reaparece quando Winnicott passa a descrever a ocorrência de uma patologia, com a falha do objeto externo conduzindo à morte do objeto interno ou sua transformação em objeto persecutório. Como o bebê só pode dispor de um objeto transicional se o objeto interno está vivo, é real e suficientemente bom, a inadequação do objeto externo faz com que o objeto transicional perca o seu significado. A partir de então, a criança passa a levar a falha, o vazio em seu mundo interno. André Green acrescenta, porém, que essa falha, ao invés de se referir ao vazio simplesmente, ou a algo que foi perdido, pode se tornar o substrato para o que é real e, mais ainda, ele comprova como Winnicott, em diferentes momentos, compartilha essa idéia sem a estabelecer teoricamente, como ele, Green, o faz. Isso se constata, sobretudo, na descrição de seus casos clínicos, como o de uma paciente que sentia ser seu primeiro analista (de quem ela muito reclamava) sempre mais importante, para ela, do que o atual. A paciente era capaz de reconhecer que Winnicott lhe fazia um bem maior, mas confessava que gostava mais do anterior. Diz, então, uma frase que é uma espécie de selo para caracterizar a situação: "O negativo dele é mais real do que o positivo de você" (p. 48). E quando, mais adiante, a respeito de estar assombrada a vida inteira pelo medo de perder seus animais, seus próprios filhos, tudo o que possuía, ela acrescenta: "Tudo o que eu consegui é o que eu não tive", Winnicott responde: "O negativo é a única coisa positiva" (p. 49). André Green conclui que a contribuição de Winnicott foi mostrar como esse negativo, essa não-existência, tornara-se a única coisa real para a paciente e, por isto, ela lutava para que fosse mantida.

O segundo volume se dedica, em boa parte, aos bebês, às mães e aos pais, esse objeto de estudo tão importante para Winnicott, como pediatra e psicanalista. Dentre os trabalhos relacionados, gostaria de destacar o de Ken Wright (p. 4), que trata da "Interface entre a mãe e o bebê". Em suas palavras: "A obra de Winnicott é, acima de tudo, uma tentativa de compreender a inter-relação de mãe e bebê durante o período pré-verbal. Nesse período, são ações, não palavras, que contam. Mas ele compreendeu relativamente tarde que as faces são importantes de uma maneira especial ("O papel de espelho da mãe e da família no desenvolvimento da criança", em O brincar e a realidade - 1967). Porque transmitem expressões emocionais, elas desempenham uma parte vital no relacionamento primitivo. O que aparece na face do bebê ajuda a mãe a apreender o seu estado de alma; enquanto as respostas no rosto da mãe confirmam e tornam real o nascente senso de self do bebê (...) `Está claro, agora, que pelo menos nos primeiros meses de vida, a expressão facial é o maior meio de comunicação entre a mãe e a criança. Há uma verdadeira conversa de sorrisos e gestos (...) Eu desejo discutir certos aspectos do reconhecimento facial que podem sugerir um precursor primário da função simbólica'. (p. 5)".

Marco Armellini, aproveitando a relação entre Pinocchio e Geppeto, discute "O pai como função, ambiente e objeto", fazendo justiça a Winnicott, que é, comumente, acusado de ter negligenciado o papel do pai no desenvolvimento da criança. "Quando Winnicott fala de mãe e pai, de fato, ele se refere não somente a pais e mães reais, mas também a funções, enraizadas nas pessoas, mas não circunscritas por suas fronteiras físicas" (p. 37). O autor acentua a função protetora do pai, que não só permite à mãe se afastar da realidade externa e se voltar exclusivamente para o seu bebê, mas também estabelece limites. Cita, então, um trecho de "Tudo começa em casa": "A confiança da mãe em seu marido (...) torna possível à criança explorar cruamente as atividades destrutivas que se relacionam a movimentos em geral e, também, mais especificamente, à destruição que tem a ver com as fantasias acumuladas em torno do ódio".

Caracteriza, também, esse segundo volume, um estudo comparativo entre a obra de Winnicott e de outras figuras importantes do movimento psicanalítico. São assim revisitados, dentro do contexto do pensamento de Winnicott, autores como Ferenczi, Balint, Tustin, Bion e Jung. Alguns assuntos poderiam ser citados, estimulando a curiosidade do leitor, como a questão do trauma em Ferenczi, o analista maternal, os objetos autistas de Tustin e o objeto transicional, a preocupação materna primária e reverie, e tantos outros que não cabem no espaço de uma resenha.

Essa publicação, por sua extensão e profundidade, é o testemunho da vitalidade das idéias de Winnicott, a fonte onde tantos têm abastecido sua capacidade criadora, levando-nos a concordar com Green quando conclui ser Winnicott, de fato, a maior mente da psicanálise surgida desde Freud.

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: edvilete@unisys.com.br

Recebido em 3 de agosto de 2003
Aprovado em 3 de setembro de 2003