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Natureza humana
versão impressa ISSN 1517-2430
Nat. hum. v.6 n.1 São Paulo jun. 2004
ARTIGOS
Heidegger e a possibilidade de uma antropologia existencial
Heidegger and the possibility of an existential anthropology
André Duarte
Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná - UFPR
RESUMO
A presente investigação pretende discutir alguns aspectos da reflexão heideggeriana sobre a ciência, abordando tanto as suas análises pertencentes ao período do projeto da ontologia fundamental, apresentadas em Ser e tempo, quanto alguns aspectos das suas reflexões tardias, em que o filósofo pensou a possibilidade de uma antropologia filosoficamente fundada, nos Seminários de Zollikon. A hipótese que orienta esta investigação é a de que, a despeito das importantes transformações pelas quais passou o pensamento de Heidegger após a Kehre, o traço que confere continuidade à sua reflexão sobre a ciência é a persistência de uma análise desconstrutiva dos seus pressupostos ontológicos, por meio da qual o primado moderno concedido às ciências é subvertido pela contínua submissão da ciência à reflexão filosófica, isto é, ontológica. Dessa postura coerente e persistente, resultam tanto a crítica aos perigos de uma atitude objetivadora e coisificadora do humano por parte das ciências, quanto o vislumbre da possibilidade de uma ciência ôntica do humano existencialmente fundada.
Palavras-chave: Heidegger, Ontologia fundamental, Ciência, Antropologia existencial.
ABSTRACT
The present investigation intends to discuss Heidegger's reflections on science by focusing both on his analysis in Being and Time and on his reflections concerning the possibility of an existentially grounded anthropology, presented in the Zollikoner Seminare. In spite of the important transformations that affected Heidegger's thinking concerning science after the Kehre, I will argue that what unifies his understanding throughout his work is the deconstructive subordination of science to ontological investigation. As such, Heidegger was able to criticize the dangerous objectifying and reifying tendencies implied by traditional scientific approaches to the human being, specially those ontic approaches that do not consider the possibility and necessity of the existential analytic. The corollary of these criticisms is Heidegger's consideration of the possibility of constituting an existentially grounded science of man, which could be defined in terms of an existential anthropology.
Keywords: Heidegger, Fundamental ontology, Science, Existential anthropology.
Já faz muito tempo, possivelmente desde a segunda metade do século XIX, que se tornou um truísmo afirmar que vivemos em uma época científico-tecnológica, muito embora, talvez, ainda não saibamos realmente o que isso quer dizer. Para a imensa maioria, trata-se de mera evidência inquestionável: vivemos em um mundo tecnológico e científico porque produzimos continuamente milhares de aparatos técnico-científicos. Heidegger foi um dos poucos pensadores a quem ocorreu pensar que essa fórmula bem poderia ser invertida: será que não produzimos tais aparatos porque vivemos em um mundo no qual a totalidade dos entes é definida pela técnica e pela ciência? No entanto, tal desconfiança crítica não parece ter despertado muitos ecos no entendimento de nossa situação contemporânea. Afinal, já estamos por demais acostumados à certeza de que vivemos no melhor dos mundos possíveis, mesmo se admitimos que apenas uma elite bem-aventurada desfruta das benesses da ciência e da tecnologia e se nos assustamos com os prognósticos que desenham um futuro sombrio de total controle tecnológico em meio à natureza devastada. Oscilando continuamente entre esses dois extremos, sempre atentos às mais conflitantes informações que a mídia nos oferece sobre o assunto, não conseguimos superar uma atitude ambígua e superficial em relação à ciência e à técnica, pois abordamos suas maravilhas e misérias de maneira calculista e sentimental, conforme as circunstâncias, sem nunca chegar a pensar o que significa viver em um mundo científico-tecnológico, isto é, sem chegar a refletir sobre a relação essencial entre modernidade, ciência e técnica. Há mais de trinta anos, Heidegger já caracterizara essa superficialidade atordoada da mídia diante da ciência e da técnica, quando afirmou que
[...] vivemos numa época estranha, singular, inquietante. Quanto mais a quantidade de informações aumenta de modo desenfreado, tanto mais decididamente se ampliam o ofuscamento e a cegueira diante dos fenômenos. Mais ainda, quanto mais desmedida a informação, tanto menor a capacidade de compreender o quanto o pensar moderno torna-se cada vez mais cego e transforma-se num calcular sem visão, cuja única chance é contar com o efeito e, possivelmente, com a sensação. (Heidegger 1987, p. 96; tradução brasileira pp. 101-2)
O que torna difícil compreender as reflexões heideggerianas a respeito da ciência e da técnica é o fato de que ele as pensou em sua essência, sem se deixar contaminar pelo juízo previamente disseminado sobre os benefícios ou malefícios do mundo cientificista em que existimos. Sua reflexão filosófica a respeito da ciência e da técnica não se deixa confinar nos estreitos limites de uma avaliação positiva ou negativa, otimista ou pessimista a respeito dos aparelhos técnicos que povoam o mundo em que vivemos, mas se impõe como um amplo diagnóstico crítico do presente, tendo como contraponto a avaliação da tradição filosófica em seu caráter determinante com relação ao destino da história ocidental. Mais importante do que louvar ou lamentar os efeitos da ciência e da tecnologia, o que, de qualquer modo, não levaria a lugar algum, é pensar os seus fundamentos ontológicos, reconhecer o presente como um destino em que estamos lançados e questionar o advento de um futuro que, talvez, possa nos trazer algo outro, um novo começo, e não apenas mais do mesmo.1 Heidegger jamais investiu contra a ciência, mas procurou considerar criticamente a "falta de reflexão com relação a si mesma que nela predomina" (Heidegger 1987, p.124; tradução brasileira, p. 122). O que realmente importa, portanto, é o cuidado em pensar o que a ciência não pode e nem pretende pensar, abrindo, deste modo, a brecha para o questionamento da produtividade avassaladora do fazer científico, que o filósofo julgou ser capaz de levar à própria destruição ou desessencialização do humano no processo de uma crescente facilitação do existir. Em outras palavras, o que Heidegger pretendeu foi questionar a pretensão absolutista da ciência, que assume para si a prerrogativa de parâmetro exclusivo de tudo o que é verdadeiro no mundo, mantendo-se cega para os pressupostos ontológicos que fundamentam seus procedimentos metodológicos, os quais, por sua vez, podem revelar-se perigosos para a humanidade. Em momento algum Heidegger propôs que as ciências fossem abandonadas, o que seria absurdo, mas apenas que nos desvencilhemos das mistificações midiáticas a respeito das manifestações tecnológico-científicas, a fim de poder pensá-las:
[...] o modo como se vê a ciência e a técnica modernas faz a superstição de povos primitivos parecer uma brincadeira de crianças. Quem, pois, no atual carnaval desta idolatria (ver o tumulto sobre a navegação espacial) ainda quiser conservar alguma reflexão, quem se dedica hoje em dia à profissão de ajudar as pessoas psiquicamente enfermas, deve saber o que acontece; deve saber onde está historicamente; precisa esclarecer-se diariamente de que aqui está operando um destino antigo do homem europeu; ele precisa pensar de maneira histórica e abandonar a absolutização incondicional do progresso em cujo rastro o ser-homem do homem ocidental ameaça sucumbir. (Heidegger 1987, p. 133; tradução brasileira p. 129)
A presente investigação pretende discutir alguns aspectos da reflexão heideggeriana sobre a ciência, abordando tanto as suas análises iniciais, pertencentes ao período do projeto da ontologia fundamental, apresentadas em Ser e tempo, quanto alguns aspectos de suas reflexões tardias, em que o filósofo pensou a possibilidade de uma antropologia filosoficamente fundada, nos Seminários de Zollikon. A escolha desses dois textos, distantes entre si em mais de trinta anos, justifica-se na medida em que o próprio Heidegger retomou os conceitos elaborados na grande obra de 1927 nos seminários oferecidos entre 1959 e 1969, a convite de Medard Boss, a um pequeno grupo de médicos, psiquiatras e psicólogos. Essa retomada dos existenciais enseja e requer a interrogação do traço que unifica ambas as fases de sua reflexão a respeito da ciência e, em particular, a respeito da possibilidade de uma ciência ôntica do humano filosoficamente fundada, a despeito de todas as transformações pelas quais seu pensamento passou durante aquele período. A hipótese que orienta a presente investigação é de que o traço que confere continuidade à reflexão filosófica de Heidegger sobre a ciência em geral e, particularmente, sobre a possibilidade de uma ciência do humano existencialmente fundada é a persistência de uma análise desconstrutiva dos pressupostos ontológicos da ciência moderna. Esse procedimento filosófico se manifesta tanto no projeto da ontologia fundamental, quando Heidegger estabeleceu o caráter fundado do fazer científico por meio da análise ontológica do ser-aí, quanto na fase tardia de sua reflexão, em que o filósofo distinguiu entre o pensamento científico-calculador e o pensamento meditativo do ser. Com essa atitude coerente e persistente, Heidegger buscou enfraquecer as pretensões absolutistas da ciência na modernidade, a fim de preparar-se para a preservação da acontecencialidade do ser-aí, isto é, de sua abertura co-respondente para o ser. Para o filósofo, esta era a condição fundamental para o advento de uma nova época e para o desenvolvimento de novas formas de conhecimento sobre o ser do homem, as quais pudessem escapar aos perigos da objetivação coisificadora desse ente em particular.
O desenvolvimento dessa hipótese interpretativa não pode negar a mutação ocorrida no pensamento heideggeriano após o período da ontologia fundamental, muito embora, no âmbito do presente texto, esse assunto complexo só possa ser abordado por meio de breves indicações gerais. A título de esclarecimento, pode-se afirmar que após a chamada "viragem" (Kehre) no modo como Heidegger pensou as relações entre o ser-aí e o ser, efetivada por volta dos finais dos anos 30, a ciência e a técnica assumiram uma importância decisiva em seu pensamento, a qual não encontra qualquer correlato nos textos que circundam o grande projeto de Ser e tempo. No período de Ser e tempo, a desconstrução do moderno primado científico visava apenas a demonstrar a gênese do comportamento científico em seu caráter derivado, isto é, fundado na compreensão pré-teórica de ser que distingue o ser-aí ôntica e ontologicamente. Neste primeiro momento, importava a Heidegger distinguir as tarefas das ciências ônticas da tarefa específica da filosofia enquanto ontologia fundamental. Como afirmou Loparic, a conseqüência mais direta desse primeiro procedimento desconstrutivo é a perda, por parte da ciência, de sua "originalidade e exclusividade e, com isso, a [perda de] sua força sobre o existir humano" (Loparic 1999, p. 28). Em reflexões posteriores, entretanto, sobretudo a partir dos anos 40 e 50, o procedimento desconstrutivo torna-se muito mais radical. A desconstrução passa a fundar-se na exigência de "superação" (Überwindung) da ciência e da própria filosofia, por meio de um pensamento meditativo (Besinnung), pós-metafísico, que se coloca à escuta dos envios do ser. Novamente, Loparic apresenta uma explicação sintética dessa transformação no modo como Heidegger pensou a ciência e a técnica, ao afirmar que, após a Kehre, Heidegger não
[...] busca mais tão-somente a origem ontológica do modo de ser do homem em que se fundamenta a metafísica e a ciência, mas o ultrapassamento (Überwindung) definitivo de tais formas de ser. Não se trata mais de definir um conceito ontologicamente verdadeiro da metafísica ou da ciência a partir do compreender pré-metafísico e pré-científico. A tarefa, agora, é a de substituir o modo de pensar metafísico e científico em geral por um modo de pensar novo, não metafísico e não científico, e, nesse sentido, ultrapassar a teorização metafísica e científica enquanto tal. (Loparic 1999, p. 28)
A partir dessa perspectiva radicalmente antimetafísica, Heidegger esclarece e enfatiza os riscos e perigos do procedimento de objetivação (Vergegenständlichung) que é intrínseco às ciências, lembrando-nos que ele pode levar tanto à transformação da terra em um lar inabitável, quanto à própria "autodestruição do ser-homem" (Selbstzertörung des Menschseins), como afirma nos Seminários de Zollikon (Heidegger 1987, p. 124; tradução brasileira p. 122). Nesse segundo procedimento desconstrutivo, Heidegger já não questiona mais o processo científico da objetivação científica no contexto da reconstituição da gênese da atitude teórica, como em Ser e tempo, mas o pensa como resultante do moderno envio epocal do ser, em vista do qual os entes em sua totalidade se dão ao homem enquanto objeto para as representações do sujeito. Aqui, objetivação não caracteriza apenas o ato fundamental por meio do qual se institui um determinado campo de objetos de análise, pois o que agora interessa a Heidegger é demonstrar que a objetivação é o procedimento científico que especifica a modernidade. Na modernidade, os entes são descobertos por análises metódicas que transformam o próprio apresentar-se das coisas, pois, a partir de então, elas são compreendidas por meio das representações do sujeito pensante, que se torna assim o senhor do todo dos entes:
Método é a maneira como o ente, no caso a natureza, é tematizado. Isto acontece ao ser representada como ob-jeto (Gegen-stand), como objeto (Objekt). Nem a Antigüidade nem a Idade Média representaram o ente como ob-jeto (Gegen-stand). Mas a representação moderna da natureza, sua objetivação, é dirigida pela intenção de representar os processos da natureza de modo que eles sejam pré-mensuráveis em seu decorrer, podendo assim ser controláveis. A objetivação da natureza, assim determinada, seria então o projeto da natureza como um âmbito objetivo que pode ser dominado. Os passos decisivos para o desdobramento desse projeto da natureza para a dominabilidade foram realizados por Galileu e Newton. (Heidegger 1987, p. 175; tradução brasileira pp. 159-60; tradução modificada)
Mais uma vez, é preciso repetir que nada disso implica uma atitude de hostilidade do filósofo em relação às ciências no período de sua reflexão tardia, como se a exigência de superação da metafísica e do pensamento calculador científico necessitassem de um abandono ou recusa absoluta das ciências. Antes, trata-se de abrir espaço para formas não metafísicas de pensamento, o que, por sua vez, também pode favorecer a constituição de disciplinas científicas existencialmente fundadas, as quais escapem dos dilemas e perigos em que a pesquisa científica tradicional se enreda. Se essa hipótese estiver correta, então seria concebível uma ciência do humano existencialmente fundada, capaz de contornar os limites epocais do fazer científico moderno e de inaugurar novas formas de conhecimento do humano. Uma comprovação dessa hipótese se encontra no fato de Heidegger, nesse período tardio de sua reflexão, se dedicar a pensar, ainda que apenas em breves indicações, a possibilidade de uma ciência ôntica do humano existencialmente fundada, capaz de avaliar as patologias derivadas do ek-istir em uma civilização técnico-científica e industrial.
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Em Ser e tempo, Heidegger afirma, no § 3, que "o questionamento ontológico é mais originário do que as pesquisas ônticas das ciências positivas", subordinando, também, a própria pesquisa ontológica regional à necessidade de um esclarecimento da questão do sentido do ser enquanto tal, pois "a questão do ser visa às condições de possibilidade das próprias ontologias que antecedem e fundam as ciências ônticas" (Heidegger 1986, § 3, p. 11; tradução brasileira v. 1, p. 37). Percebe-se aqui a estruturação de uma hierarquia fundacional em que o questionamento pelo sentido do ser, tema e tarefa da ontologia fundamental, é considerado como a condição prévia, tanto para qualquer ontologia que se ocupe do esclarecimento do ser de um ente de uma determinada região, quanto para o procedimento das ciências positivas, que não atinam para a questão do ser, pois visam aos entes que analisam apenas em suas propriedades entitativas. Não caberia à filosofia a tarefa suplementar de um mero esclarecimento epistemológico das diferentes metodologias científicas, como se as próprias ciências não pudessem aceder por si mesmas a um claro entendimento de seus métodos, mas, sim, fornecer às diversas ciências uma interpretação sistemática e esclarecedora do ser dos entes com os quais elas se ocupam. Para isso, entretanto, seria necessário um esclarecimento prévio e suficiente do sentido do ser em geral, sob pena de a própria tarefa ontológica permanecer aquém de seu propósito primeiro.
Em Problemas fundamentais da fenomenologia, também de 1927, Heidegger emprega uma terminologia que não se encontrava presente em Ser e tempo, mas que não é contraditória com a distinção proposta naquela obra, ao afirmar que a filosofia não é uma "ciência dos entes", mas uma "ciência do ser", isto é, ontologia, uma "interpretação teórico-conceitual do ser, de suas estruturas e possibilidades" (Heidegger 1989, p. 15). As ciências positivas, por sua vez, são denominadas "ciências não-filosóficas" e têm por tema os entes em sua diversidade, tais como previamente dados ou manifestos à compreensão de ser constitutiva do ser-aí. A distinção heideggeriana entre filosofia e ciência positiva está assentada, portanto, na distinção crucial entre questionamento do ser e investigação do ente, entre questionamento ontológico e investigação ôntica em suas diversas possibilidades. Esse procedimento se repete em vários de seus cursos dos finais dos anos 20, nos quais ele distingue sistematicamente filosofia, visão de mundo, ciência e teologia. No entanto, como haverá de se constituir o objeto de análise de uma ciência filosófica que assume que o ser não é um ente? A conhecida resposta heideggeriana é a seguinte: só se pode pretender objetivar o ser interrogando-se um ente particular em seu ser, e é assim que se introduz no corpo da ontologia fundamental a tarefa da análise existencial do ser do ente que nós mesmos somos, o ente que, sendo uma compreensão de ser, pode entregar-se a diversos comportamentos no mundo, inclusive à atividade científica: "como atitude do homem, as ciências possuem o modo de ser desse ente (homem). Nós o designamos com o termo ser-aí. A pesquisa científica não é o único modo de ser possível desse ente e nem sequer o mais próximo" (Heidegger 1986, § 4, p. 11; tradução brasileira v. 1, p. 38). Temos aqui um segundo procedimento de subordinação do primado tradicional concedido à ciência e à atitude epistemológica, agora, não mais em relação à tarefa filosófica da objetivação do ser, mas já em relação aos comportamentos cotidianos práticos ou operativos do ser-aí com os entes intramundanos. Isso não significa que Heidegger pretenda simplesmente inverter a relação tradicional entre teoria e prática, pois é preciso desmontar os pólos dessa oposição, demonstrando que ela tem de ser desconstruída até a sua raiz fundadora, a abertura da compreensão de ser pré-teórica ou pré-temática do ser-no-mundo.
A estrita vinculação entre a tarefa da ontologia fundamental e a análise ontológica do ente que nós mesmos somos, isto é, entre ciência do ser e análise existencial, também não implica que a analítica do ser-aí seja uma ontologia regional prévia à constituição de uma ciência ôntica positiva do homem. Já no § 5 de Ser e tempo, Heidegger iniciara a demarcação explícita entre a análise existencial-ontológica do ser-aí e a possibilidade das análises empreendidas por ciências existenciárias como a antropologia, a historiografia, a ética, a política e a antropologia, advertindo contra qualquer leitura antropológica de sua obra. Como ele esclareceria anos mais tarde, nos Seminários de Zollikon, do ponto de vista formal, a analítica do ser-aí já é a ontologia que prepara a questão fundamental do ser como ser, isto é, ela já é a própria ontologia fundamental, de sorte que seria um erro interpretar os resultados obtidos em Ser e tempo como se eles dissessem respeito a uma antropologia (Heidegger 1987, p. 159; tradução brasileira p. 148). Por certo, Heidegger não pretendeu negar a cientificidade do conhecimento produzido pelas ciências positivas do homem, nem procurou negar a própria possibilidade da produção de conhecimento científico a respeito do ente humano. O problema, por outro lado, é que os cientistas se interessam, sobretudo, pelos resultados objetivos de suas análises, de sorte que é apenas em raríssimas oportunidades que as ciências "despertam de seus sonhos e abrem os olhos para o ser do ente que investigam" (Heidegger 1989, p. 75). Na maioria das vezes, os cientistas que praticam as ciências positivas desconhecem a "necessidade e possibilidade do conhecimento filosófico" (Heidegger 1986, § 5, p. 16; tradução brasileira v. 1, p. 44) isto é, engajam-se em um fazer científico existenciário, ôntico, que não chega a reconhecer a exigência e a importância da analítica existencial. Portanto, a distinção entre a tarefa da analítica existencial e a tarefa das ciências que tematizam o homem, como a biologia, a psicologia e a antropologia, entre outras, reside em que, a despeito de todos os resultados objetivos alcançados, tais ciências ônticas não atingem "uma resposta precisa e suficientemente fundada, do ponto de vista ontológico, para a questão do modo de ser deste ente que nós mesmos somos" (Heidegger 1986, § 10, p. 50; tradução brasileira v. 1, p. 87). Uma vez mais, isto não implica julgar negativamente as análises empreendidas por tais ciências, nem acusar uma carência de cientificidade por parte daqueles que as praticam, pois o que importa é considerar as insuficiências ontológicas necessárias, inerentes à própria estrutura do conhecimento científico. Em Problemas fundamentais da fenomenologia, Heidegger esclarece o dilema que caracteriza as ciências positivas da seguinte maneira: ao mesmo tempo em que, por um lado, toda ciência positiva pressupõe a delimitação prévia da constituição ontológica do ente que tematiza, pois tem de distingui-lo dos entes que pertencem a outras regiões, por outro lado, a própria constituição ontológica dessas diferentes regiões sempre lhe permanece inacessível; na medida em que a ciência lida apenas com os entes, e o ser não é nada entitativo, ela jamais acede à tematização ontológica, que requer uma abordagem que apenas a filosofia pode oferecer (Heidegger 1989, p. 72). As ciências lidam com entes com os quais o ser-aí já está cotidianamente familiarizado, mas não tematizam, nem podem tematizar, a compreensão a priori sobre a qual tal familiaridade está assentada e, desse modo, também não podem ter acesso à constituição ontológica do ente que investigam e com relação ao qual obtêm resultados verificáveis a despeito de sua cegueira ontológica (Heidegger 1989, pp. 74-5). As ciências são, portanto, "necessariamente insuficientes" (notwendig unzureichend) em sua própria estrutura científica e apenas o questionamento ontológico poderia trazer novos impulsos (Heidegger 1986, § 10, p. 45; tradução brasileira v. 1, pp. 81-2).2
Com respeito às ciências que tomam o homem como seu objeto de análise, como a psicologia, a psiquiatria, a psicopatologia, a psicossomática, a antropologia etc., uma das possíveis conseqüências derivadas da cegueira ontológica apontada por Heidegger, isto é, do fato de elas não reconhecerem os fundamentos ontológicos que já estão sempre em operação quando os cientistas procedem à análise do ente em questão, é que tais ciências acabam por conceber o homem da mesma maneira como procederiam se analisassem um animal, as plantas ou qualquer outro ente. Em outras palavras, elas o analisam tomando-o como um ser meramente presente, que ocorre no mundo e que é dotado de tais e tais propriedades determinadas, que os cientistas buscam descobrir e enunciar em um sistema de proposições verdadeiras, passíveis de obter comprovação. Não é por acaso que tais ciências caracterizam o acontecente humano (Loparic) como um ente determinado por relações causais, passível de mensuração, previsão e manipulação, chegando-se até ao ponto em que "não se pergunta mais quem é e como é o homem; em vez disso, ele é representado a priori a partir da manipulabilidade técnica do mundo" (Heidegger 1987, p. 185; tradução brasileira p. 167). Já em Ser e tempo, Heidegger diagnosticava esse esquecimento do ser do homem nas modernas definições de cunho antropológico que o concebem como animal dotado de alma, psiquismo, racionalidade etc., sempre recorrendo à suposta evidência do que está meramente presente no mundo (Heidegger 1986, § 10, p. 49; tradução brasileira v. 1, p. 86). Anos mais tarde, ele mantinha ainda a mesma concepção a respeito das distorções ontológicas promovidas pelas modernas ciências do homem, muito embora, agora, ele as pensasse em termos de uma distorção epocal, necessária, constituinte da modernidade e, portanto, do ek-sistir moderno:
No momento, a Psicologia, a Antropologia e a Psicopatologia consideram o homem como objeto (Gegenstand) num sentido amplo, como algo simplesmente presente (Vorhandenes), como uma área do ente, como a totalidade do que é verificável no ser humano de acordo com a experiência. Negligencia-se, com isto, a questão a respeito do que e de como o homem é enquanto homem. (Heidegger 1987, p. 197; tradução brasileira p. 176)
Bem entendido, a crítica heideggeriana das ciências ônticas do homem, que objetivam seu ser por meio do recurso à concepção ontológica da mera presença, não significa que Heidegger identifique a categoria da Vorhandenheit com a do objeto científico (Objekt), que é pensada como uma construção particular da atividade teórica. Do mesmo modo, tal crítica tampouco implica que Heidegger pense a atividade da objetivação científica exclusivamente em termos da apreensão teórica do ente sob o registro ontológico da mera presença subsistente, o que, conseqüentemente, inviabilizaria a possibilidade de uma ciência ôntica do humano existencialmente fundada. Vejamos, primeiramente, como Heidegger constrói a categoria do objeto científico a partir da tematização do ente intramundano como meramente presente, para, em seguida, discutir a possibilidade, não tematizada em Ser e tempo, mas nem por isto menos possível, de uma objetivação não-coisificante do ser do humano, isto é, capaz de reconhecer-lhe o caráter existencial, tal como é sugerida no texto Seminários de Zollikon.
A distinção entre as categorias do objeto científico e da mera presença está inserida no contexto mais amplo da demonstração de que tanto o comportamento ocupacional teórico-científico quanto o comportamento ocupacional operativo ou prático estão fundados na estrutura ontológica da compreensão projetiva de ser do ser-no-mundo, a qual é prévia ou a priori em relação a qualquer objetivação possível. A introdução das categorias da Vorhandenheit e da Zuhandenheit desloca o eixo do quadro conceitual da epistemologia moderna, que pensa a relação entre o homem e os entes segundo o modelo do sujeito isolado, que sairia da cápsula de sua interioridade para conhecer e capturar um objeto isolado do mundo exterior, trazendo-o de volta a si como uma ave de rapina. Em primeiro lugar, as representações metafísicas do dentro e do fora, subjacentes às concepções do homem como sujeito e do mundo como soma de todos os objetos, obscurecem o fato de que o ser-aí, como ser-no-mundo, já está sempre junto ao ente compreendido previamente no curso de suas ocupações mundanas. Assim, com relação ao primado da categoria moderna da subjetividade, cabia à analítica
[...] mostrar que o princípio de um eu e sujeito, dados inicialmente, deturpa, de modo fundamental, o fenômeno do ser-aí. Toda idéia de "sujeito" - enquanto permanecer não esclarecida preliminarmente mediante uma determinação ontológica de seu fundamento - reforça ontologicamente o ponto de partida do subjectum (hipokeímenon), por mais que, do ponto de vista ôntico, se possa arremeter contra a "substância da alma" ou a "coisificação da consciência" (Verdinglichung des Bewußtseins). (Heidegger 1986, § 10, p. 46; tradução brasileira v. 1, p. 82)
Em outras palavras, o acesso ao "ser não coisificado do sujeito, da alma, da consciência, do espírito, da pessoa" (Heidegger 1986, § 10, p. 46; tradução brasileira v. 1, p. 82) depende de uma análise da origem da coisificação ontológica, o que, por sua vez, exige uma interrogação mais originária do modo de ser do homem, do ente que compreende ser em seu próprio ser. Por outro lado, com relação à categoria epistemológica do objeto, cabe primeiramente ressalvar que sequer é adequado falar de objeto para designar os entes intramundanos encontrados na lida cotidiana, pois, aí, "o ente não é objeto (Gegenstand) de um conhecimento teórico do `mundo'" (Heidegger 1986, § 15, p. 67; tradução brasileira v. 1, p. 108), mas é encontrado em seu caráter ontológico de manualidade (Zuhandenheit). Assim, o que se dá a compreender é um instrumento em sua estrutura de referência a um todo instrumental e, deste modo, a um todo de destinações (Bewandtnisganzheit) que perfaz e configura o todo das relações de significância (Bedeutsamkeit). O encontro dos intramundanos em sua manualidade, por sua vez, já se dá sempre no âmbito de uma familiaridade com o mundo (Weltvertrautheit) constitutiva da compreensão de ser do ser-no-mundo; o próprio mundo, definido como a totalidade originária da trama total dos sentidos projetados, já tem de estar previamente aberto, isto é, compreendido e elaborado na circunvisão do ser-aí para que todo e qualquer encontro do intramundano seja possível. Em poucas palavras, nem a ocupação cotidiana com os entes intramundanos é uma atividade primariamente cognitiva do sujeito isolado, nem o ente assim descoberto pode ser caracterizado como objeto isolado do mundo exterior.
Essas análises são introduzidas nos §§ 13, 15 e 16 de Ser e tempo, mas somente ganham maior desenvolvimento, sobretudo no que diz respeito à questão da ciência e da constituição do objeto científico, no § 69 b da analítica, em que Heidegger introduz o conceito existencial de ciência, que ele distingue do seu conceito lógico. Não se trata da abordagem de duas ciências distintas, mas de duas abordagens distintas da ciência: ao passo que o conceito lógico de ciência a compreende "no tocante a seus resultados, determinando-a como um `sistema de fundamentação de sentenças verdadeiras, isto é, válidas'", o conceito existencial de ciência, por sua vez, visa a determinar a gênese do comportamento teórico enquanto tal, seguindo o fio condutor da seguinte questão: "Quais as condições de possibilidade, inerentes à constituição ontológica do ser-aí e existencialmente necessárias, para que o ser-aí possa existir no modo da pesquisa científica?" (Heidegger 1986, § 69 b, p. 357; tradução brasileira v. 2, p. 157; tradução modificada). Com o conceito existencial de ciência, Heidegger busca reconduzir a possibilidade da ciência àquilo que a torna possível enquanto tal, ou seja, o ser-aí compreendido em suas possibilidades mais próprias, enquanto ente cujo modo de ser é denominado transcendência. Ao reconduzir a gênese da ciência à análise existencial, Heidegger mostra que todo conhecimento depende de uma modificação da compreensão de ser do ser-no-mundo, a qual permite a observação detida do ente e garante que ele se manifeste em seu aspecto, isto é, nas suas qualidades e propriedades passíveis de predicação. A partir de então, o ente não é mais encontrado como instrumento disponível, isto é, em seu caráter ontológico de manualidade, mas como coisa corpórea ou como pontos de massa, podendo tornar-se tema de proposições teóricas. Evidentemente, a transformação da compreensão de ser vigente no encontro do intramundano apreendido como meramente presente, e não mais como manual, ainda não implica a constituição de um comportamento científico para com o ente.
Heidegger recorre ao exemplo da apreensão teórica da natureza pela física-matemática para exemplificar a modificação da compreensão ontológica e a conseqüente transformação do ente manual em ente meramente presente, com base na qual pode se constituir, posteriormente, um objeto de investigação científica.3 O ente natural apreendido teoricamente pela física-matemática deixa de ser uma paisagem que encanta e fascina os olhos, bem como deixa de ser compreendido como manual que se destina a alguma finalidade do ser-aí, ou que lhe mostra ou prenuncia algo, como no caso do vento sul, que anuncia a chuva ao camponês da Floresta Negra. Agora, tal ente natural é extraído de seu local no mundo circundante por meio de sua projeção ontológica como ente submetido a determinações universais e homogêneas. Isso não quer dizer que o ente natural apreendido teoricamente pela física-matemática perca seu lugar no mundo e simplesmente desapareça, mas sim que o seu "local se transforma em posição espaço-temporal em um `ponto do mundo' que não se distingue de nenhum outro" (Heidegger 1986, § 69 b, p. 362; tradução brasileira v. 2, p. 163; tradução modificada). Por meio da "supressão dos limites do mundo circundante" em que o ente natural podia se apresentar em sua manualidade, surge agora uma ampla região de entes meramente presentes, os quais podem se tornar "objetos" para a tematização científica. A física-matemática descobre apenas entes do modo de ser do que está simplesmente presente, pois os descobre, antecipadamente, com base no "projeto matemático da própria natureza", isto é, com base na concepção da natureza como matéria passível de ser determinada quantitativamente em seu movimento, força, lugar e tempo (Heidegger 1986, § 69 b, p. 362; tradução brasileira v. 2, p. 163). O que se garante com o projeto matemático da natureza não é simplesmente a exatidão e a universalidade, pensadas como propriedades daquilo que é matemático enquanto tal, visto que não se trata aí do mero emprego auxiliar da matemática na elaboração de experiências científicas capazes de obter resultados numericamente exatos. O que importa é que tal projeto matemático da natureza "abre um a priori", isto é, torna possível algo como uma ciência físico-matemática da natureza, ao descobrir uma determinada região de entes meramente presentes cujo caráter básico de ser radica na sua extensão temporal e espacial, isto é, na concepção do ente como corpo extenso em movimento. Na medida em que o ente só pode ser descoberto no projeto prévio de sua constituição ontológica - a qual, entretanto, nunca é transformada em tema do questionamento científico -, o projeto matemático da natureza é aquele no qual a natureza é tematizada como região de entes intramundanos submetidos a determinações legais espaço-temporais, o que, por sua vez, permite descobrir a natureza como objeto (Objekt) científico:
Chamamos de tematização a totalidade desse projeto ao qual pertencem a articulação da compreensão ontológica, a delimitação dela derivada do setor de coisas (Sachgebietes) e o prelineamento da conceitualização adequada ao ente. A tematização visa a liberar os entes que vêm ao encontro dentro do mundo de modo a que eles possam ser "projetados para" uma pura descoberta, isto é, que eles possam se tornar objetos. A tematização objetiviza (objektviert). (Heidegger 1986, § 69 b, p. 363; tradução brasileira v. 2, p. 164; tradução modificada)
Em Ser e tempo, a reconstrução analítica da gênese existencial da ciência se interrompe com a afirmação de que toda tematização científica dos objetos está fundada na "decisão" existenciária do ser-aí que se projeta para a "verdade" existencial de seu poder-ser mais próprio, sem, entretanto, que a discussão seja levada mais adiante (Heidegger 1986, § 69 b, p. 363; tradução brasileira v. 2, p. 165). Essa conclusão é perfeitamente coerente com o plano geral do desenvolvimento da analítica existencial, mas não chega a responder à seguinte questão: em que se diferenciaria a investigação científica do humano existencialmente fundada daquela levada a cabo por um cientista que desconhece a possibilidade e a necessidade da reflexão filosófica, tal como enunciado no § 5? Em que se diferenciaria a investigação ôntica do humano que reconhece a exigência prévia de uma análise existencial daquelas investigações ônticas que jamais superam a análise do humano enquanto algo que simplesmente ocorre no mundo e que deve ser subsumido à lei geral da determinação causal? Heidegger não avança sobre esse terreno em Ser e tempo, pois não chega a discutir quais seriam as implicações de sua análise genética das condições existenciais da ciência para a constituição de uma possível ciência ôntica do humano existencialmente estabelecida. No entanto, a reconstituição da gênese existencial da atitude teórica é condição necessária para que, no futuro, possa surgir uma antropologia tematicamente existencial, à qual caberia a tarefa de "expor os traços fundamentais e as correlações das possibilidades fáticas existenciárias, bem como interpretá-las em sua estrutura existencial", tal como anunciado no § 60. Com relação ao programa científico dessa possível antropologia filosófica existencialmente fundada, Heidegger chegara mesmo a afirmar que a analítica existencial constituiria um ponto de partida decisivo, ainda que apenas provisório: "com vistas a uma possível antropologia e igualmente a uma fundamentação ontológica da antropologia, a interpretação que se segue só poderá fornecer alguns `fragmentos', embora não sejam sem importância" (Heidegger 1986, § 5, p. 17; tradução brasileira v. 1, p. 44). Portanto, se o questionamento ontológico e a investigação científica dos entes não coincidem necessariamente, também não é necessário que se excluam mutuamente, de sorte que uma antropologia ôntica existencialmente fundada é possível, ao menos em princípio, como se atesta nas especulações tardias de Heidegger, em que ele reflete sobre a possibilidade de uma disciplina que assuma
[...] como tarefa demonstrar os fenômenos existenciais comprováveis do ser-aí social-histórico e individual, relacionados no sentido de uma Antropologia ôntica, de cunho daseinsanalítico. (...) Esta Daseinsanalyse antropológica pode-se dividir por sua vez em a) uma Antropologia normal e b) uma patologia daseinsanalítica a ela relacionada. Por tratar-se de uma análise antropológica do Dasein, uma mera classificação dos fenômenos destacados não pode ser suficiente, mas precisa ser orientada para a existência histórica concreta do homem contemporâneo, isto é, do homem que existe na sociedade industrial contemporânea. (Heidegger 1987, pp. 163-4; tradução brasileira p. 151)
Heidegger não nos diz mais nada a respeito dessa enigmática antropologia de cunho daseinsanalítico, mas deixa entrevisto na passagem anterior que ela bem poderia se constituir como uma psicanálise ou psiquiatria existenciais, que interpretassem as patologias e sofrimentos do ser-no-mundo em sua individualidade historicamente situada. Para tanto, seria fundamental que tais disciplinas trabalhassem na interface das ciências sociais e da filosofia, a fim de se tornarem capazes de constituir um diagnóstico crítico a respeito da época histórica em que o ser-aí existe e sofre, carecendo de cuidados. Certamente, essa antropologia ou psicanálise de caráter existencial não poderia pretender estabelecer uma teoria universal das patologias psíquicas, fundada em esquemas teóricos relativos ao determinismo causal das forças psíquicas que agiriam no desenvolvimento do indivíduo. Em outras palavras, tal ciência ôntica existencialmente fundada teria de recusar toda tentativa de definição objetivadora ou coisificante do existir fático do ser humano.4 Tal antropologia existencial de cunho "psi" deveria valer-se de um pensamento pós-metafísico que não pretendesse manipular, controlar, prever ou administrar a existência do paciente e suas vicissitudes emocionais, evitando impor um padrão previamente definido a respeito do que seja a felicidade ou a perfeita sanidade mental; antes, tratar-se-ia de buscar compreender e interpretar as suas queixas, pensando-as, também, como sintomas de uma determinada época histórica, inserindo-as no contexto de uma avaliação crítica de seu próprio tempo, visto que não se pode compreender e interpretar adequadamente o ser-aí e seus sofrimentos psíquicos desvinculando-o de seu mundo, dos outros e de sua própria historicidade. Em outras palavras, tal ciência ontologicamente fundada não poderia abordar o humano desvinculando-o do mundo e do tempo de sua geração, não poderia pretender pensá-lo como ente isolado, extramundano, como "coisa" perpassada por forças naturais que o coagem e determinam.5 Tal ciência antropológico-existencial seria intrinsecamente ética, política e filosófica, na medida em que, por meio da escuta do paciente e por meio de intervenções capazes de elucidar o sentido da crise histórica e historial que ocorre no tempo presente, o terapeuta deveria proporcionar um cuidado para com o outro capaz de franquear-lhe a via de acesso a si mesmo enquanto ek-sistente epocal. Em outros termos, caberia a esse terapeuta franquear ao seu paciente uma via de acesso à própria liberdade deste, pois é dela, em última instância, que se originam as dores e sofrimentos no mundo historial em que o paciente e o terapeuta ek-sistem (Heidegger 1987, p. 199; tradução brasileira p. 178).
De qualquer modo, uma antropologia existencialmente fundada implicaria o reconhecimento de que o seu "objeto" de estudo não é nenhum objeto, mas é o ente que é no modo de ser da existência (Existenz), para o qual é ontologicamente inconveniente a sua determinação como coisa meramente presente. Se Heidegger não reduz a Vorhandenheit ao estatuto do objeto científico, é preciso reconhecer que é sempre com base numa ontologia da coisa meramente subsistente que se constituem os campos delimitados dos objetos das chamadas ciências do homem e da própria metafísica. No entanto, se for possível constituir uma ciência antropológica a partir de bases ontológicas adequadas, então, terá sido preservada a possibilidade de uma objetivação não-coisificante do ser do ente humano, que ultrapasse a concepção do ser-homem como mera presença subsistente. A Existenz, pensada como a designação ontológica do ente que eu mesmo sou, opõe-se radicalmente à definição do ente humano como mera presença situada na seqüência temporal dos agoras, como ente dotado de uma natureza humana ou de qualidades e propriedades objetivas determinadas, e isto tem de ser considerado no âmbito de atuação das ciências que tematizam o homem. Temos aqui a distinção entre o plano da tematização ontológico-existencial, que pode fundar uma objetificação científica adequada, não-coisificante, e o plano de uma objetificação coisificante do ser do ser-aí, recorrente nas ciências do homem e na própria metafísica. Se considerada a partir da perspectiva de uma renovação do conhecimento científico do que significa ser humano, a tarefa da analítica existencial é a de resguardar as estruturas ontológicas do ser-aí dos riscos inerentes ao procedimento da objetivação coisificante, típica das investigações científicas e filosóficas ontologicamente deficientes, as quais marcam nossa época técnico-científica. Em uma palavra, e para concluir, o denominador comum subjacente às diferentes formas de desconstrução do primado moderno das ciências é a crítica heideggeriana aos procedimentos de objetivação coisificadora do ser do humano por parte das ciências e da própria metafísica, quer elas o concebam como "mera presença" (Vorhandenheit), como "ob-jeto" (Gegen-stand) lançado diante do sujeito ou como "fundo de reserva" (Bestand) destinado à contínua manipulação e destruição técnico-científica.
Referências
Birman, Joel 1997: Estilo e modernidade em psicanálise. Rio de Janeiro, Editora 34. [ Links ]
Duarte, André 2001: "Heidegger, a essência da técnica e as fábricas da morte: notas sobre uma questão controversa". In: Fenomenologia Hoje I. Organizado por Ricardo Timm de Souza e Nythamar de Oliveira. Porto Alegre, EDIPUCRS. [ Links ]
Heidegger, Martin 1986: Sein und Zeit. Tübingen, Niemeyer. Tradução brasileira: Ser e tempo. Rio de Janeiro, Vozes, 1988. [ Links ]
____ 1987: Zollikoner Seminare. Frankfurt/M., Klostermann. Tradução brasileira: Seminários de Zollikon. Rio de Janeiro, Vozes, 2001. [ Links ]
____ 1989: Grundprobleme der Phänomenlogie. GA 24. Frankfurt/M., Klostermann. [ Links ]
Loparic, Zeljko 1998: "Psicanálise, uma leitura heideggeriana". Veritas, v. 43, n. 1, pp. 25-41. [ Links ]
____ 1999: "Heidegger and Winnicott". Natureza humana, v.1, n.1, pp. 103-35. [ Links ]
____ 2001: "Além do inconsciente: sobre a desconstrução heideggeriana da psicanálise". Natureza humana, v. 3, n.1, pp. 91-140. [ Links ]
Reis, Robson Ramos dos 1999a: "A besta desamarrada...". Natureza humana, v.1, n. 2, pp. 265-82. [ Links ]
____- 1999b: "Pressuposição e derivação: uma análise a partir do conceito existencial de ciência". Veritas, v. 44, n.1, pp. 175-86. [ Links ]
Endereço para correspondência
E-mail: andremduarte@brturbo.com
Recebido em 14 de novembro de 2002
Aprovado em 20 de junho de 2003
1 Para uma análise mais pormenorizada da questão da técnica no pensamento de Heidegger, ver Duarte 2001.
2 "(...) a ciência encontra seu limite naquilo mesmo que a possibilita, e sobre o qual não dispõe, nem está apropriada para captar: na projeção de ser instituída pela compreensão de ser do Dasein transcendente. (...) As pressuposições ontológicas da ciência repousam na transcendência do Dasein, e é nela que a ciência encontra o seu limite, o seu outro. Ou seja: enquanto investigação sobre entes, a ciência não pretende a tematização do ser; e enquanto possibilitada pela positividade de um domínio de entes, ela não é capaz de atingir o ente em seu todo. Aquilo que permite a investigação científica, a abertura do domínio dos entes, lhe permanece fechado, e é na base dessa inacessibilidade que uma ciência pode pesquisar". Cf. Reis 1999a, pp. 270-1.
3 Veja, a respeito, Reis 1999b.
4 "No essencial, a crítica heideggeriana do determinismo consiste em dizer que se trata de um erro categorial: o determinismo só faz sentido relativamente a entes que são coisas e, além disso, coisas objetificadas. Ora, o ser humano não é coisa alguma; num certo sentido, não é nem mesmo um ente, mas um acontecente, cujo acontecer não é um processo causal. Uma das razões para se dizer isso é a seguinte: o ser humano que sabe de si, sabe que não há nada que fundamente ou explique o seu estar-aí-no-mundo. Qualquer tentativa teórica de explicar o porquê do existir humano e dos seus modos já é uma coisificação objetificante. O seu sentido existencial- ontológico é a fuga de si mesmo e a sua própria finitude". Cf. Loparic 2001, p. 123. Veja também Loparic 1999, pp. 117-8.
5 "Não foi por acaso, certamente, que a síndrome do pânico se transformou, em conjunto com as depressões, no emblema psicopatológico do novo universo subjetivo da pós-modernidade. Com efeito, o terror do pânico e as depressões são os contrapontos da cultura do narcisismo, pois revelam a impossibilidade da estetização da existência e da glorificação do eu. O pânico é o impasse do sujeito para se tornar membro pleno da cultura do narcisismo. A psiquiatrização psicofarmacológica do pânico e da fobia é o instrumento por excelência para transformar a individualidade em sócia efetiva da cultura pós-moderna". Cf. Birman 1997, pp. 230-1.