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Natureza humana

 ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.6 n.1 São Paulo jun. 2004

 

RESENHAS

 

Edna Pereira Vilete

Membro Efetivo da SPRJ
Membro fundador do Espaço Winnicott, Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 

Elsa O. Dias 2003: A teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott. Rio de Janeiro, Imago. ISBN: 85-312-0885-8

Após a morte de Winnicott, em 1971, surgiram várias publicações com o objetivo de apresentar e esclarecer suas idéias. Seu pensamento, simples a uma primeira olhada, necessita realmente de estudiosos que revelem as sutilezas dos conceitos que se espalham por sua obra e se entrelaçam, criativamente, em uma trama teórica consistente.

Não obstante o trabalho já realizado a respeito, no Brasil e no exterior, o espaço referente à sua teoria do amadurecimento estava à espera de Elsa Oliveira Dias. Considerando essa teoria a "espinha dorsal" do trabalho de Winnicott, como ele próprio considerava, necessária para a com-preensão dos conceitos relacionados aos distúrbios psíquicos, a autora envereda em uma tarefa laboriosa. Com rigor e precisão, ela rastreia esses conceitos através dos inúmeros textos de Winnicott e de sua correspondência, relacionando-os, sempre que necessário, a Freud e outros autores (clássicos e atuais) do pensamento psicanalítico.

Se quisermos usar um exem-plo, dentre tantos os que estão a nossa disposição, para que o leitor se dê conta do método minucioso empregado pela autora, podemos recorrer ao capítulo em que ela trata da existência psico-ssomática, e encontrar na página 105 o conceito de psique tendo a elaboração imaginativa das partes, sentimentos e funções somáticas como origem. Partindo desta definição, encontrada no texto de Winnicott de 1954 ("A mente e sua relação com o psique-soma"), a autora prossegue acrescentando que, sem jamais perder essa função originária, a psique se desenvolve, ao longo do amadu-recimento, em funções cada vez mais avançadas, passando a incluir operações mentais que podem ser abrangidas pelos vários significados da palavra pensar. Buscando o capítulo 3 de Natureza humana, ela pode, ainda, fundamentar sua compreensão de que a tarefa central da psique seria a constituição gradativa da tempo-ralidade, ao armazenar e reunir as memórias das experiências corpóreas vividas; a psique propiciaria, assim, um sentido de história na vida humana, justificando a percepção de que "dentro daquele corpo existe um indivíduo". Em seguida, vai mais adiante, esclarecendo, de antemão, a dúvida que comumente ocorre aos que tomam um primeiro contato com este conceito de elaboração imaginativa, confundindo-o com o conceito tradicional de fantasia, termo empregado até mesmo por Winnicott em seus trabalhos mais antigos. E é em uma nota de rodapé de um texto de 1961 ("Psiconeurose na infância") que ela encontra e nos oferece (p. 109) o esclarecimento do próprio Winnicott: "Ocorre-me que eu possa estar usando a palavra "fantasia" de uma maneira que não é familiar a alguns de vocês. Não estou falando do fantasiar (fantasying) ou da fantasia propositada (contrived fantasy), mas sim pensando na totalidade da realidade psíquica ou pessoal da criança, certa parte dela consciente, mas a maior parte inconsciente, e, ainda, incluindo aquilo que não é verbalizado, afigurado, ou ouvido de maneira estruturada, por ser primitivo e próximo das raízes quase fisiológicas das quais brota".

Assim, a elaboração imaginativa, que é próxima "das raízes fisiológicas das quais brota", ou seja, das funções corpóreas, e não do que é verbalizado nem figurado, seria a base necessária para que a fantasia, no sentido de mecanismo mental, possa vir a ser uma aquisição posterior no amadurecimento do indivíduo. Conclui, pois, a autora: "Na perspectiva de Winnicott, a fantasia, como operação mental que se desenvolve no mundo interno já constituído, pertence a um momento posterior do amadurecimento, e não é como a imaginação, uma elaboração direta do real, mas uma criação a partir da memória; requer, portanto, que uma certa temporalização já tenha sido estabelecida, o que ainda não ocorreu no início da vida (p. 108)".

De fato, suas conclusões de que a elaboração imaginativa vá se tornando infinitamente complexa, à medida que as funções mentais são incluídas, baseiam-se em um trabalho de 1958 ("O primeiro ano de vida"), quando Winnicott a insere nas sucessivas etapas do amadurecimento e que, logo depois, a autora transcreve.

Que não fique, porém, pelo exposto acima, a impressão de que o livro se trata de um glossário no qual os conceitos são apresentados de forma isolada. Ao contrário, podemos constatar que a autora cumpre o prometido na página 16: "O objetivo deste livro é o de integrar e apresentar de maneira unitária e organizada os vários elementos conceituais que perfazem a teoria do amadurecimento". Elsa Oliveira Dias escreve em linguagem clara, de compreensão cristalina, cativando o leitor que sente o texto fluir, somente se detendo nas dificuldades inerentes às próprias formulações teóricas que são enunciadas, e que ela se esforça por nos fazer entender.

A aproximação original de alguns temas instiga a questiona-mentos, como as interessantes idéias formuladas no capítulo sobre a negatividade, iniciado na página 150. Aqui ela sugere que a natureza humana, tal como Winnicott a concebe, torna desnecessárias construções especulativas de tipo naturalista, como a da pulsão de morte. Relembra, para iniciar sua argumentação, a pergunta formulada por Winnicott, na página 153 de Natureza humana: "Qual é o estado do indivíduo humano quando o ser emerge do interior do não-ser?" E ele mesmo responde: "No princípio há uma solidão essencial". E ainda, diz ele, o ser humano "emerge não do inorgânico, mas da solidão". Entretanto, essa solidão, tal como ele estabelece, envolve um paradoxo, o de somente ocorrer em condições de dependência máxima e, portanto, todo e qualquer pensamento sobre esse estado fundamental terá de reconhecer a existência do ambiente que sustenta o bebê. Pergunto-me, em decorrência, se insistir em uma negatividade originária, como a autora faz, não estaria desconsiderando o paradoxo, acabando por nos conduzir a um nada que é, tão-somente, uma variação do proposto em uma teoria como a da pulsão de morte. Talvez, sob essa mesma concepção de negatividade, ela venha a nos dizer, mais adiante na página 151, que "a saúde, em particular, pode ser vista como uma superação do estado originário de não-ser...". Eu diria, incluindo o paradoxo, que a saúde começa com esse estado de não-ser, onde está a apercepção criativa e onde se encontra "a semente de todo o desenvolvimento futuro..." (Winnicott 1989: Natureza humana. Rio de Janeiro, Imago, p. 153). Na verdade, o esplêndido livro de Elsa Dias nos estimula a pensar...

Seria impossível, no espaço desta resenha, acompanhar o detalhado percurso que a autora faz, ao longo de todo o processo de amadurecimento, desde os estágios primitivos, em que a dependência é absoluta, até aqueles da inde-pendência relativa. Entretanto, para informar o leitor sobre a orientação e a riqueza de seu estudo, vale citar que ela nos fala, durante o período de dependência absoluta, sobre os estados excitados e os estados tranqüilos, e sobre as três tarefas básicas com as quais o bebê está envolvido e que são interdependentes: a integração no tempo e no espaço, a personalização, quando a psique se aloja no corpo, e o início das relações objetais, no primeiro contato com a realidade. Uma quarta tarefa fundamental - a constituição do si-mesmo como identidade -, acrescentada por Winnicott ao introduzir o conceito de identificação primária dentro de sua teoria do objeto subjetivo, é também estudada e, através dessa identificação, a autora nos mostra que o bebê, ao se tornar o objeto, alcança uma experiência inicial de identidade. Em seguida, apresentando os estágios em que existe uma condição de dependência ou independência relativas, a autora se refere ao processo de desilusão que se inicia quando a mãe, gradativamente, deixa de atender às necessidades do bebê. A partir de então surgem os fenômenos da transicionalidade, a possibilidade do uso do objeto e os estágios do EU SOU, do concernimento e edípico. Mesmo a puberdade e a adolescência, bem como a idade adulta, mereceram o seu cuidado, recorrendo a trabalhos em que Winnicott aborda temas como a saúde e a morte.

Pode ser interessante nos de-termos, por exemplo, no estágio edípico e compreender a contribuição original que Winnicott - tão mais voltado para as etapas anteriores - teria a oferecer. A propósito, comenta a autora: "Embora a abordagem winnicottiana dos estágios mais avançados guarde muito do que está já configurado pela literatura clássica sobre os distúrbios neuróticos, Winnicott opera, de fato, uma redescrição dos fenômenos pertinentes ao estágio edípico e, conseqüentemente, da teoria das neuroses que lhe corresponde" (p. 155). Essa sua constatação provavelmente diz respeito ao texto que cita, mais adiante, na página 274, "Os doentes mentais na prática clínica", de 1963, em que ele reconhece casos em que o amadurecimento da criança foi paralisado em um estágio anterior, de modo que "o relacio-namento triangular verdadeiro e sua carga máxima nunca se tornam um acontecimento". Acrescenta, contudo, que, embora não seja freqüente, é possível ainda achar casos mistos, nos quais ocorre uma mistura de normalidade, podendo, dessa maneira, o complexo de Édipo ser experienciado ao mesmo tempo que existe uma psicose, no sentido de uma imaturidade que ficou restrita a um aspecto particular.

A referência da autora de que Winnicott teria feito uma redescrição dos fenômenos do estágio edípico levou-me a pensar, mais precisamente, em sua visão do complexo de Édipo à luz do desenvolvimento saudável, e o quanto ele nos surpreende ao descrever a cena primária apresentada em seu trabalho "A capacidade para estar só". Nele Winnicott deixa evidente que a experiência do triângulo edipiano, na criança sadia, é mais uma fonte que aproveita a sua força potencial para o amadurecimento do que uma vivência trágica. Diz ele no referido trabalho, publicado em O ambiente e os processos de maturação: "Pode-se afirmar que a capacidade individual de ficar só depende de sua capacidade de lidar com os sentimentos gerados pela cena primária. Na cena primária, uma relação excitante entre os pais é percebida ou imaginada, e isso é aceito pela criança sadia e que é capaz de lidar com a raiva e aproveitá-la para a masturbação. Na masturbação, a responsabilidade inteira pela fantasia consciente e inconsciente é aceita pela criança, que é a terceira pessoa numa relação triádica ou triangular. Tornar-se capaz de estar só, nesta circunstância, significa a maturidade do desen-volvimento erótico, a potência genital ou a aceitação correspondente na mulher; significa fusão de impulsos e idéias agressivas e eróticas, e a tolerância da ambivalência; junto com tudo isso estará naturalmente a capacidade, por parte do indivíduo, de se identificar com cada um de seus pais (Winnicott 1958: O ambiente e os processos de matu-ração. Porto Alegre, Artes Médicas, p. 33)".

No capítulo de introdução, há uma citação de André Green comentando as dificuldades em se lidar com os escritos de Winnicott: "O inimitável estilo" e "sua original conceitualização não se prestam a uma fácil sumarização. A nitidez aparente de Winnicott é desnorteadora e, com freqüência, lêem-se autores inspirados por suas contribuições que não fazem jus à sutil e rica complexidade de suas idéias" (p. 28). Podemos concluir, após tomar contato com toda a sua proposta, que a autora aceitou esse desafio e conseguiu, com talento raro e trabalho certamente exaustivo, apreender a unidade do pensamento de Winnicott, dando provas, igualmente, do caráter científico de sua obra, por vezes questionado. Utilizando, como nos informa inicialmente, o princípio clássico da hermenêutica, segundo o qual cada parte de uma obra deve ser entendida à luz da sua totalidade e, por outro lado, a estrutura desta deve ser reconstruída, levando em conta cada parte que lhe pertence, a autora percorreu cerca de 150 artigos avulsos, escrevendo um livro que será certamente, daqui por diante, uma referência para os que se interessam pelo processo de amadurecimento do homem. Os que se iniciam nesse estudo encontrarão um guia básico e confiável para seguir; os que estão já familiarizados com o autor encon-trarão, na abordagem original de Elsa Oliveira Dias, a abertura para novas descobertas, o que só um livro com esta envergadura pode proporcionar.

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: edvilete@unisys.com.br

Recebido em 2 de abril de 2004
Aprovado em 25 de junho de 2004