Natureza humana
ISSN 1517-2430
Nat. hum. v.6 n.2 São Paulo dez. 2004
TRADUÇÃO
O conceito de mente
The concept of mind
(International Journal of Psycho-Analysis (1966), pp. 42-47)*
H. J. Home, Londres; tradução de Caesar SouzaI
I PUC-RS
Introdução
Este trabalho talvez requeira uma introdução, uma vez que seu tema e seu método podem ser pouco conhecidos pelos psicanalistas. Por exemplo, o trabalho não toma uma experiência clínica e a examina à luz da teoria psicanalítica; também não procura criticar a teoria psicanalítica à luz de um exemplo clínico, nem também tenta expandir a teoria psicanalítica em qualquer direção dada. Em vez disso, procura levantar a questão fundamental "Do que trata a psicanálise?", "O que caracteriza essencialmente seu tema?", "Que tipos de teorias podem ser validamente construídas sobre ela?" e sugere experimentalmente uma resposta que, se for correta, terá implicações para a teoria. Essa é uma tentativa modesta de escrever um ensaio filosófico, e, ao escrevê-lo, me senti particularmente encorajado pelos últimos trabalhos teóricos de Bion, por causa da ousadia e inovação de sua abordagem, embora eu pense que nela existam dificuldades insuperáveis. Eu também fui estimulado pelo trabalho de Bowlby, Sandler, Fairbairn, Brierley, Colby e Guntrip. Parece-me que todos eles expressaram em diferentes momentos um reconhecimento de que a teoria psicanalítica tem dificuldades lógicas sérias, que muitos de seus conceitos são mal-definidos e muitos dos termos usados regularmente para descrição clínica são empregados de forma ambígua. Fora do campo imediato da psicanálise, eu tenho uma dívida incalculável com Suzanne Langer e Teilhard de Chardin, e também com W. Furstenheim de Frankfurt-am-Main, com quem tive um longo diálogo sobre o problema corpo/mente e por meio de quem eu vim a conhecer as idéias de filósofos tais como Ayer, Ryle e Strawson, cujas questões estão no ar.
Tenho assistido a encontros científicos de psicanalistas por muitos anos, e daí veio o estímulo para escrever este trabalho. De início, eu ficava completamente perplexo pela incompreensibilidade essencial dos trabalhos clínicos expressos naquilo que é freqüentemente chamado "linguagem técnica" e pelo que me parecia a ingenuidade filosófica dos trabalhos teóricos. Embora parte de minha dificuldade se originasse da falta de experiência na situação clínica, dez anos de trabalho clínico serviram apenas para acentuar minha impressão inicial de que, embora todos os autores que eu ouvi quisessem sem dúvida comunicar alguma coisa com o que diziam, e embora eu tivesse aprendido pela experiência a interpretar parcialmente o que eles diziam, uma grande parte do que era dito, em um sentido estrito, não fazia sentido algum. Os encontros formais se puseram em contraste com a discussão clínica em seminários informais nos quais significados eram prontamente comunicados em linguagem mais comum. Parte de uma frase de um trabalho de Sandler "Sobre o conceito de superego" (1960) pode servir para ilustrar o ponto. Ele escreve: "As duas técnicas para restaurar um sentimento de ser amado (de aumentar o nível de catexia libidinal do eu)...". A primeira parte dessa frase me parece completamente compreensível, a segunda parte é, eu acredito, sem sentido.
Não somente a linguagem da psicanálise me impressiona por ter um sabor muito peculiar, mas, aos poucos, pude perceber que os casos eram usualmente apresentados em um estilo convencional, às vezes conhecido como "análise clássica". Uma tal apresentação parecia mais uma interpretação estilizada do que um relato de eventos observados, e servia mais para confirmar hipóteses do que para testá-las. Na verdade, a psicanálise tem grande dificuldade com a testagem de hipóteses. Era impossível não notar a tendência da discussão na direção de um impasse, como, por exemplo, quando um comentário kleiniano questionava energicamente a interpretação fálica do material clínico, que parecia claramente relacionado ao seio. Ninguém ainda sugeriu um método para decidir tal problema e, portanto, essa permanece presumivelmente uma questão aberta, assim como a pronúncia de "tomato"1.
Era notável, porque também inesperado em uma sociedade que se chama científica, que no caso de desacordo em discussão o apelo fosse quase invariavelmente à "literatura" e não ao fato. Na verdade, o lugar da "literatura" em psicanálise não tem paralelo, que eu saiba, em qualquer outra ciência. Não importa a extensão das pesquisas anteriores, a grandeza das descobertas, como, por exemplo, no caso de Darwin, elas sempre resultam em afirmações de princípios que são imediatamente validados (ou, mais estritamente, invalidados) pelos fatos. Recurso similar à "literatura" parece ocorrer somente em escritos religiosos e na teoria comunista. Como estudantes da relação entre comportamento e pensamento inconsciente, isso é possivelmente algo que deveríamos notar. É marcante, também, que diferentes partes do pensamento psicanalítico têm sido recebidas de diferentes maneiras pela educação pública. A idéia de motivação inconsciente, o poder da fantasia, o efeito das experiências dos bebês e das crianças, são agora idéias familiares e amplamente aceitas. Mas a metapsicologia expressa numa frase como "aumentar o nível de catexia libidinal do eu" é universalmente desconsiderada fora das sociedades psicanalíticas. Às vezes, a teoria psicanalítica parece como uma casa que um esposo viúvo, por respeito, preserva justamente como estava no dia da grande perda.
A dificuldade que psicanalistas encontraram em estabelecer métodos para testar hipóteses resultou na recorrência regular da tendência fissípara em nossa sociedade. Nossa solução presente parece estar sobre uma base prática e pode resultar na fórmula "as pessoas em nossa sociedade falam linguagens diferentes". Tal atitude me parece uma abdicação monstruosa da responsabilidade intelectual e é o motivo deste trabalho. Porque, se os participantes de uma discussão falam somente para aqueles que já concordam com eles, e se os analistas que falam uma linguagem comum antes e depois de um encontro científico devem falar linguagens privadas durante o evento, então nós realmente atravessamos o espelho. Eu também acredito que a afirmação na fórmula não é verdadeira e meu trabalho é uma tentativa de mostrar que nossas dificuldades não surgem do fato de falarmos linguagens diferentes, mas de uma falta de clareza sobre o tipo de coisa que nós estamos discutindo, e, portanto, sobre o tipo de estrutura lógica em que ela pode ser entendida e discutida.
O argumento
A psicanálise iniciou como um estudo das neuroses e como uma hipótese para explicar sua origem e desenvolvimento. Como uma hipótese sobre a neurose, ela poderia ter feito um alarde pequeno - apesar da delineação de uma etiologia que vincula a neurose à frustração sexual - se Freud não tivesse invocado um princípio de explicação totalmente novo. Esse princípio de explicação - que era contra o teor do pensamento predominante na medicina da época, e que acabou por levá-lo a formular suas idéias revolucionárias sobre a mente inconsciente - era o de que o sintoma poderia ter significado.
A descoberta básica de Freud é que, se o sintoma é neurótico, ele tem significado, o insight básico que abriu o caminho para um entendimento da doença funcional e dos princípios do tratamento psicanalítico. Não surpreende que, no entusiasmo de uma descoberta tão grande que abriu novos vastos territórios, Freud tenha passado ao largo das implicações lógicas que seu passo teria para a teoria. No entanto, essas implicações são muito grandes, pois na medicina mecanicista do tempo de Freud, como em toda medicina orgânica de nossos dias, o sintoma é logicamente considerado como um fato, e um fato é considerado como o produto de causas. Nisso, a medicina simplesmente segue a prática da ciência químico-física e os cânones do pensamento que são exemplificados com especial clareza na física. Ao descobrir que o sintoma tinha significado e ao basear seu tratamento nessa hipótese, Freud retirou o estudo psicanalítico da neurose do mundo da ciência, levando-o para o mundo das humanidades, porque um significado não é o produto de causas, mas a criação de um sujeito. Essa é uma diferença muito importante, porque a lógica e o método das humanidades são radicalmente diferentes dos da ciência, embora não menos respeitáveis e racionais, e, é claro, há muito mais tempo estabelecidos.
Essa distinção entre os modos científico e humanístico de pensar é crucial para meu argumento e eu gostaria de tentar estabelecê-la em vários níveis de discussão, embora eu pense que ela seja auto-evidente. Para psicanalistas, a diferença pode ser melhor conhecida diretamente como a diferença entre "interpretação" e "explicação". Ou então ela é expressa nos cânones do método científico que exigem que uma clara distinção sempre seja mantida entre observação e inferência, enquanto que em um estudo humanístico uma distinção clara é exigida somente em respeito a quem está dizendo o quê. Ou ainda no fato de que a ciência pergunta pelo como uma coisa ocorre e recebe uma resposta em termos de causas, enquanto um estudo humanístico pergunta pelo porque e recebe uma resposta em termos de razões. No nível psicológico, a distinção reside na capacidade dos seres humanos de verem coisas ou como mortas, ou como vivas. Se elas são vistas como mortas, seu comportamento tem de ser explicado em termos de causas; se elas são vistas como vivas, têm de ser explicadas em termos de um sujeito espontâneo.
As categorias de vivo e morto são decisivas para a metodologia do pensamento, porque a fronteira entre vida e morte marca o limite de nossa capacidade de nos identificarmos precisamente com um objeto sob qualquer circunstância. É claro que podemos nos identificar imprecisamente com o que está morto, e os seres humanos tendem a se identificar com qualquer coisa que se move, tanto que em níveis primitivos de pensamento não existe virtualmente distinção entre movimento e vida.
Historicamente, levamos um longo tempo para estabelecer a diferença e a distinção que nós atualmente fazemos entre matéria orgânica e inorgânica. Para os seres humanos primitivos, tudo o que se movia tinha uma alma, um princípio de vida, porque ele fazia seu ato de cognição através da identificação, e sabia que ele se movia porque tinha uma alma e era vivo.
Nós somos capazes de realizar um ato de identificação com o que se move, e mesmo com o que está parado, desde que seja percebido como estando em um estado de tensão dinâmica. Quando nós nos identificamos com um objeto, sentimos como seria ser esse objeto. Isso nos dá um entendimento do objeto e, particularmente, de como ele está se sentindo e, portanto, de como ele vai se comportar. A exatidão da informação que extraímos de um ato de identificação dependerá da exatidão de nossa percepção, da nossa capacidade de criticar nossa transferência e da nossa habilidade de nos identificarmos unicamente dentro dos limites do que é realmente idêntico. Dentro desses limites, a cognição através da identificação nos dá informações precisas e informações que não podem ser obtidas de qualquer outro modo. Obviamente, essas informações serão mais completas e exatas em relação aos movimentos de outros seres humanos, e daqueles que são mais parecidos conosco. E serão menos exatas em relação às coisas vivas mais distantes de nós na escala evolucionária, e, totalmente inexatas em relação aos movimentos da matéria inorgânica, onde o limite da falácia antropomórfica é atingido.
A cognição através da identificação dominou o pensamento do ser humano primitivo, cuja sobrevivência dependeu em grande medida de ser capaz de aferir cuidadosamente as respostas de seus companheiros humanos e dos animais que ele caçava. Presumivelmente, sua dominância foi gradualmente erodida pelo desenvolvimento de ferramentas, mas o processo foi extremamente gradual porque a dominância política dependeu por um longo tempo da capacidade de dominar os seres humanos pessoalmente. Além disso, como um modo de cognição, a identificação foi sendo continuamente refinada pela retirada de projeções, o que debilitou sua precisão, e é o modo de cognição subjacente ao grande florescimento do pensamento humanístico na Europa de 600 a 300 a.C. e de 1300 a 1600 d.C. Foi o criticismo filosófico grego desse modo de pensar que posteriormente conduziu a um reconhecimento de suas limitações. Nesse modo de cognição, que é o usado pelo analista na análise, a observação de fatos auxilia no propósito de estabelecer uma identificação a partir da qual uma interpretação possa ser feita. A interpretação é um novo tipo de fato, cuja factualidade depende da exatidão com que a evidência foi interpretada e da completude da evidência. Diferente de um fato científico, a interpretação não pode ser demonstrada, o que é uma razão pela qual um analista necessita passar pelo processo de análise de modo que ele possa diretamente experienciar a validade de um grande número de interpretações em seu próprio caso. Enquanto um fato científico pode ser representado por uma equação ao poder do tempo, um fato humanístico deve ser representado por uma equação ao poder da evidência. Eu considero relevante notar também (i) que toda investigação humanística exige uma atitude de atenção flutuante porque é essencialmente um processo de ouvir ou ver a evidência e de avaliar suas implicações lógicas; (ii) que toda observação humanística é uma observação da evidência; (iii) que esse modo de cognição é o único modo que temos para entender objetos quando nós os percebemos como "sujeitos existindo singularmente no tempo", ou talvez seja mais claro dizer quando escolhemos percebê-los dessa maneira.
É razoável assumir que, por um lado, a retirada gradual das projeções de transferência que conduziram ao mau entendimento e à descrença e, por outro, o desenvolvimento gradual de habilidades técnicas produziram um desenvolvimento na forma de cognição, apropriada a objetos mortos ou percebidos como mortos. A cognição de um objeto morto não pode ser realizada através da identificação, porque é psicologicamente impossível identificar-se com um objeto morto. Por experimento, por tentativa e erro, nós descobrimos o que pode ser feito com ele, para que serve, o que acontece com ele sob diferentes circunstâncias, do que ele é feito. A ciência, em sua origem e essência, é o modo mecânico de investigar e sua utilidade não estava na caça ou na batalha, mas na oficina, onde tomar cuidado economiza tempo e onde existe tempo relativamente disponível. Nesse modo de cognição, é essencial que a observação não sofra interferências ou seja obscurecida por atos impulsivos de interpretação baseados na identificação.
Uma vez que a ciência lida com o objeto morto que ela observa sem identificar, ela não pode logicamente invocar o princípio de um sujeito espontâneo vivo em suas explicações. Uma explicação científica tem de ser feita em termos de causas; ela explica como as coisas acontecem. Em contraste, o modo humanístico, como vimos, lida com o objeto vivo, pergunta por que as coisas acontecem e responde em termos dos motivos de um sujeito. Seu método é essencialmente o dos tribunais de justiça. Nunca pode haver uma demonstração no sentido científico.
Não desejo esgotar esse assunto. Meu objetivo tem sido o de mostrar que a ciência não é somente uma versão melhorada do pensamento humanístico; é um tipo diferente de pensamento, com um campo limitado de referência, com axiomas básicos diferentes e uma forma lógica diferente. Aplicar modos científicos de pensamento de maneira inapropriada produz teorias sem sentido. Precisamente da mesma maneira como a aplicação inapropriada de modos humanísticos de pensar. Abusar de ambos os modos também tem sua própria sintomatologia peculiar. O humanismo mal aplicado, cuja lógica intrínseca exige uma explicação de eventos em termos de pessoas motivadas, cria essas pessoas, e assim, por um certo tempo, o céu esteve cheio de anjos, cada um com uma compulsão ou encargos de empurrar uma estrela. Antes disso, havia deuses, e eu penso que nós raramente agradecemos o bastante a Moisés por sua luta contra o princípio das hipóteses múltiplas para explicar eventos múltiplos. Além disso, a ciência mal aplicada, cuja lógica intrínseca exige uma explicação em termos de eventos impessoais, inventa fatos metafísicos, como, por exemplo, Karl Marx e seus sucessores fizeram no processo de criar uma Ciência da História. Feudalismo, capitalismo, socialismo, comunismo, fascismo, colonialismo, imperialismo e marxismo-leninismo são alguns desses fatos, porque na teoria marxista esses substantivos são usados como se representassem eventos objetivos reais, cuja estrutura e desenvolvimento são conhecidos. E, assim como o humanismo inventou pessoas para dirigir as estrelas, a ciência marxista teve de inventar forças impessoais, geradas pela luta de classes, para dirigir as pessoas.
A contribuição de Marx para o estudo da história foi de fato muito grande e teve muito em comum com a contribuição de Freud para a psicologia. Pois Marx nos chamou a atenção para os efeitos dos fatores objetivos nos eventos, fatores que não haviam sido percebidos pelos historiadores, tais como os que surgem de mudanças na organização econômica. Desse modo, ele forneceu o mesmo tipo de insight que Freud sobre os determinantes inconscientes do comportamento, e esses insights se tornaram uma parte habitual de nosso pensamento. A falácia de Marx foi tratar a história, que é um artefato do ser humano, como se fosse um fato, como se o comportamento das pessoas pudesse ser explicado somente como uma conseqüência direta de causas. Assim como era fácil acreditar em deuses algumas centenas de anos antes, na época foi fácil cair nessa falácia, da qual Freud também foi vítima quando propôs sua teoria do instinto e sua teoria da mente em termos de id, ego e superego.
Uma teoria científica é uma representação esquemática de um fato ou evento real disponível à percepção sensível. Não importa o quão afastada da percepção sensível a teoria pareça estar, como, por exemplo, na física atômica ou na biologia molecular, ela parte de um fato demonstrável e deve posteriormente retornar a ele. Infelizmente, tanto para Marx como para Freud, nem a história nem a mente, consciente ou inconsciente, é um fato ou evento tal como o método científico pode investigar. Nós facilmente podemos pensar a Mente como uma coisa, possivelmente porque a palavra, na verdade, é um substantivo, e um substantivo é o nome de uma pessoa ou coisa. Nós também falamos frouxamente de doença mental e a contrastamos com doença física, de tal modo que se doença física é uma doença do corpo, por analogia, a doença mental é uma doença da mente. A analogia, todavia, não se sustenta. Quando descrevemos um evento como mental em vez de físico, com freqüência queremos dizer ou que nenhuma ação física manifesta ocorre ou que a ação não é importante como um fato físico. É claro que a ação física sempre ocorre, embora possa estar somente no cérebro e, portanto, casualmente invisível. Poderia, portanto, parecer que a essência de um evento que chamaríamos mental não é "não-física", mas sim que ela é para ser ou pode ser entendida - entendida pelo modo humanístico de cognição através de identificação. Como uma tentativa de definição, nós poderíamos dizer que mente é o significado do comportamento; ou qualquer coisa que tenha um significado é mental.
Se a mente não é uma coisa, então, cada vez que nós falamos sobre ela como se ela fosse uma coisa, estamos falando metaforicamente. A metáfora é um uso comum, embora a empreguemos mais comumente em outra direção, falando de coisas como se fossem pessoas - a fúria do mar, o vento uivante. Se, todavia, nós suprimimos ou reprimimos nossa consciência da metáfora e falamos literalmente sobre a mente como uma coisa, então nós criamos um fato metafísico. A mente como um fato metafísico é estritamente comparável a Deus como uma pessoa metafísica. Tal fato não pode existir como um fato dentre outros fatos da percepção sensível, mas por necessidade lógica deve existir "em um mundo próprio seu". Deus, logicamente, requer um céu porque só podemos falar sobre qualquer tipo de pessoa em um contexto, e não podemos colocar Deus no contexto de nosso próprio mundo, sem exigir que ele seja um objeto da percepção sensível.
A humanidade tem uma longa experiência no uso de fatos e pessoas metafísicos como um princípio de explicação ou interpretação, e somente um deles teve sucesso - o número. Talvez devêssemos mencionar também a interpretação não-discursiva de arte. De resto, embora fatos e pessoas metafísicos certamente ajudem a impor uma ordem nos dados, o que pode ser extremamente útil depois de uma ruptura de insight, eles sofrem da desvantagem de (i) que eles existem como são definidos para existirem e, a menos que, como com o número, a definição seja muito estrita, eles tendem a se tornar amorfos. Diferente de fatos reais, eles mudam de acordo com o modo como falamos sobre eles. (ii) Se eles são fatos complexos e estritamente definidos, chega um momento em que uma nova experiência, que parece estar incluída no uso comum de uma palavra também usada para definir um evento metafísico, deve ser excluída da associação com essa palavra ou, então, uma redefinição deve ser feita. Modificar a definição de um fato metafísico é necessariamente perturbar todo esse mundo metafísico. Isso é facilmente visto em ilustração e podemos tomar como um exemplo a teoria psicanalítica da regressão, na qual existem dois tipos de regressão - regressão do ego e regressão do instinto. Quando Winnicott (1954) apresentou suas experiências clínicas de regressão em análise, que certamente seriam descritas pelo uso comum dessa palavra, ele descobriu que elas não caíam em nenhuma das duas categorias. Isso significava que, estritamente falando, não poderiam existir como regressão no que dizia respeito à teoria psicanalítica. Em outro tempo ou lugar, isso bem poderia ter significado o atiçamento de uma fogueira.
Um dos problemas, então, que vai afetar nosso caminho, se basearmos nossa teoria em fatos metafísicos, será manter nossos fatos alinhados, mantendo nossa linguagem uniforme. Esse é um problema que a religião, por exemplo, a Igreja Cristã, enfrenta há muito tempo. Nela a completa admissão de um membro está condicionada ao aprendizado das verdades reveladas da fé na preparação para a Confirmação. As verdades resultam no Credo Niceno, que é recitado em uníssono com o serviço da Comunhão: "Creio em um Deus, o Pai Todo-Poderoso, Criador do Céu e da Terra, e de todas as coisas visíveis e invisíveis, etc." Isso é, claramente, uma proposição metafísica elaborada, cuja terminologia "técnica" não é familiar à maioria de nós. Seu objetivo é a definição da realidade a ser compartilhada e nós podemos bem imaginar que não se espera que os candidatos à Confirmação mostrem originalidade. Psicanalistas já falharam em impor uma linguagem uniforme e por isso vários mundos metafísicos existem lado a lado. Em um deles, por exemplo, uma energia conhecida como "instinto de morte" pode ser convertida em algo chamado "agressão" por um processo conhecido como "deflexão", e foi até sugerido que a intensidade da síndrome às vezes chamada "reação terapêutica negativa" varia de acordo com a eficiência do processo deflexivo. Em outro, a "agressão" é tratada como um instinto elementar em si mesmo junto com um segundo instinto chamado "libido", e não tem de ser criada por "deflexão". Esses exemplos poderiam ser multiplicados e eles produzem uma situação na qual não falamos diferentes linguagens; nós, na verdade, habitamos diferentes mundos e estamos falando sobre coisas metafísicas diferentes, que criamos em nosso uso da linguagem. A confusão também não pára aqui, porque muitos termos metapsicológicos na psicanálise são também usados em relação a experiências clínicas e adquirem em uso um significado secundário, clinicamente diferente, que se sobrepõe ao primeiro. Os termos ego e superego fornecem bons exemplos. Essa é uma situação que pode facilmente ser esclarecida pela história da heresia no início da Igreja Cristã.
Definir mente como o significado do comportamento é lembrar que a mente não é uma coisa e não pode, portanto, ser analisada como tal. A mente como significado é uma qualidade inseparável da vida, como é o conceito de um sujeito. Onde existe vida existe significado e onde existe significado deve existir um sujeito espontâneo. Onde existe vida deve existir também um corpo, embora o contrário não seja verdadeiro. Quando a idéia de alma era mais popular, a alma expressava o princípio de vida e era pela lógica necessariamente imortal, porque uma alma morta seria uma contradição em termos. Do mesmo modo, a vida sem um corpo é impensável e a doutrina cristã da ressurreição do corpo depois da morte é talvez uma expressão mais primitiva desse pensamento e um protesto contra o prospecto de uma imortalidade meramente metafísica por definição. Eu joguei um pouco com essas idéias para indicar que, ao procurarmos uma forma lógica correta para uma teoria da mente, estamos diante dos mesmos problemas que teólogos enfrentaram no passado no campo da religião. Freud especulava, em Totem e tabu, que aquilo que agora ocorre no pensamento e na fantasia ocorreu uma vez de fato, e essa leitura pode ser estendida para dizer que problemas já expressos em termos religiosos se reapresentam hoje como problemas de lógica.
A mente como significado é contígua à vida, e é a qualidade de um sujeito vivo, que é expressa no fato de que responde ao seu ambiente espontaneamente. O sujeito de significado é conhecido para nós através de um ato de identificação e não através de um ato de percepção sensível ou observação científica. O sujeito de significado também não é acessível à introspecção, porque para a introspecção ele é infinitamente recessivo. Nós nunca podemos observar o "eu" que observa. Uma vez que o significado é um aspecto do sujeito vivo conhecido para nós através da identificação, ele não pode ser investigado pelos métodos e pela lógica da ciência porque esses são somente aplicáveis ao objeto morto ou ao objeto percebido como morto. Tentar ver alguma coisa como morta, que somente pode ser uma qualidade do vivo, produz uma contradição insolúvel. A psicologia científica lidou com essa contradição ao tratar a resposta como algo organizado pelo estímulo; o que permite a ela dispensar o conceito de um sujeito espontâneo vivo, mas a torna incapaz de tratar adequadamente o fenômeno do significado. Psicanalistas lidaram com essa incapacidade renovando a solução metafísica tradicional; por um lado, na prática clínica, e especialmente através da técnica da associação livre, ela assume um sujeito espontâneo; por outro, ela reifica o conceito de mente e elabora uma teoria de tipo científico em termos de causas. Reificar é deificar, porque a reificação cria o objeto imortal ideal pelo simples processo de definição, tal como a personificação na era do humanismo criou os deuses imortais. Uma ciência divina é herdeira de todas as dificuldades lógicas da religião. Ela tem também seu próprio sabor necrofílico peculiar. A personificação é um processo histérico, no qual os sujeitos são criados sem atenção adequada aos detalhes de sua vida física; mesmo assim, ela sempre anima e nos permite "ver Proteu surgindo do mar e ouvir o velho Tritão soprar sua cornucópia retorcida". A reificação é um processo de matar e inevitavelmente produz a linguagem morta da "catexia libidinal do eu", que somente um ouvido não-treinado poderia confundir com a voz da ciência na observação de um fato.
A adequação de qualquer teoria da mente como significado acenderá nossa habilidade de manter intacto o conceito de um sujeito vivo em todas nossas formulações. Essa não é uma tarefa fácil. É a mesma que Moisés e Israel tiveram em Sinai, a de resistir à tentação de edificar Baalim2. Não deveríamos ter esperança de nos sairmos muito melhor. É uma tarefa difícil porque podemos descobrir as razões para o comportamento de um paciente somente nos identificando com esse comportamento, e então perguntando por que e em que circunstâncias teríamos agido daquele modo. Nós ainda temos, portanto, que testar a validade de nossa resposta e encontrar um modo de expressá-la. Por meio da análise e experiência pessoal em cada esfera, nós aumentamos nosso vocabulário e fazemos isso contra nossa resistência e nosso medo de tomar a responsabilidade pelo padrão de nossas próprias vidas. É muito bem vinda aos olhos a miragem de um fator de "realidade" ou de um fator tal como nossa inveja inerente, que nos permite receber perdão enquanto o damos. Todavia, para Moisés, a tarefa era manter a deidade unitária como um princípio de explicação, e assim prevenir a cisão, que arruinaria a vontade de analisar e resolver problemas. Para nós, então, a tarefa é manter o sujeito integral sem o qual nenhum significado pode logicamente existir para ser entendido.
Abordar o assunto desse modo nos obriga a assumir que o sujeito espontâneo e, conseqüentemente, a mente, existe desde o momento da concepção e existe continuamente porque há toda razão para supor que a memória é uma função de resposta. A resposta do sujeito, nesse estágio, deve consistir naquele comportamento que nós chamamos crescimento, e o pensamento existe como a organização imediata dessa resposta. As categorias sob as quais o feto jovem percebe sua realidade poderiam ser parcialmente reconstruídas como uma projeção do conhecimento biológico. Um pouco antes de nascer, todavia, o verdadeiro comportamento inicia, envolvendo o uso de órgãos e membros, e se organizando de acordo com o princípio do prazer/dor. As sensações são percebidas como estados do sentimento e expressadas como comportamento com o objetivo de preservar um estado de bem-estar. Até o momento do nascimento, nós devemos assumir que a percepção sensível mal existe, se tanto; a resposta é organizada na base do sentimento que se refere às sensações. Ao nascer, a criança deixa um mundo conhecido para ela sob as categorias do sentimento e entra no mundo da percepção sensível, que ela vai aos poucos conhecer através de idéias organizadas no pensamento. Para usar uma das idéias de Bion, com uma diferença crítica, pensar é um processo que nos é imposto pela percepção sensível. A percepção sensível estimula a parte do cérebro que produz a ideação. A ideação, por sua vez, capacita o sujeito a organizar seu comportamento em relação ao mundo para além de seu próprio corpo, um pensamento que automaticamente se estrutura sob as categorias de espaço, tempo e causa. Ao mesmo tempo, desenvolve-se a relação de objeto. Através dela, o mundo do sentimento, que era autista, começa a se relacionar com o mundo da percepção sensível. Através da percepção sensível, nós aprendemos como nos manter vivos no mundo; através da relação de objeto, nós encontramos uma razão para fazer isso. Se um dos dois falha, nós morremos.
Nesse esquema, o corpo vivo fornece as categorias da experiência em termos das quais o sujeito organiza sua resposta. Não existe antítese mente-corpo, o que apresenta vantagens enormes. Esse esquema nos capacita a pensar racionalmente sobre perturbações psicossomáticas (não em termos de objetos internos) ao nos capacitar a apreciar a profundidade em que significado e resposta estão ontogeneticamente organizados. Também nos capacita a ver a vida individual como um processo de criar e usar energia em um ambiente e mostra como distúrbios de ideação podem afetá-la. Ele nos capacita a ver o desenvolvimento psíquico como um processo de diferenciação nas categorias da experiência e a vê-lo como um aspecto de diferenciação e experiência física. Ele nos capacita a relacionar o processo de pensamento diretamente com energia física quantificável e assim a realizar uma abordagem natural aos fenômenos parapsicológicos, que, com um conceito metafísico de mente, aparece como sobrenatural. Ele nos capacita a dar pleno significado a um conceito como "fantasia" como a lógica da resposta dentro de qualquer categoria dada de realidade. Ele nos capacita a ver e sentir em termos humanos a pungência da situação da criança ao nascer, quando ela deve criar meios para encontrar o objeto de amor ou morrer, e perceber o estresse sob o qual ela pode estar submetida ao ter que organizar os sistemas paranóide/esquizóide de defesa. Ele também deveria nos permitir expressar isso em uma linguagem correta e compreensível às pessoas comuns, tal como é urgentemente necessário que se faça.
Entender que a mente é o significado do comportamento é dar a nós mesmos um parâmetro para testar a significação de nossas teorias. Uma teoria da mente, e qualquer parte dela, deve explicar por que alguém está fazendo alguma coisa, e deve explicar em termos de razões. Esse critério imediatamente invalida toda a teoria do instinto e nos exige que reafirmemos nossa experiência clínica em outros termos. Pessoalmente, sempre achei difícil entender por que a teoria do instinto na psicanálise tenha perdurado tanto, uma vez que ela não se associa de maneira adequada com a teoria das relações de objeto, caindo naturalmente em um quadro de referência centrado no sujeito. Em uma teoria da mente como significado, as respostas, que nós no momento consideramos instintuais, seriam entendidas como respostas de um sujeito em uma "realidade" sem objeto, um nível de desenvolvimento no qual a regressão defensiva é sempre possível. Faz sentido falar de uma resposta nessa base como tendo um objetivo constante (i.e. de efetivar a descarga), mas um objeto variável. Falar também de um fenômeno como perversidade polimorfa, nesses termos, como um complexo de comportamento relacionado à integração do corpo "sentido" e do corpo "percebido" torna a idéia significativa na linguagem comum. Seria um alívio encontrar uma frase mais adequada e expressiva que "potência genital" para designar a realização do ser humano maduro.
O critério que invalida a teoria do instinto como uma teoria que pode explicar o significado do comportamento, invalida também a teoria "kleiniana" em termos de objetos internos, se entende-se por isso uma metapsicologia e não simplesmente uma linguagem de interpretação - um tema sobre o qual eu tenho dúvidas. Se é uma metapsicologia, então me parece que ela "mata" o comportamento do mesmo modo que a "teoria do instinto" mata o sujeito. Ela faz isso ao descrever o comportamento fenomênico de um paciente em termos de um modelo metafísico, no qual todos os tipos de atos ocorrem, o que não pode ser visto ocorrer no mundo fenomênico; por exemplo, o paciente coloca um pedaço dele mesmo no analista (identificação projetiva). Essa frase pode transmitir um significado e um insight muito relevantes para o paciente; ela não descreve um fato, i.e., nenhum ato de colocar ocorre na verdade. Permitir que um fato ocorra na teoria pela reificação é criar uma relação entre um determinado comportamento e um mecanismo teórico de identificação projetiva tal como realmente existe entre os movimentos do braço e os músculos que os executam. A relação que existe entre um determinado comportamento e uma interpretação em termos de identificação projetiva é a mesma relação que existe entre um determinado comportamento e um modo de interpretá-lo. A reificação institui isso como o único modo possível na analogia do movimento com o músculo. O resultado não é ampliar o entendimento, mas confiná-lo pela restrição vocabular tanto das palavras como das imagens. O lapso na lógica ocorre quando tomamos uma interpretação do comportamento por uma descrição do comportamento - um significado por um fato.
Lapsos na lógica são uma das fraquezas mais humanas e nos afetam mais ainda quando o pensamento descobre algo novo. Os cientistas levaram muitos anos para estabelecer o hábito lógico de separar observação e inferência, e a batalha tinha de ser travada em cada novo ramo da ciência em seu desenvolvimento. A inferência injustificável em ciência foi um legado do hábito da inferência justificável no pensamento humanístico. A psicanálise, desenvolvendo-se em meio à triunfante aplicação do méto do científico, compreensivelmente adotou o método para si mesma sem considerar se era logicamente apropriado. Ela mesma pousou em um pântano de conceitos reificados; uma vez que o método científico exige o tipo de fatos que pode usar. A psicanálise, como tentei mostrar, preocupa-se com o significado - o significado do comportamento - e essa é uma nova formulação pós-científica do problema que tem engajado tradicionalmente o pensamento religioso sob a forma: "Qual é o significado da vida?". Ela requer uma estrutura lógica não-científica e, particularmente, o conceito de um sujeito espontâneo. Ela requer também a manutenção de uma distinção clara entre comportamento e significado. Até que a teoria psicanalítica seja reafirmada nesses termos lógicos, ela permanecerá necessariamente fora do âmbito do conhecimento universal.
Referências
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Sandler, J. J. 1960: `On the concept of superego'. Psychoanal. Study Child, 15. [ Links ]
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Endereço para correspondência
Caesar Souza
E-mail: csouza@pucrs.campus2.br
* Agradecemos ao IJP a autorização para publicar este artigo de H. J. Home.
1 A palavra "tomato" pode ser pronunciada em inglês de dois modos diferentes, ambos considerados corretos pelos lingüistas. As pessoas que a pronunciam de um modo, porém, consideram errado o modo alternativo. Essa discussão faz parte do folclore da língua inglesa (Nota da Tradução).
2 Plural de Baal, deus supremo dos cananeus e fenícios. Também definido como falso deus, ídolo. Na Bíblia, nomeava os falsos deuses (tornou-se anátema para os israelitas no século IX a.C., quando Jezebel tentou introduzir o culto fenício de Baal, em oposição às tradições locais) (Nota da Tradução).