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Natureza humana

 ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.8 n.2 São Paulo dez. 2006

 

ARTIGOS

 

Winnicott: a poesia e a realidade

 

Winnicott: poetry and reality

 

 

Rogerio Luz

Professor Visitante do Instituto de Artes – UERJ; Pesquisador do N-Imagem – ECO-UFRJ

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O breve comentário de Winnicott a um verso de Rabindranath Tagore sinaliza suas diferenças para com Freud e Klein quanto à interpretação das criações culturais e dá também indicações sobre sua teoria da emergência mútua do sujeito e da realidade externa no espaço intermediário de experiência e comunicação. Do intervalo entre percepção e conceito surge uma outra compreensão do jogo do mundo e do pensamento. Sob essa perspectiva, examina-se aqui, em alguns poemas, o modo singular de produzir verdade resultante da conexão entre linguagem poética e realidade.

Palavras-chave: Fenômenos transicionais; Experiência cultural; Comunicação; Imagem poética; Verdade.


ABSTRACT

Winnicott’s short comment on a poem by Rabindranath Tagore points out his divergences from Freud and Klein with regard to the interpretation of cultural creations as well as showing his theory of the mutual emergence of subject and external reality in the intermediate space of experience and communication. From the interval between perception and concept arises another understanding of the world-and-thought game. From this perspective, some poems are examined here for the unique way in which they produce truth resulting from the connection between poetic language and reality.

Keywords: Transitional phenomena; Cultural experience; Communication; Poetic image; Truth.


 

 

Surpreender, no nível das experiências sensório-motoras, o surgimento de um sujeito e de um mundo, mutuamente imbricados: este propósito de Winnicott mostra que ele não faz psicologia ou antropologia. Não se trata de indicar, na formação do indivíduo, os condicionantes provenientes do meio social, nem de empreender um estudo do psiquismo como decorrente de necessidades de satisfação em confronto com exigências do meio cultural organizado. As relações entre indivíduo e cultura serão pensadas por ele em referência à experiência quotidiana e universal da brincadeira, sob o modelo de um pensamento que parte do informe das sensações e dos afetos para orientar a prática clínica.

A experiência de arte e, mais particularmente, a experiência poética em sentido estrito, que se dá no próprio elemento da palavra, parece emblemática da vida cultural tal foi como conceituada por Winnicott. Em 1963, em seu artigo sobre comunicação e não-comunicação, ele vê na arte o paradigma de um tipo especial de comunicação. Enfatiza a importância de um estado saudável de solidão, concomitante ao estado de repouso: não-comunicação (diferente da incomunicabilidade reativa), contraposta à comunicação corrente, por meio de símbolos. Entre as duas, a comunicação na área intermediária de experiência, matriz de todo fenômeno cultural, funda o sentimento de realidade do eu e do outro. Essa área implica uma experiência de indeterminação que é própria dos processos vitais.

Ora, na vida adulta, transitamos, por meio da comunicação artística, do estado de solidão ao de compartilhamento, percorrendo, simultaneamente, o caminho contrário. Não se trata, pois, de suplência “imaginária” ante as exigências da realidade, sejam elas frustrantes ou castradoras, mas de renovação das relações constitutivas entre o eu e o mundo.1

O artista vive o dilema de criar a partir do isolamento, mantendo-se autônomo, e de querer ser encontrado e comunicar. Essa dupla exigência é típica da comunicação que se dá na área intermediária entre o artista e o mundo da cultura. Como diz Winnicott: “no artista podemos detectar, acho eu, um dilema inerente, que pertence à coexistência de duas tendências, a necessidade urgente de se comunicar e a necessidade ainda mais urgente de não ser decifrado” (Winnicott 1965b, p. 168).

Nesse quadro, a comunicação poética ocupa lugar privilegiado. É conhecido o interesse de Winnicott pela música e pela poesia. Ele inicia seu artigo sobre “A Localização da Experiência Cultural”, de 1967, comentando os versos de Rabindranath Tagore: “On the seashore of endless worlds, children play”, que poderíamos traduzir: À beira-mar de mundos sem fim, crianças brincam.

Desde a adolescência, diz Winnicott, impressionava-o esta imagem, embora não soubesse exatamente o que ela significava. Ao tornar-se um bom freudiano, pôde compreender o sentido da mensagem poética: “o mar e a praia representavam uma relação infindável entre o homem e a mulher, e a criança surgia dessa união, para dispor de um breve momento antes de, por sua vez, tornar-se adulta ou genitor” (Winnicott 1971r: p.133). De um estado de suspensão do saber, ele é conduzido à interpretação do símbolo que se ocultaria sob aqueles versos.

Depois, como estudioso do simbolismo inconsciente, compreendeu que o mar é a mãe e que à beira-mar a criança nasce.

Os bebês surgem do mar e são vomitados sobre a terra, como Jonas o foi da baleia. A praia é o corpo da mãe, após a criança nascer, e a mãe e o bebê, agora viável, estão começando mutuamente a se conhecer (Winnicott 1971r, pp. 133-134).

Segundo Winnicott, essas são concepções ainda muito elaboradas da relação materno-infantil. Existiria talvez um ponto de vista mais natural, o da criança, ao qual seria interessante prestar atenção. Ele diz que, naquele momento, estava trabalhando a noção de representações mentais e o fato de elas se encontrarem “dentro”, bem como a noção de processos de introjeção e projeção, que levam em consideração o que está colocado “fora”. Mas compreendeu que o jogo do poema não se passava nem dentro nem fora, mas no espaço potencial entre o objetivo e o subjetivo, entre o concebido e o percebido. Um espaço que não é ainda e não será nunca propriamente o espaço da compreensão consciente e reflexiva, traduzida em símbolos (cf. Winnicott 1971a, p. 134).

Cremos que a palavra poética, antes de ser veículo da idéia, produto da mente à busca de compreensão ou, ao contrário, puro fascínio pela fusão de diferentes planos de experiência, ergue-se diante de nós como enigma. Ela é um apelo, ou mais, uma intimação a ser, como disse Paul Valéry da poesia de Mallarmé: “essas palavras nos intimam a ser, mais do que nos excitam a compreender (...)”. E Valéry se pergunta: por que não consentir que o homem seja fonte de enigmas? E acrescenta: “a transmissão perfeita de pensamentos é uma quimera e a transformação de um discurso em idéias tem por conseqüência a anulação total de sua forma”. (Lins 2004, p. 492)

O trabalho de interpretação dos versos de Tagore não conseguiu dar conta do que o poema manifesta: o devir do que ali está sendo jogado, a vida do ser humano como experiência de fronteiras. Para Winnicott, a experiência do brincar, que o poeta configurou de maneira única, vai além do fato bruto de existir ou de ser saudável. Crianças brincam: o jogo é sinônimo de vida, mais do que de saúde. Possibilitar clinicamente e reconhecer teoricamente essa experiência é essencial à démarche do psicanalista inglês. Somente brincando é possível ser criativo e somente assim é possível encontrar o próprio eu. Em “O brincar. A atividade criativa e a busca do eu”, diz Winnicott:

A busca só pode vir a partir do funcionamento amorfo e desconexo ou, talvez, do brincar rudimentar, como numa zona neutra. É apenas aqui, nesse estado não-integrado da personalidade, que o criativo, tal como o descrevemos, pode emergir. Refletido de volta, mas apenas nesse caso, torna-se parte da personalidade individual organizada e, no conjunto, acaba por fazer o indivíduo ser, ser encontrado, e acaba por permitir que postule a existência do eu (self). (Winnicott 1971a, pp. 92-93)

O procedimento clínico deve ir além da interpretação de um tema coerente, que, revelado pela associação livre do paciente, pode manifestar, na verdade, uma organização defensiva. É preciso, ao contrário, “propiciar oportunidade para a experiência amorfa e para os impulsos criativos, motores e sensórios, que constituem a matéria-prima do brincar. É com base no brincar que se constrói a totalidade da existência experiencial do homem” (ibid., p. 93).

A criatividade, que implica levar em conta o ambiente, é a condição de possibilidade da experiência de ser: sentimento de estar vivo, de existir de maneira viva.

Aqui, nesse ponto onde a criatividade passa a existir, ou não (ou então se perde), o teórico tem de levar em conta o meio ambiente, e nenhuma afirmação que se refira ao indivíduo como ser isolado pode tocar o problema central da fonte da criatividade. (Ibid., p. 103)

O ambiente é não apenas o fato empírico, observável, da importância do meio para a continuidade da vida do infante, devida à pré-maturação. O ambiente ganha vida e existência psíquica quando criado pela criança: somente dessa maneira poderá ser posteriormente reconhecido por ela em sua realidade separada e independente. A noção teórica de ambiente no autor assinala o ambiente como a vertente exterior da vida psíquica, isto é, como cultura viva e experimentada.

Winnicott procura elucidar as características do sentimento de estar vivo criativamente e examinar suas condições de emergência. Como conciliar uma teoria do sujeito psíquico e uma teoria do sentimento de ser e como alojar o próprio pensamento teórico entre subjetividade e objetividade? Em seu artigo sobre a criatividade e suas origens, também de 1971, Winnicott afirma:

É possível escolher Leonardo da Vinci e tecer comentários muito importantes sobre o relacionamento entre sua obra e certos fatos que lhe aconteceram na infância. Muita coisa pode ser obtida vinculando os temas de sua obra e suas inclinações homossexuais. Mas essas e outras circunstâncias no estudo da obra e da vida dos grandes homens contornam o tema que se acha no centro da idéia de criatividade. Inevitavelmente, esses estudos tendem a irritar os artistas e as pessoas criativas em geral, e isso se prende ao fato de que, parecendo estar chegando a algo e aparentemente capazes de explicar por que aquele homem foi grande e aquela mulher conseguiu tanto, sempre desviam a indagação para o lado errado. (Ibid., p. 100)

Para Winnicott, o tema principal, o do próprio impulso criativo, continua sendo contornado. Ora, do bebê ao adulto, a criatividade é a base de qualquer experiência cultural e, portanto, não deve ficar restrita a considerações no campo da arte. Um artista reconhecido pela qualidade de sua obra pode sofrer a falta do sentimento de existir realmente. Nenhum produto material ou espiritual poderá suprir tal carência: arte não é terapia. “A criatividade que me interessa aqui é uma proposição universal. Relaciona-se ao estar vivo (...). A criatividade que estamos estudando relaciona-se com a abordagem do indivíduo à realidade externa” (ibid., p. 98).

Tal abordagem só será pensável, teoricamente, se se levar em conta, desde o início, a realidade ambiental.

Ao utilizar o verso de Rabindranath Tagore para distanciar-se de Freud e de Melanie Klein, e para redimensionar a compreensão da relação mãe-bebê, Winnicott produz um acontecimento pensante. Não se trata apenas de evitar a interpretação para acolher o que se passa entre a mãe e o bebê. Não se trata também de fazer o elogio fácil da arte e da poesia. Trata-se de levar em conta o essencial da linguagem poética para poder pensar a experiência da relação mãe-bebê antes que ficções mentais a venham codificar.

O que pensar? E como dizer o que se pensa? Enquanto teorias produziam em Winnicott tentativas insatisfatórias de explicação, a imagem poética de Tagore continuava, de modo latente, a provocar o pensamento. Quando, enfim, o sentido desponta no horizonte interminável, o sujeito da experiência poética e o sujeito da teoria dessa experiência coincidem. Não se trata de substituir às explicações freudianas e kleinianas, encenadas com humor por Winnicott, uma nova hipótese explicativa, agora de sua própria lavra. Basta nomear ou traduzir o que já está lá, indicado pela linguagem poética.

O esforço teórico de compreensão torna-se enfim receptivo à realidade muitas vezes milenar do cuidado materno e à imagem poética da criança brincando, que também retoma figurações antigas.

 

Poesia e realidade

Um fino véu, um fio separava-me do quid definitivo. A expressão absoluta teria sido a ruptura daquele véu, daquele fio, uma explosão, fim do engano do mundo como representação. Mas esse era um limite inalcançável. (Montale, 1996, p. 1480, apud Mélega 2001, p. 48)

Propomos um breve comentário sobre a conexão que une a linguagem poética à realidade em alguns poemas que se estruturam em torno do tema flor. Flor nome ou flor coisa? Flor abstrata ou flor concreta? Flor real ou flor artificial? Questões que não serão respondidas aqui a partir de uma elaborada teoria sobre a linguagem em sua relação com o real a que ela se refere, tampouco por meio da análise literária dos poemas. Trata-se, mais modestamente, de tornarmo-nos sensíveis, diante de poemas singulares, ao poder que tem a escrita poética de afetar nosso corpo e nosso pensamento. Os poemas nos levam ao caminho que se bifurca e conduz à realidade – realidade do mundo e realidade de nós mesmos, que não se confundem, nem são estanques. Um caminho que, no entanto, é sem fim: não temos, ao trilhá-lo, um objetivo a atingir, salvo o do próprio caminhar.

A imagem poética surge no lugar do que está para ser criado, isto é, em outro lugar. Na poesia, a imagem depende da palavra, lida e/ou ouvida, das pausas, das ressonâncias, dos ritmos. Mas há um invisível e um inaudível próprios a essa imagem, uma ausência que é fonte de renovação dos significados cristalizados, quando o leitor procura olhar e escutar aquilo que escapa à visão e à audição de todos os dias.2

A imagem poética não é, sabemos muito bem disso, mera ilustração de um conceito teórico, de um ditame ético ou de uma crítica política. Poesia é pensamento na sensação e seu modo de operar é o do afetar – e não o de convencer por meio de argumentos, o de conhecer por meio de conceitos, o de direcionar a ação por meio de normas e valores. Todos esses modos de operar entram na poesia enquanto matéria a ser trabalhada. A dimensão estética do poema, a objetividade de sensação com que ele nos afeta é primeira em relação às dimensões, também nele presentes, da ética, da retórica ou da cognição.

Mas a poesia também não é pura forma dada no sensível, visualidade ou sonoridade imediatamente empíricas, em princípio redutíveis a mero ornamento ou jogo de palavras. A imagem poética trabalha com idéias, temas e significados em vista de cumprir sua tarefa de renovação do real por meio de um modo próprio de proferir a verdade. Ela produz uma conexão inédita entre som e significado para indicar, desde o interior da língua como instituição social, um sentido que procura ultrapassar os enquadramentos institucionais, sentido que se encontra além das dimensões sensível ou conceitual, ou entre elas.

Um poema torna-se, desse modo, um experimento singular, um acontecimento experimentado: o leitor de um poema é o poema em curso, antes de ser o elemento de uma relação de termos extrínsecos, isto é, antes de ser um indivíduo, condicionado por prévias instâncias biológicas e histórico-sociais, ante a uma determinada obra de arte verbal. O leitor devém o poema na singularidade propriamente estética do experimento de audição ou leitura.

A verdade de um poema depende da relação que o poema estabelece entre a linguagem e a realidade. O fato de não ter objetivos práticos, que orientem a ação sobre o mundo, e de não decorrer de proposições articuladas a experimentos, que produzam conhecimento objetivo, não impede o poema de manter relações com a verdade. Ele procura o sentido, mas esse sentido é anterior à rede de formas de conteúdo como significados expressos pela linguagem. O poema faz sentido, mas não tem sentido, isto é, não tem significados relativamente estáveis, contextualizados sem grande ambigüidade. O poema configura em ritmo e som, mas também em significado e idéia, forças anteriores às linguagens socialmente estabelecidas e institucionalizadas. Essa configuração se dá com substâncias e formas da língua escrita e falada, e de outras linguagens, mas é linguagem “em crise de significados”. Se remete àquilo que é sem forma, anterior à linguagem e à cultura, é porque se propõe a vivificar a linguagem e a cultura.

O pensamento poético, no seu esforço de atingir uma anterioridade originária, procura produzir na linguagem uma outra linguagem, um outro da linguagem, uma outra natureza, mais fundamental que as linguagens culturais em curso. Sua verdade se produz nos paradoxos vividos que tal pensamento nos permite experimentar. Esses paradoxos – como fenômenos transicionais – podem ser descritos e as descrições permitem que o poema continue a se expandir.

A questão de que tratam os poemas que selecionamos é justamente essa: a das relações da linguagem com a realidade. O espaço da resposta é a própria escrita poética: a inscrição do pensamento em um objeto de sensação solicita uma experiência irredutível ao agir e ao saber. Espaço onde se pode desdobrar a vida do pensamento no corpo, em íntima conexão com o que aparece e com o que se oculta, com o que nasce e com o que perece. Os poemas aqui examinados encaminham modos muito diferentes de ver as relações entre linguagem e realidade. Para tanto, valem-se de imagens e não de conceitos ou normas de ação, imagens essas que, por meio da materialidade e do significado das palavras, produzem afetos. Como dissemos: fazem sentido e não reproduzem significados.

Pessoa, Borges, Cabral e Mendes são poetas cuja poesia é fortemente impregnada por tomadas de posição teóricas sobre o que seja poesia e qual sua função. Cada um a seu modo, são poetas reflexivos e intelectualistas. Como diz o Dicionário Aurélio, intelectualista é o adepto das formas culturais ou sistemas de valores em que elementos racionais preponderam sobre afetivos ou volitivos. Influenciado pelo surrealismo, Murilo Mendes acentuava, no entanto, o caráter construído de sua obra. João Cabral valorizou, contra as produções do inconsciente e o automatismo da escrita, os ofícios da razão. Mas ele próprio dirá, sintomaticamente, ser o surrealismo, que de início também o influenciara, um movimento de grande interesse justamente porque fora acompanhado de um imenso aparato teórico (cf. Castello 2006).

Vamos ao poema de Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa.

O Guardador de Rebanhos XXXI

Se às vezes digo que as flores sorriem
E se eu disser que os rios cantam
Não é porque eu julgue que há sorrisos nas flores
E cantos no correr dos rios...
É porque assim faço mais sentir aos homens falsos
A existência verdadeiramente real das flores e dos rios.

Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezes
À sua estupidez de sentidos...
Não concordo comigo mas absolvo-me,
Porque só sou essa coisa séria, um intérprete da Natureza,
Porque há homens que não percebem a sua linguagem,
Por ela não ser linguagem nenhuma.

(Pessoa 1960, p. 157)

Em O Guardador de Rebanhos (1911-1912), Pessoa afirma, paradoxalmente, a identidade entre palavra e coisa, para superar as tradicionais e desgastadas metáforas poéticas que se tornam um obstáculo à experiência imediata e sensível do mundo e da natureza. A palavra purifica-se na sua identificação à coisa: flores são flores e não seriam flores se sorrissem, não as chamaríamos de flores se não fossem flores... Mas a natureza não é linguagem e é como se a própria linguagem poética, que interpreta a natureza por meio de metáforas ou pela negação radical das metáforas, e mesmo a linguagem em geral fossem aquela barreira que nos impede de sentir a natureza sem ter de pensá-la ou figurá-la. Tudo isso o poeta, que circunstancialmente se proclama, ironicamente, um intérprete da natureza, diz (ou desdiz) em linguagem poética. Se o poeta, na pele de seu heterônimo Alberto Caeiro, quer purificar a palavra até ser a própria coisa real referida (flores, rios), uma pura mostração da coisa, acaba por tornar autônoma a palavra poética, em sua solidão sem fundamento. Essa palavra não se pode dissolver na própria coisa, que ela não quer representar, mas apresentar. Nossa escrita alfabética torna divergentes o mostrar e o dizer e produz a arte como o desejo, impossível de se realizar, de unificá-los sob um mesmo princípio. E Caeiro nos dá acesso, com seu poema, entre outras coisas, a essa verdade difícil.3

Agora, a flor do escritor e poeta argentino Jorge Luis de Borges.

La rosa
La rosa
la inmarcesible rosa que no canto,
la que es peso y fragancia,
la del negro jardín y cualquier tarde,
la rosa que resurge de la tenue
ceniza por el arte de la alquimia,
la rosa de los persas y de Ariosto,
la que siempre está sola,
la que siempre es la rosa de las rosas,
la joven flor platónica,
la ardiente y ciega rosa que no canto,
la rosa inalcanzable
.

(Borges 1997, p. 25)

Pretende o poema de Borges deter o inquietante movimento para assegurar à palavra o reino da idéia? Em Borges, a identidade entre nome e coisa toma outra direção. A matéria do poema é, sem dúvida, a teoria platônica do mundo das idéias, no qual reside a essência das coisas experimentadas em nosso mundo sensível, submetido à mudança. O que se pretende purificar, nesse caso, é a coisa. Mas a linguagem poética, longe de ser um meio de ascensão filosófica ao mundo dos nomes essenciais, indica sua insuficiência: ela não é o lugar da afirmação da identidade entre nome e coisa – mesmo que, com isso, evidencie o seu paradoxo constitutivo, como em Pessoa –, mas o meio de dizer a impossibilidade de atingir a essência, de cantar e de nomear verdadeiramente a rosa. Se a matéria das sensações submete-se inteira ao nome essencial, esse nome é, finalmente, impronunciável. A poesia não renuncia, porém, ao nome: sua verdade consiste em dizer e mesmo celebrar essa falta, como se, por negação, ela desse a experimentar a essência, por oficiar seu ritual profano com nomes e apenas com nomes. No poema de Borges, experimentamos a rosa (nome-coisa) como coisa e nome inacessíveis.

Com Murilo Mendes, faremos o movimento oposto: as idéias são rosas que podemos tocar.

Idéias Rosas
Minhas idéias abstratas,
De tanto as tocar, tornaram-se concretas.
São rosas familiares
Que o tempo traz ao alcance da mão.
Rosas que assistem à inauguração de eras novas
No meu pensamento,
No pensamento do mundo em mim e nos outros:
De eras novas, mas ainda assim
Que o tempo conheceu, conhece e conhecerá.
Rosas! Rosas!
Quem me dera que houvesse
Rosas abstratas para mim.

(Mendes 1994, p. 434)

O poeta nos impele a descer ao concreto. Influenciado por seu grande amigo, morto jovem, o pintor surrealista e católico praticante Ismael Nery, e por sua curiosa filosofia essencialista, Murilo também pregava a abstração do espaço e do tempo. Seu intento era tocar a essência da realidade, compreendida como o dinamismo das coisas em constante metamorfose. O processo de abstração em poesia encontrava-se, para o poeta, mais próximo da verdade universal do que qualquer outro discurso. A fé religiosa e certos princípios estéticos serviam de matéria ideativa com a qual elaborava os poemas. Aqui, as idéias é que são flores. As rosas, tornadas próximas, concretas, abrem a novidade dos tempos futuros para o pensamento de todos. E são capazes disso por pertencerem a todos os modos do tempo. O poeta clama por essas idéias-rosas, de que, no entanto, para nossa surpresa, lamenta a falta. O gesto poético de Murilo Mendes descreve a idéia divina em sua tendência para a concretização e a temporalização – vale dizer, em seu intento de encarnação –, ao mesmo tempo em que fala de nossa humana e angustiante deficiência para acolhê-la.

João Cabral, tão diferente, como poeta, de Murilo Mendes, mas seu amigo e admirador, dá uma outra versão à relação entre a palavra e a coisa.

O Ferrageiro de Carmona
Um ferrageiro de Carmona
que me informava de um balcão:
“Aquilo? É de ferro fundido,
foi a fôrma que fez, não a mão.

Só trabalho em ferro forjado
que é quando se trabalha ferro;
então, corpo a corpo com ele,
domo-o, dobro-o, até o onde quero.

O ferro fundido é sem luta,
é só derramá-lo na fôrma.
Não há nele a queda-de-braço
E o cara-a-cara de uma forja.

Existe grande diferença
do ferro forjado ao fundido;
é uma distância tão enorme
que não pode medir-se a gritos.

Conhece a Giralda em Sevilha?
De certo subiu lá em cima.
Reparou nas flores de ferro
dos quatro jarros das esquinas?

Pois aquilo é ferro forjado
Flores criadas numa outra língua.
Nada têm das flores de fôrma
moldadas pelas das campinas.

Dou-lhe aqui humilde receita
ao senhor que dizem ser poeta:
o ferro não deve fundir-se
nem deve a voz ter diarréia.

Forjar: domar o ferro à força
não até uma flor já sabida,
mas ao que pode até ser flor
se flor parece a quem o diga”.

(Neto 1994, p. 596)

O poeta está recebendo, no poema, o ensinamento de um artesão. Mas, ao contrário de Pessoa, Borges e Mendes, que se utilizam do sensualismo, do platonismo ou do essencialismo para pensar em imagem aquela relação, Cabral atém-se a um modo específico de conceber a própria linguagem poética. Aqui, a linguagem da poesia fala de si própria. O poeta opõe a representação imitativa (em que, diferentemente do humor pessoano, a palavra moldada na e pela realidade é justamente aquela que nada diz) à construção poética, que é um forjar, fabricar o artefato – o artifício – de maneira artesanal.

No poema de Cabral, a linguagem poética afirma sua autonomia ante a realidade. Não que ela seja subjetiva ou sentimental (o poeta sempre repudiou explicitamente e com veemência tal concepção de poesia): é a mão do homem que cria a flor mais verdadeira que a flor natural ou que a flor industrial, aquela que, produzida em série, toma a natureza por molde. É na linguagem que o poeta afirma o ser humano como destino e sempre retomada tarefa de cálculo, rigor e invenção de mundo. A palavra poética não é a coisa real, a nostalgia do nome ideal ou a concreção de um devir abstrato aberto ao tempo. O nome-coisa, em Cabral, produto de um trabalho de construção, é mais do que as coisas e os nomes do mundo natural ou social. Sua verdade está em produzir na história um novo nome e uma nova coisa: flor forjada, que é coisa para quem a nomeia.4

 

* * *

 

O pensamento de Winnicott ganha toda sua vigência ao se defrontar com o pensamento e a experiência de arte. Ele evitou a interpretação do verso de Tagore porque seu pensamento procura apreender a experiência anterior às determinações nocionais. O verso do poeta não é um objeto a ser interpretado, mas um ensinamento de verdade, que a teoria psicanalítica deve acolher. Já para Freud, os oniromantes detinham uma verdade que os psiquiatras organicistas ignoravam. Para Winnicott, porém, o último lance não pertence às descobertas da ciência do inconsciente, mas ao brincar, gesto mais amplo e universal. Gesto que, a cada evento, ao necessariamente se determinar, ao mesmo tempo se singulariza e não pode, nem pretende, abolir o acaso.

Em cada um dos quatro poetas referidos, e em cada um de seus poemas, a flor destaca-se do fundo indiferente para mostrar-se na imagem singular de uma verdade que nunca é a mesma: mostração e não demonstração. A flor – muito real, rebelde às metáforas; ideal, mas impossível; espiritual, idéia encarnada que não acolhemos; artefato humano de linguagem, a enfrentar a natureza e suas cópias – é uma realidade viva, colhida na palavra primordial: ela própria palavra-coisa, surgida entre matéria e idéia, entre som e sentido.

A recepção e a criação de poesia é um exemplo de como surge e opera o psiquismo no regime do brincar. A produção de subjetividade dá-se no espaço-tempo intermediário, área de ilusão onde se lançam os dados das experiências mais arcaicas. A cultura, que torna possível essa produção, não a condiciona nem determina, mas permite, como que negativamente, sua eclosão e desdobramento, sempre seguindo a dupla linha do comunicar e do não-comunicar, da expressão e da ocultação, da partilha e da solidão essencial.

A verdade da poesia, agora entendida em sua acepção abrangente, de atividade criativa em geral – pelo menos de um ponto de vista psicanalítico, interessado nos processos de subjetivação – não é apenas mais um produto do ambiente cultural: está fora, aquém ou além da cultura e, por isso mesmo, com sua verdade, vivifica-a por dentro.

O fazer poético, em sua mais ampla acepção, reúne, portanto, no espaço potencial, mundo e sujeito: experiência do estar sendo (being) em diferentes fases do desenvolvimento afetivo, que o ambiente favorável possibilita. Por um lado, gesto espontâneo criativo; por outro, acolhida, mas também resistência, de um ambiente físico e cultural determinado.

A psicanálise é, desde o limiar do século passado e naquilo que tem de mais instigante, sintoma de um mal-estar que perpassa a civilização técnica, comandada por uma racionalidade eficaz. Ela anuncia uma nova modalidade de discurso de verdade. Winnicott leva às últimas conseqüências tal direção de pensamento, ao atribuir ao brincar (playing) a fonte de toda a cultura, incluindo-se nela o conhecimento positivo. A psicanálise é, apenas, modalidade sofisticada de jogo, criação historicamente surgida no século XX. O que é universal é o jogo. Como afirma o autor, no item denominado “O brincar no tempo e no espaço” do artigo dedicado a proposições teóricas sobre o brincar:

Desejo afastar a atenção da seqüência psicanálise, psicoterapia, material da brincadeira, brincar, e propor tudo isso novamente, ao inverso. Em outros termos, é a brincadeira que é universal e que é própria da saúde: o brincar facilita o crescimento e, portanto, a saúde; o brincar conduz aos relacionamentos grupais; o brincar pode ser uma forma de comunicação na psicoterapia; finalmente, a psicanálise foi desenvolvida como forma altamente especializada do brincar, a serviço da comunicação consigo mesmo e com os outros.

O natural é o brincar, e o fenômeno altamente aperfeiçoado do século XX é a psicanálise. Para o analista, não deixa de ser valioso que se lhe recorde constantemente não apenas aquilo que é devido a Freud, mas também o que devemos à coisa natural e universal que se chama brincar. (Winnicott 1971r, p. 63)

A arte representa, na cultura adulta, o jogo como evento, o jogo que está sendo jogado, com o advento dos afetos que o acompanham, anterior às regras que o determinariam como um game, e sem finalidade prática de competição e de ganho. Crianças brincam: no espaço e no tempo potenciais, elas expandem lugares e horas na pluralidade de mundos sem fim, sem delimitação conceitual ou prática.

O ensinamento que Winnicott recolhe do verso de Tagore – e que o afasta, quanto à concepção que faz do trabalho teórico da mente (mind), de Freud e de Klein – ajuda-o a dar forma à afirmação do privilégio da poesia em relação ao discurso da psicanálise como ciência do inconsciente. Longe de pretender legislar sobre arte e, menos ainda, de interpretar as formações inconscientes pretensamente implícitas nas obras, Winnicott assinala o que a psicanálise freudiana apenas sugeria: o ponto do qual emana a verdade, não como conjunto de proposições simbólicas mais ou menos, e sempre provisoriamente, adequadas a estados do mundo, mas como jogo que torna possível e dá acesso às próprias realizações simbólicas.5

A teoria psicanalítica não deve dar conta, mas deve prestar tributo à experiência cultural, aprender com crianças, artistas, psicóticos e mães com seus bebês. Como afirma o autor:

Espero que tenha chegado o momento em que a teoria psicanalítica comece a prestar tributo a essa terceira área, a da experiência cultural, que é um derivado da brincadeira. Os psicóticos insistem em nosso conhecimento dela, e sua importância cresce para nossa avaliação das vidas dos seres humanos, antes que de sua saúde. (Winnicott 1976b, p.142)

O pensamento de Winnicott inspira e talvez permita um modo de pensar no qual a verdade das proposições (mesmo aquela verdade que se sabe relativa, provisória e ultrapassável) é substituída pelo valor da experiência e pelo valor da expressão dessa experiência. A experiência é ilusória e, por isso mesmo, nossas crenças são inventivas. Ilusão e criatividade são modos de descrever o próprio self, que emerge – entre um corpo biológico e um mundo cultural – no espaço vazio que vai do sentido originário ao sentido para cada um e para os outros. Por contraste com o inconsciente reprimido freudiano, a noção de inconsciente originário parece apontar para esse sentido, anterior às determinações das regras do bem pensar e à rede de relações intersubjetivas simbolizáveis. Diz Winnicott, em seu artigo sobre a comunicação:

Sugiro que, na saúde, há um núcleo da personalidade que corresponde a um verdadeiro self da personalidade dissociada; sugiro que esse núcleo nunca se comunica com o mundo dos objetos percebidos, e que a pessoa sabe que não se deve comunicar com ou ser influenciado pela realidade externa. Este o meu ponto principal, o elemento de pensamento que está no núcleo de um mundo intelectual e no de meu artigo. Embora as pessoas normais se comuniquem e apreciem se comunicar, o outro fato é igualmente verdadeiro, que cada indivíduo é isolado, permanentemente sem se comunicar, permanentemente desconhecido, na realidade nunca encontrado. (Winnicott 1985, p. 187)

A teoria, que procura designar, expressar e dar significado a esse fundo não-comunicacional, ocorre no curso dos acontecimentos de pensamento, imerso na experiência humana mais geral, corporal e histórica. O pensamento teórico deriva da experiência ilusória, faz parte do jogo do mundo como uma das configurações de tal experiência. A reflexão não se pode destacar desse fluxo sem que se torne ficção nociva, ao trabalhar com idéias que pretendem nomear substâncias – ao modo, aí sim, do delírio – na busca desesperada de ocultar e esquecer sua gênese.

Será possível pensar o regime teórico do pensamento não apenas a partir da mais radical experiência do brincar, mas junto com ela, valendo-se de nomes que não correspondam a nenhuma entidade transcendente ao próprio movimento de designação, de expressão e de significação? Ou, pelo contrário, tão atento à experiência, esse pensamento do pensamento terminaria por fechar-se em si próprio, designando um nada de conteúdo, exprimindo apenas o seu movimento, significando antinomias insolúveis, quando busca referir, expressar e significar o que escapa ao conceito?

 

Referências

Blanchot, Maurice 1969: L’Entretien infini. Paris, Gallimard.

Borges, Jorge Luis 1997: “Fervor de Buenos Aires”. Obras Completas 1. Barcelona, Emecé.

Bornheim, Gerd 1992: Prefácio a Campos. Maria José Rago. Arte e verdade. S.Paulo, Loyola.

Castello, José 2006: João Cabral de Melo Neto: o homem sem alma. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil.

Lins, Vera 2004: “Livro simbolista, o livro a mais”. In: Sussekind, Flora e Dias, Tânia 2004: A historiografia literária e as técnicas da escrita. Rio de Janeiro, Edições Casa de Rui Barbosa/Vieira e Lent.

Loparic, Zeljko 1999: “É dizível o inconsciente?”, Natureza Humana – Revista Internacional de Filosofia e Práticas Psicoterápicas. São Paulo, Educ, vol.1, n.2.

Mélega, Marisa Pelella 2001: Eugenio Montale – Criatividade Poética e Psicanálise. Cotia, SP, Ateliê Editorial.

Melo Neto, João Cabral de 1994: Obra Completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar.

Mendes, Murilo 1994: Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar.

Montale, Eugenio 1996: Montale – Il Secondo Mestiere – Arte Musica Società. Milão, Mondadori.

Nancy, Jean-Luc 2003: Au fond des images. Paris, Galilée.

Pessoa, Fernando 1960: Obra Poética. Rio de Janeiro, Aguilar.

Winnicott, Donald W. 1965j: “Comunicação e falta de comunicação levando ao estudo de certos opostos”. In Winnicott 1965b.

_____ 1965b: O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre, Sulina, 1982.

_____ 1967b: “A localização da experiência cultural”. In: 1971a (Tr. br.: O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro, Imago, 1975).

Winnicott, Donald W. 1971r: “O Brincar. A atividade criativa e a busca do Eu (Self)”. In: 1971a. (Tr. br.: O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro, Imago, 1975).

_____ 1971a: “O Brincar: uma exposição teórica”. In: 1971a. (Tr. br.: O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro, Imago, 1975).

_____ 1971g: “A criatividade e suas origens”. In: 1971a. (Tr. br.: O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro, Imago, 1975).

_____ 1976b: “Communicating and not communicating leading to a study of certain opposites”. The Maturational Processes and the facilitating environment. London, The Hogart Press.

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: linsluz@iis.com.br

Recebido em 15 de julho de 2006
Aprovado em 24 de julho de 2006

 

 

1 Para uma ampla discussão filosófica sobre as relações entre linguagem verbal, comunicação e existência humana, em especial em Freud e Winnicott, cf. Loparic 1999: pp. 323-385.
2 Como afirma Jean-Luc Nancy: “Ce qui est distinct de l’être-là, c’est l’être-image: il n’est pas ici mais là-bas, au loin, dans un éloignement dont ‘ l’absence’ n’est qu’un nom hâtif. L’absence du sujet imagé n’est rien d’autre qu’une présence intense, reculée en elle-même, se rassemblant dans son intensité”. E mais adiante: “Nietzsche disait que ‘nous avons l’art afin de n’être pas coulés au fond par la vérité’. Il faut cependant préciser que cela ne se fait pas sans que l’art touche à la vérité. Ce n’est pas comme un filet ou comme un écran que l’image se tient devant le fond. Nous ne coulons pas, mais le fond monte à nous dans l’image”. (2003, p. 24 e p. 31).
3 No poema XXIV, diz Pessoa “que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas / E as flores as penitentes convictas de um só dia, / Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas / Nem as flores senão flores, / Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores” (1960, p. 154).
4 Entre idéia, palavra e coisa, muitas outras possibilidades. Por exemplo, no conhecido verso de Gertrude Stein: A rose is a rose is a rose. Para o ensaísta francês Maurice Blanchot, esse verso nos perturba por ser o lugar no qual se produzem torções entre o nome e a coisa. O verso afirma, primeiro, que só se pode dizer da rosa ela própria – assim, declara-a mais bela do que se dissesse que ela é bela. Mas, pela reiteração, o verso retira da rosa a dignidade do nome único, que pretendia mantê-la na beleza de rosa essencial, resistente a todo desdobramento. A rosa escapa da representação: ela é indefinível, afirmada pela pura tautologia. O verso termina por desmistificar o poder da nomeação e da evocação do ser: o nome (rosa) e a cópula (é) caem, pela repetição, na multiplicidade do murmúrio, que é manifestação de uma palavra sem começo nem fim (cf. Blanchot 1969, pp. 498-505).
5 Opondo a noção de verdade como adequação à de verdade como desvelamento, afirma Gerd Bornheim: “Esse modo de entender a verdade vem conquistando os seus espaços no âmbito da filosofia já há quase dois séculos e encontra, como é sabido, seu maior defensor em nosso tempo no pensamento de Heidegger. Com isto, abrem-se as portas para a transmutação da estrutura do próprio discurso filosófico. E um campo sem dúvida privilegiado para esse novo tipo de análise encontra-se precisamente na arte. Nem é por acaso que, enquanto teve plena vigência a metafísica platônica – e, com ela, esse seu conceito medular de verdade interpretada como adequação –, as manifestações de arte não pudessem receber maior atenção por parte da curiosidade filosófica: o capítulo da Estética é invariavelmente um dos mais pobres da filosofia tradicional. Realmente, se quisermos pensar a essência da obra de arte, não se conseguirá ir muito longe se a análise se fizer apoiada no conceito de verdade como adequação. É que a arte é fundamentalmente um processo de desvelamento, inacessível a uma abordagem digamos “científica” daquilo que a obra de arte é” (1992, p. 12).