Natureza humana
ISSN 1517-2430
Nat. hum. v.9 n.1 São Paulo jun. 2007
ARTIGOS
Winnicott e Heidegger: indicações para um estudo sobre a teoria do amadurecimento pessoal
e a acontecência humana
Winnicott and Heidegger: Indications for a Study Regarding the Theory of Maturation and Human Happening
Eder Soares Santos
Doutor em Filosofia e pesquisador do Grupo Pesquisa em Filosofia e Práticas Psicoterápicas.
RESUMO
o objetivo deste artigo é indicar uma possível articulação entre a teoria do amadurecimento pessoal de Winnicott e a teoria da acontecência (Geschichtlichkeit) de Heidegger. Utiliza-se a noção de paradigma de Kuhn para, no quadro do desenvolvimento histórico da psicanálise, distinguir a psicanálise de Winnicott da psicanálise tradicional (Freud e Klein). Essa escolha pretende mostrar, por um lado, que a ontologia presente na teoria de Winnicott aproxima-se de um modo de pensar a natureza humana muito afim às concepções pós-metafísicas de Heidegger, podendo a teoria da acontecência desse filósofo iluminar a compreensão dos elementos ontológicos que compõem a teoria winnicottiana. Por outro lado, esse movimento de aproximação aponta para um distanciamento, que permite notar que a psicanálise de Winnicott apresenta várias questões instigantes e suplementares a uma fenomenologia existencial.
Palavras-chave: Psicanálise; Fenomenologia existencial; Ontologia; Mudança de paradigmas; Amadurecimento; Acontecer humano; Kuhn; Freud; Winnicott; Heidegger.
ABSTRACT
The aim of the present work is to investigate the possibility of establishing a bond between Winnicott’s theory of personal maturation and Heidegger’s theory of Geschichtlichkeit (historicity). We used Kuhn’s notion of paradigm to distinguish Winnicott’s psychoanalysis from traditional psychoanalysis (Freud and Klein) within the framework of historical development of psychoanalysis. By this choice, we intend to show, on one hand, that the ontology found in Winnicott’s theory approaches a way of thinking human nature which is very close to Heidegger’s post-metaphysical conceptions so that his theory appropriation could illuminate the comprehension of the ontological elements that compose Winnicott’s theory. However, on the other hand, that movement of approximation points towards a distancing, which shows that Winnicott’s psychoanalysis contains several instigating and additional issues in relation to existential phenomenology.
Keywords: Psychoanalysis; Existential phenomenology; Onthology; Paradigm shift; Maturation; Human approximation; Kuhn; Freud; Winnicott; Heidegger.
Introdução
Em um dos momentos em que Heidegger se refere à criança enquanto um ser-o-aí (Dasein), por ocasião de uma de suas aulas proferidas após a publicação de Ser e tempo (1927), ele destaca a necessidade de se pensar esse ser-o-aí do ponto de vista da infância (Das kindliche Dasein), dizendo ser preciso fazer uma revisão (Revision) das teses centrais da psicologia, psicanálise, antropologia e etnografia, pois essas disciplinas deixaram de perceber que suas pesquisas sobre o homem deveriam ser conduzidas pela idéia de que o ser-o-aí é, fundamentalmente, humano e que seu caráter essencial é ser acontecente (Heidegger 1996, p. 124), 1implicando isso que “não poderemos começar a interpretar tal situação (Zustand) [a da infância] como a da criança em sua essência (Wesen)” até que os fenômenos do psiquismo de um ser-o-aí infantil (frühes Dasein) não sejam tornados evidentes em sua estrutura ontológica (ibid., p. 126).
Nessa mesma década em que Heidegger está discutindo essas idéias na universidade de Friburgo, na Alemanha, Winnicott inicia, em Londres, a sua aproximação com a psicanálise. Entretanto, já desde o início de sua formação analítica, em que todas as psiconeuroses eram tratadas em termos de angústias pertencentes à vida pulsional noíodo de idade relativa aos 4-5 anos das crianças e tinham o complexo de Édipo como seu corolário, Winnicott desconfiava, em função dos casos com que havia se deparado em sua prática médica, de que alguma coisa estava “errada” na teoria psicanalítica e que era preciso estudar os problemas mais iniciais da infância (Winnicott 1996 [1962], p. 172).
Esses dois momentos parecem indicar que, tanto em Heidegger como em Winnicott, é possível encontrar preocupações que impulsionam questionamentos sobre o homem, seja no horizonte ontológico, seja no ôntico. Ambos vêem a necessidade de se elaborar uma teoria que consiga refletir sobre o ser-o-aí, o homem, de uma maneira na qual o que lhe é essencial ganhe maior relevância. Heidegger passará os anos seguintes às aulas referidas procurando refletir sobre essa essência, e Winnicott se dedicará a um estudo sobre a natureza humana que leve em conta o seu amadurecimento desde os estágios mais iniciais do existir humano até a sua morte, procurando compreender e explicar como surgem os distúrbios emocionais e qual o papel que eles desempenham no decorrer desse amadurecimento.
O foco de discussão de ambos os autores era diferente. Heidegger discutia com toda a tradição filosófica que se esquecera da questão do ser e só pensava o ente. Winnicott debatia com a tradição psicanalítica, que tomava a teoria do complexo de Édipo como a chave-mestra para abrir todas as portas do psiquismo humano. Heidegger revelou a necessidade de se “deírem” os conceitos e os pré-conceitos da metafísica. Winnicott mostrou a necessidade de se encontrarem novas chaves que pudessem destrancar outras portas para a compreensão da natureza humana, e encontrou-as. Winnicott realizou o que Thomas Kuhn chama de mudança de paradigmas.
Esses pensadores nunca se encontraram. Um não conheceu, ao que se sabe, a teoria do outro. Por que e como se poderia aproximá-los? Este artigo tem por intenção apontar uma forma possível para tal aproximação.2 Como vimos, a necessidade de se fazer uma “revisão” nas teorias que tratam do homem era uma idéia comum a ambos e, tendo cada um realizado as respectivas “revisões” a seu modo, chegaram a idéias muito afins. Assim, a teoria do amadurecimento pessoal de Winnicott leva-nos a ver o homem em sua necessidade de chegar a ser e continuar-a-ser, de chegar a se integrar como pessoa, de tomar parte e responsabilidade junto à vida social e comum, procurando viver uma vida real e espontânea. A teoria da acontecência humana de Heidegger nos apresenta esse homem, ser-o-aí, nos seus diferentes modos de ser, apontando, sobretudo, que somos temporais e finitos.
Ao abordar a natureza humana com base na idéia do amadurecimento inicial do homem, Winnicott viu-se, não só obrigado a alterar a linguagem que descreve esses estágios iniciais, como também teve, conscientemente ou não, de alterar as bases ontológicas sobre as quais suas idéias se assentavam — sendo esse um dos elementos que permite destacar a sua mudança paradigmática. Sua concepção sobre o ser e continuar-a-ser toca o tema essencial da teoria heideggeriana em Ser e tempo, a saber: o existir humano é, no seu fundamento, um acontecer temporal e finito. Esse caráter fundamental do existir humano, presente na psicanálise de Winnicott, aponta, por um lado, que a fenomenologia existencial pode lançar alguma luz na compreensão dos componentes ontológicos dessa psicanálise. Por outro, também é possível perceber que certas discussões avançadas na teoria winnicottiana instigam e aclaram indagações ainda pendentes na teoria heideggeriana, como a questão da nascencialidade, da corporeidade do ser-o-aí e do chegar ao poder-ser do serí. Por isso, teoria do amadurecimento e acontecência humana.
Este e, enquanto conectivo, mostra que essas teorias podem se aproximar, isto é, indica que, em uma teoria do amadurecimento pessoal, deve estar contida a idéia de acontecer humano e vice-versa, e que uma teoria da acontecência humana deveria levar em consideração o amadurecimento psicossomático do ser humano. Porém, esse e também aponta que elas não são as mesmas teorias e que cada uma deve preservar o campo de suas especificidades, abrindo e mantendo as possibilidades de aproximação e distanciamento.
Em suma, o que ensaiamos apresentar são duas teorias, uma do campo da psicanálise e outra do domínio da filosofia, que nos mostram uma forma não naturalista de conceber o ser humano — em ambas, o ser humano tem sua importância pelo seu próprio existir no mundo.
Procuraremos esclarecer, no que segue, as indicações para um estudo dessas teorias e desses autores.
Winnicott e o interesse filosófico no estudo de sua teoria psicanalítica
O interesse filosófico na teoria psicanalítica de Winnicott encontra-se no fato de que ela não apresenta o ser humano como um objeto da natureza, mas sim como uma pessoa que, para existir, precisa do cuidado e da atenção de um outro ser humano. Isso leva-nos a pensar que a psicanálise de Winnicott não se enquadra mais na estrutura do pensamento científico-naturalista, que toma o ser humano apenas como mais um objeto da natureza a ser investigado.
Pode-se indicar qual é a marca do pensamento científico-naturalista por meio da seguinte observação, feita por Heidegger, no livro Seminários de Zollikon:
[...] o traço fundamental da natureza de que se fala no pensamento científico-natural é ser regida por leis. A calculabilidade é uma conseqüência de ser regida por leis. De tudo que existe [ist] só se considera aquilo que é mensurável, quantificável. (Heidegger 1987, p. 30)
Curiosamente, Winnicott escreveu um livro que se intitula Natureza humana. Do que trata essa natureza? Ele conseguiu, realmente, superar o naturalismo que é alvo das críticas de Heidegger?
A resposta parece-nos afirmativa. É preciso saber, então, o que Winnicott entende por natureza humana. Para ele, “o ser humano é uma amostra-no-tempo da natureza humana”3 (Winnicott 1988, p. 11) e a natureza humana “é quase tudo o que possuímos” (ibid., p. 1). Em
Winnicott, isso significa dizer que o que está em jogo na natureza humana e o que a constitui é o seu acontecimento como ser humano, isto é, a sua continuidade de ser como pessoa. Ser de maneira contínua no tempo, desde ício, ou seja, desde um pouco antes do nascimento, é o que lhe garante saúde o suficiente para alcançar algo que também a constitui, a morte. A quebra dessa continuidade, principalmente no início da vida do ser humano, leva a uma existência difícil, que pode ser marcada por graves distúrbioíquicos, como, por exemplo, as psicoses (ibid., pp. 126-60).
Essa interpretação da natureza humana não está marcada pela calculabilidade ou mensurabilidade do que é possível conhecer sobre o ser humano. Ela está baseada na fragilidade e nas dificuldades que existem no ter de existir humano. Esse é um dos motivos principais pelo qual acreditamos que o estudo da teoria winnicottina é de grande importância, não só para a psicanálise, mas também para a fenomenologia existencial de Heidegger.
Com efeito, se a natureza humana, tal como concebida por Winnicott em sua obra, não está baseada no naturalismo científico, então, os fundamentos de sua teoria psicanalítica não podem ser mais os mesmos da psicanálise tradicional.4 Essa parece ser também a opinião de Loparic (1995), ao dizer que, se em Freud podemos observar que os “fundamentos da psicanálise tradicional pertencem, todos eles, à metafísica da modernidade”, ou seja, “mísica pós-cartesiana, em que o sentido da realidade do real é um só, o da presença constante representável”, em Winnicott, percebemos que “a ‘tese da metafísica da psicanálise’ é rejeitada”. Por exemplo,
[...] em Winnicott, o acesso representacional ao objeto passa a ser considerado como derivado e fundamentado em modos de acesso menos “realistas”, mais “brincalhões”, porém, nem por isso menos significativos para a vida humana. A divisão de realidade em externa e interna não é tomada como pressuposta, mas considerada como adquirida. (Idem)
O interesse filosófico pela teoria psicanalítica de Winnicott aumenta ainda mais quando se percebe, em sua obra, temas que foram tratados originalmente pela fenomenologia existencial de Heidegger, por exemplo: a tarefa de elaborar um sentido do ser — ignorada tanto pela mísica como pela psicanálise tradicional — como conseqüência da conquista do poder continuar-a-ser; a idéia de que os distúrbios psíquicos graves têm algo a ver com a temporalização do bebê; a idéia de que o sentido de realidade não está sempre assegurado pelo fato da minha razão.
Um tema para estudo em Winnicott
Um exemplo de objeto de estudo na teoria psicanalítica de Winnicott são os estágios iniciais da teoria do amadurecimento, que se inscreve na história da psicanálise como uma verdadeira tournant paradigmática. Diferentemente da psicanálise tradicional — referimo-nos principalmente a Freud e Klein —, Winnicott recusa decididamente o naturalismo e o determinismo, isto é, recusa a objetificação do ser humano. Ele não concebe o ser humano como um mero fato, um efeito de causas, uma coisa em conexão causal com outras coisas da natureza. O ser humano, principalmente no que tange ao que é psíquico, não é constituído por um aparelho que é movido pela força de certas pulsões, mas é um acontecimento temporal que tende a se desenvolver até a sua morte.
Constituem preocupação da psicanálise tradicional alguns dos seguintes temas: as pulsões, a forma de relacionamento do sujeito com os objetos (bons ou maus), os significados e/ou significantes que o sujeito possa produzir em seu discurso. Isso, com efeito, fez com que, mesmo quando o estudo psicanalítico se referisse a crianças muito novinhas, nunca se chegasse ao momento inicial do existir humano, ou melhor, fez com que nunca se olhasse esse momento como decisivo para o trabalho que estava sendo realizado, como indica o próprio Winnicott:
Gradualmente, a psicanálise foi ampliada, de modo a abranger até mesmo as crianças muito novas, digamos de 2 anos e meio de idade. Isso, entretanto, não foi suficiente para o objetivo que temos em vista aqui, uma vez que as criancinhas de 2 anos e meio estão, surpreendentemente, muito distantes de seus primeiros meses de vida, a menos que sejam doentes e imaturas. (Winnicott 1999, p. 33)
Otto Rank e Melanie Klein são autores que, à primeira vista, poderiam ser citados como dois daqueles que tentaram dar alguma contribuição aos momentos iniciais. Porém, só à primeira vista. Rank, em sua teoria sobre o trauma do nascimento, estava preocupado com a etiologia da angústia, conforme sua adequação aos rendimentos (Leistungen) do aparelho psíquico proposto por Freud, e não com o bebê em seu momento inicial. Ademais, suas concepções já foram criticadas até mesmo pelo próprio Freud, que as colocou em dúvida, pois as considerava altamente contestáveis (höchst anfechtbar) teoricamente (Freud 1991, p. 166).
Quanto a Klein, embora tenha voltado sua atenção para os relacionamentos iniciais entre mãe e bebê, não chegou a investigar a possibilidade de que problemas psíquicos pudessem estar ligados aos estágios mais iniciais do existir e não encerrados nas fantasias do bebê com relação a um seio bom ou mau.5
A psicanálise, todavia, continuou avançando na constituição da sua história. E foi Winnicott quem chamou a atenção para a importância desses primeiros momentos da vida do ser humano por meio da apresentação dos estágios iniciais da vida do bebê. Assim, torna-se importante investigar esses momentos, uma vez que, parece-nos, remetem à problemática ontológica do início do sentido de ser. Esta, na teoria do amadurecimento de Winnicott, vai nos levar a uma discussão anterior, relativa à continuidade de ser.
Para que tal estudo seja possível, é preciso atentar para o fato de que o paradigma a conduzir essa investigação não é mais o mesmo que conduzira Freud em suas pesquisas, ou seja, aquele da teoria das pulsões, reforçado pela da sexualidade, tendo como exemplar paradigmático o complexo de Édipo.6 Estamos nos referindo aqui à teoria do amadurecimento pessoal, que tem como exemplar o bebê no colo da mãe (Loparic 1997, p. 58). Essa teoria é formada pelo conjunto das concepções e idéias que Winnicott usa para constituir a sua teoria e prática psicanalíticas, e diz respeito ao desenvolvimento emocional íquico do ser humano desde o seu nascimento.
Ainda a título de comparação, é possível fazer uma rápida oposição entre os pontos de vista de Freud e Winnicott, tomando como exemplo a noção de doença psíquica. Tal como descritas em termos da metapsicologia freudiana, as doenças psíquicas são distúrbios do funcionamento do “aparelho”, que, por psíquico que seja, pertence ao mesmo âmbito que os objetos das ciências físicas — as forças e os mecanismos. “Quem” adoece na teoria freudiana é a libido. A teoria do amadurecimento pessoal de Winnicott diz respeito ao somático e ao psíquico e, por isso, a doença psíquica tem a ver com a natureza humana e com a capacidade de existir. O aspecto biológico não é desconsiderado, mas a sua participação depende, essencialmente, do processo de integração do si mesmo (self) como uma unidade na psique e no soma (Dias 1998, p. 53).
O paradigma da psicanálise de Winnicott diz respeito ao continuar-a-ser — diríamos ao poder acontecer — e não ao problema edípico. Winnicott — assim como Freud — estava preocupado, primeiramente, com os problemaínicos apresentados pela psicanálise e, por isso, pôde constatar que existiam distúrbios graves muito precoces nas crianças e mesmo nos bebês, que em nada se relacionam com a angústia de castração decorrente da situação edípica. Winnicott constatou que havia angústias dício do existir humano que causavam graves danos ao “eu” da pessoa e que não são definíveis em termos de relações pulsionais de objeto. A essas angústias ele deu o nome de impensáveis. O mais importante a ser observado, no âmbito de tal estudo, no que diz respeito às angústias impensáveis, é que elas interrompem a continuidade-de-ser do bebê, e que essa interrupção compromete as possibilidades que este tem de se integrar como um si-mesmo ( self), uma unidade, ou seja, fica comprometido o seu amadurecimento enquanto continuidade do existir.7
A teoria do amadurecimento, em última instância, refere-se ao poder continuar-a-ser da pessoa de forma ininterrupta. Esse amadurecimento não é automático, ele acontece na relação com outros seres humanos.
A teoria do amadurecimento traz consigo, ainda, questões relacionadas à conquista de tempo e espaço no início do existir humano (holding), aos modos de se lidar com esse ser humano (handling) e a como ele apreende a realidade (object presenting) — temas que deixaremos para trabalhar em outra oportunidade, pois excederiam os limites deste artigo.
A filosofia de Heidegger como sugestão para um estudo da psicanálise winnicottiana
Ao se perguntar pelo sentido do ser, Heidegger tornou possível colocar em questão a tradição metafísica da filosofia, que ganhou força com o surgimento da ciência moderna.
Tanto a filosofia quanto a ciência moderna perguntam pelo ente a fim de saber o que ele faz e não o que ele é. O perguntar pelo fazer, principalmente na ciência moderna, significa tomar “a si mesmo como sujeito determinante para o qual todo ente pesquisável torna-se objeto” (Heidegger 1987, p. 123), até mesmo o próprio homem. Como conseqüência, o homem moderno criou um método científico que pudesse mensurar e calcular antecipadamente a natureza (ibid., p. 136).
Os questionamentos de Heidegger sobre a ciência, enquanto imposição de ser a única fonte segura de conhecimento sobre a natureza, parecem mostrar que não houve nenhum avanço — da perspectiva de um sentido de ser — em pensar o homem de uma maneira diferente que não fosse aquela de um objeto (ente) simplesmente dado na natureza. Esse modo de pensar, antes de levar o homem a um conhecimento maior do seu ser, leva-o, na verdade, ao esquecimento de si mesmo e a sua própria destruição.
Dessa forma, para que qualquer estudo sobre o homem possa ser realizado com algum sucesso, seria preciso, antes, que fosse analisada qual é a estrutura fundamental do seu sentido de ser — tarefa que Heidegger procura realizar em Ser e tempo.
Assim, por Heidegger ter tentado pensar o ser humano em seu sentido de ser e não enquanto objeto mensurável e calculável da ciência naturalista, ele se torna um interlocutor de extremo interesse para estudar a psicanálise winnicottiana, já que consideramos que também Winnicott consegue escapar ao aguilhão do naturalismo.
A acontecência humana em Heidegger
Trataremos agora do conceito de acontecência (Geschichtlichkeit) em Heidegger. Já de saída, estamos diante de um problema de tradução. Em português, esse termo foi traduzido por historicidade (tradução que não deixa de estar correta). Todavia, em alemão, esse termo também guarda o sentido de acontecer (Geschehen). Traduzido por historicidade, esse sentido de acontecer desaparece. Deve-se notar ainda que Heidegger também usa o termo Historicität que, em sentido estrito, também quer dizer historicidade. É a diferenciação e a compreensão desses dois termos que permitirá discutir a questão da história (Geschichte) em sua obra.
De fato, Heidegger trata da história e da historicidade, mas, em sua interpretação, procura afastar-se do modo como a tradição metafísica debate esse tema. Ele procurará mostrar que essa é uma discussão que passa, antes de tudo, pela compreensão da pergunta sobre o ser, compreensão que é um modo de ser do ser-o-aí. Sendo esse ser entendido como finito e estendido entre dois fins, nascimento e morte. Isto é, sendo esse ser compreendido como um acontecer (Geschehen) num entre (Zwischen) da existência.
Esse sentido de acontecer está presente no radical da palavra Geschichtlichkeit — por exemplo, em geschichtlich, em que temos um advérbio, portanto, “um proveniente do verbo”, que tanto pode ser entendido como acontecente ou como histórico. Para os interesses deste artigo, concentrar-nos-emos no sentido desse termo relativo ao acontecer. Desse modo, por se tratar de uma investigação sobre o sentido do ser compreendido como um acontecer, optamos pelo substantivo em português acontecência8 para a tradução de Geschichtlichkeit.
O conceito do homem como um ser acontecente é resultado das análises empreendidas por Heidegger em Ser e tempo.9 Ao questionar a metafísica, e com esses questionamentos voltar às origens dos fundamentos mísicos, o filósofo perguntou-se pelo sentido do ser. Essa pergunta é fundamental e fundante para a fenomenologia existencial, pois é a pergunta pelo homem destituído de seus afazeres, isto é, não pergunta pelo agir, pelo fazer. Para Heidegger, em Ser e tempo, a questão que se coloca é a do ser (Sein) ou, mais propriamente, a pergunta é pelo sentido do ser.
O alvo das nossas preocupações aqui é o ente “que possui em seu ser a possibilidade de questionar” (Heidegger 2001, p. 7). Este pode ser designado pelo termo ser-o-aí (Dasein) ou por presença. A questão do sentido do ser é uma questão do ser do ente, isto é, uma indagação sobre o ser do homem. Em outras palavras, a pergunta é: o que é o homem?
O ser-o-aí é um modo de ser privilegiado, pois é o único que, em sendo, coloca em jogo o seu próprio ser e estabelece uma relação de ser com seu próprio ser, ou seja, do ponto de vista ôntico, o homem que é pode compreender a si mesmo, sendo. Essa compreensão remete o ser a um questionamento ontológico.
O ser acontecente é desvelado em seu poder-ser originário por meio da angústia, pela qual o ser do ser-o-aí se mostra como cuidado (Sorge). Cuidado do meu próprio serí como ser-no-mundo e o dos outros em geral. O cuidar é um fenômeno ontológico fundamental, isto é, no fenômeno do cuidado, o homem preocupa-se (Fürsorge) com o seu próprio existir e com o existir em geral (ibid., p. 122). Isso porque o homem é um ser-no-mundo que, enquanto presença, é também um “ser-com os outros”, e isso lhe permite a abertura para a convivência. Esse fenômeno do cuidado se dá em uma temporalidade finita do ser-o-aí, com que se é levado a pensar em início, fim e em um “entre” esses dois extremos onde nós vivemos, acontecemos.
Concedido o fato da acontecência, esta não deve ser pensada de acordo com o modelo metafísico da ciência natural. Isso significa dizer que toda e qualquer explicação sobre o homem como um ser acontecente deve fugir do esquema do objetivismo e determinismo causal.
Como resultado, para se falar do homem como um ser acontecente, é preciso substituir a linguagem da mensurabilidade e calculabilidade dos objetos e dos entes usada pela ciência natural, assim como seu método hipotético-dedutivo, por uma linguagem e um método descritivos.
Com essa mudança de linguagem e método, qualquer estudo sobre o homem ou sobre os diferenciados modos de conhecimentos científicos deveria ter como base a acontecência, porém, não mais a acontecência pensada ao modo metafísico das ciências naturais, que transforma o acontecer humano em determinações objetificantes, pensando-o simplesmente como mais um ente pesquisável da natureza. Parafraseando Heidegger, quando fala da abertura historiográfica da história, é possível dizer que, “segundo a sua natureza e estrutura ontológica, toda abertura cífica da ciência já está em si mesma, radicada na acontecência do ser-o-aí” (ibid., p. 392).
O que indicamos neste momento é que a questão do ser investigada por Heidegger obriga-nos a pensar o ente, o homem ou o sujeito — como se costuma empregar no discurso psicanalítico — a partir de uma outra perspectiva. Nessa nova interpretação do ente, também é preciso repensar a questão do ser na psicanálise.
Pensamos que o modo de conceitualizar sobre o ser humano, tanto em Heidegger como em Winnicott, possui muitas afinidades, que são plausíveis de serem estabelecidas quando se utiliza a noção kuhniana de paradigma, e que, embora suas análises se realizem em níveis teóricos diferentes, o sentido dado ao existir humano por ambos os pensadores foge dos parâmetros do homem pensado cartesianamente, calculador e dominador da natureza, ou seja, o sentido do ser do homem não é mais o mesmo que aquele sustentado pela tradição metafísica.10
Um instrumento metodológico para um estudo da psicanálise
As propostas de Thomas Kuhn (1970) sobre a história e o desenvolvimento das ciências como um instrumento de trabalho é de grande valia para, por um lado, verificar as mudanças existentes na psicanálise winnicottiana em relação à psicanálise tradicional e, por outro, indicar que os componentes ontológicos observados na psicanálise de Winnicott guardam alguma relação com a fenomenologia existencial.
Para Kuhn, toda “matriz disciplinar” pode ser compreendida como um paradigma — um quadro de princípios, conceitos e modelos, algunsíricos e outros a priori — que marca, delimita e guia a formulação dos problemas e os tipos de soluções a serem encontradas. Todavia, dadas certas situações ou condições, um paradigma pode entrar em crise — ou seja, não ser mais eficiente na formulação e resolução dos problemas próprios a seu campo de ação — e estar sujeito a uma mudança radical, uma revolução que termina pela instauração de um paradigma mais eficiente, implicando, assim, a mudança de certos princípios, conceitos e modelos básicos que definem o paradigma da disciplina em questão.
Um novo paradigma significa um novo quadro teórico, dentro do qual se encontra a solução, tanto da maioria dos velhos problemas quanto dos novos problemas, até então insolúveis ou nem mesmo concebíveis. Assim, quando uma revolução ocorre e um outro paradigma começa a se instalar, é necessário redescrever os antigos problemas e soluções, visto que as bases do edifício teórico foram subsídas. Muito é aproveitado, mas numa perspectiva e com um valor diferente do que tinha no velho paradigma.
Com o auxílio da noção de paradigma de Kuhn, é possível observar que os componentes teóricos da matriz disciplinar da psicanálise winnicottiana, quando comparados com a tradicional, são outros. Tome-se, por exemplo, o paradigma exemplar da psicanálise de Freud e de Winnicott.
O exemplar paradigmático da psicanálise de Freud é o complexo de Édipo (cf. Loparic 1997). Este, como um problema concreto, serviu como critério para que vários problemas e quebra-cabeças em sua teoria pudessem ser resolvidos, bem como serviu para o estabelecimento de uma constelação de crenças e de uma comunidade de psicanalistas.
O paradigma da psicanálise de Winnicott é o do “bebê no colo da mãe”. Assumir que o paradigma winnicottiano é o do “bebê no colo da mãe” (Loparic11 1997) implica considerar esse bebê sendo segurado pela mãe, ou seja, deve-se levar em conta o conceito de holding de Winnicott, que, em última instância, nos leva à idéia de cuidado — poder-se-ia dizer paradigma do cuidado, porém, não há necessidade de se criar mais uma terminologia. Implica pensar na idéia winnicottiana de que não existe um bebê sozinho, isto é, nos estágios iniciais, quando se pensa em um bebê, também se deve pensar em uma mãe que se encontra junto com ele.
Os exemplos paradigmáticos de sofrimentos em Winnicott não são os das neuroses, mas os das “angústias impensáveis”. “Impensável” porque antecede a qualquer representação mental, e “angústia” porque implica uma batalha para continuar-a-ser. São problemas que podem surgir da relação dual entre os bebês e suas mães e não de uma relação triangular.
Esse exemplo acima nos aponta que, entre a psicanálise winnicottiana e a tradicional, há rupturas conceituais importantes. Em nosso caso: o abandono do complexo de Édipo como complexo nuclear (Winnicott 1988, pp. 49-50). Ter tomado como paradigma “o bebê no colo da mãe” levou Winnicott a solucionar questões que a psicanálise tradicional não conseguia resolver satisfatoriamente.12
Considerações finais
Procuramos mostrar neste artigo uma possível articulação entre a teoria do amadurecimento pessoal de Winnicott e a teoria da acontecência de Heidegger.
Lançamos mão da noção de paradigma de Kuhn para, no quadro do desenvolvimento histórico da psicanálise, distinguir a de Winnicott da tradicional (Freud e Klein). Indicamos que, em relação à tradicional, a winnicottiana promove uma mudança paradigmática em todos os elementos que compõem a matriz disciplinar da teoria psicanalítica. O estabelecimento dessa distinção permite-nos tomar um dos componentes dessa matriz para investigação, a saber, o componente ontológico. Essa escolha pretende mostrar que a ontologia presente na teoria de Winnicott aproxima-se de um modo de pensar a natureza humana que é muito afim às concepções pós-metafísicas de Heidegger, e que a teoria da acontecência desse filósofo pode iluminar a compreensão dos elementos ontológicos que compõem a teoria winnicottiana.
Desse modo, é possível estabelecer uma ponte para se aproximar da fenomenologia existencial. Entretanto, antes de realizar essa passagem, faz-se necessário apresentar os elementos ontológicos que compõem a psicanálise de Winnicott, procurando destacar que a concepção de amadurecimento humano, que se deixa ver por meio desses elementos, situa-nos diante da necessidade de compreender a precariedade do nosso próprio existir, de contar com alguém que, inicialmente, nos provê cuidado para que possamos chegar a ser e poder discutir qual o sentido de ser. A fenomenologia existencial permite mostrar, por um lado, que pensar o sentido de ser a partir de sua acontecência é uma abordagem que ilumina a compreensão da natureza humana, mas, por outro, revela que o pensar filosófico sobre o ser está preso a uma armação conceitual que não lhe permite avançar a discussão de certas questões impostas por uma teoria do amadurecimento humano.
É com essa precaução que se deve fazer a travessia da ponte que nos leva à aproximação com a fenomenologia existencial: mostrar em quais pontos se tocam a teoria do amadurecimento e a da acontecência humana, a saber, no que diz respeito ao cuidado, à preocupação, à idéia de tempo, espaço e realidade, nas concepções sobre o existir e o teorizar sobre o humano e em certas idéias sobre o conceito de angústia. E, tendo chegado ao outro lado da ponte que aproxima essas teorias, deve-se voltar o olhar para a outra margem em que se encontrava a psicanálise de Winnicott e perceber que esta se distancia da fenomenologia existencial de Heidegger e lhe impõe pensar questões, como a de ser-para-o-início a partir de análises sobre a nascencialidade, que já se encontram encaminhadas na teoria do amadurecimento pessoal.
Dessa forma, perceber-se-á que as formulações de Winnicott tanto se aproximam quanto se afastam das de Heidegger, isto é, as análises winnicottianas apontam discussões ontológicas essenciais, bem como apresentam descrições existenciárias do modo de ser cotidiano saudável ou doente. Por isso, deve-se investigar qual é o modo de compreensão presente em sua psicanálise e qual o seu lugar em relação a um pensamento pós-metafísico. Sustentamos que em Winnicott há uma pré-ontontologia da natureza humana. Nela, o homem não é compreendido enquanto representações ou pulsões e, sim, enquanto possibilidade aberta e paradoxal. Nesse sentido, há uma pré-ontologia não temática em sua teoria, ou seja, as questões relativas ao ser se reduzem à dicotomia mais básica da tradição filosófica herdada desde os gregos, dando aí um passo a mais, a saber: ser ou não ser; alcançar ser e perder-se; nunca chegar a ser (cf. Santos 2006a).
Concluímos, assim, que se pode trabalhar com doíveis de investigações na psicanálise de Winnicott que se entretecem: o relativo ao ser e ao ente, pois ambos são temas centrais de suas investigações.
Levar em consideração o ser e o ente enquanto temas justifica, parece-nos, a idéia de aproximação com a fenomenologia existencial de Heidegger. Conseqüentemente, também indica a idéia de distanciamento, em que se poderá perceber algumas contribuições que a psicanálise de Winnicott pode oferecer à filosofia. Essa psicanálise não é uma investigação do ser e também não é, necessariamente, uma psicanálise do ente considerado à luz da mecanicidade do funcionamento psíquico. Ela se localiza, a nosso ver, no permeio da diferença entre ser e ente. Localizamos a psicanálise de Winnicott na abertura (da) e no entre ser e ente, isto é, no permeio da diferença, que esclarece a necessidade da relação de pertença latente entre ser e ente referente ao próprio existir. E é por estar nesse entremeio que as análises sobre uma teoria do amadurecimento pessoal possuem descrições sobre o psiquismo que remetem a uma compreensão sobre o homem que é pré-ontológica e acontecencial, mesmo quando se trata de questões factuais.
Referências
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Endereço para correspondência
E-mail: edersan@hotmail.com
Recebido em 18 de setembro de 2006.
Aprovado em 16 de novembro de 2006.
1 As traduções presentes neste trabalho são de minha inteira responsabilidade.
2 Podem-se encontrar outras tentativas de aproximação entre a fenomenologia existencial e a psicanálise, sobretudo a psicanálise de Freud. No entanto, essas tentativas não deram a devida importância ao fato de que a ontologia da psicanálise tradicional e a da filosofia de Heidegger trabalham com perspectivas diferentes. A título de consulta, conferir Condrau (1992), Düe (1986) e Holzhey-Kunz (1994).
3 Essa máxima winnicottiana é um dos pontos principais para se pensar a idéia de homem em sua psicanálise.
4 Considera-se psicanálise tradicional toda aquela que tem por paradigma o complexo de Édipo.
5Para Winnicott, suas idéias sobre os estágios iniciais e as fantasias dos bebês teorizadas por Klein são conceitos completamente diferentes. Sobre essas idéias de Klein, ele diz, com certa ironia, que é “um ponto de vista interessante, do tipo extremo”. Conferir carta a Betty Joseph de 13 de abril de 1954 (Winnicott 1987, p. 52).
6 Note-se que a questão dos instintos (instincts), da sexualidade ou do complexo de Édipo não deixou de ter sua importância na psicanálise winnicottiana, mas esses temas não possuem a mesma centralidade que têm na teoria freudiana. Para uma discussão sobre esse assunto, conferir Santos (2001).
7 Esse tema encontra-se tratado mais demoradamente em Santos (2005).
8 Embora não dicionarizada, a palavra “acontecência” existe na literatura brasileira. Ela é usada, por exemplo, por Vilma Guimarães Rosa, no seu livro de contos intitulado Acontecências (Rio de Janeiro, José Olympio, 1968) (apud Loparic 2000).
9 Os temas apresentados em Ser e tempo já haviam sido trabalhados por Heidegger em preleções anteriores a 1927. Essas preleções encontram-se em sua edição completa (Gesamtausgabe). A título de exemplo, conferir Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs (1925) e Der Begriff der Zeit (1924).
10 Desenvolvimentos desse tema podem ser encontrados em Santos (2006 a e b).
11 Deve-se notar aqui que essa formulação é um insight de Loparic de como poderia ser apresentada a teoria psicanalítica de Winnicott. Desde 1996, pelo menos, Loparic vem trabalhando com a tese de mudança de paradigmas na psicanálise, tomando como contraponto de sua discussão o paradigma freudiano do complexo de Édipo e o paradigma winnicottiano do “bebê no colo da mãe”. Conferir seus artigos em Loparic (1996, 1996a, 1997, 1998, 1999, 2000, 2001, 2003, 2004, 2005, 2006).
12 Esse é o caso, por exemplo, das psicoses infantis.