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Natureza humana
versão impressa ISSN 1517-2430
Nat. hum. v.9 n.1 São Paulo jun. 2007
ARTIGOS
Paradigmas na história da psicanálise*
Paradigms in the History of the Psychoanalysis
Leopoldo Fulgencio
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas
RESUMO
Neste artigo, pretende-se analisar os diversos usos do termo e do conceito de paradigma para o estudo da psicanálise. Após esclarecer qual é o sentido e as características desse conceito, tal como propôs Thomas S. Kuhn, analisa-se como diversos autores, psicanalistas e filósofos, utilizaram com mais ou menos rigor o termo kuhniano. Considera-se que as noções de paradigma, léxico, incomensurabilidade, crise e revolução podem servir para a comunicação e o diálogo entre as diversas perspectivas teóricas da psicanálise, num momento em que diversos autores estão de acordo em reconhecer que há uma crise de comunicabilidade e de desenvolvimento da psicanálise.
Palavras-chave: Paradigma; Psicanálise; Crise; Epistemologia; Revolução.
ABSTRACT
This article seeks to analyze the diverse uses of the term and concept of paradigm for the study of psychoanalysis. After clarifying the meaning and characteristics of this concept, such as proposed by Thomas S. Kuhn, the research analyzes how diverse authors, psychoanalysts and philosophers, utilize the Kuhnian term with more or less rigor. It is considered that the notions of paradigm, lexicon, incommensurability, crisis, and revolution, can serve so that communication and dialogue enter the diverse theoretical perspectives of psychoanalysis, at a moment when diverse authors are in agreement in recognizing that there is a crisis of communicability and development in psychoanalysis.
Keywords: Paradigm; Psychoanalysis; Crisis; Epistemology; Revolution.
Na história e no desenvolvimento da psicanálise, a proliferação de grupos e subgrupos, com uma diversidade de léxicos e de interpretações para termos comuns, tem causado não só cisões e disparidades teórico-clínicas, como também uma dificuldade de comunicação e até mesmo uma obnubilação da definição e enquadre da psicanálise como uma disciplina específica do conhecimento & a ponto de borrar as características definidoras do que deve ser incluído como pertencendo ao campo da psicanálise e o que deveria ser excluído dele.
Nas inúmeras tentativas de diálogos, as dificuldades de entendimento entre os membros de diferentes grupos de psicanalistas têm sido uma constante: as dissonâncias, mal-entendidos, erros de interpretação, mal-uso de termos e conceitos mais parecem a regra do que a exceção. Pode-se, pois, afirmar que a psicanálise tem vivido diversas experiências de colapso na comunicação.
O reconhecimento de que os psicanalistas têm vivido numa espécie de Babel é admitido já de longa data. André Green, por exemplo, diz:
No início dos anos 1980, eu me lembro de ter lamentado com Bion sobre a situação babeliana da psicanálise. Na sua sabedoria, ele me respondeu que antes de chegar a uma linguagem comum e única na psicanálise, dever-se-ia chegar aos extremos de cada idioma singular; teoricamente falando, isso é uma decorrência natural. Hoje a psicanálise parece com uma linguagem falada em diversos idiomas. Mas, na maior parte do tempo, as pessoas pretendem se compreender ou, ao menos, dar a impressão de que se compreendem com a finalidade de salvar a própria cara, sobretudo nos congressos regionais e internacionais. Na realidade, não há uma verdadeira discussão [...]. (Green 2005b, p. 44)
Talvez a noção de paradigma de Thomas Kuhn, já utilizada por diversos estudiosos da psicanálise, possa contribuir para estabelecer parâmetros para o entendimento e a comunicação entre os diversos sistemas teóricos da psicanálise. Mas de que maneira? A análise das características desse conceito, bem como do seu uso no estudo da psicanálise, podem esclarecer essa questão.
A noção de paradigma, apresentada por Thomas S. Kuhn no seu A estrutura das revoluções científicas (nas edições de 1962 e 1970), foi inicialmente proposta como aplicável ao campo das ciências naturais. Desde então, surge a questão de saber se ela poderia ser usada para o estudo de outras disciplinas e, no que diz respeito a nosso interesse, para a compreensão da psicanálise e de sua história.
Para Kuhn, toda ciência madura tem uma série de características estruturais que determinam quais são os problemas e soluções de seu campo de ação, funcionando, na maturidade, como solucionadora de quebra-cabeças de determinado tipo. Sobre isso, afirma Kuhn: “estejam ou não cientes os praticantes individuais, eles são treinados, e recompensados por isso, para resolver quebra-cabeças intrincados & sejam eles instrumentais, teóricos, lógicos ou matemáticos & na interface de seu mundo fenomenal com as crenças de sua comunidade a respeito dele” (1990-1993, p. 307). Kuhn denominou paradigma esse conjunto de características que possibilitam tanto a constituição dos quebra-cabeças quanto a identificação das suas peças pertinentes, bem como o horizonte da solução desses quebra-cabeças.1 As características principais de um paradigma são a consideração, por uma comunidade, de:
1. problemas exemplares :“as soluções concretas de problemas que os estudantes encontram desde o início de sua educação científica, seja nos laboratórios, exames ou no fim dos capítulos dos manuais científicos. [...] Tais soluções indicam, através de exemplos, como devem realizar seu trabalho” (Kuhn 1970a, p. 232);
2. generalizações simbólicas: conjuntos de compromissos teóricos que podem ser expressos por símbolos, por exemplo, F = m.a, ou, ainda, por palavras, por exemplo, “a uma ação corresponde uma reação igual e contrária”, etc., aplicáveis a todos os problemas (ou todos os quebra-cabeças), “que funcionam em parte como leis e em parte como definições de alguns dos símbolos [ou palavras] que elas empregam” (Kuhn 1970a, p. 228);
3. modelos metafísicos: crenças coletivas tais como “o calor é a energia cinética das partes constituintes dos corpos; todos os fenômenos perceptivos são devidos à interação de átomos qualitativamente neutros no vazio ou, alternativamente, à matéria e à força ou aos campos” (Kuhn 1970a, p. 230), bem como “crenças em determinados ‘modelos’ de modo a incluir também a variedade heurística: o circuito elétrico pode ser encarado como um sistema hidrodinâmico em estado de equilíbrio” (Kuhn 1970a, p. 230); esses modelos servem para auxiliar a organização e sistematização dos dados empíricos;
4. conjunto de valores, os quais contribuem para dar à comunidade o sentimento de pertinência a um determinado grupo, referindo-se, em geral, às características das predições (por exemplo: “devem ser acuradas; predições quantitativas são preferíveis às qualitativas; qualquer que seja a margem de erro permissível, deve ser respeitada regularmente numa área dada; e assim por diante” [Kuhn 1970a, p. 229]); também podem ser de outro tipo, tais como os que se referem ao julgamento das teorias como completas (“estes precisam, antes de mais nada, permitir a formulação de quebra-cabeças e de soluções; quando possível, devem ser simples, dotadas de coerência interna e plausíveis, vale dizer, compatíveis com outras teorias disseminadas no momento” [Kuhn 1970a, p. 229]) ou, ainda, relativo à questão da utilidade da ciência (por exemplo, se a ciência deve ou não ter uma utilidade social). Kuhn considera que, “embora os valores sejam amplamente compartilhados pelos cientistas e este compromisso seja ao mesmo tempo profundo e constitutivo da ciência, algumas vezes a aplicação dos valores é considerada afetada pelos traços da personalidade individual e pela biografia que diferencia os membros do grupo (Kuhn 1970a, p. 230).
Quando uma ciência ainda não está madura ou quando há nela uma crise & caracterizada pelo acúmulo de problemas anômalos e sem solução &, então ocorre um confronto entre seus praticantes. Se a ciência ainda não está madura a ponto de ter constituído um paradigma, as diversas propostas prático e teóricas se enfrentam numa disputa de hegemonia; se há um paradigma em crise, então dois ou mais paradigmas se enfrentam tendo em vista os problemas em voga e sua solução.
Kuhn declara-se um kantiano, considerando, então, que as características do paradigma ou o léxico de um paradigma são análogos às categorias kantianas, mas, diferentemente de Kant,2 estas não seriam dados universais sem história; pelo contrário, seriam produzidas e modificadas historicamente. Cito Kuhn:
[...] a posição que estou desenvolvendo é um tipo de kantismo pós-darwiniano. Como as categorias kantianas, o léxico fornece as precondições da experiência possível. Mas as categorias lexicais, ao contrário de seus predecessores kantianos, podem mudar e mudam, tanto com o passar do tempo quanto com a passagem de uma comunidade a outra. (Kuhn 1990, p. 131)3
Ao reconhecer que uma disciplina ou matriz disciplinar tem sempre um léxico específico, compartilhado por um grupo ou comunidade, Kuhn também está afirmando que os referentes de seus conceitos estão correlacionados a fatos e fenômenos diferentes. Ou seja, não se trata de um problema de nomenclatura, mas de formulação dos fatos e problemas empíricos a serem considerados. Ao confrontar paradigmas, ocorre, pois, o problema da tradutibilidade entre eles. É o que comumente acontece no diálogo entre a filosofia e as ciências, sempre fracassado se tais precauções semânticas não são respeitadas. No caso de uma mesma disciplina, na qual há paradigmas díspares, o problema pode ser ainda maior, dado que, além de termos novos, há termos comuns que têm seu sentido modificado, ainda que o significado de outros termos comuns sejam mantidos. Quanto à psicanálise, que, no seu desenvolvimento, nem sempre manteve tais precauções, seja na importação de conceitos e termos de outras disciplinas, seja no uso não crítico dos termos comuns de diversos de seus grupos, temos um campo propício para o fracasso na comunicação.
Cada paradigma e seu léxico correspondente constituem, para Kuhn, a consideração de mundos diferentes. Ou seja, não se trata de um problema terminológico, em que existem nomes diferentes para os mesmos referentes, mas, diferentemente disso, muitos dos referentes mudam, exigindo um novo léxico e a redefinição do léxico antigo. Noutros termos, na passagem de um paradigma para outro, mudam os problemas e as soluções de referência, fazendo com que seus praticantes vejam um novo conjunto de fenômenos.
É interessante notar que Kuhn considera que um membro individual pode ser “bilíngüe” ou “trilíngüe”, dominando os sentidos específicos dos paradigmas em questão, ainda que, em termos práticos, essa possibilidade não exista. Ou seja, para ele, a prática efetiva de formulação de problemas e o encaminhamento de suas soluções não podem ser realizados como se o praticante se comportasse como uma estação de rádio, ora num mundo ora noutro; ainda, segundo Kuhn, principalmente no caso da psicanálise, para a qual a solução de problemas clínicos corresponde a um longo processo de comunicação entre analista e analisando.
A utilização da proposta de Kuhn, em termos metodológicos, corresponde a um tipo de exigência de uma ética da terminologia,4 mas avança um pouco mais do que apenas fornecer uma mera orientação geral, uma vez que, além de exigir a constante preocupação em relacionar os termos teóricos a seus referentes específicos, possibilita, por meio das características que delimitam e estabelecem o que é um paradigma, quais são os aspectos centrais a serem considerados para que disciplinas e propostas díspares possam ser comparadas e compreensíveis umas às outras.
Cabe perguntar qual é a posição do próprio Kuhn no que se refere à aplicabilidade de suas concepções a outros ramos do saber que não as ciências naturais. Previdente, mas confiante no poder da aplicabilidade de seu instrumento às ciências humanas, ele escreveu, em 1989:
As ciências naturais, portanto, embora possam requerer o que eu chamei de uma base hermenêutica, não são, elas próprias, atividades hermenêuticas. As ciências humanas, por sua vez, freqüentemente o são e podem não ter outra alternativa. Mesmo que esteja correto, contudo, pode-se, ainda, perguntar, com procedência, se elas estão restritas à hermenêutica, à interpretação. Não seria possível que aqui e ali, com o passar do tempo, um número crescente de especialistas encontrasse paradigmas que viabilizassem a pesquisa normal, solucionadora de quebra-cabeças?
Quanto à resposta a essa pergunta, estou totalmente incerto. Mas arriscarei duas observações que apontam para direções contrárias. Em primeiro lugar, não estou ciente de qualquer princípio que barre a possibilidade de uma ou outra parte de alguma ciência humana encontrar um paradigma capaz de viabilizar a pesquisa normal, solucionadora de quebra-cabeças. E a probabilidade da ocorrência dessa transição é, para mim, aumentada por forte sentimento de déjà-vu. Muito do que ordinariamente é dito para defender a impossibilidade de uma pesquisa solucionadora de quebra-cabeças nas ciências humanas já foi mencionado, há dois séculos, para negar a possibilidade de uma ciência da química, e repetido, um século depois, para mostrar a impossibilidade de uma ciência dos seres vivos. Muito provavelmente [segunda observação], a transição que eu estou sugerindo já está em andamento em algumas especialidades atuais das ciências humanas. Minha impressão é a de que, em partes da economia e da psicologia, isso já possa ter ocorrido. (1989, pp. 272-3)
E, especificamente, sobre a psicanálise, o que Kuhn disse explicitamente? Sua posição crítica advém tanto da sua análise histórico-epistemológica, quanto de sua experiência pessoal como paciente. Na sua última entrevista, em 1997, ele comenta:
Minhas relações com mulheres eram praticamente inexistentes. Mas isso em parte porque meu ambiente era um ambiente masculino. O resultado é que fui persuadido, sem muita dificuldade, a ir fazer psicanálise. Quando criança, tinha tido alguma experiência com psiquiatria infantil, experiência que não tinha em grande conta e de que não trago lembranças agradáveis. Fiz análise naqueles anos em Harvard com um sujeito que, em retrospecto, odeio, porque acho que se comportou de maneira extremamente irresponsável comigo. Ele costumava pegar no sono e, quando eu o surpreendia roncando, ele agia como se eu não tivesse nenhum motivo para estar furioso ou perturbado com isso. Por outro lado, eu tinha lido anteriormente a Psicopatologia da vida cotidiana de Freud. Nem por um momento gosto das categorias teóricas que ele apresenta, nem sinto que, para mim, ao menos, elas tenham alguma importância. Mas a técnica de compreender as pessoas e capacitá-las a se compreender melhor & não estou certo de que produza algum tipo de terapia & é, com certeza, para lá de interessante. Eu mesmo acho que teria muita dificuldade em documentar isso, mas acho que muito do que comecei a fazer como historiador, ou o nível de minha capacidade para fazê-lo & “entrar na cabeça das pessoas” é uma expressão que eu usei vez ou outra &, veio de minha experiência com a psicanálise. Assim, nesse sentido, acho que devo muitíssimo a ela. Lastimo que esteja ganhando a péssima reputação que está adquirindo atualmente, embora pense que ela muito a mereceu; mas acho que o que acaba sendo esquecido é que há um ofício, um aspecto prático nela, para o qual não conheço nenhuma outra rota, e que tem uma enorme relevância intelectual. (1997, p. 339)
Ao afirmar que não gosta das proposições teóricas de Freud e que, pessoalmente, não tem nenhum interesse nelas, poder-se-ia supor que Kuhn julga que a teoria psicanalítica ainda não alcançou o estatuto de uma teoria científica. Além disso, ele reconhece na psicanálise uma prática (um ofício) que leva a conhecer as pessoas e fazer com que se conheçam melhor, ainda que não esteja seguro de que ela seja uma terapia. Mais ainda, mesmo que não seja claro em que lugar ele a coloca & certamente não está no rol das ciências maduras, mas também não parece ser um ramo da arte ou da filosofia &, reconhece que uma parte importante do que fez como historiador da ciência foi influenciado por seu contato com a teoria e a clínica psicanalítica. Convém lembrar, nesse ponto, que Kuhn considera possível a utilização de sua noção de paradigma para a compreensão de outras disciplinas do conhecimento, tal como, por exemplo, a arte e sua história (Kuhn 1970a, “Posfácio”, pp. 255-6). Sendo assim, é possível que o conceito de paradigma possa ser aplicado também à psicanálise.
Podemos nos perguntar se, tal como estão estruturadas a teoria e a prática psicanalítica, seria possível caracterizá-las em termos da existência de exemplares, generalizações simbólicas, modelos metafísicos, valores, etc., configurando uma unidade paradigmática. Outra questão seria: no desenvolvimento da psicanálise pós-Freud, haveria novos paradigmas? Respostas a essas perguntas têm sido dadas há mais de 20 anos, afirmativa ou negativamente. Não me dedicarei aqui a um estudo exaustivo de todos os usos da aplicabilidade das propostas de Kuhn para o estudo da psicanálise e de sua história, mas procurarei apresentar os usos mais significativos, comentando um ou outro caso que pode agrupar as diversas tentativas nessa direção. Nesse sentido, a ordem cronológica será sacrificada em prol da compreensão mais geral.
Cabe citar os que usam o termo sem se referir a Kuhn, tomando-o, então, como sinônimo, grosso modo, de modelo, ou seja, os que não utilizam o termo como um conceito específico, mas apenas em seu sentido familiar. Para Kuhn, o conceito de paradigma não é redutível ao termo ou ao conceito de modelo, sendo mais amplo e mais preciso em suas diferenciações. Dentre os diversos autores que tomam um termo por outro, citarei apenas dois: Adam Phillips e Jacques André.
O primeiro, Adam Phillips, refere-se a Winnicott como tendo formulado um novo paradigma para a psicanálise. Ao não utilizar o conceito kuhniano, mas o termo no seu sentido familiar ou cotidiano, como sinônimo de modelo, ele reconhece que grandes mudanças ocorreram na psicanálise quando Winnicott tomou o relacionamento mãe-bebê como o modelo de referência para pensar a situação analítica. Diz Phillips: “Winnicott fez derivar tudo, em sua obra, inclusive uma teoria das origens da objetividade científica e uma revisão da psicanálise, do seu paradigma da relação mãe-bebê” (2006 [1988], p. 5). No seu livro, ele comenta muitas transformações que a proposta de Winnicott representa, quando comparadas com as de Freud e de Melanie Klein. No entanto, ao não tomar o termo paradigma no seu sentido técnico dado por Kuhn, não organiza nem sistematiza essas diferenças da maneira como ocorreria caso usássemos o conceito de Kuhn. Ao não fazê-lo, a questão da mudança de paradigma na psicanálise não fica claramente colocada, uma vez que o uso do termo nesse sentido coloquial não fornece parâmetros específicos para avaliar se outras propostas de psicanalistas pós-freudianos também correspondem a mudanças de paradigmas.
O segundo exemplo refere-se ao livro Les états limites. Nouveau paradigma pour la psychanalyse?, de 1999, com textos de André Green, Pierre Fédida, Daniel Widlöcher, Catherine Chabert e Jean-Luc Donnet, precedidos de uma introdução de Jacques André (organizador do livro). O nome de Kuhn não foi citado uma única vez! Trata-se, evidentemente, de uma opção de não utilizar o termo como um conceito específico, que tem uma história já estabelecida. As razões dessa opção não foram apresentadas pelos autores.
Creio que tal uso é um desserviço aos estudos e às pesquisas sobre o desenvolvimento e a história da psicanálise, dado que o termo, assim usado, nada acrescenta às análises feitas, apenas dão-lhe um qualificativo; se fosse mantido seu sentido técnico, levaria os autores a considerarem diferenciações e comparações com o conceito kuhniano. O uso do termo paradigma como um conceito faz dele um instrumento para observação e análise das teorias psicanalíticas, enquanto que, noutro sentido, é apenas um adjetivo. Não creio que os psicanalistas, talvez os mesmos que usam o termo paradigma sem referência a Kuhn, aceitariam que os termos inconsciente ou sexualidade fossem utilizados sem a devida referência a Freud e à psicanálise.
Circunscrevendo, agora, minha análise aos autores que procuram usar o termo paradigma com base na definição kuhniana, indico alguns psicanalistas, historiadores e filósofos da psicanálise que tentam aplicar o conceito de Kuhn a seus estudos.
O artigo de Ricardo Bernardi, “The Role of Paradigmatic Determinants in Psychoanalytic Understanding” (1988 pp. 341-55), foi uma tentativa explícita de uso da ferramenta khuniana. Bernardi percebe que há dissonância entres as diversas teorias psicanalíticas, seja no uso de termos comuns com sentidos díspares & tais como inconsciente, complexo de Édipo, ego &, seja na proposta de conceitos e termos intraduzíveis de uma teoria para outra & tais como posição, significante, elemento alfa. Ele considerou, então, que um paradigma é um conjunto de crenças compartilhadas, auto-reguladas internamente, que orientam uma prática psicanalítica específica. Certamente, esse é um dos sentidos do conceito, mas apenas em seu aspecto mais geral. Permanecendo, assim, restrito a esse sentido, Bernardi considerará que há três paradigmas na psicanálise: o de Freud, o de Klein e o de Lacan. Diz Bernardi:
No tocante à unidade e à diversidade do nosso campo, procuramos mostrar que esses diferentes paradigmas são irredutíveis uns aos outros, pois não há acordo entre eles nem quanto às premissas gerais (que não partilham), nem quanto à experiência (que não vêem do mesmo modo) [...]. Tal situação de incomensurabilidade coloca questões interessantes, embora também preocupantes. (1988, pp. 353-4)
Para exemplificar sua hipótese, ele tentará diferenciar os três paradigmas caracterizando como Freud, Klein e Lacan entenderam o caso do Homem dos Lobos. No entanto, não faz distinção entre os paradigmas, especificando as características desses em termos das noções de exemplar, generalização simbólica, partes metafísicas e valores. Ao proceder dessa maneira, Bernardi comete ao menos dois erros, que tornam insustentável sua proposta: primeiro, ele não usa o conceito de paradigma com todas as suas nuanças e possibilidades de aplicação; segundo, ele não considera que o caso do Homem dos Lobos já é uma narrativa e apreensão de dados que está sujeita às determinações teóricas que tornaram possível a sua observação. Mezan (1990), ao comentar o artigo de Bernardi, mostra a inconsistência das diferenciações propostas, e isso sem precisar referir-se ao mal-uso do termo ou conceito de paradigma, analisando apenas o resultado das análises de Bernardi. Assim, é forçoso, pois, admitir que esse é um caso de uso parcial e inadequado do conceito kuhniano de paradigma.
Uma proposta mais cuidadosa, dedicada ao emprego da noção kuhniana de paradigma ao estudo da psicanálise, foi feita por Jay R. Greenberg e Stephen A. Mitchell, no livro Relações objetais na teoria psicanalítica, de 1983. Eles comentam que, num paradigma, segundo Kuhn, há diversos modelos, alguns servindo simplesmente como metáforas ou artifícios heurísticos, enquanto outros ocupam um papel mais profundo e penetrante na comunidade científica, fornecendo “um arcabouço básico de orientação e crença, servindo como objetos de compromisso metafísico” (Greenberg e Mitchell 1983, p. 12). É nessa característica do paradigma, e só nessa, que eles se apóiam para desenvolverem seu estudo:
É precisamente em torno deste tipo de modelo que a teorização psicanalítica organiza-se; assim, ao falar de modelos na teoria psicanalítica, estamos empregando o termo para nos referirmos ao tipo de compromisso metafísico que Kuhn descreve. Ao empregar sua abordagem, não estamos necessariamente inferindo sua aplicabilidade como uma explicação geral de todas as ciências, nem estamos entrando na complexa confusão filosófica que se preocupa com as questões de objetividade, subjetividade e verificação de teorias. Estamos sugerindo que a abordagem de Kuhn ao desenvolvimento de idéias científicas e sua definição de modelos como compromissos metafísicos têm grande aplicabilidade história do pensamento psicanalítico e constituem um caminho útil de abordagem das diferentes estratégias na construção das teorias. (idem)
Eles propõem, então, que sejam considerados dois paradigmas para a compreensão da psicanálise e sua história: o pulsional e o relacional. Cito-os:
A tensão mais significativa na história das idéias psicanalíticas tem sido a dialética entre o modelo freudiano original, que toma como seu ponto de partida as pulsões instintivas, e um amplo modelo alternativo iniciado no trabalho de Fairbain e Sullivan, segundo a estrutura se desenvolve tão-somente a partir das relações do indivíduo com outras pessoas. De acordo com isso, designamos o modelo original de modelo estrutural-pulsional e a perspectiva alternativa de modelo estrutural-relacional. Escolhemos estes termos como um meio de iluminar as diferenças entre os modelos nos seus compromissos metafísicos quanto ao subjacente conteúdo da mente. (Ibid., p. 13)
Em primeiro lugar, é necessário perguntar por que eles optam por reduzir os paradigmas a apenas uma de suas características & o modelo metafísico &, deixando de lado as outras, as quais são, para Kuhn, de suma importância para a determinação de uma matriz disciplinar. Tal atitude corresponderia, por exemplo, a analisar um rio apenas em função das pedras que dão sustentação a seu leito. Não se pode dizer, nesse caso, que há erro, mas que é uma perspectiva extremamente parcial e redutora. Além disso, pode-se, ainda, colocar em discussão se a distinção entre a perspectiva das pulsões e a do objeto constitui paradigmas específicos ou, ainda, se elas dizem respeito, com rigor, aos aspectos metafísicos da psicanálise. Certamente, há aspectos metafísicos associados a essas perspectivas, mas Greenberg e Mitchell acabam por misturar aspectos empíricos e puramente teóricos, ou propriamente metafísicos, quando propõem que essas duas posições sejam tomadas como paradigmas. Convém, ainda, notar que Greenberg e Mitchell, nos seus desenvolvimentos teóricos, não estão preocupados com os aspectos epistemológicos e metodológicos da psicanálise, mas sim com a sua história. Tudo isso faz com que seja possível afirmar que eles usaram apenas parcialmente o conceito kuhniano de paradigma, apoiando-se neste para chamar a atenção para um dos aspectos da estrutura conceitual e da história do desenvolvimento das idéias na psicanálise. Acabam, portanto, deixando lacunas significativas no que se refere à caracterização dos paradigmas na compreensão epistemológica e metodológica da psicanálise, para uma compreensão da história das idéias.
Joyce McDougall (2001 [1995]) notou que a noção de paradigma poderia ser útil para a compreensão da psicanálise e de sua diversidade teórico-clínica:
O original livro de Thomas Kuhn (1962) The Structure of Scientific Revolutions formula o importante conceito de “paradigma”, que define uma constelação de crenças, técnicas e valores que são compartilhados por todos os membros de uma dada comunidade científica. A questão de um desvio paradigmático a propósito de nossa metapsicologia merece um estudo mais profundo do que aquele que sou capaz de realizar no atual estágio de minha reflexão. A pesquisa psicanalítica pode bem estar num período de transição, a partir do qual novos paradigmas vão emergir. Embora os criadores das principais escolas do pensamento psicanalítico tenham trazido modificações importantes aos conceitos básicos de Freud & algumas vezes estendendo seu pensamento; outras, reduzindo-o em seu alcance &, na minha opinião não houve nenhum verdadeiro desvio paradigmático (de acordo com a definição de Kuhn) na teoria psicanalítica desde a publicação do trabalho da vida toda de Freud. (MacDougal 2001 [1995], p. 255).
Percebendo a importância dos exemplares como definidores dos paradigmas, McDougall afirma, logo em seguida à sua consideração de que o paradigma freudiano continua soberano, que o desenvolvimento da psicanálise significa uma mudança no seu paradigma:
Entretanto, se considerarmos as categorias diagnósticas como fazendo parte de um paradigma psicanalítico, então houve um “desvio”, uma vez que a psicanálise originalmente estava destinada a estudar as chamadas neuroses “clássicas” e não os estados fronteiriços, psicóticos, aditivos e psicossomáticos. (Ibid.)
Reconhecendo que não domina totalmente esse instrumento teórico, McDougall não se arrisca a continuar sua análise sobre a questão de saber se a psicanálise tem um ou mais paradigmas e se há guerra entre eles. Essa prudência no uso de um termo consagrado, porém, nem sempre foi adotada por outros pesquisadores que se propuseram a falar sobre os paradigmas ou a mudança de paradigmas na psicanálise.
Outro autor importante na história da psicanálise a referir-se a Kuhn foi John Bowlby, psicanalista que teve sua pertinência ao campo da psicanálise colocada em dúvida por seus colegas, em função de suas propostas serem próximas aos estudos de etólogos.5 Ao desenvolver sua teoria do apego, ele reconhece estar modificando a estrutura teórica da psicanálise, e se apóia em Kuhn para comentar essa mudança estrutural:
De 1957, quando A Natureza do Laço da Criança à sua Mãe foi inicialmente apresentado, até 1969, quando Apego apareceu, e até 1980, com a publicação de Perda, me concentrei nesta tarefa [compreensão dos “instintos” na psicanálise com base nos estudos de etologia animal, especialmente os de Lorentz]. A estrutura conceitual6 resultante é configurada para acomodar todos os fenômenos para os quais Freud chamou a atenção, por exemplo, relação de amor, ansiedade de separação, luto, defesa, raiva, culpa, depressão, trauma, separação emocional, períodos sensíveis no início da vida, e, então, oferecer uma alternativa para a metapsicologia tradicional da psicanálise e ainda adicionar uma outra variante às outras tantas variantes da teoria clínica agora existente. Somente o tempo irá provar o sucesso de tais idéias. (Bowlby 1989 [1988], p. 38)
A referência a Kuhn, como tendo abandonado o termo “paradigma”, substituindo-o pelo termo “estrutura conceitual”, corresponde a um erro de Bowlby na compreensão dos comentários de Kuhn, talvez levado pelo título do artigo de Kuhn, de 1974, “Reconsideração acerca dos paradigmas”, que pode sugerir uma mudança que não se realizou, considerando-se a totalidade de sua obra. Logo depois da segunda edição de seu livro (1970a), Kuhn, respondendo a críticas, afirmou que o conceito de paradigma deve ser mantido, ainda que o termo possa ser deixado de lado & “Este artigo foi, sobretudo, um esforço para isolar, clarificar e levar a bom termo esses pontos essenciais. Se eles puderem ver-se, seremos capazes de dispensar o termo ‘paradigma’, embora mantendo o conceito que conduziu à sua introdução” (1974, pp. 381-2). Ao lermos essa coletânea, na qual estão reunidos seus principais trabalhos desde A estrutura e, especialmente, sua última entrevista, percebe-se que ele não substitui o termo ou conceito de paradigma pelo de estrutura conceitual, mas sim procura explicitar seu conceito-chave, dando-lhe sinônimos que completassem ou dessem maior clareza ao que propusera inicialmente (cf. Kuhn 1970a, “Posfácio”; e Kuhn 2000).
O que importa aqui não é a precisão conceitual de Bolwby, mas a referência que ele fez a Kuhn e ao conceito de paradigma, como um apoio para comentar a mudança estrutural que estaria propondo, opondo a psicanálise tradicional (ou freudiana) à sua. Diz Bowlby:
Como Kuhn enfatizou, qualquer estrutura conceitual nova é difícil de ser aprendida, especialmente por aqueles que já estão há muito tempo familiarizados com outras anteriores. Descrevo, somente, algumas das muitas dificuldades encontradas na compreensão da estrutura defendida. Uma delas é que, ao invés de começar com uma síndrome clínica dos últimos anos e tentar traçar suas origens retrospectivamente, comecei com uma classe de trauma infantil e tentei traçar suas seqüelas prospectivamente. Uma segunda dificuldade é que, ao invés de começar com os pensamentos e sentimentos particulares de um paciente, expressos no jogo ou na livre associação e tentar construir uma teoria do desenvolvimento da personalidade partindo desses dados, comecei com a observação do comportamento de crianças em certos tipos de situações definidas, incluindo gerações dos sentimentos e pensamentos que elas expressavam e tentei construir uma teoria do desenvolvimento da personalidade partindo desses dados. Outras dificuldades surgiram em relação ao uso de conceitos, tais como sistema de controle (ao invés de energia psíquica) e caminho desenvolvimental (ao invés de fase libidinal) que, embora hoje em dia estejam firmemente estabelecidos como conceitos-chave em todas as ciências biológicas, ainda são estranhos para o pensamento corrente da maioria dos psicólogos e clínicos. (Bolwby 1989 [1988], p. 38)
Bowlby não procurou explicitar mais detalhadamente quais seriam as características de um paradigma ou de uma estrutura conceitual, nem nas ciências em geral nem na psicanálise em particular (seja a tradicional, seja a sua), mas se ateve ao desenvolvimento mais específico de suas hipóteses e propostas de constituição da psicanálise como uma ciência propriamente dita. A noção de paradigma não era, para ele, um instrumento de trabalho para a análise da psicanálise como ciência.
Alguns psicanalistas considerarão, no entanto, que é inadequado o uso dessa noção para o estudo da psicanálise ou, ainda, têm sérias dúvidas de que esse seja um caminho frutífero. Renato Mezan, por exemplo, tem uma posição que oscila entre uma recusa dessa aplicabilidade e a sua aceitação. Ao analisar a proposta de Bernardi, aqui já comentada, Mezan (1990) argumenta que as distinções entre paradigmas & referindo-se a Freud, Klein e Lacan &, para a compreensão de modelos teóricos díspares na psicanálise, não são sustentáveis:
Contudo, esta tensão [entre as divergências entre paradigmas e a sua incomensurabilidade, apontando para direções de desenvolvimento opostas] sugere que a própria noção de paradigma talvez seja pouco apropriada para pensar a diversidade/unidade do campo psicanalítico. Repito que não se trata de uma implicância lexical: um conceito tem um campo de abrangência específico, e o conceito de paradigma, ao incluir certos aspectos e predicados, exclui necessariamente outros [...]
Tudo parece indicar que a situação atual da psicanálise é mais complexa do que se depreende do artigo de Bernardi, e, para esboçar esta complexidade, o emprego do conceito de paradigma não é tão elucidativo quanto pareceria à primeira vista. Por um lado, as divergências teóricas e clínicas são grandes; por outro, a afirmação de que a psicanálise é uma só se enraíza visivelmente em algo mais do que diplomacia e boa vontade. (1990, pp. 49-50).
Conclui Mezan, então, que a noção de paradigma deveria mesmo ser abandonada em prol de outros modos de análise epistemológica da psicanálise. Cito-o:
[...] talvez convenha deixar completamente de lado a terminologia sugerida por Kuhn para a história das ciências naturais, cedendo à evidência de que a psicanálise não é uma ciência como as que comportam o uso desta noção, e procurar discernir do modo mais exato possível como se organiza em psicanálise a dispersão das perspectivas teórico-clínicas. Em outros termos, talvez convenha elaborar uma epistemologia regional da psicanálise que faça justiça ao tipo de pluralidade que se observa no nosso campo, que não é equivalente nem ao verificado na esfera das ciências naturais, nem ao proporcionado pela história da filosofia. (Ibid., p. 52)
Deve-se notar que a crítica de Mezan a Bernardi não focou a questão do uso superficial ou inadequado do conceito de paradigma, mas sim os frutos daquele uso.
Em 2002, Mezan explicita sua proposta para o estudo epistemológico da psicanálise, apoiando-se num artigo ocasional de Gérard Lebrun, “L’idée d’épistemologie” (1977). Mezan defende, então, que a melhor maneira de abordar uma epistemologia da psicanálise é pensar na idéia de epistemologia ou racionalidades regionais. Diz Mezan:
A investigação epistemológica se preocupa com o modo de produção dos conceitos, com o funcionamento dos dispositivos teóricos estabelecidos pela disciplina, com a forma pela qual ela constrói, valida ou refuta suas hipóteses. Seu objetivo é, portanto, a teoria concebida como armação racional, enquanto o objeto da teoria é o campo de fenômenos do qual ela deve dar conta. (Mezan 2002b, p. 437)
Mezan dirá, então, que “cada ciência constitui a sua própria racionalidade” (p. 438), levando-o a considerar que cada disciplina deveria ser analisada como um texto, cujo interesse epistemológico deve recair na análise de sua coerência e funcionamentos internos, como se a epistemologia devesse ser uma explicação apenas regional, solipsista, de um determinado sistema. Ele diz, por exemplo: “O que faz então a epistemologia da química? Trata-a como um texto, com um aparelho retórico que pode ser descrito e analisado” (p. 438). E, ainda, nesse mesmo sentido: “É esse o tipo de estudo a que convém determinar epistemologia: ele se interessa pelo funcionamento da cadeia de enunciados da disciplina, mas também mostra por que ela exclui a formulação de determinadas hipóteses” (p. 440). Com base nessa concepção, Mezan desenvolve o que seria uma epistemologia dedicada ao esclarecimento do que é a psicanálise. Claramente, nesse desenvolvimento, ele deixa de lado todas as outras discussões relativas à epistemologia enquanto uma disciplina específica, a qual não se quer regional e solipsista, mas tem como objetivo a universalidade que respeita as singularidades.
A epistemologia como disciplina, no sentido clássico, pretende não só esclarecer as leis e dinâmicas internas de determinado sistema teórico de uma disciplina específica, mas também busca critérios que tornem possível a avaliação dessas disciplinas, o julgamento entre o tipo de relações que cada disciplina estabelece entre os fatos de que trata e as teorias que propõe para tratar desses fatos, a compreensão do seu desenvolvimento não só em termos de cada disciplina, mas também em função do conjunto mais amplo dos conhecimentos que a ciência, a filosofia ou a arte produzem.
Mezan opta por não abordar as discussões com outros epistemólogos que tomaram a psicanálise como objeto, tal como fez Popper, mas, reiterando sua posição, que considera como inadequado o uso do conceito kuhniano de paradigma, constrói sua argumentação apoiado neste ponto Lebrun de partida.
Nesse caminho, que coloca o tema dos paradigmas na psicanálise como questão, seria necessário desenvolver uma discussão que cotejasse Lebrun e Kuhn, no que se refere à proposta de considerar, para cada disciplina, uma “epistemologia regional”. Kuhn, provavelmente, criticaria Lebrun por não considerar que toda ciência é uma atividade de resolução de problemas empíricos que compartilham certos princípios racionais e metodológicos. Para Kuhn, ainda que existam especificidades em cada uma das matrizes disciplinares (física, química, biologia, história, economia, etc.), todas essas ciências (em estado maduro ou não) compartilham um mesmo horizonte epistemológico, que as configuram como ciências e não como filosofia ou literatura; ou seja, como práticas de resolução de problemas empíricos, desenvolvidas segundo critérios racionais de observação e sistematização dos dados empíricos, formulação de teorias, retorno aos fatos, etc. Isso não significa dizer que há uma epistemologia única para todas as ciências, como também que existam epistemologias regionais. Assim, para Kuhn, não teria sentido falar em epistemologias regionais, ainda que seja possível colocar a questão de saber se haveria uma epistemologia possível para as ciências humanas.
Essa é uma questão que fica aqui em aberto, dado que não corresponde ao foco deste artigo; nesta análise, trata-se de explicitar a posição de Mezan quanto ao uso da noção de paradigma na compreensão da psicanálise. Em 2006, após os desenvolvimentos anteriormente comentados, Mezan colocou-se ao lado de Greenberg e Mitchell, afirmando:
A leitura do livro de Greenberg e Michell, somada à crítica de meu próprio argumento para recusar a idéia dos paradigmas em psicanálise, sugeriu-me uma outra solução para o problema: situá-lo num nível de abstração mais elevado do que aquele em que os discerne o autor uruguaio [Bernardi]. (Mezan 2006, p. 55)
Mezan esclarece seu novo ponto de vista:
Creio ser mais interessante reservar o termo “paradigma” para esse grau de abrangência e de abstração, ao invés de se falar, como sugere Bernardi, em paradigmas kleiniano, freudiano e lacaniano. A vantagem dessa terminologia consiste, a meu ver, em poder incluir no mesmo paradigma diversos autores e mesmo diversas escolas, atentando mais para o parentesco das problemáticas do que para o nome dos autores. Em minha opinião, conviria denominar o segundo paradigma objetal, porque o termo “relações de objeto” vem sendo empregado para designar um grupo de teorias mais específico, o dos “independentes ingleses” (de Fairbain a Guntrip e a Winnicott, passando por Balint e outros). (2006, pp. 59-60)
Mezan diz, ainda, que talvez Lacan devesse ser considerado como representando mais um paradigma, além do pulsional e relacional propostos por Greenberg e Mitchell: “Assim, considerarei, provisoriamente, que, com Lacan, estamos diante de um terceiro paradigma, sem dúvida a partir da problemática do real, muito provavelmente a partir do problemática do simbólico, e quase certamente não na época do imaginário” (2006,
p. 61). Não cabe aqui analisar se essa hipótese de Mezan é ou não sustentável, mas tão-somente indicar a direção de sua utilização do conceito de paradigma na compreensão da história da psicanálise.
As críticas aqui feitas a Bernardi e a Greenberg e Mitchell, quanto ao uso do conceito de Kuhn, se aplicam também a Mezan: o uso parcial do conceito de paradigma deixa grandes lacunas na compreensão (que poderiam advir de um uso mais pleno desse instrumental teórico) da história e da estrutura da psicanálise, podendo mesmo levar a conclusões imprecisas. Para usar uma analogia, é como usar um carro de cinco marchas, optando por andar sempre na segunda marcha.
Um uso mais pleno das concepções de Kuhn para o estudo da psicanálise tem sido desenvolvido por Zeljko Loparic. Talvez esse uso mais rigoroso se deva à sua formação clássica como filósofo, acrescida de uma longa prática de ensino e pesquisa de história e filosofia da ciência7 Ao verificar as publicações de Loparic, nota-se que Kuhn sempre teve um papel central no desenvolvimento de seu pensamento, desde o seu primeiro artigo, intitulado “Descartes segundo as ordens das dificuldades”, publicado em 1975. Na sua tese de doutorado (1982), especialmente na segunda parte, publicada como artigo em 1984, “Problem-Solving and Theory Structure in Mach”, Kuhn tem um lugar decisivo na articulação entre a postura de Mach e Kant, caracterizando a ciência no seu ponto de vista heurístico, pondo em evidência a definição de ciência como prática de resolução de problemas empíricos; o mesmo pode-se dizer de seu trabalho posterior sobre Descartes, de 1988, “Paradigmas cartesianos”, no qual a filosofia de Descartes foi analisada em termos de uma exposição da ordem dos problemas, estabelecendo a relação entre hipóteses falsas e ciências verdadeiras.8 Dedicando-se explicitamente a Freud, Loparic publicou seu artigo “Resistências à psicanálise”, de 1985, no qual se refere à comunidade e aos quebra-cabeças, optando por não citar explicitamente o nome de Kuhn, mas utilizando-o de forma evidente.
Apesar de ter proposto, desde o início de seus estudos sobre a história e a epistemologia da psicanálise, uma aplicabilidade do conceito de paradigma, ele parece manter também uma determinada prudência: “Mesmo que a psicanálise tradicional não possa ser considerada uma ciência factual madura, parece-me frutífero olhar para ela na perspectiva kuhniana, procurando por formas incipientes de um paradigma e por crises, seguidas de pesquisa revolucionária” (2006, p. 23). Ao usar esse instrumento teórico, procurando tornar mais operativo o uso desse conceito para o estudo da história e da estrutura da psicanálise, altera um pouco a terminologia de Kuhn e desmembra certas características do conceito: ao invés de falar em generalizações simbólicas, tendo em vista que na psicanálise não há símbolos tais como na física, ele propôs usar o termo generalizações-guia; no que se refere aos aspectos metafísicos do paradigma, propôs separá-lo em modelos metafísicos ou ontológicos e modelos heurísticos;9 e, no que se refere aos valores, ele os caracterizou basicamente como sendo de dois tipos, os teóricos ou epistemológicos e práticos (cf. Loparic 2001). Assim, ao apresentar uma compreensão da psicanálise de Freud, organizada por meio das características que definem um paradigma, ele afirma:
[...] é possível dizer que o exemplar principal da disciplina criada pela pesquisa revolucionária de Freud é o complexo de Édipo, a criança na cama da mãe às voltas com os conflitos, potenciais geradores de neuroses, que estão relacionadas à administração de pulsões sexuais em relações triangulares. A generalização-guia central é a teoria da sexualidade, centrada na idéia da ativação progressiva de zonas erógenas, pré-genitais e genitais, com o surgimento de pontos de fixação pré-genitais. O modelo ontológico do ser humano, explicitado na parte metapsicológica da teoria, comporta um aparelho psíquico individual, movido por pulsões libidinais, e outras forças psíquicas determinadas por leis causais. A metodologia é centrada na interpretação do material transferencial à luz do complexo de Édipo ou de regressões aos pontos de fixação. Os valores epistemológicos básicos são os das ciências naturais, incluindo explicações causais, e o valor prático principal é a eliminação do sofrimento decorrente dos conflitos internos pulsionais, do tipo libidinal. (Loparic 2006, pp. 23-4)
Ao ter em mente a importância central dos exemplares & ou seja, dos problemas e soluções que funcionam como foco e objetivo de um determinado paradigma ou matriz disciplinar &, Loparic propõe também que Freud, Klein, Bion e Lacan façam parte de um mesmo paradigma, que ele caracterizou como o da psicanálise tradicional. Não obstante a divergência de léxicos entre esses autores & diferença que exige um trabalho de tradutibilidade (nota-se que nem todos os termos ou propostas são traduzíveis, o que recoloca o problema da incomunicabilidade ou incomensuralibidade entre essas perspectivas teóricas) &, a consideração das características gerais do paradigma freudiano, em especial o reconhecimento do complexo de Édipo como um problema exemplar, torna possível uma compreensão unitária dessas perspectivas, caracterizando-as como expressões de um mesmo paradigma: da psicanálise tradicional. Diz Loparic: “Considerando a importância do exemplar do Édipo na psicanálise de Freud, convém chamar o seu paradigma de edípico ou triangular. Se levarmos em conta a natureza sexual da situação edípica, a matriz disciplinar de Freud pode ser designada como sexual” (Loparic 2006, p. 24).
Essa perspectiva para a análise da psicanálise, seja focada em Freud seja noutros autores pós-freudianos, tem sido desenvolvida também por outros autores que têm trabalhado com base nas propostas de Loparic, especialmente os que compõem o Grupo de Pesquisa em Filosofia e Práticas Psicoterápicas (GFPP) do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP, fundado em 1995.10Outro resultado dessa maneira de estudar a psicanálise e sua história é a consideração de que, com Winnicott, estamos ante uma mudança profunda em cada uma das características que definem um paradigma, o que o leva a afirmar, apoiado em Kuhn, que uma revolução está em andamento.
Nessa direção, diversas pesquisas têm reiterado a diferença entre as propostas da psicanálise tradicional e as de Winnicott, as quais retomarei sucintamente, tendo em vista que é um resultado expressivo do uso desse tipo de instrumental teórico, tanto para a compreensão da história da psicanálise, quanto para o estabelecimento de parâmetros que possam ajudar na comunicação entre as diversas perspectivas teóricas em jogo. No que se refere ao exemplar, para Winnicott, não se trata mais de considerar o Édipo, mas de outro tipo de perspectiva para a compreensão das relações inter-humanas do ponto de vista da psicanálise:
Em oposição a Freud, Winnicott não definiu os relacionamentos externos como sexuais, nem como sociais ou mesmo psicológicos, mas em termos “pessoais”, tomando como modelo as formas especiais de mutualidade e íntímidade entre as mães e seus bebês. Dessa maneira, ele operou o Gestalt switch para o seu novo paradigma dual que eu chamo de “paradigma do bebê-no-colo-da-mãe”. (Loparic 2001, p. 42)
O complexo de Édipo passa a ser, então, apenas um momento tardio do processo de amadurecimento, quando a criança amadureceu o suficiente para ser uma pessoa inteira que se relaciona com os outros como pessoa inteira.
Dadas as mudanças estruturais reconhecíveis no paradigma winnicottiano, fica perceptível também a questão do desenvolvimento da psicanálise como uma ciência, que pode, inclusive, passar por crises e revoluções sem que isso signifique a sua destruição, mas sim um amadurecimento, e sem que para isso ela precise transformar-se em filosofia, arte, literatura ou até mesmo um mero jogo retórico.
Tal como ocorreu na passagem da física newtoniana para a einsteiniana, trata-se de uma expansão e redescrição da possibilidade de a psicanálise resolver problemas empíricos. A proposta de Winnicott de fazer da psicanálise uma ciência objetiva da natureza humana requer abandono de algumas partes da velha teoria, redescrição de outras e novas formulações. A respeito disso, escreve Loparic:
Que modificações seriam necessárias para assegurar o progresso da psicanálise nos campos assinalados? Em primeiro lugar, era preciso abandonar o paradigma edípico, baseado, conforme vimos, no papel estruturante do complexo de Édipo e na teoria da sexualidade concebida como a teoria-guia da psicanálise. O novo exemplar proposto por Winnicott é o bebê no colo da mãe, que precisa crescer, isto é, constituir uma base para continuar existindo e integrar-se numa unidade. A generalização-guia mais importante é a teoria do amadurecimento pessoal, da qual a teoria da sexualidade é apenas uma parte. Se supusermos que a mudança winnicottiana do paradigma freudiano aconteceu, como diria Kuhn, de forma análoga a um Gestalt switch, ela não podia limitar-se a pontos isolados, devendo abranger todo o campo teórico da psicanálise. É fácil mostrar que, de fato, Winnicott também introduziu um novo modelo ontológico do objeto de estudo da psicanálise, centrado no conceito de tendência para a integração, para o relacionamento com pessoas e coisas e para a parceria psicossomática. A sua metodologia preserva a tarefa de verbalização do material transferencial, admitindo, contudo, apenas interpretações baseadas na teoria do amadurecimento, sem recurso à metapsicologia freudiana, e incluindo também o manejo da regressão à dependência e do acting-out dos anti-sociais. O valor principal é a eliminação de defesas endurecidas, paralisadoras do amadurecimento, e a facilitação para que agora aconteça o que precisava ter acontecido, mas não aconteceu; bem como que se junte o que permaneceu ou se tornou dissociado, ou mesmo cindido. O sofrimento decorrente de conflitos, internos ou externos, deixa de ser o fundamental, fica em segundo plano, considerado parte da vida sadia. (Loparic 2006, pp. 314-5)
Ao reconhecer que entre paradigmas díspares (como o de Freud e o de Winnicott) há elementos que se mantêm e outros que são redescritos, e que os léxicos de um e outro não podem ser totalmente traduzíveis & ou seja, reconhecendo a tese da incomensurabilidade entre paradigmas &, a análise comparativa entre esses paradigmas (para comunicação e diálogo) não pode ser feita buscando-se sinônimos, mas sim, indiretamente & seja em termos das que definem esses paradigmas, seja pelos problemas empíricos específicos que são colocáveis em características ambos os casos (tais como a explicação do surgimento do Eu no processo de desenvolvimento, a gênese da psicose, o tratamento da atitude anti-social, etc.).
Uma figura já bem conhecida, comentada por Loparic,11pode ajudar a compreensão da passagem de um paradigma a outro:
Ao ver, ora pato ora coelho, mas não os dois ao mesmo tempo, percebemos que há elementos que são os mesmos nas duas figuras ou paradigmas, tomando aqui cada figura como um paradigma; mas, caso fôssemos completar o desenho, seguiríamos caminhos totalmente diferentes se temos a Gestalt de um coelho ou a de um pato em mente. Ao pensar na obra de Freud e Winnicott, também estaríamos no mesmo caso em que haveria elementos comuns, presentes nos dois paradigmas, tais como a sexualidade, o complexo de Édipo, o inconsciente, etc.; mas estes recebem sentidos e características diferentes em cada paradigma; mais ainda, há elementos que surgem e outros que desaparecem ao completarmos essas gestalten com base em elementos comuns.
Mesmo que, do ponto de vista de Loparic, o paradigma da psicanálise tradicional possa incluir Klein, Bion e Lacan, convém notar que estes têm léxicos diferentes. Ainda que possam haver dúvidas se cada um desses autores propõe ou não um novo paradigma, caberia o mesmo tipo de estudo para uma análise comparativa, tal como indicada nos parágrafos anteriores.
Apresentados esses diversos tipos de uso do conceito de paradigma para o estudo da história e da estrutura da psicanálise, também poderíamos questionar se os elementos que caracterizam um paradigma são suficientes e esgotam a tarefa de compreender os aspectos gerais epistemológicos da psicanálise e de sua história. Poderíamos perguntar, também, em que sentido essas categorias conceituais são insuficientes, por exemplo, ao questionar se a expressão conceitual modelo ontológico ou partes metafísicas do paradigma são adequadas para caracterizar os fundamentos que estão na base de todas as propostas de desenvolvimento da psicanálise pós-Freud. No entanto, não é esse o objetivo deste artigo, cuja finalidade foi analisar os tipos de uso do conceito de paradigma atualmente propostos, bem como apontar em que sentido isso pode contribuir para que a comunicação e o diálogo possam ocorrer entre as diversas perspectivas teóricas da psicanálise, buscando o seu desenvolvimento.
Cabe, ao final & para bem colocar a crise atual da psicanálise, no que se refere ao seu desenvolvimento &, explicitar que a distinção entre paradigmas no interior da psicanálise não significa que cada grupo de psicanalistas adeptos a um léxico possa fechar-se sobre si mesmo, excluindo-se da discussão mais ampla que tem em seu horizonte a própria identidade da psicanálise. A não ser que, num processo de especiação, uma determinada comunidade prefira abandonar o nicho da psicanálise como ciência para habitar outro lugar. Essa atitude, porém, não resolve o problema, pois noutros nichos este será recolocado: se a psicanálise, para um determinado grupo, pretende-se como filosofia ou como literatura, ela terá, então, que discutir ou responder aos critérios de existência daquele habitat. Ao que tudo indica, os filósofos não parecem propensos a afrouxar suas convicções identitárias (estabelecidas a custo de tão longas disputas, com imenso dispêndio de trabalho intelectual) para aceitar a psicanálise como uma corrente filosófica. E os literatos também, talvez de uma maneira menos ostensiva (dado que isso não parece ser necessário), não julgam a psicanálise como mais um estilo literário ou, se a julgam, não a têm em boa conta como literatura.
Sempre há, no entanto, a possibilidade de propor a psicanálise como um novo tipo de conhecimento, uma nova forma de saber que não é uma ciência, nem uma filosofia, nem religião, nem arte, nem ideologia, mas um não sei que inominável ou vagamente nominável, como uma prática de entretenimento, um passatempo, um lazer, um jogo, uma forma de bate-papo interessante, mas cujo objetivo não é o de nenhuma das formas clássicas do conhecimento anteriormente descritas. Tudo isso é possível, mas não se deveria vender gato por lebre, cabendo a seus praticantes explicitar o que dizem e o que vendem.
Traçado esse quadro geral, e retomando uma análise da consistência das posições de Kuhn & no que se refere à compreensão da constituição e da história das ciências &, também é possível objetar que não é ainda possível avaliar se há ou não revoluções em andamento na psicanálise, e que, até mesmo nas outras ciências mais maduras, isso não é assim tão evidente; e que só um futuro distante poderia decidir se Kuhn tem razão quanto às revoluções, etc.
No entanto, mesmo que Kuhn esteja enganado quanto à consideração de que a história e o desenvolvimento da ciência e das disciplinas do saber em geral ocorram em termos da constituição de paradigmas e seus conseqüentes enfrentamentos, com crises e revoluções, isso não tornaria sem interesse o uso do seu conceito de paradigma para a compreensão de uma determinada matriz teórica, pois possibilita formular perguntas importantes para entender uma determinada prática. Ao fazermos as perguntas sobre as características que definem um paradigma ou uma determinada matriz disciplinar & a saber, repito: se há um problema exemplar que serve de referência, se há e qual é a generalização aplicável a todos os casos, qual é o modelo ontológico que lhe serve de fundamento, quais seus modelos heurísticos, e quais seus valores epistemológicos e metodológicos &, estamos certamente bem encaminhados na compreensão do que é, como funciona e o que procura uma determinada disciplina específica do saber, no caso a psicanálise nas suas diversas propostas.
O uso da noção de paradigma no seu sentido mais pleno e rigoroso, tal como Kuhn a formulou, parece tornar possível colocar os problemas de comunicação e de desenvolvimento da psicanálise de uma maneira que possam contribuir para que a crise de comunicação atual e o enfrentamento entre as diversas propostas de teorização na psicanálise encontrem um termo de diálogo, buscando o desenvolvimento dessa disciplina.
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Endereço para correspondência
E-mail: leopoldo@centrowinnicott.com.br
Recebido em 1° de novembro de 2006.
Aprovado em 5 de abril de 2007.
* Artigo construído com base na conferência proferida no I Encontro Científico do Grupo de Pesquisa em Filosofia e Práticas Psicoterápicas (GFPP) do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUCSP, com o tema “Os paradigmas da psicanálise”, ocorrido em dezembro de 2006.
1Sobre a discussão dos diversos sentidos dados ao termo paradigma e o aprimoramento e caracterização final dado a esse termo por Kuhn (com o desenvolvimento das noções de crise, revolução, comunicação e incomensurabilidade, léxico, etc.), o leitor pode consultar três artigos publicados como capítulos de A tensão essencial (1970b, 1973, 1974) e o livro, de 2000, O caminho desde A estrutura & último livro de Kuhn, que morreu em 1996, no qual temos uma reunião de seus principais artigos, orientada por ele, além de uma entrevista autobiográfica (veja, especialmente para o objetivo aqui indicado: 1970c, 1989, 1990, 1997). Neste artigo, permanecerei focado no sentido que Kuhn estabeleceu para o termo paradigma no seu A estrutura das revoluções científicas, cuja significação geral não será alterada, mas tão-somente desenvolvida, em mais detalhes, nos seus textos posteriores.
2Para Kant, toda ciência é construída com base em conceitos e princípios a priori, os quais constituem uma metafísica de fundo que dá fundamento e caracteriza toda experiência e pesquisa possível, seja no que se refere às ciências da natureza, para as quais há uma metafísica da natureza & cujos a priori da intuição (o espaço e o tempo absolutos), do entendimento ou das categorias do entendimento e os da razão (as idéias da razão) são os fundamentos &, seja no que diz respeito ao estudo do homem como elemento que não faz parte da natureza e deve, portanto, ser entendido por outros a priori ou outra metafísica, a metafísica dos costumes (cujo a priori fundamental é o imperativo categórico). Cf. o texto de Loparic “As duas metafísicas em Kant”, publicado em 2003; sobre outros aspectos dessa posição kantiana referidos à possibilidade da construção de uma psicologia como ciência, ver também Fulgencio 2006.
3Na última entrevista em vida, Kuhn reitera seu kantismo: “porque eu ando por ai explicando minha própria posição dizendo que sou um kantiano com categorias móveis” (Kuhn 1997, p. 321).
4Expressão “ética da terminologia” é aqui usada também em referência ao texto do pós-kantiano Charles Sanders Peirce (1977b).
5Agradeço a Roseana Moraes Garcia, membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana, ter chamado minha atenção para esse comentário de Bolwby referindo-se a Kuhn.
6 Esse é o termo que, agora, Thomas Kuhn 1974 [“Reconsiderações acerca dos paradigmas”] usa no lugar de “paradigma”, usado por ele no seu trabalho anterior, Kuhn 1962 [primeira edição de A estrutura das revoluções científicas]. [Nota de John Bolwby]
7Zeljko Loparic foi Coordenador do Centro de Lógica e Epistemologia da Unicamp (1982-1985), fundador e o primeiro editor (1980-88) da revista Cadernos de história e epistemologia da ciência desse centro.
8Esse e outros artigos de Loparic (dedicados a uma interpretação heurística de Descartes, influenciada em parte por Kuhn, da qual se originou a sua abordagem também heurística de Kant e de Freud) foram reunidos em Loparic 1997.
9Essa distinção foi feita com base em sua compreensão de Kant, que distingue, no seu programa a priori de pesquisa para as ciências naturais, a presença de ficções heurísticas como sendo um dos aspectos instrumentais das pesquisas, ao lado dos aspectos propriamente metafísicos (cf. Loparic 2000 [1982]).
10Cf. outras informações e pesquisas desse grupo no site www.cle.unicamp.br/grupofpp. Um uso da noção kuhniana de paradigma para o estudo da psicanálise, que se aproxima da proposta de Loparic, mas diverge dela em termos da interpretação do que deve ser considerado como um exemplar, teoria geral-guia, modelo ontológico/heurístico, etc., pode também ser encontrado nas pesquisas de Leticia Minhot (2003), atualmente na Universidade de Córdoba, na Argentina. O trabalho de Minhot é fruto de sua tese de doutorado, orientada por Zeljko Loparic. Por ser um trabalho que faz um uso do mesmo conceito de paradigma que Loparic, ainda que levando a resultados diferentes do dele, não me ocuparei de detalhar sua maneira de conceber os paradigmas na psicanálise. Para maiores detalhes, o leitor poderá recorrer ao livro de Minhot e à minha resenha (Fulgencio 2006) desse livro, na qual faço uma análise mais detalhada dessa proposta.
11Por ocasião do XI Colóquio Winnicott, “Criatividade e experiência cultural”, ocorrido em maio de 2006, Loparic utilizou-se dessa figura na palestra intitulada “Da sublimação à criatividade: uma mudança paradigmática na concepção psicanalítica da cultura”, exemplificando o que significa a mudança de paradigmas, tendo em vista a diferenciação entre a psicanálise de Freud e a de Winnicott.