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Natureza humana
versão impressa ISSN 1517-2430
Nat. hum. v.11 n.1 São Paulo jun. 2009
ARTIGOS
O discurso filosófico sobre as mulheres e o amor Kant, Schopenhauer e Nietzsche
The philosophical discourse about women and love Kant, Schopenhauer e Nietzsche
Jair Barboza
Pontíficia Universidade Católica do Paraná.
RESUMO
Este artigo examina o discurso filosófico sobre as mulheres e o amor, tomando como referência Kant, Schopenhauer e Nietzsche. Mostra que, se o tema érecorrente nas artes, o mesmo não ocorre na filosofia, encontrando entretanto um lugar de destaque nas filosofias da vida de Schopenhauer e Nietzsche.
Palavras–chave: Kant, Schopenhauer, Nietzsche, Mulher, Amor, Homem.
ABSTRACT
This article examines the philosophical discourse on women and love, taking as reference Kant, Schopenhauer and Nietzsche. It shows that if the subject is common in the arts, the same does not occur in the philosophy, finding however a place of prominence in the philosophies of life of Schopenhauer and Nietzsche. This article examines the philosophical discourse on women and love, taking as reference Kant, Schopenhauer and Nietzsche. It shows that if the subject is common in the arts, the same does not occur in the philosophy, finding however a place of prominence in the philosophies of life of Schopenhauer and Nietzsche
Keywords: Kant, Schopenhauer, Nietzsche, Woman, Love, Man.
Ao termos em mente as personagens literárias Penélope de Homero, Jocasta de Sófocles, Desdêmona e Julieta de Shakespeare, Bovary de Flaubert, Capitu de Machado de Assis, entre outras, nota–se que as mulheres e o amor são temas centrais e recorrentes na literatura ocidental. Pode–se dizer que sem a mulher e o tema do amor costumeiramente a ela associado a boa literatura tem dificuldades para apresentar–se como boa literatura. Poetas, romancistas, artistas em geral sabem muito bem disso. E o movimento literário romântico e ultra–romântico, seja na Europa ou no Brasil, elevou essa temática ao seu ápice, atémesmo a cristalizou numa espécie de idéia fixa. A mulher também é tema privilegiado da música, basta considerar a música popular brasileira ou óperas clássicas como a Carmen de Bizet.
Entretanto, se tudo isso vale em relação às grandes obras de arte, é difícil afirmar o mesmo em relação aos grandes sistemas filosóficos da tradição ocidental de pensamento. Digo difícil, porque não faltam páginas clássicas sobre o amor em, por exemplo, Platão e Agostinho. Contudo, o destaque conferido ao tema não foi suficiente para alocá–lo de maneira sistemática na filosofia. Parece que a seriedade do conceito, a seriedade da metafísica, cuja vocação é o inteligível não combina com esse ser que marcadamente desperta o sensível e o sexual que há nos filósofos. Tales foi objeto de riso de uma trácia, ao cair num buraco enquanto andava filosofando com a cabeça erguida para os céus, esquecendo–se da terra sob os seus pés; Sócrates casou–se com a diabólica Xantipa e preferia viver em banquetes a voltar para casa; Kant, Schopenhauer, Nietzsche nunca se casaram etc. Muitas outras histórias há de descompasso e desavenças entre os filósofos, as mulheres e o amor. Por outro lado, como dissemos, os artistas não sobrevivem sem este tema e, conforme muitas biografias, parecem ser mais bem agraciados com o amor feminino que os filósofos.
Se é certa a hipótese de que a seriedade da reflexão não consegue adequar–se a um tema tão rebelde à razão, irracional mesmo, teríamos assim de um lado a frieza do conceito, da discursividade do entendimento, e, de outro, a “vida” visceral e misteriosa, que provoca medo, da mulher e do amor sexual. Nesse sentido, são sobretudo as filosofias da vida, como as de Schopenhauer e Nietzsche, que conseguem abrigar em seu interior com relativa desenvoltura os temas da mulher e do amor sexual. Tais filósofos artistas não se envergonham, com seus preconceitos de época que sejam, de mergulharem no assunto. Antes deles, Kant na modernidade ensaiou uma reflexão psicológica, na chamada fase pré–crítica, e anunciou algo de Schopenhauer e Nietzsche, embora contidamente. E écom excertos de obras destes três filósofos que gostaria de propor ao leitor este tema que em verdade concerne a todos, sobre os filósofos, as mulheres e o amor.
As obras–base para a minha reflexão são, de Kant, Beobachtungen über das Gefühl des Schönen und Erhabenen (1998), segunda consideração, “Von dem Unterschiede des Erhabenen und Schönen in dem Gegenverhältnis beider Geschlechter”; de Schopenhauer, Über die Weiber (Schopenhauer, 1851); de Nietzsche, Jenseits von von Gut und Böse (Nietzsche, 1886b). O que norteou essa escolha foram o fato de tais textos abrigarem em si um lugar de destaque para a mulher e o amor em passagens que remetem a uma certa sistematicidade no interior de determinado período da produção de seus autores. No caso do Kant pré–crítico, trata–se da diferença entre os sexos sob a lupa dos conceitos de belo e sublime; no caso de Nietzsche, trata–se do papel do feminino no interior da sua terceira fase de pensamento, quando já havia introduzido o conceito central de Vontade de poder, e a mulher e o homem são vistos pela lente da guerra entre os sexos; no caso de Schopenhauer, trata–se do papel da mulher, na metafísica do amor sexual, como portadora da possibilidade de afirmação da Vontade de vida, fonte de sofrimentos.
As reflexões de Kant sobre a mulher privilegiam observações psicológicas sobre a sua beleza e inteligência, interrogando o que a figura do belo sexo provoca no homem e que tipo de conseqüências daí advêm para o convívio entre os sexos e a cultura de modo geral. Parece que Kant tem em mente o papel da mulher nas cortes européias do século XVIII, quando salões literários eram chefiados por damas da nobreza ou burguesia emergente. Mulheres que inspiravam e fomentavam a cultura da época. O próprio Schopenhauer era filho de uma dessas damas, Johanna, uma escritora de romances baratos, que todavia possuía o salão literário mais influente da capital cultural da Alemanha no século XIX, Weimar (freqüentado pelo titã da poesia germânica, Goethe).
Em primeiro lugar, o que se destaca na leitura das observações de Kant, éque, embora ele introduza em seu pensamento a noção de impulso sexual, não desce ao exame corporal deste, mas detém–se no vínculo dele com a cultura. Aliás, no Kant maduro a sensibilidade, mesmo ao desempenhar um papel nevrálgico na teoria do conhecimento, jamais éassociada ao corpo. Em vista disso não será surpreendente encontrar em suas observações sobre a mulher e o amor uma certa timidez. Trata–se de uma mulher e de um amor romantizados; prova disto éque o “belo sexo” éem verdade definido como “belo espírito”. Todavia, éinegável a relevância do vínculo estabelecido entre impulso sexual e cultura, que, por mais ingênuo que se apresente aos olhos de hoje, encontra–se na antecâmara de muitas das observações ulteriores de Schopenhauer e Nietzsche, que no entanto colocam o corpo no centro de suas reflexões, e desse modo fazem a ligação dele com o impulso sexual, o amor erótico, as sublimações em torno deste amor, sem esquecer uma psicologia nascente que será a marca registrada da modernidade, ao tratarem o amor como um entrechoque de impulsos e interesses inconscientes que no fundo traduz o secreto interesse pelo poder de ambos os sexos.
Ora, ao definir a mulher como o “belo sexo”, Kant tenta em suas linhas ater–se a este mote, e, numa tal extensão, que atémesmo as falhas femininas de caráter são denominadas “belos erros”. Também nesta chave o entendimento feminino édito um “belo entendimento”, por oposição ao homem, que possui um “profundo entendimento”. Exclui–se da mulher a profundidade espiritual, reservada ao homem. Algo que notamos em Schopenhauer e Nietzsche, que consideram a mulher um ser antes destinado a parir filhos fortes, e, se exceções há em favor do conhecimento artístico e científico, apenas confirmam a regra. énatural, assim, que o “machismo” (aspas minhas, visto que se trata de uma noção inexistente na época) e o preconceito de Kant o leve a aconselhar as mulheres, que se detêm no saber profundo e aspiram à erudição, a colocar barba postiça.
Estudos laboriosos e reflexão penosa, mesmo que uma mulher aí contribua com algo elevado, anulam as vantagens próprias do seu sexo, e, ainda que possam ser objeto de uma fria admiração, pela raridade do acontecido, ainda assim ao mesmo tempo enfraquecem aquilo que há nela de atraente e com o qual exerce seu grande poder sobre o homem. Numa mulher com a cabeça cheia de grego, como a senhora Dacier, ou que entra em disputas radicais sobre mecânica, como a marquesa de Châtelet, só falta mesmo uma barba, pois esta talvez exprimisse mais claramente os ares de profundidade à qual aspiram. (Kant, 1998, p. 852)
A beleza feminina não combina com a profundidade do conhecimento. O belo sexo, sob o risco de tornar–se feio e pouco atraente, não deve ocupar–se com especulações abstratas, “não estudará geometria” e deixará de lado as filosofias abstrusas que tratam de lógica, dos vórtices de Descartes ou da mecânica de Newton. Tudo em nome da beleza. E mesmo que o homem cultive o saber erudito em face do belo sexo, não passa de uma astúcia para obter a própria admiração delas às custas de sua vaidade congênita. Trata–se aí da figura de um homem sábio e conquistador, com o poder da palavra, que canta música aos ouvidos das damas – talvez um filósofo que cativasse as mulheres dessa forma não se encontraria atrás de poetas e músicos, estes grandes artistas das palavras melódicas, com as quais adoram encantar o sexo feminino.
Mas, de fato, para Kant, o conteúdo da ciência feminina “é antes o ser humano, e, entre os humanos, o homem. Sua sabedoria não provém do pensamento, mas do sentimento” (Kant, 1998, p. 853). A opinião veiculada éa de que a superficialidade não prejudica a mulher bonita (a erudição sim), desde que as suas qualidades destacadas sejam o refinamento, a amabilidade, o gracejo, a afabilidade, o asseio, o ornamento, a caridade, vale dizer, traços que influenciam a boa e pacífica convivência social, ao darem luz à boa atmosfera dos salões, e, indiretamente, incentivarem a produção cultural masculina; pois os homens, em função do encanto feminino, procuram destacar–se com a sua profundidade específica de entendimento. Ecos dessas observações acerca do feminino se encontram em Nietzsche, quando este reflete que, “se a mulher tem inclinações eruditas, geralmente há algo de errado com a sua sexualidade” (Nietzsche, 1999, p. 98). Para Kant e Nietzsche a mulher não deve pensar muito, apenas o suficiente, caso de Kant, para incentivar a ativação da inteligência nobre e sublime do homem. E quando um professor for ministrar temas algo complexos para as suas belas alunas, jamais ministrará uma aula fria e especulativa, mas a todo momento lhe fornecerá sensações: uma aula elegante, com um ou outro floreio, com um ou outro dito espirituoso. Ainda que uma mulher tenha virtude, para Kant isto não se deve ao fato de ela evitar o mal intrínseco de uma ação, porque nesta há injustiça, mas sim por que se trata de uma coisa feia. Neste sentido ela tem uma “bela virtude”, embora haja dúvidas se são capazes de princípios, todavia raros também entre os homens. Em compensação, para não deter–se num traço maligno desse ser, Kant logo cuida de pintar as boas maneiras do belo sexo e afirma que elas têm “sensações bondosas e benévolas, um refinado sentimento de honestidade e uma alma solícita” (Kant, 1998, p. 855). Uma concessão que Schopenhauer e Nietzsche se recusam a fazer. Mas essa, ao meu ver, ingenuidade (pré)crítica kantiana fica de lado quando o filósofo oscila para um outro extremo e nota que a própria beleza da mulher pode atirá–la no “orgulho inflado”, que éuma falha de caráter imperdoável, deformadora do seu sexo e das pessoas em torno dele; mais imperdoável até mesmo que a vaidade, pois se esta procura aplauso e em certa medida premia quem se esforça por obtê–lo, o orgulho, ao contrário, ilude com a posse já em mãos do aplauso ainda a ser conquistado.
Portanto, Kant, em meio às cores alegres com que pinta os belos traços femininos em seu pensamento, distribui alguns tons carregados que serão comuns em Schopenhauer e Nietzsche. Nesta chave carregada encontram–se ainda as observações sobre os efeitos da vaidade, que servem para desunir o belo sexo, quando, por exemplo, julgam umas às outras com grande severidade “porque uma parece lançar na penumbra os atrativos da outra e, de fato, as mulheres que têm fortes pretensões à conquista raramente são amigas no sentido estrito do termo.” (Kant, 1998, p. 856)
É porém no conceito de impulso sexual e nos vínculos deste com a produção cultural ou a psicologia dos relacionamentos amorosos que Kant éatual e abre uma cortina para as psicologias do inconsciente contemporâneas. Apesar de a sua temática não ser explicitamente vinculada aos prazeres e às angústias do corpo, antecipa sem dúvida o fundo das análises de Schopenhauer e Nietzsche sobre as mulheres e o amor, pois Kant, em que pese ainda lidar com o mote romântico do “belo sexo”, introduz reflexões sobre o impulso sexual que depois serão chamadas na psicanálise de sublimação, vale dizer, apontam desvios sexuais de satisfação que, no fundo, visam a cópula; desejo entretanto encoberto pela forma de convivência cortês entre homens e mulheres, pelo polimento das relações, pela produção cultural masculina etc. Kant diz de maneira bastante atual que todo o encantamento em torno do feminino “diz respeito, no fundo, diretamente ao impulso sexual; a natureza persegue seu grande objetivo e todos os refinamentos que se associam a isto, por mais que em aparência se distanciem, não passam de ornamentos e, ao fim, retiram todo o seu atrativo da mesma fonte” (Kant, 1998, p. 859). Se bem que logo depois desse, por assim dizer, achado, dessa antecipação do conceito schopenhauer–freudiano de sublimação, o autor passa a elogiar o domínio do amor cortês, sem corpo, destituído de sexo, como se este fosse um assunto indigno da pena filosófica, logo, a mulher volta a ser pensada sob a romântica categoria do espirituoso belo sexo. Dessa forma, volta à baila um tipo de amor que estaciona na cortesia, pois o “gosto rude” que a todo momento se detém na excessiva proximidade do impulso sexual épouco tocado pela atração do decoro, do semblante, dos olhos de uma mulher e, “visto que procura propriamente apenas sexo, considera amiúde as delicadezas dos outros como galanteios estéreis” (Kant, 1998, p. 859). Mas ainda assim o filósofo tem de admitir (e quem o negaria?) que, embora esse gosto demasiado “simples e grosseiro” não seja fomentador da vida cortês e refinada, nem por isso deverá ser desprezado, pois “conduz diretamente ao grande fim da natureza e, na medida em que cumpre as exigências desta, édestinado a fazer a pessoa imediatamente feliz” (Kant, 1998, p. 863). Mas no fundo o que preocupa Kant éque, em razão de sua grande generalidade, tal tipo de amor se transforma facilmente em excesso e libertinagem.
Por conseguinte, há em Kant um conflito entre natureza e cultura, e as preferências do filósofo vão claramente – como futuro arquiteto do Iluminismo, que crê numa razão prática que conduz a um bom fim, a um estado cosmopolita de seres racionais que jamais tomam outrem como meio mas como fim em si mesmo – para o lado da cultura cortesã, para o lado do desvio do impulso sexual, da sublimação em favor do cultural, da moralização do indivíduo, mesmo se às custas de violência à sensibilidade animal. Kant não quer ater–se ao exame do fim propriamente dito da sexualidade, a procriação ou, como ele diz, a “ordenação da natureza”. O homem tem condições de se contrapor à sua simples animalidade e educar a si e ao objeto de sua satisfação, a mulher, no sentido de uma contenção iluminada. Ora, nesse horizonte do cultural, o belo sexo pode enobrecer o homem, que por sua vez, ao sentir–se atraído, provoca na mulher o sentimento de sua beleza, que ela procura incrementar. Com isso a mulher éco–responsável, pensemos com Kant, pelo tipo de homem em sua sociedade, pois éela quem acende o impulso sexual do qual se originam os modos de ação dele. Neste sentido, um público de “senhoras pedantes” empobrecido nos costumes pelo orgulho, pela vaidade e pelas modas apontam “uma direção falsa” aos impulsos naturais e, assim, em vez de ajudarem a promover o mérito viril em sociedade, fazem de muitos homens senhores adocicados:
Vaidade e modas podem muito bem apontar uma direção falsa a esses impulsos naturais e, desse modo, fazer de muitos homens senhores adocicados, e de muitas mulheres senhoras pedantes ou amazonas. A natureza, contudo, sempre procura reconduzi–los à sua ordem. Por aí se pode julgar sobre o tipo de influência que a inclinação sexual conseguiria exercer, principalmente em vista do enobrecimento do sexo masculino, se, em vez de absorver tantos ensinamentos estéreis, o sentimento moral da mulher fosse oportunamente desenvolvido para torná–lo sensível àquilo que pertence à dignidade e às qualidades sublimes do outro sexo, com o que a mulher se veria apta a desdenhar as ridículas afetações masculinas e, dessa forma, não entregar–se a outras qualidades senão o mérito (Kant, 1998, p. 866)..
Ao fim, como não poderia faltar num autor que fala do belo sexo, Kant lança um olhar sobre a grande tristeza da mulher relacionada ao envelhecimento, mais atéque a tristeza masculina relacionada ao mesmo fenômeno, visto que, como belo sexo, a mulher sofre mais com o tempo que avança e deixa suas marcas no rosto de cada uma, porque o tempo devasta a beleza; enquanto o homem, como sexo sublime e profundo, tem no tempo às vezes um grande aliado para o uso de sua faculdade definidora, isto é, o entendimento, que, cultivado, produz grandes realizações culturais. Assim, se um sexo émais feliz e influente na juventude, o feminino, outro émais feliz e influente na maturidade e mesmo na velhice, o masculino. Ora, tendo em vista uma espécie de compensação, Kant aconselha a educação livresca da mulher, pois, à medida em que diminuíssem as pretensões de sua formosura, a leitura de livros e a ampliação das intelecções poderiam imperceptivelmente permitir às musas ocupar o lugar vazio das graças. Numa palavra, pode–se dizer, mulheres incultas e idosas são insuportáveis; ao contrário das cultivadas e idosas que, deste modo, continuariam em certo sentido a pertencer ao belo sexo.
É com Schopenhauer, todavia, que, na aurora da modernidade filosófica, vem para o primeiro plano da reflexão aquilo que em Kant é examinado mais pelo viés do favorável ou não à cultura. O impulso sexual em Schopenhauer éanalisado em íntima conexão com o corpo, e, se o filósofo também examina as ressonâncias da mulher e do amor sexual na cultura, o seu olhar fisiológico decide–se por denunciar a ilusão de pensar que o cultural possa adquirir algum lucro significativo ao criar por sublimação obstáculos para o sexual. éum chamado da natureza que não admite concessões enquanto não for atendido, do contrário se tem o mal–estar na civilização. Em verdade, a própria coisa–em–si, o próprio núcleo ativo do universo éuma atividade cega e irracional chamada Vontade que, por sua vez, tem seu foco nos órgãos genitais. Em torno do sexo giram direta e indiretamente a maioria das reflexões diárias das pessoas. No fundo, toda grande questão de estado, todo galanteio, toda arte e ciência, boa parte das intrigas humanas, ancoram–se no impulso sexual e na tentativa de satisfazê–lo genitalmente, e, desse modo, compor a próxima geração. Cupido éo grande flecheiro pronto a atirar suas armas às cegas contra qualquer um, em qualquer situação, não importa a posição que ocupe. O que se mostra aqui éa impossibilidade da cultura definir ou plasmar de maneira pacífica a sexualidade humana. Ora, como o sexual vive encoberto pelo cultural, pulsando por debaixo dele com exigências contraditórias à cortesia e à polidez, ao decoro da convivência, surge um conflito que a natureza de antemão já decidiu em favor de uma nova vida, de uma nova criança. A angústia e a insatisfação surge quando as barreiras ao natural obstam por muito tempo o alcance de um fim que exige ser logo atingido. E como, no caso do amor heterossexual, o centro gravitacional do amor éa mulher, porque ela pode carregar a nova vida e assim tem intimidade com os desígnios da espécie, cabe à mulher um lugar privilegiado nas reflexões schopenhauereanas sobre o amor. Se, por conseguinte, de um lado Schopenhauer examina os vasos comunicantes entre o impulso sexual e a cultura, como em Kant, por outro, ao contrário deste, aponta a inexorabilidade do biológico, do qual a cultura se alimenta e éincapaz de enfrentar quando o mesmo faz as suas exigências impositivas. Se resistência há, azar de quem resiste ou, como dirá Freud, neurose e histeria de quem for recalcitrante. Ao fim, a psicologia schopenhauereana do amor e da mulher desemboca num olhar maligno que, em verdade, éum olhar contra a própria Vontade de vida, fonte de tantos e infindáveis sofrimentos de homens e animais. Ora, por ser a mulher potencialmente portadora durante cerca de nove meses de uma futura vida, o filósofo termina por indispor–se metafisicamente contra o ser feminino que, em princípio, traz justamente a possibilidade de renovação dos infindáveis sofrimentos, pois “toda vida ésofrimento”, e a única saída possível do inferno que éo mundo éa negação da Vontade de vida. Do contrário, como entender suas provocações? Com um olhar maligno Schopenhauer sentencia:
As mulheres são apropriadas para serem as babás e educadoras da nossa primeira infância, precisamente porque elas mesmas são infantis, triviais, de vista curta, numa palavra, durante toda a vida são crianças grandes, uma espécie de intermediário entre a criança e o homem, que éo humano propriamente dito. Apenas se considere como uma moça brinca, baila e canta dias inteiros com uma criança e imagine–se o que um homem, com sua melhor boa vontade, faria em igual situação. (Schopenhauer, 1988, p. 527)
Acabou a ingenuidade do olhar kantiano. Há agora diante do homem o adversário perigoso. Há agora guerra entre os sexos. Entretanto, para além dessa diatribe, éna tentativa de fundamentar metafisicamente uma íntima e indissolúvel conexão entre biologia e psicologia no exame do amor e das mulheres, que Schopenhauer move a maior parte da sua conceituação, salientando temas ligados ao impulso sexual que escapavam totalmente a Kant, precisamente porque este não trabalha com a noção de corpo, algo que, como dissemos, ocupa um lugar nuclear no sistema de Schopenhauer, o qual, assim, abre em definitivo as cortinas filosóficas da modernidade.
Ora, sob esse pano de fundo do biológico, o autor conceberá o casamento, acasalamento, como uma armadilha armada para o homem pela própria natureza, porém em meio à cultura. Uma armadilha que se chama ilusão do enamoramento, montada levando em conta o efeito bombástico que envolve a formosura de uma mulher, especialmente as moças, ao cativar o homem e o cegar com a promessa de incrível felicidade associada a incríveis gozos, contudo às expensas da possível decepção futura, pois logo a chama do amor se apaga: na metafísica do amor sexual do filósofo, após o primeiro ato sexual, a paixão do homem decai, visto que seu corpo lhe permite gerar dezenas de filhos em um ano, enquanto a mulher, com exceção dos gêmeos, só gera um; logo, no fundo, o homem procura a diversidade. Por seu lado a mulher também cai numa armadilha, pois, em contraste com a inconstância masculina, a paixão feminina aumenta, já que ela precisa de um protetor forte e valente para a prole. Em realidade, por trás dessa arquitetura do amor a natureza foi, como sempre, engenhosa. Entende–se por aí o fato de a maioria das moças exercerem, com sua formosura, inacreditável atração sobre os corações de muitos homens e os fazerem capitular pelo feitiço de um sentimento que impulsiona ao prazer sexual, para, dessa forma, não só fecundarem o óvulo como depois ajudarem a cuidar da prole. As mulheres precisam usar tal magnetismo da beleza, porque após duas ou três gestações, diz o filósofo, se despedem do viço juvenil, mas, então, já étarde para o homem, e a arapuca do casamento já caiu, sendo uma dor de cabeça sair dela. Em conformidade com isso, ou seja, com a exigência de procriação feita pela natureza, que passa pelo acasalamento, em sociedade dito casamento, e a proteção legal da prole, as jovens moças “vêem do fundo do coração as atividades domésticas ou profissionais como secundárias, atémesmo simples passatempo. O amor, a conquista e tudo aquilo a estes ligado, como roupas da moda, maquiagem, dança etc., são por elas considerados a sua ocupação verdadeiramente séria.” (Schopenhauer, 1988, p. 528)
Portanto, nesse conflito, a primeira batalha évencida pela mulher, com a arma da beleza. O fato de ser um vencido ainda trará uma dívida de guerra para o homem, que éconviver com o declínio de seu interesse sexual por uma pessoa específica, à medida que o tempo passa, sem poder oficialmente adquirir mais esposas, já que o Ocidente monogâmico não o permite. A saída, obviamente, serão as amantes e as prostitutas, que definitivamente Schopenhauer não condena e até reconhece como um expediente de saúde pública. Mas essa dívida masculina éatémesmo necessária; do contrário a criança nascida não tem um protetor.
Observa–se desse modo, no amor sexual, na paixão amorosa entre homem e mulher, a firme vontade da natureza que quer propagar a espécie humana, e azar daquele que coloca os seus direitos e interesses à frente dos desígnios naturais: serão “soterrados impiedosamente”, não importa o que digam ou façam. O fundo biológico da teoria schopenhauereana do amor deságua numa psicologia que trata da consciência moral e conduta feminina, no amor, que denuncia um tipo de crueldade comum às mulheres, que, porém, do ponto de vista biológico, éa eterna justiça natural em favor da próxima geração. Estamos, diferentemente de Kant, no terreno do realismo. A mulher, agora um ser muitas vezes “inestético”, pode trocar de repente o amado e ter filho com outro homem, contudo, se sua paixão for autêntica, está justificada: ela obedece aos desígnios profundos de uma criança que quer vir ao mundo. Quer dizer, a consciência moral de uma mulher dessas não énecessariamente intranqüila, como imaginariam certas belas almas, já que no íntimo de seu coração, na quebra de seu pretenso dever para com o indivíduo, “cumprem ainda melhor o direito da espécie, que éinfinitamente superior.” (Schopenhauer, 1988, p. 531)
Nenhuma jura de amor garante a união futura dos amantes. Uma promessa dos amantes de amor eterno éum artifício que de modo algum obsta as inclinações naturais de um indivíduo diante da atração sexual. Bom exemplo dessa psicologia realista do amor e da mulher se encontra no conto “Noite de Almirante” de Machado de Assis. Neste conto, o marujo Deolindo retorna ao Rio de Janeiro depois de longa viagem de instrução numa corveta. Assim que desce do navio, ruma ao encontro da amada Genoveva, que deixara em terra dez meses antes, após a promessa recíproca de fidelidade. A “caboclinha de vinte anos, esperta, olho negro e atrevido” jurou guardar seu coração para o amado marujo. O espanto de Deolindo é encontrá–la, conforme informação prévia da velha Inácia, com quem Genoveva morou, com a cabeça virada, totalmente apaixonada pelo mascate JoséDiogo. Deolindo pensa em assassínio e sai à procura do casal. Quando a encontra, Genoveva de fato lhe admite que gosta de outro. O coração mudou. Mas o marujo, esperançoso, cobra as juras que fizeram; e ela retruca dizendo que quando jurou era verdade, que naquela ocasião o amava, atéaparecer o mascate, objeto de uma paixão igual à que antes sentia por Deolindo. Genoveva foi fiel em sua paixão a ambos, porém em tempos diferentes, e o amor posterior não significou falsidade em relação ao amor anterior.
O conto mostra assim uma tensão entre natureza e artifício, entre moral e inclinações volitivas, refratárias a qualquer código. Machado apresenta um Deolindo que se ilude com o pretenso poder do artifício sobre a natureza, sobre os impulsos inconscientes. De maneira alguma vemos ali uma condenação de Genoveva porque ela não se comportou como a fiel Penélope de Ulisses. Em Machado se vê a impossibilidade da superação de semelhante conflito em favor da cultura. Nesses termos, tanto Machado quanto Schopenhauer têm uma visão crua e realista da mulher e do amor, diferentemente, portanto, do romantismo, que ainda guarda um longo apego do Ocidente, que data de Platão e passa pela Idade Média, ao inteligível, ao espírito, ao moral que determina a sensibilidade, de cuja despedida o corpo como noção filosófica central se encarrega de solapar. Tanto a mulher quanto o homem têm agora um corpo e qualquer teoria do amor, sob o risco de idealismo utópico e para prejuízo de ambas as partes e incompreensão geral, não pode ignorar esse dado óbvio. Se em algum momento Schopenhauer expõe uma psicologia feminina que tende ao diabólico, em verdade isto se deve em parte, penso, ao medo masculino em face da natureza, pois, como diz Nietzsche, o que assusta o homem na mulher éque esta é “mais natural” que o homem e se torna porta–voz da natureza ao portar a vida. Esse medo, evidentemente, também é aumentado pelo fato de tais filósofos viverem numa época que já assistia aos primeiros passos da emancipação feminina. Cabia a denúncia de que o sexo frágil era dotado pela própria natureza com suas armas, que são, em Schopenhauer, a dissimulação, a mentira, a injustiça, a desonestidade, a hipocrisia; ou, nos termos de Nietzsche, o felino na mulher: “Aquilo que na mulher inspira respeito e com freqüência medo ésua natureza, que é “mais natural” que a do homem, sua autêntica e astuciosa agilidade de animal predador, sua garra de tigre sob a luva, sua ingenuidade no egoísmo, sua ineducabilidade e selvageria interior, o inapreensível vasto, vacilante de seus desejos e virtudes...” (Nietzsche, 1999, p. 178)
Portanto, um animal que fere, que dá amor sim, mas arranha quando se sente ameaçado. é neste momento, diz Nietzsche, que esse animal, em estado de vingança, “é mais bárbaro que o homem.” (Nietzsche, 1999, p. 97)
Tanto Schopenhauer quanto Nietzsche detectam nesse animal que se emancipa um competidor nada desprezível e, no fundo, desconfiam que com o tempo o homem pode se tornar o sexo frágil e o “belo sexo” pode deixar de ser belo justamente porque faz predominante em si a principal característica do homem, o poder, isto é, torna–se, na expressão de Nietzsche, um animal “essencialmente belicoso”. Mas com isto, pense o leitor, a cultura ataca uma suposta “ordenação natural” e o resultado seria a subversão geral da ordem política e social, tendo como conseqüência um estado niilista entre homem e mulher, no qual o feminino e o masculino não seriam mais bem definidos.
Ao meu ver, existe aí medo e impaciência filosófica diante da psicologia de gato da mulher. O homem, com sua, por assim dizer, psicologia de cachorro, mais claramente definida e que aprecia a fidelidade automática, jamais aceitou esse fato. O homem, para Schopenhauer, racional por excelência, vive em vários tempos, passado, presente e futuro, “pelo que nasce daí a sua prudência, o seu cuidado e freqüentes vezes a sua angustiosa inquietação” (Schopenhauer, 1988, p. 529). A mulher, ao contrário, devido à sua razão mais débil, torna–se, segundo o autor, uma “míope intelectual”, já que seu entendimento intuitivo vê de maneira aguçada na proximidade, mas possui um círculo visual reduzido, no qual o distante não aparece. A mulher detém–se menos em coisas do passado e do futuro. Ela normalmente não se entrega fácil, nem finda um caso de amor gratuitamente, mas, quando se entrega ao amor ou finda um caso éporque um chamado presente e sonoro do fundo da natureza a constrange e, para ela, a espécie émais significativa que o indivíduo, o que, diga–se, a faz apresentar–se mais cruel no amor para Nietzsche, ou seja, pratica a sua frieza de felino quando échamada pela espécie. E a espécie, agora no registro de Schopenhauer, não tem pena do indivíduo, não chora pelas tristezas deste, não se compadece com este.
Nesse sentido, os poetas e os artistas em geral parecem lidar mais desenvoltamente com o tema do feminino que os filósofos, pois optam, em suas pinceladas das situações limite, pelo trágico que traz uma catarse, uma purificação em face do terrível, algo associado à forma facilmente fruível, muitas vezes sem preconceito, das artes. A filosofia, ao contrário, detém–se ora numa espécie de ressentimento em face do feminino, o que não favorece um armistício, justamente aquele que as artes promovem, ora envereda pela ingenuidade e romantismo que evita o terrível e o trágico do amor e da mulher, o que falseia os relacionamentos humanos e impede uma maior compreensão dos sexos, ou, ainda, simplesmente ignora o tema, o que talvez seja pior, já que se trata aqui de algo que acompanha e decide destinos humanos em todos os tempos.
Ora, se a filosofia almeja o universal, não pode de maneira alguma ignorar sistematicamente o tema. Neste sentido, se écerto que há ingenuidade ou preconceito em Kant, Schopenhauer e Nietzsche, também écerto que tais filósofos tiveram o mérito de debruçarem–se sobre um tema de nevrálgica relevância que interessa a todos; afinal, masculino ou feminino, no amor costuma–se embarcar no mesmo barco, e, se ele naufraga por brigas intestinas, todos vão a pique – mas aí é tarde para dar as mãos.
Referências
Kant, I. (1764). Beobachtungen ueber das Gefuehl des Schoenen und Erhabenen. In Kant 1998 (Vol. 1). [ Links ]
Kant, I. (1993). Observações sobre o sentimento do belo e do sublime (V. d. Figueiredo, Trans.). Campinas: Papirus. [ Links ]
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Schopenhauer, A. (1988). Werke in 5 Bänden. Hrsg. von Ludger Lütkehaus. Zürich: Haffmans. [ Links ]
Endereço para correspondência
E–mail:jbarboza@gmx.net
Enviado em: 6/10/2008
Aprovado em: 1/6/2009
* Professor Doutor, Departamento de Filosofia Pontíficia Universidade Católica do Paraná, Curitiba