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Natureza humana
versão impressa ISSN 1517-2430
Nat. hum. v.11 n.1 São Paulo jun. 2009
ARTIGOS
Prazer, Psicanálise!
Pleasure, Psychoanalysis!
Francisco Verardi Bocca*
Pontíficia Universidade Católica do Paraná.
RESUMO
Esse artigo foi motivado pelo reconhecimento da perseverança com que Freud relacionou o funcionamento psíquico ao mecanismo do prazer, que tem como propósito a inclinação para a fuga da dor, em outras palavras, para atingir a meta de evitar o desprazer. Por conta disso, nosso propósito é o de apresentar os resultados de uma investigação relativa à uma possível matriz filosófica que teria dado sustentação a tal concepção, criando suas condições de possibilidade. Fizemos isso colocando em perspectiva histórica o campo teórico em que a própria noção de prazer recebeu desenvolvimentos na modernidade, visitando autores como Hobbes, Locke e Condillac, com a expectativa de que nos permita adicionalmente reconhecer o estatuto particular que essa noção recebeu de Freud.
Palavras–chave: Modernidade, Psicanálise, Estímulo, Prazer, Desprazer.
ABSTRACT
This article was motivated by the recognition of the perseverance with which Freud related the psychic operation to the mechanism of pleasure, which has as purpose the inclination to the escape of pain, in other words, to achieve the goal of preventing the displeasure. Because of it, our purpose is to present the results of an investigation related to the possible philosophical matrice that would give support to such conception, creating its conditions of possibility. We did this by putting in historical perspective the theoretical field where the own notion of pleasure received developments in the modernity, visiting authors as Hobbes, Locke and Condillac, with the expectation that we can additionally recognise the particular statute that this notion received from Freud.
Keywords: Modernity, Psychoanalysis, Stimulation, Pleasure, Displeasure.
Correndo o risco de cometer uma imprecisão, será assumida a indicação de que particularmente na obra Projeto de uma psicologia , Freud desenvolveu especulações teóricas apoiado no que se pode chamar de uma mecânica de estímulos produzindo uma concepção do psiquismo segundo o modelo das chamadas ciências naturais. Por conta disso, foi no interior dessa mesma perspectiva que sustentou a noção de que o sistema nervoso, enquanto suporte material do psiquismo, apresenta uma arquitetura que dispõe e executa funções1 que promovem o afastamento e, em situações ideais, o escoamento total, por ação motora, dos estímulos recebidos.
Contudo, a despeito desse enfoque quantitativo ser recorrente nessa ocasião, com Freud ele veio acompanhado de uma particularidade que chama a atenção, pois ao afirmar que “o sistema nervoso tem a mais decidida inclinação para a fuga da dor” (Freud, 1895, p. 21), indicou também que ele tem como propósito dominante esforçar–se para atingir a meta de evitar o desprazer. Essa sutileza, que será demonstrada adiante, aponta para uma noção muito particular de prazer, destacando sua negatividade, que nesse período prevaleceu no horizonte teórico de Freud e que de certa forma, respeitadas as nuances que sofreu posteriormente, acompanhou–o por toda a vida.
Dessa forma, embora tenha sofrido revisões posteriores que a distinguiram, se sabe que essa noção, que articula circulação de quantidades de energia com seu concomitante qualitativo, sobreviveu em suas elaborações posteriores2. Isso pode ser confirmado, dentre inúmeros exemplos, quando mais tarde ainda sustentou que “a atividade psíquica afasta–se de qualquer evento que possa despertar desprazer” (Freud, 1911, p. 238). Assim, por conta de sua importância, o propósito desse artigo é o de apresentar os resultados de uma investigação relativa a uma, dentre as possíveis, matriz filosófica que teria criado as condições de possibilidade de tal concepção acerca da vida passional do homem. Isso será feito colocando em perspectiva histórica a própria noção de prazer na modernidade, com a expectativa de que permita adicionalmente reconhecer o estatuto particular que recebeu de Freud.
Para isso, sempre que necessário, será feito um recuo cronológico a alguns conceitos de Thomas Hobbes e John Locke, para desembocar no século XVIII francês, no qual centraremos a investigação por ter sido o momento em que a noção de natureza humana e de vida passional ganhou pela segunda vez3 uma nova configuração. Isso porque de fato o século XVIII, por obra dos autores conhecidos como materialistas franceses, foi pródigo na resignificação da noção de prazer. A partir disso estarão dadas as condições para que finalmente seja promovido o “diálogo” com a psicanálise freudiana. Em resumo, será refletida em dois eixos, primeiro a possibilidade de construção sensorial das funções psíquicas e, em acréscimo o estatuto geral do prazer enquanto paixão, bem como a particularidade que Freud lhes conferiu.
Para isso, deve–se reconhecer que no interior desse recorte histórico foi precisamente Etiènne Condillac o responsável por uma espécie de ponto de inflexão da perspectiva que refundou o homem em sua natureza a partir da noção de prazer/desprazer, particularmente na obra Tratado das sensações, (Condillac, 1754). Em função de sua importância suas teses serão expostas tomando como ponto de partida a concepção acerca da construção sensorial do pensamento e de suas faculdades (apontando o quanto o par prazer/desprazer esteve implicado como determinante e primeiro móvel das operações racionais). A partir disso o leitor poderá avaliar em que medida e até que ponto sua filosofia está presente no campo teórico das concepções de Freud, evidentemente nessa oportunidade apenas em relação à concepção do Projeto. Nesse sentido, os autores aqui envolvidos constituem o suporte para a identificação das vicissitudes que a noção de prazer sofreu na modernidade oportunizando a Freud sua instrumentalização e resignificação.
A abordagem do pensamento de Condillac exige de início a retomada de aspectos do sistema filosófico de Locke pela pertinência temática e recorrentes referências que faz a ele. Estas podem ser localizadas na obra Ensaio acerca do entendimento humano, de 1690, em especial no segundo livro, capítulos VII e X, onde Locke sustenta a origem sensorial do conhecimento além de definir como simples as idéias de prazer e dor, reconhecendo–as como estando “misturadas com quase todas as idéias” (Locke, 1690, p. 173), e que por isso seriam as “causas de nossas ações” (Locke, 1690, p. 173), particularmente as que visam promover a fuga da dor.
Para aprofundar essa tese Locke assevera que “o infinito e sábio Autor de nosso ser [...] visando, ademais, a motivar–nos à ações do pensamento e aos movimentos de que somos capazes, agradou–lhe juntar aos vários pensamentos e sensações a percepção de deleite” (Locke, 1690, p. 173). Segue afirmando que “designou–se, nosso sábio Criador, anexar aos vários objetos, e às idéias que recebemos deles, como ainda a muitos de nossos pensamentos, um prazer concomitante” (Locke, 1690, p. 173). Esse amálgama entre sensação e afeto já oferece a identificação do “motivo para preferir um pensamento ou ação a outra, para passar da indiferença à atenção” (Locke, 1690, p. 173), diz Locke.
Dessa forma, o par prazer/desprazer foi considerado o crivo funcional dos pensamentos e ações, com o acréscimo de que o desprazer/dor/inquietação ocupa um lugar predominante em relação ao prazer/deleite. Contudo, a importância é sempre atribuída ao par, já que o fato de ser considerado concomitante às demais idéias imprime nelas marcas diferenciadas que possibilitam, pela memória e pela imaginação, evitar experiências e objetos causadores de desprazer, proporcionando de maneira derivada e adicional a conservação do organismo. No entanto, é certo que em Locke não foi ainda a experiência sensível a responsável pela gênese dessas faculdades, posto que, diferentemente de Condillac, são por ele consideradas inatas. Para sustentar isso, basta lembrar outra declaração, de que a mente é capaz de conhecer, mas que, relativamente a essa operação, “a capacidade é inata, mas o conhecimento adquirido” (1978, p. 146). Mais adiante, corrobora essa tese ao afirmar que o homem desde sempre é “provido das faculdades do entendimento e da vontade” (Locke, 1690, p. 173).
Por sua vez, no Tratado das sensações, aplicando seu método de investigação, até certo ponto coincidente com o de Locke, mas atingindo resultados divergentes, Condillac mostra que não há nenhum conteúdo ou faculdade do espírito que não seja constituída a partir de uma sensação transformada, isto é, que não tenha sua origem nela. Isso é afirmado com todas as letras já no parágrafo de abertura da obra. Diz ele:
O principal objetivo dessa obra é mostrar como todos os nossos conhecimentos e todas as nossas faculdades vêm dos sentidos, ou para falar mais exatamente, das sensações: porque, na verdade, os sentidos não são senão causa ocasional. Eles não sentem, só a alma sente ocasionada pelos órgãos; e é das sensações que a modificam que ela tira todos os seus conhecimentos e todas as suas faculdades. (Condillac, 1754, p. 31)
Sua adesão parcial e crítica a Locke ficou explícita quando afirmou que:
Esse inglês, sem dúvida, lançou muita luz sobre o assunto, mas ainda deixou obscuridades. Veremos que não atentou à maioria dos juízos que se mesclam a todas as nossas sensações; que não reconheceu quão necessário nos é aprender a tocar, a ver, a ouvir etc.; todas as faculdades da alma lhe pareceram qualidades inatas e não suspeitou que elas poderiam ter sua origem na própria sensação. (Condillac, 1754, pp. 32–33
Dessa forma, partindo das teses de Locke, mas ultrapassando–as, sustentou que não apenas os conteúdos do pensamento, mas igualmente suas faculdades, suas formas operatórias, derivam das transformações das sensações elementares percebidas inicialmente de maneira passiva4 Dessa forma, a reflexão, por exemplo, seria uma forma ativa de operação com elas. O complemento do que foi afirmado acima aparece já no início da primeira parte de sua obra. Nela Condillac apresenta o seguinte argumento:
Locke distingue duas fontes de nossas idéias, os sentidos e a reflexão. Seria mais exato reconhecer apenas uma, seja porque a reflexão, em seu princípio, não é senão a própria sensação, seja porque é menos a fonte das idéias do que o canal por onde elas correm a partir dos sentidos. (Condillac, 1754, p. 35)
Assim, o passo adiante dado por Condillac, que radicaliza a perspectiva da gênese sensorial do pensamento e do conhecimento, foi o de tentar descrever nada menos do que a própria geração das faculdades do espírito, a partir de uma teoria do conhecimento construída na perspectiva de uma investigação de natureza psicológica. Assim, continua em sua crítica a Locke:
...ele não sentiu a necessidade de descobrir seu princípio e geração5, não suspeitou que eles poderiam ser simples hábitos adquiridos; parece tê–los considerado como algo inato, e diz apenas que se aperfeiçoam com a prática. (1754, pp. 35–36)
Assim, distinguiu–se pela tentativa exaustiva de explicar a geração das faculdades e operações mentais a partir de um dado elementar que é a sensação6, que pela condição de unidade e fundamento, tem a possibilidade de gerar a maquinaria mental e a fazer funcionar, isso num percurso que vai numa solução de continuidade do dado elementar da impressão sensível às mais complexas operações do espírito. Associa assim sequencialmente a sensação às idéias e às faculdades; as últimas como transformações da primeira. Da sensação deduz o entendimento.
Na montagem desse esquema Condillac relaciona diretamente a percepção à consciência7, chegando a confundi–las. Para ele a distinção é uma questão de enfoque, pois o dado sensível é percebido enquanto afecção, já enquanto reconhecido pelo espírito é consciência. Dessa forma a faculdade da atenção é instituída na medida em que diante de uma ou várias percepções o espírito se ocupa, se detém em uma delas, ou em cada uma individualmente, sendo que o seu reconhecimento, nos casos em que se repete, é por ele descrito como ação de memória. Por conta disso, sempre que a atenção na sensação subsiste ao término da experiência tem–se a faculdade da imaginação, o que a faz de certa forma indistinta da faculdade da memória, a não ser pela intensidade. Assim, lembrar é, para ele, o mesmo que imaginar com variações de intensidade. Outra tese que não seria acolhida por Freud.
Em síntese, a atenção fica assim relacionada à ocorrência de uma sensação que conservando sua vivacidade ou superando a de outras, diz ele, “se transforma em atenção, sem que seja necessário supor nada mais na alma” (Condillac, 1754, p. 36). Isso porque, em meio a múltiplas e variadas sensações, em algum momento detem–se, continua ele, “a vista sobre um objeto, as sensações particulares que dele recebo são a própria atenção que lhe concedo. Assim, uma sensação é atenção, seja porque é única, seja por ser mais viva do que todas as outras” (Condillac, 1754, p. 37).
Posto isso, a faculdade da memória, por decorrência, passa a ser teoricamente concebida e praticamente constituída a partir das operações possibilitadas pela faculdade da atenção, uma vez que diante da multiplicidade de sensações algumas correspondem a estados atuais e outras a pretéritos; as últimas foram por ele identificadas como decorrentes da recém constituída faculdade da memória. Doravante dispõe–se de dois modos de apresentação da sensação: o oferecido pelos sentidos (atual) e o registrado pela memória (passada) que pode ser redisponibilizada a qualquer momento pela ação conjugada da imaginação que, sem distinguir–se da memória, pode oferecer e agregar intensidade à sensação registrada. Esse esquema recebeu de Condillac a postulação da existência de duas espécies de idéias, as sensíveis e as intelectuais. As primeiras, diz eles “nos representam os objetos que agem atualmente sobre nossos sentidos” (Condillac, 1754, p. 48), enquanto as últimas “nos representam aqueles que desapareceram depois de terem exercido sua impressão: essas idéias não diferem entre si senão como a lembrança difere da sensação” (Condillac, 1754, p. 48).
O resultado final do detour das sensações ficou sendo a instituição do entendimento enquanto consideração e articulação de várias sensações que receberam atenção e registro. Do dado original percebido (idéias sensíveis) ao conhecimento refletido (idéias intelectuais) transcorreu o percurso8 de constituição do entendimento propriamente dito. Mas essa explicação requereu de Condillac um recurso metodológico que possibilitou sua justificação. Para dar conta disso recorreu a um expediente no mínimo curioso: postulou um ser revestido com uma camada de mármore, uma estátua 9 desprovida de toda e qualquer experiência sensível e, portanto, de faculdades e conhecimentos, e que, por isso, só pode adquiri–las sensorialmente. Esse recurso permitiu–lhe descrever uma ordem lógica das experiências sensoriais e de suas conseqüências, já que a estátua inaugura cada um de seus diferentes canais sensíveis, um a um, a partir do olfato, o mais pobre de todos, onde, segundo Monzani “se depositarão as sensações e, a partir daí, [permitiria a Condillac] ir metodicamente examinando como se desdobram nossos conhecimentos e nossas operações” (Monzani, 1995, p. 179), sempre supondo que a estátua, em total estado de isolamento, disporia originalmente apenas de uma estrutura sensível e receptiva, isto é, ela seria antes de tudo uma disposição de partículas materiais dotada da capacidade universal da sensibilidade.
Assim, a partir do olfato, a primeira experiência sensível foi pensada como uma afecção–odor e nada mais, o que resume sua capacidade inicial de sentir. é importante destacar que o ponto de partida da experiência sensível centrado no olfato tem para Condillac o propósito de sustentar a equivalência e independência entre os diferentes sentidos na geração das faculdades. Dessa forma, a inevitável indiferença10 inicial que acompanha essa sensação em relação ao objeto causa do odor é compensada pela recorrência com que a estátua é submetida a tal impressão; ao resultado disso Condillac chamou atenção, pois como dito acima, pela repetição dessa experiência será possível a atenção e a comparação, retenção e assim recordação das modificações/afecções sofridas. Sem esse percurso, a estátua “pensaria” estar sempre pela primeira vez sofrendo tal afecção. Sem ele, suas experiências passadas de nada serviriam, não restaria nenhum resíduo delas findada cada experiência sofrida. Sobre isso ele argumenta que:
Se o homem não tivesse qualquer interesse em se ocupar de suas sensações, as impressões que lhe fizessem os objetos passariam como sombras e não deixariam nenhum traço. Depois de muitos anos, ele seria como no primeiro instante, sem ter adquirido qualquer conhecimento e sem outra faculdade além do sentimento. (Condillac, 1754, p. 33)Dessa forma, vai ser justamente pelo exercício comparativo entre sensações percebidas, pela atenção dirigida a cada uma delas, por seus registros e pela possibilidade de invocá–las pela imaginação, que derivará a noção de que uma delas é ou pode ser mais conveniente do que outra. A partir de agora pode–se abordar a questão relativa ao que seria propriamente o eixo ou fio regulador da ordem ou encadeamento das idéias inteligíveis operadas pelo espírito, tanto as recordadas como as imaginadas. Considerando que se trata de uma construção sensorial das faculdades do espírito e de suas idéias, pode–se reconhecer agora que as sensações são sempre, desde Locke, acompanhadas de estados de prazer e desprazer, contentamento e descontentamento, que as orientam. é da conveniência que se extrai a possibilidade de encadeamento de idéias e ações. Oferece ainda balizamentos para a memória/imaginação que organiza e mesmo produz cadeias e agrupamentos de idéias segundo seu crivo, visando atender interesses. é assim por esse recurso que é instaurado um procedimento de fuga do desprazer bem como de busca do prazer como objetivos do espírito, isso acompanhado de uma ciência acerca de ações que provoquem o resultado esperado. Desnecessário dizer que a partir daqui o plano quantitativo da argumentação de Condillac enseja e convoca o plano qualitativo, na medida em que introduz um critério de diferenciação, vale dizer de qualificação das sensações.
Tal acréscimo, necessário no plano geral de sua argumentação, foi efetuado na medida em que atribuiu à própria natureza das sensações algo que não permite à estátua manter–se em estado de letargia ou indiferença em relação a elas. Sobre isso, diz ele:
Por serem necessariamente agradáveis ou desagradáveis11, ela tem interesse em procurar umas e se furtar às outras; e quanto mais vivacidade tiver o contraste entre os prazeres e as dores, mais atividade ocasionará na alma. (Condillac, 1754, p. 33)Isso equivale a dizer que a estimulação primária sofrida pela estátua provoca a produção de sensações que trazem já em si um sofrimento ou um deleite 12. Sobre isso, ainda no Tratado das sensações, Condillac reconhece no exercício da atenção a oportunidade em que a estátua “começa a gozar ou a sofrer; pois se a capacidade de sentir está inteiramente concentrada num odor agradável, é gozo; e se está inteiramente concentrada num odor desagradável, é sofrimento” (Condillac, 1754, p. 6413. No entanto, ainda nessa etapa, para ela, o sofrimento ainda não pode vir acompanhado do desejo de não sofrer. Ele só pode ser causa desse desejo na medida em que tenha se transformado num hábito que pode ser reconhecido, pois é ele que permite o reconhecimento de estados alternativos de prazer e sofrimento, de sua presença e ausência. Nessa ordem é só, diz Condillac:
Quando ela tiver notado que pode deixar de ser o que é para voltar a ser o que foi, veremos seus desejos nascerem de um estado de dor, que ela irá comparar a um estado de prazer que a memória lhe lembrará. é por esse artifício que o prazer e a dor são o único princípio que, determinando todas as operações de sua alma, deve elevá–la gradualmente a todos os conhecimentos de que é capaz; e para distinguir os progressos que poderá fazer, basta observar os prazeres que ela terá a desejar, as dores que terá a temer, e a influência de ambos segundo as circunstâncias. (1754, p. 65)Assim, é pela oposição entre as sensações agradáveis e as desagradáveis que esse par exercerá sua função de primeiro móvel das faculdades. Há ainda uma distinção que merece ser acrescida relativamente ao estatuto do par, pois os prazeres e as dores são de duas espécies: os que pertencem particularmente ao corpo e por isso são da espécie sensível, e outros, alojados na memória, além de em todas as outras faculdades, que são da espécie intelectual. Contudo, a despeito desse estado primário está longe de conter em si, ou de trazer consigo, o desejo por algum outro estado ou objeto; sua gênese só pode ocorrer secundariamente, por derivação. Sobre isso, diz Condillac:
A privação de um objeto que julgamos indispensável[14] à nossa felicidade provoca–nos esse mal–estar, essa inquietude[15] que denominamos necessidade, da qual nascem os desejos. Estas necessidades se repetem conforme as circunstâncias, muitas vezes até formam–se novas, e é isto o que desenvolve nossos conhecimentos e nossas faculdades. (1754, p. 34)
Com isso ele reconhece que a inquietude não estaria desde o início relacionada com a falta de um objeto desejado, mas que é justamente o fator causa ou motivador da própria busca de objetos. O desejo nasce, por exemplo, após a estátua observar e relacionar um estado atual com um passado diferenciando–os, particularmente quando um proporciona desconforto e outro deleite, portanto diante de uma vivência alternada dos dois sentimentos destacada pela atenção. Isso porque, como disse Condillac “a natureza de suas sensações não lhe permite permanecer mergulhado nessa letargia. Por serem necessariamente agradáveis ou desagradáveis, ele tem interesse em procurar umas e se furtar às outras” (Condillac, 1754, p. 33). Assim os caminhos percorridos para fugir da inquietação16 e buscar satisfação, nessa ordem, constituem um circuito, uma inscrição, ou várias, o que permite à estátua a ativação recordativa/imaginária de um dos estados, bem como do objeto causa do estado prazeroso: quando isso ocorre está dada a condição para inscrição do desejo. Assim, o par prazer/desprazer enquanto acionador da maquinaria do espírito é o que dá nascimento ao desejo e lhe fixa objetos e direções. Por ser desejo de algo fica criado o campo representativo. Em acréscimo, é especialmente no campo da imaginação que o circuito do desejo trafegará.
Posto isso, resta reiterar que, embora as experiências sejam primeiramente diferenciadas e, secundariamente avaliadas pelo crivo do prazer/desprazer que as acompanha, primeiro é instalado na estátua o impulso de não permanecer no estado de desprazer em que eventualmente se encontra, por isso ele é pensado como ainda mais primário. Nessa perspectiva, o desejo fica entendido como o de permanecer ou recusar certos estados e objetos. Dirige–se a algo adequado para permitir a fuga do estado de desconforto e produzir o estado desejado, busca um objeto que ao mesmo tempo afasta o desconforto e proporciona o prazer, isso desde que o circuito do desejo esteja completo e disponível para ser reinvestido. O par está assim sempre na base como gerador desses circuitos, como promotor de vínculos entre diferentes experiências e diferentes objetos.
Assim, estando o par prazer/desprazer na base da avaliação acerca daquilo que pode favorecer ou não nosso corpo, isto é, acerca da possibilidade de encontro do objeto útil para a conservação da vida, o que se evidencia é a própria alternância entre sucesso e fracasso, o que já aponta para a impossibilidade de atingir plenamente a meta da satisfação ainda entendida, pelos autores aqui referidos, como o alcance da felicidade. Por isso pode–se admitir que, pelo próprio estatuto que foi atribuído ao desejo, há pelo menos dois níveis de inquietude: um mais circunstancial, ligado à experiência do fracasso do desejo em relação a certo objeto e outro mais primitivo ligado à impossibilidade de evitar sempre o desprazer e alcançar o conforto ou atingir a meta da felicidade.
De qualquer forma, deve–se reconhecer que todo desejo comporta inquietude, tanto a que lhe sucede, como para Hobbes e Locke, como a que o antecede, como para Condillac. Esse reconhecimento sugere uma verdade de difícil aceitação, a de que a felicidade não está assim na realização do desejo, mas, segundo endossou Freud, na suspensão do negativo. Por conta disso, a essa altura pode–se questionar se eles não estiveram muito perto de reconhecer e de admitir que o prazer não é um estado alternativo ao des–prazer, mas apenas a ausência desse último, como sustentou Freud no Projeto. A conseqüência disso foi que seguiu recusando a fruição positiva da felicida–de, como bem expressou em O mal–estar na civilização, entre outras obras. Isso foi possível na medida em que prescindiu da positividade do prazer17 que, quando desprovido de conteúdo só pode ser pensado como ausência de desprazer.
Assim, concluída a apresentação de aspectos do pensamento de Hobbes, Locke e, em especial, Condillac, particularmente de seu projeto de construção sensorial do espírito, bem como do deslocamento para a condição de primado do par prazer/desprazer, definitivamente alocados no topo da hierarquia das paixões, será dada continuidade à intenção de responder ao desafio que anima o presente artigo. Para isso, na seqüência será focada a obra Projeto de uma psicologia, de Freud, igualmente apresentando algumas de suas teses, com o intuito de levar adiante a colocação em perspectiva histórica da noção de prazer e dela retirar conseqüências.
O que foi apresentado até aqui permite o reconhecimento de que no século XVIII, particularmente na França, os filósofos foram inimigos do dualismo cartesiano, renovando o pensamento por meio do monismo materialista que demandou procedimentos próprios. Doravante, pretende–se demonstrar que, herdeiro e imbuído de espírito semelhante Freud, ao final do século XIX, igualmente manifestou no Projeto a intenção de refazer desde o início o que seria o roteiro de constituição, passo a passo, de uma psicologia científico–naturalista, articulando sistema nervoso com processos psíquicos, isso considerando os seres humanos como objetos naturais submetidos a causas e leis naturais.
Para dar conta disso, deve–se lembrar que o objetivo assumido por Freud logo na abertura do Projeto foi o de “apresentar processos psíquicos como estados quantitativamente determinados de partes materiais capazes de serem especificadas” (Monzani, 1995, p. 9). Para isso, admitiu uma relação inicial entre quantidade (cargas ou impulsos) em fluxo e neurônios (sistema nervoso) como partículas materiais, a partir da qual levou adiante, como herdeiro epistemológico e metodológico de Condillac, uma descrição genética dos processos psíquicos. Tal projeto foi assim concebido com base no pressuposto moderno de uma lei geral do movimento que diferencia atividade de repouso, o que demandou de início um enfoque de natureza quantitativa, recebendo uma abordagem complementar qualitativa, que acompanhou suas considerações acerca do fenômeno da consciência18
Assim, postulando o princípio de inércia nervosa, Freud postulou que “o neurônio aspira a libertar–se de Q 19. Cabe compreender–se a partir dele arquitetura e desenvolvimento, assim como desempenhos” (Monzani, 1995, p. 10). Esse é o postulado que permitirá investigar em seus desdobramentos uma espécie de gênese das faculdades 20 mentais, bem como apontar para a peculiaridade da noção de prazer nela implicada. Pode–se começar pela consideração de que o ser humano é dotado de um sistema nervoso cuja arquitetura seria organizada em torno do exercício da função de manter a variação de estímulos recebidos igual ou próximos de zero. De início, espera–se sucesso nessa função, por exemplo, quando a porção sensorial impactada por estímulos externos executa providências que prontamente os anulam escoando–os (inicialmente pela atividade motora).
É importante registrar que de início o sistema nervoso consistia apenas de neurônios que Freud nomeou phi, permitindo um percurso para a excitação que vai da extremidade perceptiva à motora do sistema. Contudo, a diversidade de fontes 21 de excitação acabou sendo a responsável pela constituição plena do que ele chamou nessa obra de aparelho neurológico, bem como de suas funções, como percepção, memória e consciência. Apresentou assim a hipótese inicial de uma arquitetura neuronal concebida a partir de um sistema nervoso primário que exerce funções sensoriais e motoras por meio do movimento arco–reflexo, onde princípio de inércia e movimento reflexo atuam numa combinação necessária e suficiente, visando exercer a função primária do sistema nervoso de manter–se livre de estímulos. De fato até esse ponto sua teorização faz referência exclusivamente aos estímulos externos.
Contudo, a quebra da expectativa de escoamento foi operada a partir do interior do organismo. Diz Freud, “o sistema nervoso recebe estímulos do próprio elemento corporal, estímulos endógenos, que devem ser igualmente eliminados” (Freud, 1893, p. 10). São eles, originários das células corporais, da ordem da fome, respiração e sexualidade, operando de uma maneira que não permite esquiva ou eliminação pela ação reflexo–motora. Dessa forma, o dar conta deles não passará pelo simples escoamento, pois estão relacionados às necessidades da vida, à sua conservação ou manutenção e por isso o sistema nervoso passa a, além de admitir, promover o armazenamento de parte desse estímulo, e assim administrá–lo de modo a ser utilizado para provocar alterações na realidade que atendam às suas demandas, e para isso precisará de funções auxiliares. Dessa forma, seguindo a lógica da descrição de sua gênese, o ainda incipiente aparelho neurológico encontra uma maneira de utilizar favoravelmente os estímulos, de início hostis ao seu interesse primário, o que será efetivamente conquistado por meio de funções suficientes e eficazes para isso, engendradas à medida que tais estímulos vão provocando transformações ao longo do percurso trilhado no interior do sistema nervoso.
Dessa forma, deve–se aos estímulos endógenos a instauração de um segundo princípio, o de constância 22 que, promovendo adicionalmente a aquiescência dos estímulos, representa uma concessão à inércia solicitada pelas exigências da vida. A partir disso, a atuação do princípio do prazer passa a ser menos o escoamento total da excitação, do que a eliminação do excesso, atendendo à exigência de impedir que qualquer plus de estímulo danifique o sistema enquanto conserva uma pequena porção dele, mantendo seu nível constante. Dessa forma, ao lado da função primária uma secundária tem início, justamente para atender às tais necessidades da vida, que implica além da manutenção de um nível adequado de excitação, um constante recarregamento do sistema.
Antes de avançar nessas considerações faz–se necessário alguns esclarecimentos sobre os circuitos neuronais percorridos pelos estímulos, particularmente os endógenos. Para isso deve–se levar em conta considerações acerca do sistema nervoso que é, segundo Freud, composto de neurônios distintos, interligados onde, diz ele, “estão prefiguradas certas direções de condução na medida em que recebem através de prolongamentos celulares e emitem por meio de cilindros do eixo. Além disso, existe ainda uma numerosa ramificação com diferença de calibre” (Freud, 1893, pp. 11–12). é justamente a possibilidade desse trânsito que permite a noção de que um neurônio pode estar ocupado num momento e desocupado em seguida. Dessa forma, o que dá constituição e complexidade à arquitetura do sistema nervoso é, em primeiro lugar, a conjugação entre a necessidade de eliminação e a de acúmulo de estímulos e em segundo, as resistências que dificultam ao mesmo tempo em que regulam a eliminação, a saber, as barreiras de contato.
A consideração relativa ao escoamento e conservação da tensão, além das tais barreiras de contato entre neurônios, remete diretamente à uma característica de pelo menos uma parte do tecido nervoso, isto é, “a capacidade de ser alterado permanentemente por processos únicos” (Freud, 1893, p. 12), isto é, de conservar a alteração sofrida após a excitação. Em atendimento à exigência de definição dessa característica Freud admitiu a existência de duas classes de neurônios: a composta de células perceptivas e a de células recordativas. Sendo que estas correspondem a dois tipos de processos resultantes ou relacionados à quantidade de estímulos a que os neurônios estão submetidos, bem como aos circuitos de descarga que escoam.
Em nota, Gabbi Jr. nos auxilia na compreensão desses processos. Diz ele:
Quanto mais se anda na direção do interesse do aparelho, menor a quantidade, portanto menor a diferença entre repouso e movimento. O neurônio phi está sujeito a uma magnitude tal que não retém nada...obedece integralmente o princípio de inércia. Psi, por sua vez, é atravessado por uma quantidade de magnitude próxima à de sua barreira de contato. Logo, ele conserva uma certa quantidade de movimento e, por conseguinte, obedece ao novo princípio, introduzido pela necessidade da vida, dominado pelo princípio de constância. (Freud, 1893, p. 117)
Esse esclarecimento destaca a diferença entre os neurônios, ou classes deles, que permite que inclusive desempenhem a função perceptiva e a recordativa. Essa não seria de outra natureza que a relativa à quantidade de estimulação que sofrem, em função do que, diz Freud, as tais “barreiras de contato fazem valer–se” (Freud, 1893, p. 13). é curioso que a noção de barreira de contato ganha importância sempre que relacionada com a intensidade e quantidade de estímulo que tem de controlar, seja para permitir o escoamento, células perceptivas, seja para promover a conservação, células recordativas. Com isso Freud ofereceu um suporte material para as intuições de Condillac.
Assim, apenas essa possibilidade de alteração duradoura de seu estado após cada excitação permitiria a possibilidade do tecido nervoso apresentar, por exemplo, um tipo de registro ou memória. Dessa forma é que Freud admitiu a emergência de dois sistemas de neurônios, o phi e o psi, responsáveis pela percepção e pela memória respectivamente. Reiterando que isso decorre em função da intensidade das Qs a que são submetidos, à maneira de um percurso seqüencial de “sensações transformadas” (formulação tomada de empréstimo a Condillac), que causam efeitos diferenciados em cada momento e estágio de seu percurso no tecido neuronal. De fato o recurso ao ponto de vista quantitativo se esgota aqui, e como Locke e Condillac, Freud também teve de responder à questão qualitativa acerca da constituição das funções mentais, das motivações das nossas ações, dos motivos para preferir ou ordenar uma cadeia de idéias ou ação a outra, para passar da indiferença à atenção, do repouso ao movimento etc.. Sem o fator qualitativo, alertou Locke, “permitiríamos que nossos pensamentos se movimentassem desgovernados sem nenhuma direção ou desígnio...” (Locke, 1690, p. 173).
Dessa forma, a simples descrição quantitativa 23, a despeito de sua importância, não nos forneceria nem indicaria nem justificaria uma motivação ou desígnio no interior do aparelho neurológico (que é concomitantemente psíquico), uma vez que a ênfase posta nas características dos neurônios, nos diferentes sistemas e em suas funções, apenas destacou as quantidades com que ele tem de lidar. Até mesmo o argumento de que um neurônio apresenta vários caminhos de ligação com outros neurônios e que o escoamento, mesmo o parcial, deve ocorrer por um destes, não anuncia ainda uma preferência, pois supõe inicialmente que esse “motivo” seja sustentado por uma facilitação das barreiras de contato, isto é, nesse caso a estimulação percorreria preferencialmente o caminho em que o grau de facilitação fosse maior. Nesse sentido, diz Gabbi Jr., o “motivo, um termo habitual do vocabulário intencional, pode ser usado, numa linguagem quantitativa, como indicando aquilo que resulta da comparação entre uma certa quantidade e todas as outras simultaneamente presentes” (1995, p. 120).
Certamente para dar conta dessa demanda teórica Freud introduziu no Projeto um tópico dedicado à dor e dele retirou conseqüências. Curioso é que introduziu esse diferencial como um fenômeno ao qual estaria relacionado um tipo de acometimento falho no funcionamento do sistema nervoso, uma vez que consistiria em sua invasão por grandes quantidades de excitação que não foi evitada desde os órgãos sensoriais. No entanto, a partir dessa tese foi possível pensar o desprazer, e mesmo a dor 24, como fatores que põem tanto phi como psi em movimento, posto que estimula o sistema ao cumprimento de sua inclinação primária. Mas é preciso distingui–las, pois no Projeto a dor é “caracterizada como irrupção de Qs enormes em phi e psi, ou seja, de Qs de uma grandeza ainda maior do que os estímulos phi” (Freud, 1895, p. 21). No entanto, é igualmente verdade que sua presença constante nos caminhos de eliminação criam facilitações e superações da resistência das barreiras de contato impondo e estimulando um tipo de atividade que visa promover a supressão do desconforto provocado. A dor resulta assim de um aumento quantitativo. Dessa forma, enquanto toda excitação sensorial é produtora de desprazer 25, ela tende para a dor proporcionalmente ao aumento da quantidade de estímulo.
Além da dor, Freud avançou tratando em tópico também específico, do problema da qualidade, que inclusive envolveu um segundo problema, o da consciência, que de toda forma permanece espinhoso ao enfoque científico–naturalista que opera quantidades e neurônios. O problema todo se resume na necessidade de, reconhece Freud, “incorporar o conteúdo da consciência em nossos processos Psi quantitativos. A consciência dá–nos o que se chama qualidades, sensações...” (Freud, 1895, p. 22). Posto isso, ele não poderia deixar de perguntar–se pela sua origem e tentar responder com toda cautela que não estaria no mundo exterior.
Para dar conta disso postulou a existência de um terceiro conjunto de neurônios, chamou–o ômega, em “cujos estados de excitação dariam como resultado as diferentes qualidades, ou seja, seriam as sensações conscientes” (Freud, 1895, p. 23). Um argumento dessa natureza foi possível a partir do reconhecimento de que, ainda que uma ciência natural privilegie quantidades, cabe, no entanto, “esperar da arquitetura do sistema nervoso que ele consista de dispositivos para transformar as quantidades externas em qualidades” (Freud, 1895, p. 23). Registremos desde já que a própria “tradução” que esse terceiro sistema opera das quantidades em qualidades permite mais uma vez oportunizar a função primária do sistema, que é a de, por mais essa via, escoar os estímulos, as quantidades excessivas, portanto o desprazer, conferindo–lhes qualidades, tornando–os conscientes, instaurando o processo secundário. Sempre operando sobre estímulos que romperam e alcançaram o terceiro sistema sem serem barrados. Percebe–se o quanto essa operação é fundamental para a sobrevivência do organismo já que além de contribuir à sua maneira para o escoamento, uma maneira específica de atuação do princípio do prazer (por sua transformação em princípio de constância), evita a indiferença, pois os estímulos tornados qualitativamente conscientes no terceiro sistema geram motivos para determinados pensamentos e ações.
Ainda sustentando uma perspectiva fisicalista para o problema da consciência, Freud remete à uma característica temporal dos estímulos, sua periodicidade. Com isso pôde sustentar que o fundamento da consciência estaria relacionado à ela, isto é, que o sistema ômega seria afetado segundo períodos de excitação, dando subsídios para a qualificação operada pela consciência, que apresenta assim como um de seus conteúdos a série de sensações de prazer e de desprazer.
Contudo, como visto, permanece a dificuldade de incluir o fenômeno da consciência na arquitetura de um sistema até então quantitativo, isto é, de mostrar como processos excitatórios nos neurônios ômega trazem consigo consciência em relação aos seus conteúdos. Dessa forma, prazer e desprazer estariam sempre referidos à ocupação do sistema, às sensações dessa ocupação (segundo intensidade e intermitência), o que permitiu a Freud conservar, pelo menos nessa época, o discurso relativo à consciência e aos seus conteúdos, o mais próximo possível do discurso fisicalista, por conta do que a consciência ficou reduzida ao papel de detectora de processos anímicos.
Nesse contexto, Freud recuou à condição mais primitiva o papel do desprazer no psiquismo como agente motivador. Assim, em mais esse ponto não podemos evitar sua filiação a Condillac quanto à função primária do desprazer, como visto. No entanto, a perspectiva nessa época sustentada por Freud de que toda estimulação provoca desprazer e por isso suscita sua descarga ou extinção, apresenta por outro lado um inequívoco diferencial em relação à Condillac, já que enquanto este põe como certo que as estimulações sensoriais seriam em si mesmas agradáveis ou desagradáveis, Freud atribuiu à estimulação sensorial o ser em si mesma desprazerosa, isso relativamente a um sistema nervoso que “deseja” o repouso.
Para efeito de conclusão, pode–se dizer que, como demonstrado, operando segundo o método genético–dedutivo de Condillac, Freud empreendeu sua investigação relativa à gênese sensorial do psiquismo e em acréscimo, ao operacionalizar a noção de prazer que lhe subjaz, refundou–a retirando todo e qualquer conteúdo positivo do prazer, conduzindo às últimas conseqüências a concepção negativa do prazer 26 vagarosamente tecida na modernidade ocidental. Assim, pode–se dizer que ele construiu suas teorias, no que diz respeito aos recortes e aspectos acima destacados, expandindo os limites do campo teórico sustentado pelo materialismo francês, particularmente de Condillac. Expressou assim sua influência no que diz respeito à construção sensorial da mente e de suas funções, e em especial fez avançar o papel e a importância do desprazer nessa construção, o que acentuou a reformulação de seu estatuto, pelo menos até o Projeto.
Por fim, deve–se esclarecer que a concepção freudiana de prazer na perspectiva aqui apresentada não recebeu ao longo de sua instrumentalização futura uma simples continuidade sem problematização. Isso porque, para ficar em dois exemplos, em Além do princípio do prazer (Freud, 1920), e mais tarde em O problema econômico do masoquismo (Freud, 1924), é verdade que sem contrariar a noção de que o prazer estaria relacionado à descarga da excitação, inclusive sem esquecer que é possível relacionar o princípio de nirvana (apresentado em 1920) como herdeiro direto do princípio de inércia, admitiu a possibilidade de sua ocorrência positiva, inclusive quando decorrente de aumento da quantidade de excitação (pelo menos da sexual) e do próprio prazer na dor. Mas isso é tema para outro artigo.
Referências
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Souza, M. G. (2002). Natureza e ilustração sobre o materialistmo de Diderot. São Paulo: Ed. Unesp. [ Links ]
Endereço para correspondência
E–mail: francisco.bocca@pucpr.br
Enviado em: 13/3/2008
Aprovado em: 17/3/2009
* Psicóloga, Psicanalista, Bacharel em Filosofia pela Universidade de São Paulo, Mestre em Psicologia Clínica pela Pontíficia Universidade Católica de São Paulo.
1 É importante registrar que essa perspectiva mecânica do sistema nervoso já estava esboçada em outras obras do chamado período pré–psicanalítico. Como exemplos pontuais, a segunda parte do verbete Gehirn, de 1888, onde apresenta a fisiologia do cérebro e seu funcionamento segundo o esquema do movimento reflexo, nitidamente inspirado nas teses de Meynert. Depois disso, na quarta parte da obra Algumas considerações para um estudo comparativo das paralisias motoras orgânicas e histéricas, provavelmente redigida em 1893, antecipa um esboço do princípio de constância, além da tese da eliminação da excitação nervoso por reação motora ou por atividade psíquica adequada.
2 Essa mecânica do movimento, para citar alguns exemplos, recebeu no Projeto o nome de “princípio de inércia” (p. 1) que descreve a tendência nervosa a descarregar da forma mais imediata a quantidade de estímulos circulante no aparelho responsável pela produção de desprazer. Dessa forma, nessa época, parece ser adequado pensar em uma busca de prazer que é antes uma fuga do desprazer. Por conta disso, evitar o desprazer e buscar o prazer seriam equivalentes. Mais tarde, no capítulo VII, de A interpretação de sonhos, Freud faz referência a um “princípio de desprazer” (p. 641) como fundamental para que caminhos que levassem ao desprazer fossem evitados através de sua liberação, portanto, também aí o que está em pauta é evitar o desprazer. Em obra posterior, como Formulações sobre os dois princípios de funcionamento menta (Freud, 1911), anuncia a expressão “princípio de prazer–desprazer” (Freud, 1911, p. 238) para em seguida reapresentá–la de forma mais sucinta como “princípio de prazer”, assim formulado pela primeira vez e doravante adotada. Ainda, em 1924, na obra O problema econômico do masoquismo, ao fazer referência ao “princípio de nirvana” (apresentado pela primeira vez em 1920 em Além do princípio do prazer) utiliza a expressão “princípio de prazer–desprazer” (Freud, 1920, p. 177) (como já fizera em 1911), para no mesmo parágrafo voltar a empregar a forma sintética “princípio de prazer”. Mas, para o que interessa, em todos os casos é igualmente a mesma idéia de fuga do desprazer que está presente, embora a positividade do prazer em certos casos seja igualmente admitida, pelo menos nas duas últimas obras citadas.
3 A primeira refundação da natureza humana na modernidade pode ser atribuída a Hobbes por meio do conceito de conatus.
4 Evidentemente uma tese que Freud recusaria, particularmente por ter recusado e substituído a noção sustentada por Meynert de que as sensações seriam projetadas no córtex, pela hipótese de que seriam representadas, por exemplo, entre outras obras, no verbete Histeria, de (Freud, 1888). Por sua vez, a noção de atividade e passividade foi pensada por Condillac como duas maneiras distintas de sentir. Diz ele que “ela é ativa quando se lembra de uma sensação, porque tem em si a causa que lhe recorda, ou seja, a memória. Ela é passiva no momento em que experimenta uma sensação, porque a causa que a produz está fora dela, ou seja, nos corpos que agem sobre seu órgão” (Condillac, 1754, p. 67).
5Essa observação abre uma perspectiva de reflexão sobre a própria noção de natureza humana subjacente o pensamento de Locke, como ao de Hobbes, que merece ser apresentada nesse momento. Ambos postulam como ponto de partida de suas investigações que o homem naturalmente é constituído por faculdades do corpo, como a de nutrição, além de faculdades da alma, que lhe confere poder cognitivo, imaginativo, volitivo ou afetivo e, sobretudo, razão, que podem, para efeito de análise, ser decompostas, mas sob um limite, o que impede a identificação de suas causas, posto tratar–se de faculdades inatas, por conta do que não seríamos seus autores (como somos de instituições políticas, por exemplo). Essa reflexão remete ao projeto filosófico de Condillac que realiza um recuo em direção à compreensão de uma noção diferenciada de natureza humana que pressupõe como dado primário apenas a capacidade sensível por onde trafegará e se desdobrará a sensação na constituição futura do entendimento, isto é, na passagem do sensível ao pensante.
6 A compreensão desse mecanismo suscita um esclarecimento adicional relativo ao próprio campo da filosofia materialista que sustentou o pensamento de Condillac. Sobre isso, Maria das Graças, na obra Natureza e ilustração, esclarece que “a produção de todas as formas de seres, desde os minerais até o homem, incluindo a mente, pode ser explicada pela atividade própria da matéria, que Diderot denomina sensibilidade universal” (Souza, 2002, p. 47), que é pensada como uma espécie de força imanente da matéria. Isso se justifica, pois é preciso para combater o dualismo matéria/espírito, atribuir à matéria, mesmo à elementar, todas as propriedades dos corpos em geral, ou seja, reconhecer que o sentido lhe seja inerente como a extensão e a divisibilidade, o que se torna plausível quando se admite o princípio de continuidade entre os seres ou reinos da natureza complementado com a tese da heterogeneidade da matéria. Isso remete diretamente à uma nova concepção de natureza humana, uma vez que a distinção do homem em relação aos demais animais fica sendo a sua própria estrutura orgânica particular, resultante de arranjos fortuitos. Dessa forma, o homem é pensado como o resultado de forças que atuam em seu organismo, como sensibilidade e reflexão delas derivadas. Fica evidente que um dos temas mais ásperos do materialismo é o relativo à explicação do fenômeno da sensibilidade. Sobre isso explica Maria das Graças, que “a sensibilidade nasce, pois, de um certo arranjo ou disposição das partículas, e a sensação é o resultado do encontro dos elementos materiais que vêm do mundo exterior com os elementos materiais que formam os órgãos dos sentidos” (Souza, 2002, p. 49).
7 Adiante será mostrado que esta questão exigiu um tratamento mais cuidadoso por parte de Freud, distinguindo–as.
8 Nesse ponto um aspecto da teoria de Freud merece antecipação: por questões teóricas muito próximas das de Condillac ele postulou no Projeto a necessidade de distinguir entre neurônios receptivos/permeáveis e neurônios recordativos/impermeáveis, justamente para que se possa ter sempre novas experiências sensoriais que recebessem em outro lugar armazenamento a fim de sobreviverem ao término da experiência sensível. é verdade que nesse caso, em vez de sensações transformadas Freud, partindo de um substrato anatômico, faz referência a estímulos que vão produzindo transformações no interior do sistema nervoso, diferenciando e dando constituição às suas funções, segundo as vicissitudes dos estímulos, uma vez que, como descreve, as barreiras de contato entre neurônios atuam definindo regiões em função das diferentes intensidades que o estímulo conserva na medida em que se propaga para o interior do sistema nervoso configurando circuitos ou traços específicos na sua estrutura. De fato, os estímulos, externos ou internos, provocam modificações que vão se propagando no interior do tecido nervoso gerando funções; trata–se, portanto, de um movimento que produz alterações que desenham funções no sistema nervoso. Assim, pode–se pensar que a seqüência que vai de phi a ômega passando por psi seria, por analogia com Condillac, conseqüência das transformações/operações provocadas pelos estímulos em seu percurso rumo ao escoamento.
9É possível relacionar esse expediente com o de Freud ao apresentar, no capítulo III, da obra Além do princípio do prazer (Freud, 1920), a hipótese de uma vesícula indiferenciada, que lhe deu a possibilidade de descrever a gênese das funções do aparelho psíquico, bem como de seu sistema de defesa.
10 A consideração sobre essa indiferença será retomada adiante pela introdução dos fatores qualitativos das sensações.
11Ao asseverar que não há sensação indiferente ou que “cada uma é agradável ou desagradável em si” (Condillac, 1754, p. 38), Condillac reconhece que o prazer ou o desprazer são qualidades próprias da sensação e que estariam por isso na base da produção das faculdades da atenção, da memória, do juízo e da vontade, além de atuarem como princípios de suas operações. Dessa forma realiza o recuo em relação a Hobbes e Locke que postulavam o desejo, e não o prazer e o desprazer resultante de seu atendimento, como móbil. De fato, no projeto filosófico de Condillac a faculdade da vontade e, portanto o desejo não foi admitido como dado fundamental da natureza humana, como anterior ao par prazer/desprazer, antes, como derivado dele, como constituído a partir de uma sensação qualificada como prazerosa ou desprazerosa (alternativamente como dois estados positivos). Nesse sentido, Condillac instaurou uma nova ordem hierárquica no interior da teoria das paixões, a saber: prazer,
desejo, amor.
12 Nesse ponto antecipemos, para retomar adiante, a noção de que mesmo o prazer pode corresponder a um tipo de excitação que quando quantitativamente elevado em potência provoca dor na medida em que sobrecarrega o órgão do sentido. Isso porque, para Condillac, o prazer como a dor, apresentam diferentes graus. Assim, diz ele, o prazer, diminuindo extingue–se, aumentando, “pode levar até a dor, porque a impressão se torna forte demais para o órgão” (Condillac, 1754, p. 70). Isso equivale a considerar que a dor, aumentando “tende à destruição total do animal” (Condillac, 1754, p. 70), passando assim a ser o critério impulsionador de um interesse de conservação do organismo. Por conta disso, decorre que no momento de seu término, quando cessa, produz de um sentimento agradável. Nesse sentido, há em Condillac um ponto de identidade com Freud, pois aqui também encontramos, em acréscimo a uma definição positiva, uma negativa de prazer, inclusive obtido pelo escoamento do estímulo.
13 é curioso notar a recusa que Freud assumirá em relação à essa tese, segundo a qual a representação mental corresponde a uma projeção (uma cópia) passiva da sensação, o que permite que o prazer e o desprazer possam estar inscritos na sensação.
14 De fato a noção de que um objeto nos é indispensável não implica que seja reconhecido como objeto necessário de um desejo, antes é entendido assim pela simples comparação entre o estado que ele proporciona e um estado alternativo e diferente proporcionado por outro objeto, especialmente quando um proporciona deleite e outro desprazer.
15 Com esse argumento Condillac define seu ponto de vista contrário ao de Locke, pois para este a inquietude é causada pela privação de um objeto adequado ao desejo, que a exemplo de Hobbes é pensado como primário, como faculdade volitiva do espírito, por conta do que o prazer é pensado como um efeito do sucesso do desejo na busca de seu objeto. Por isso, para eles a ausência do objeto desejado é que gera a inquietude, isto é, quando um desejo não é atendido. Divergindo, Condillac postula a anterioridade da inquietude como causa ou princípio das faculdades do espírito, inclusive do desejo, o que, guardadas as devidas proporções, está mais próximo do que Freud formulará no Projeto.
16 Condillac, como Locke, reconhece na inquietude a condição de princípio de nossas determinações. Contudo, para esclarecer isso, é preciso destacar a seguinte ordem conceitual: sendo a sensação o dado primário da experiência, deve–se reconhecer que, por natureza, não podem ser indiferentes, antes, recordemos Condillac, “cada uma é agradável ou desagradável em si” (Condillac, 1754, p. 38). Essa postulação é necessária para que a atenção sobre cada uma delas possa se efetivar sempre que delas estamos ocupados. Portanto, é da atenção (de onde se formam a memória e o juízo) que provocam que as comparamos e, por meio disso, tomamos ciência acerca do prazer e do desconforto a que estivemos submetidos. é dessa comparação que nasce a inquietação (que não é necessariamente uma dor) que é antes causa de um movimento, algo que o incita, solicita mudança (a possibilidade de quietude não é aqui cogitada). Ela é assim uma justificativa para mudar ou permanecer em certos estados.
17Essa perspectiva contrasta com a apresentada por Diderot na obra O sonho de d`Alembert, em que apresenta a doutrina que sustenta que o ser humano possui dois centros de atividades, o cérebro e o diafragma. Por ação do diafragma o homem experimenta intermitentemente o prazer e a dor. Diz ele “que tereis alternadamente penas e prazeres violentos, que passareis a vida a rir e a chorar, e que nunca sereis mais que uma criança” (p. 116). Para evitar esse estado ele postula a manutenção da sensibilidade sob a vigilância do segundo centro, o cérebro, empreendendo um controle racional sobre as experiências de prazer e dor visando, como diz, alcançar um estado de “prazer puro” (p. 117). Assim, é graças à essa administração, por meio de decisões tranqüilas e frias sobre o que é bom, belo e verdadeiro, que a tendência individual à felicidade, que Diderot postula para o ser humano, atinge seu mais elevado nível.
18Para enriquecer essa questão, é prudente esclarecer que o Projeto foi a obra em que Freud deixou, talvez pela primeira vez, de identificar o psiquismo ou o mental com o consciente. Nessa obra reconhece que tem “tratado os processos psíquicos como algo que poderia prescindir do conhecimento dado pela consciência, que existe independente de uma tal consciência” (Freud, 1895, p. 22). No bojo dessa perspectiva postulou de início uma anterioridade lógica, cronológica e tópica, da memória em relação à consciência. Assim, nessa obra ele enfrenta um dos problemas mais fundamentais de sua metapsicologia, a saber, descrever as relações entre percepção, memória e consciência, enfrentando–o sob a perspectiva de que os processos representacionais constitutivos da memória seriam, além de anteriores, independentes da consciência. Sobre as posteriores e diferentes articulações dessas funções, ver artigo A relação entre a memória, a percepção e a consciência na metapsicologia freudiana (Caropreso, 2006).
19Símbolo que no Projeto representa carga elétrica.
20 é verdade que o termo “faculdade”, em relação a Freud, pode dar margem a mal–entendidos, uma vez que ele não recorreu à noção moderna de faculdade, de certa forma ainda ligada tanto ao dualismo cartesiano como ao empirismo de Hobbes e Locke. De fato recorreu ao termo função, certamente mais adequado e coerente do ponto de vista do pensamento materialista de Condillac. Dessa forma concebeu , por exemplo, uma função motora, uma função sensorial e não uma faculdade específica responsável pelos movimentos, pela sensibilidade, entre outras.
21 De fato seria mais adequado reconhecer que, para Freud, não é a diversidade das fontes de excitação que conta e sim os modos diferentes de atuação da excitação em diversas partes do aparelho.
22 Por conta da introdução desse novo princípio regulador, não se pode esquivar de um questionamento, a saber, se o princípio de constância, que impõe ao aparelho a tolerância e a conservação de uma cota mínima de energia, seria ele mesmo um agente provocador de desprazer, já que enquanto preserva uma tensão, ainda que limitada, impede ou pelo menos adia a meta do escoamento total. Talvez se possa fornecer indicações sobre essa questão recordando que o princípio do prazer também opera segundo a função de manter a excitação o mais baixa possível. Assim, tomado na primeira função, está a serviço do repouso, da morte, do prazer como redução a zero. Tomado na segunda função, admite uma certa tensão, por meio do processo secundário, que inibe o livre e irrestrito fluxo de energia próprio do processo primário, impedindo a produção de mais desprazer. Nesse sentido, a constância admitida, de fato não evita totalmente a produção de desprazer, mas uma vez que admite uma tensão (limitada) evita mais tensão (ilimitada), potencial produtora de maior desprazer.
23 Lembre–se que também Condillac seguiu essa estratégia argumentativa, antecipando os argumentos quantitativos em relação aos qualitativos.
24 A princípio tende–se a sustentar que tanto o desprazer como a dor põem phi e psi em movimento, contanto que fique claro que a dor é um evento esporádico. Nesse caso, o que realmente põe todo o aparelho em movimento é, como compreendido por Freud nessa época, o desprazer enquanto sensação resultante de toda e qualquer forma de excitação, assim, a vivência de satisfação, que é pensada como o protótipo do funcionamento normal do aparelho, é impulsionada pelo desconforto gerado por qualquer aumento no nível da excitação. Portanto, desprazer é um conceito mais amplo que o de dor. Nesse caso, toda dor é desprazer, mas nem todo desprazer é dor.
25 Fica advertido o fato de que essa noção de que todo aumento de excitação é sentido como desprazer, assim como toda diminuição é sentida como prazer, encontrou resistências em fenômenos clínicos observados e descritos desde 1905 (Freud, 1905), em Três ensaios, como o prazer sentido por ocasião da excitação sexual. Além desse, igualmente o fenômeno do masoquismo, também apresentado em 1924 em O problema econômico do masoquismo, resiste à equação geral do prazer/desprazer, colocando em questão o próprio primado da atuação do princípio do prazer. Essa circunstância aponta para o próprio limite da descrição quantitativa, pois demanda a suposição de um fator qualitativo aderente tanto ao processo de acúmulo como de eliminação de estímulos, que não seriam em si mesmos prazerosos ou desprazerosos. Estamos assim diante de uma situação que denuncia o aspecto no mínimo nuançado da compreensão da relação quantidade/qualidade na elaboração de Freud.
26Para efeito de apoio à tese aqui sustentada acerca da construção moderna de um prazer negativo, recorde–se Hobbes quando, na obra Os elementos da lei natural e política, declara que “Como o apetite é o início do movimento animal em direção a algo que nos agrada, da mesma maneira a conquista disso é o fim desse movimento, do qual também chamamos escopo, objetivo e causa final. E quando atingimos aquele fim, o deleite que retiramos daí recebe o nome de fruição” (Hobbes, 1640, p. 49). Assim, guardadas as devidas proporções, Hobbes antecipa as próprias noções de escoamento dos estímulos sensorias causadores de sensações, de morte do desejo como resultado do escoamento, portanto de repouso e, por fim, da própria negatividade do prazer, fato que, com cautela, permite apontar para uma linha de continuidade na formulação do conceito de prazer negativo entre ele e Freud, evidentemente intermediados por Condillac.