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Natureza humana
versão impressa ISSN 1517-2430
Nat. hum. v.11 n.1 São Paulo jun. 2009
TRADUÇÕES
Geografia, Biologia e Política: Heidegger sobre lugar e mundo*
Geography, Biology and Politics: Heidegger on Place and World
Jeff Malpas
School of Philosophy, University of Tasmania
RESUMO
Este artigo argumenta, começando pela justaposição de Heidegger ao lado dos geógrafos Ratzel e Vidal de la Blanche, e do etologista von Uexküll, realizada por Giorgio Agamben, em seu ensaio The Open, que a estética da morada (aesthetics of dwelling), que encontramos no último Heidegger, tem que ser entendida em termos da centralidade para o pensamento de Heidegger de um conceito que também é central para o pensamento geográfico–cultural (e particularmente importante no modo de pensamento de Ratzel e Vidal de la Blanche), nomeadamente, o conceito de lugar ou ‘espaço geográfico’. A centralidade dada ao ‘geográfico’ (ou ‘topográfico’) no pensamento de Heidegger é freqüentemente tomada como diretamente conectada, como ela é entendida por Agamben, com o problemático engajamento de Heidegger com os nazistas nos anos 1930; e Agamben apresenta a posição heideggeriana como paralela a de von Uexküll quanto a isso. Porém, não apenas a maneira pela qual Agamben faz essa conexão é altamente enganosa, mas ela também não atenta para qualquer real consideração para o que pode estar em questão na ênfase no ‘geográfico’ em Heidegger. Há, de fato, razão para pensar que o papel desempenhado pelos conceitos de lugar e espaço no pensamento de Heidegger vai de encontro às associações que Agamben e outros supõem. Este artigo é então uma exploração do ‘geográfico’ tal como ele aparece em Heidegger e das associações políticas que podem ser pensadas como acompanhando–o, bem como da relação de Heidegger com uma certa linha da tradição geográfica exemplificada por Ratzel e Vidal de la Blanche.
Palavras–chave: Estética da morada, Espaço geográfico, Mundo, Lugar.
ABSTRACT
Beginning with Giorgio Agamben’s juxtaposition, in his essay The Open, of Heidegger alongside the geographers Ratzel and Vidal de la Blanche, and the ethologist, von Uexküll, this paper argues that the aesthetics of dwelling that we find in later Heidegger has to be understood in terms of the centrality to Heidegger’s thinking of a concept that is also central to cultural–geographic thought (and in a particularly important in the way the thought of Ratzel and Vidal de la Blanche), namely, the concept of place or ‘geographic space’. The centrality given to the ‘geographic’ (or ‘topographic’) in Heidegger’s thinking is often taken to be directly connected, as it is taken to be by Agamben, with Heidegger’s problematic engagement with Nazi in the 1930s, and Agamben presents Heidegger’s position as parallelling that of von Uexküll in this regard. Yet not only is the manner in which Agamben makes this connection highly misleading, but it also neglects any real consideration of what might be at issue in the emphasis on the ‘geographical’ in Heidegger. There is, indeed, reason to think that the role played by the concepts of place and space in Heidegger’s thought actually runs counter to the associations that Agamben and others assume. This paper is thus an exploration of the ‘geographical’ as it appears in Heidegger, and of the political associations that might be thought to accompany it, as well as of Heidegger’s relation to a certain strand within the geographical tradition exemplified by Ratzel and Vidal de la Blanche.
Keywords: Aesthetics of dwelling, Geographic space, Word, Place.
Heidegger afirma que uma das únicas características de seu pensamento nos anos 1920 foi sua descoberta, ou redescoberta, do problema do mundo. O conceito de mundo figura proeminentemente na Parte Um, Divisão Um, de Ser e Tempo, mas Heidegger permanece insatisfeito com seu tratamento do tema ali, freqüentemente retornando ao problema em sua obra no período imediatamente seguinte à publicação de Ser e Tempo – mais obviamente nas preleções de 1929 sobre Os problemas fundamentais da metafísica. Nessas preleções de 1929, Heidegger responde ao problema em questão explorando a diferença entre o modo de ser próprio ao animal e ao humano, e, ao fazê–lo, traz à tona uma série de estudos biológicos e zoológicos dos últimos quarenta anos, incluindo a obra de figuras como o embriologista experimental Wilhelm Roux, o biólogo tcheco Emmanuel Radl, o biólogo neovitalista Hans Driesch, e o pioneiro etologista, Jakob
von Uexküll.
O modo como Heidegger traz à tona essas fontes científicas, e quem ele traz à tona (a maioria dessas figuras fazem parte do movimento anti–materialista na ciência alemã, que é o tema do excelente Reenchanted Science, de Anne Harrington) é de interesse pois nos diz sobre o conhecimento de Heidegger do pensamento científico de seu tempo. Em seu mais recente exame da relação entre o humano e o animal, o ensaio The Open, Giorgio Agamben discute em particular a obra de von Uexküll, com específica referência a Heidegger, mas também relaciona as obras de von Uexküll e Heidegger com as de dois proeminentes teóricos geógrafos, Paul Vidal de la Blanche e Friedrich Ratzel. Agamben escreve:
Os estudos do fundador da ecologia seguem poucos anos após os de Paul Vidal de la Blanche sobre a relação entre as populações e seu meio ambiente (o Tableau de la géographie de la France é de 1903), e os de Friedrich Ratzel sobre a Lebensraum, o ‘espaço vital’ dos povos (a Politische Geographie é de 1897), os quais revolucionariam profundamente a geografia humana do século XX. E não é impossível que a tese central de Sein und Zeit sobre o ser–no–mundo (In–der–Welt–sein) como a estrutura humana fundamental possa ser lida de alguns modos como uma resposta a esse campo problemático, o qual, no início do século, modificou essencialmente a relação tradicional entre o ser vivo e seu meio ambiente–mundo. Como é bem conhecido, as teses de Ratzel, de acordo com as quais todas as pessoas estão intimamente ligadas a seu espaço vital como sua dimensão essencial, teve notável influência na geopolítica nazista. Essa proximidade é indicada por um episódio na biografia intelectual de Uexküll. Em 1928, cinco anos antes do advento do nazismo, esse cientista muito sóbrio escreve um prefácio para Die Grundlagen des neunzehnten Jahrhunderts [Fundamentos do século dezenove], de Houston Chamberlain, hoje considerado um dos precursores do nazismo. (Agamben, 2004, pp. 42–43)
é essa passagem que constitui o ponto de partida para minha discussão aqui – e assim é, não porque eu queira tratar da discussão da relação entre humano e animal (o tópico que tem preocupado a maior parte dos comentadores), em Heidegger ou Agamben, mas antes pelo modo como os comentários de Agamben apontam para uma série de questões acerca da relação entre o geográfico e o político em Heidegger – mais especificamente, a ligação entre temas no pensamento de Heidegger e elementos supostamente problemáticos no pensamento geográfico do século XIX e princípio do século XX, bem como o modo como o pensamento de Heidegger interagiu com aspectos da geografia cultural em torno dos últimos trinta anos.
Essas questões se ligam claramente, como dão a entender os comentários de Agamben, com o argumento existente acerca das associações políticas do pensamento de Heidegger e sua proximidade com o Nacional Socialismo. Esse último ponto se liga com o conjunto de questões concernentes às possíveis associações políticas dos elementos de pensamento geográfico com os quais Heidegger é, aqui, relacionado. Contudo, ao enfocar aqui as ligações geográficas, meu principal objetivo é abrir caminho para uma exploração de certos aspectos do papel desempenhado pelas idéias de lugar e espaço na obra de Heidegger, e, com isso, abrir caminho para a possibilidade de um diálogo expandido entre o filosófico e o geográfico. Tornar explícita a ligação com o principal tema desse volume: a estética da morada que achamos no último Heidegger, que já está prefigurada (embora de uma maneira menos integrada) em elementos do pensamento anterior, tem que ser entendida em termos da centralidade, para o pensamento de Heidegger, de um conceito que também é central no pensamento geográfico–cultural, nomeadamente o conceito de lugar ou ‘espaço geográfico’ – topos, Ort, Ortschaft1. Os comentários de Agamben ressaltam essa ligação através da conexão que eles traçam entre Heidegger e o pensamento geográfico de Ratzel e Vidal de la Blanche (a qual não ignora a importante relação com von Uexküll), mas, ao fazê–lo, Agamben também indica o modo pelo qual é precisamente essa conexão que pode ser vista como reforçando o caráter politicamente problemático do pensamento de Heidegger. Porém, não apenas a maneira pela qual Agamben faz essa conexão é altamente enganosa, mas ela também não atenta para qualquer real consideração sobre o que pode estar em questão na centralidade do ‘geográfico’, ou melhor, do topológico, no pensamento de Heidegger. De fato, não obstante o próprio engajamento político pessoal de Heidegger, há razão para pensar que o papel desempenhado pelo conceito de lugar em seu pensamento realmente vai de encontro às associações que são freqüentemente tomadas como pertencendo a ele.
Um dos importantes desenvolvimentos na geografia cultural, no último quarto do século XIX, foi a ascensão de um movimento freqüentemente referido como “geografia humanística”, que se aproxima fortemente da obra de Husserl, bem como da de Heidegger, e que deu uma ênfase especial ao conceito de lugar como uma noção central e determinante na investigação geográfica. As figuras chaves nesse desenvolvimento incluem autores tais como Yi–Fun Tuan2, Edward Relph3, Anne Buttimer e David Seamon4, e suas obras não têm sua influência restrita apenas à geografia. De fato, a geografia humanística tem sido aliada a um modo de pensamento ambiental orientado para o lugar (place–oriented), o qual abrange autores de uma larga série de disciplinas, da sociologia à psicologia, da antropologia à arquitetura. Nesse vasto campo, o “Bauen Wohnen Denken” (“Construir, habitar, pensar”) (1954)5, de Heidegger, aparece freqüentemente como um texto chave. Ademais, essa tradição pode também ser vista como se ligando à obra de Vidal de la Blanche, preparando–a – o que, pode–se pensar, confirma as associações sugeridas por Agamben. Na verdade, contudo, o lugar que Vidal de la Blanche ocupa aqui aponta para a necessidade de um certo grau de cautela ao se tentar traçar as conexões e as linhas de influência que se pode pensar como estando em questão, uma vez que a tradição vidaliana, tal como ela aparece na geografia americana, é freqüentemente contraposta ao pensamento ratzeliano, mais do que sendo aliada a ele. Além disso, a geografia humanística se aproxima fortemente da fenomenologia, de Husserl bem como de Heidegger, tanto quanto de autores como Bachelard e Merleau–Ponty. No entanto, como situar essa tradição fenomenológica mais vasta, na qual a idéia de uma estreita ligação entre ser humano e espaço ou lugar é também um tema recorrente (especialmente como desenvolvida na obra de Bachelard e Merleau–Ponty), em termos do conjunto problemático de ligações esboçado por Agamben?
Do modo como Agamben apresenta as questões, Heidegger, von Uexküll, Ratzel e Vidal de la Blanche compartilham todos o mesmo compromisso básico com uma concepção do ser humano como estreitamente ligado a seu meio ambiente ou mundo – em termos heideggerianos, ser humano é ser–aí (Da–sein) que é ser–no–mundo. Tal compromisso, como indiquei momentos antes, também é algo que tomamos como um elemento central na obra de Bachelard e Merleau–Ponty, embora Agamben não faça tal ligação. Ao mesmo em tempo que isso permanece apenas ao nível da sugestão, sem nunca ser claramente explicado, Agamben dá a entender que esse compromisso mesmo é o que traz Heidegger, von Uexküll, Ratzel e Vidal de la Blanche a uma estreita proximidade com o nazismo – uma proximidade que Agamben entende como tendo uma relevância especial, não só pela suposta influência de Ratzel na ideologia nazista (e presumivelmente pelas afiliações nazistas do próprio Heidegger), mas também pela aprovação de Chamberlain por von Uexküll. O último, é claro, não apenas aproxima esses pensadores do domínio do Nacional Socialismo como um movimento político amplo com uma série de diferentes associações, mas, mais especificamente, do racismo e anti–semitismo do Nacional Socialismo.
O estabelecimento de tais ligações e associações não é peculiar a Agamben, mas é uma suposição freqüentemente implícita, e algumas vezes explícita, em muitas obras que tratam criticamente dos elementos “geográficos” no pensamento de Heidegger6. A preocupação de Heidegger com as idéias de enraizamento e pertencimento, sua aparente preferência pelo mundo campesino e agricultor, e seu freqüente apelo às noções de origem e lar, foram todas vistas como vinculadas a uma política conservadora e mesmo reacionária de um tipo evidente, não apenas no envolvimento de Heidegger com o nazismo, mas mesmo em sua admissão, tardia em sua vida, em entrevista à revista Der Spiegel, nos anos 1960, de sua falta de fé na política democrática. Com tais idéias claramente ao fundo, o historiador Troy Paddock também traça uma ligação explícita entre Heidegger e Ratzel. Argumentando que Heidegger distinguiu entre dois conceitos de espaço, o matemático ou geométrico e o geográfico, Paddock afirma que, entendido nesse sentido amplo, Heidegger:
... não considera o espaço como uma entidade abstrata, mas como parte de um meio ambiente mais amplo. Margens ajudam a dar espaço a um local específico, e conseqüentemente a uma função específica, criando um espaço que é fundado numa construção específica, ponte, ou jarro... A concepção heideggeriana de espaço admite paralelos impressionantes com visões expressas no fim do século XIX pelo geógrafo Friedrich Ratzel, que sugeriu que havia uma conexão entre o espaço físico habitado por um povo e sua cultura. (Paddock, 2004a, pp. 237–238)
Embora Paddock pareça se equivocar na ligação entre tais visões e o fascismo7, ele, contudo, afirma que a adoção, por Heidegger, de tal visão do espaço revela “uma afinidade ideológica contínua com princípios básicos da ideologia nazista” (Paddock, 2004a, p. 248). Paddock deixa bem claro que parte do seu interesse na concepção “geográfica” de espaço heideggeriana deriva do modo pelo qual o pensamento de Heidegger tem sido entendido pelos ambientalistas contemporâneos, e a clara implicação é que tal pensamento tem perigosas afinidades com elementos chaves da ideologia nazista, e deveria, portanto, ser tratado com extrema cautela, senão totalmente evitado. A geografia humanística e as formas de pensamento ambiental com os quais é associada pareceriam se mostrar, nessa avaliação, reacionárias e politicamente perigosas. De fato, tais modos de pensar, na medida em que dão ênfase a uma relação especial entre ser humano e lugar, freqüentemente aparecem no pensamento popular, e não apenas acadêmico, como implicando fortemente associações românticas e conservadoras, mesmo se a ligação com o pensamento fascista não sempre é tão evidente.
Deixando de lado, ao menos por agora, algumas das questões mais amplas que estão em jogo aqui, poderia ser notado que, no caso de Heidegger, o simples fato de sua ligação com os nazistas é inquestionável – Heidegger foi um membro contribuinte do Partido Nazista, de 1933 em diante, e foi indicado pelos nazistas como reitor da Universidade de Friburgo no mesmo ano, renunciando um ano depois. O que permanece controverso é exatamente como essa ligação deve ser interpretada, qual significância deve ser dada a ela, e, mais particularmente, quão profunda pode ser sua relação com o pensamento filosófico de Heidegger. No início dos anos 1930, Heidegger certamente pareceu preparado para usar idéias e imagens de autoctonia e enraizamento que pareciam alinhar estreitamente seu pensamento com a ideologia e retórica nazista8. Porém, nos termos das argumentações específicas avançadas por alguém como Paddock, é notável que, enquanto uma concepção “geográfica” de espaço está, de fato, presente na obra de Heidegger até, e inclusive, no início dos anos trinta (embora normalmente expressa em noções como aquela de “enraizamento”), é realmente em suas obras posteriores a sua renúncia à reitoria, em 1934, e assim, um tempo após sua tentativa de se estabelecer como o líder intelectual da Alemanha Nacional Socialista ter claramente fracassado, que tal concepção, como especificamente desenvolvida em termos de espaço, parece se tornar muito mais importante.
Há seguramente uma clara mudança no pensamento de Heidegger, que acontece primeiro nos anos trinta e se intensifica por volta do fim dos anos quarenta, em direção a uma preocupação explícita com o lugar e com conceitos relacionados – conceitos que incluem aqueles de “morada”, de “Quadratura” e, eu gostaria também de afirmar, de Acontecimento (das Ereignis). Minha opinião é que essa mudança em direção ao “geográfico” ou “topológico” está estreitamente ligada à famosa “Virada” [“Turning”] ou “Viragem” [“Reversal”] no pensamento de Heidegger9. Há boas razões para supor que essa mudança está ligada ao fracasso da ligação do próprio Heidegger com o nazismo, não no sentido de que ela deriva da ideologia nazista, mas que é, ao contrário, desenvolvida em reação a ela10. Significativamente, é em sua confrontação com Hölderlin, em 1934–35, imediatamente após sua renúncia à reitoria, que as idéias de lugar e morada, que se encontram no coração da concepção “geográfica” de espaço que preocupa Paddock, começam a emergir mais explicitamente (embora ainda de uma forma relativamente não desenvolvida) como o foco do pensamento de Heidegger. Assim, acha–se, ao mesmo tempo em que o pensamento de Heidegger se orienta para concepções “geográficas” ou “baseadas no lugar” (place–based), e um afastamento, e por vezes uma crítica direta, de elementos chaves associados à ideologia nazista. Pode–se dizer, claro, que essa mudança é simplesmente um resultado do fracasso das ambições políticas do próprio Heidegger, e então tratá–la como um tipo de resposta “despeitada”, e ainda que possa haver alguma verdade nisso de uma perspectiva biográfica, não se deve admitir obscurecer as questões filosóficas que também estão, não obstante, envolvidas. De fato, como veremos brevemente, há uma profunda tensão entre os modos “geográficos” de pensamento e o tipo de pensamento que é característico da ideologia nazista, e essa tensão se torna aparente, não apenas no pensamento de Heidegger, mas também na obra de Ratzel e Vidal de la Blanche.
Assim como um exame minucioso do envolvimento do próprio Heidegger com o nazismo complica a tentativa de discernir uma linha simples de conexão entre a política fascista do próprio Heidegger e seu pensamento de espaço e lugar, também um exame atento da história intelectual que implica Heidegger, Ratzel, Vidal de la Blanche e von Uexküll conduz a uma imagem mais complexa que aquela que Agamben sugere. Em que medida o conceito heideggeriano de “ser–no–mundo” é realmente debitário ou influenciado pelo conceito de Umwelt, de von Uexküll, me parece discutível – não vi, em lugar nenhum, qualquer evidência que demonstrasse uma influência direta de um para o outro como oposta a alguma convergência que seria, de outro modo, a de linhas de pensamento independentes, embora Harrington, por exemplo, especule sobre a possibilidade de tal influência. Heidegger certamente estava familiarizado com a obra de von Uexküll na época em que ele escreveu Os problemas fundamentais da metafísica, e, como Harrington observa, o próprio von Uexküll atentou para aparentes semelhanças entre seu pensamento e o de Heidegger, em um artigo de 193711. Porém, enquanto a exata natureza e a extensão de alguma influência de von Uexküll sobre Heidegger pode ser incerta12, não há dúvida sobre a conexão entre Uexküll e Chamberlain. De fato, o que Agamben não nos conta, um tanto surpreendentemente talvez, é que não só von Uexküll escreveu um prefácio para um livro de Chamberlain, como ele mesmo era um amigo próximo e de longa data de Chamberlain, tendo opiniões anti–semitas e racistas semelhantes (ainda que essas opiniões não fossem sempre aparentes nos escritos acadêmicos de von Uexküll). Assim, Harrington cita uma carta de von Uexküll a Chamberlain [de 10 de abril de 1921] na qual von Uexküll escreve: “O poder de coesão do estado judaico é admirável. Por isso, os judeus são completamente incapazes de construir um Estado. Tudo que produzem é apenas uma rede parasitária que em todo lugar corrói as estruturas nacionais e transforma o Volk em montes de massa agitados” (Harrington, 1999, p. 60).
Embora Heidegger cite a obra de von Uexküll em Os problemas fundamentais da metafísica, ele o faz, como observei anteriormente, junto com vários outros proeminentes biólogos e zoólogos com compromissos anti–materialistas semelhantes. Ademais, von Uexküll é discutido, não tanto por causa da possível convergência entre sua visão da relação entre animal e meio ambiente e a concepção heideggeriana de ser–no–mundo, mas antes porque sua abordagem pode ser vista como fornecendo uma visão científica contrária à afirmação heideggeriana de que o animal é pobre de mundo – a obra de von Uexküll pode ser entendida como mostrando que o animal tem de fato um mundo, contrariamente a Heidegger, embora um mundo diferente do humano. Ao mesmo tempo que Heidegger é generoso em sua estimativa da significância da obra de von Uexküll, como da de outros biólogos que ele discute (e essa generosidade bem pode derivar das simpatias do próprio Heidegger com relação à abordagem holística e anti–mecanicista deles), ele também conclui que permanece “uma questão fundamental se devemos falar do mundo do animal – de um mundo circundante ou mesmo de um mundo interior – ou se não temos que determinar de outro modo aquilo com o quê o animal se põe em relação” (Heidegger 1995, p. 264).
A discussão de Heidegger de von Uexküll, em 1929, permanece no quadro essencialmente kantiano de muito do pensamento heideggeriano de fins dos anos 1920. Um dos problemas que conduz Heidegger para fora desse quadro kantiano é que ele começa a ver como incipiente sua tendência, apesar dos esforços do próprio Heidegger contra tal tendência, em direção a uma forma de subjetivismo ou idealismo. Desse modo, comentando uma passagem do ensaio de 1936, “A origem da obra de arte”, Heidegger escreve que “Aqui se encontra oculta a relação entre ser e ser humano. Essa relação é inadequadamente pensada mesmo nessa apresentação – uma dificuldade angustiante que é clara para mim desde Ser e Tempo, e que desde então tem sido discutida em muitas apresentações” (Heidegger, 2002, p. 55). A inadequação da apresentação parece residir na possibilidade de que a relação em questão possa ser explicada como uma relação na qual o ser é de algum modo fundado ou baseado no ser humano – como Heidegger escreve em outro lugar a respeito do modo como o Dasein aparece em Ser e Tempo, a apresentação “ainda permanece na sombra do ‘antropológico’, do ‘subjetivista’, e do ‘individualista’, etc.” (Heidegger, 1999, p. 208)13. Embora o próprio Heidegger não formule uma crítica de von Uexküll ao longo dessas linhas, em 1929 (e, explicitamente, estava apenas em vias de formular uma tal crítica de elementos de sua própria obra), von Uexküll se encontra ele mesmo num quadro de pensamento kantiano, ou melhor, neo–kantiano, do tipo que Heidegger veio progressivamente a ver como cada vez mais problemático devido a suas tendências subjetivistas.
A respeito desse último ponto, ao mesmo tempo em que se pode ver o conceito do organismo em seu mundo, de von Uexküll, como um importante desenvolvimento em direção a uma concepção mais integrada da relação entre organismo e meio ambiente, ele, entretanto, se encontra claramente distinto da uma concepção “ecologicamente” mais plena da relação entre mortais e seu mundo, que aparece no último Heidegger, e pode mesmo ser visto como estando já um tanto apartado da concepção, do primeiro Heidegger, de ser–no–mundo. De fato, apesar de Heidegger considerar que certos elementos kantianos atrapalham Ser e Tempo, deve ser bastante claro que parte de sua intenção ao pensar o Dasein como “ser–no–mundo” é evitar a idéia do mundo como se encontrando à parte do Dasein (como um reino pré–dado de “objetividade”) ou como sendo constituído ou construído pelo Dasein (como uma função de uma “subjetividade” pré–dada). A consideração de von Uexküll do animal e do seu meio ambiente, contudo, se encontra aqui num contraste significativo, uma vez que ele dá prioridade ao animal como determinante de seu mundo, tratando cada mundo semelhante como um domínio fechado sobre si (self–enclosed) que é, estritamente falando, inacessível de fora, e assim a consideração de von Uexküll permanece essencialmente subjetivista ou fenomenalista.
Harrington atenta explicitamente para o caráter subjetivista da obra de von Uexküll, citando a consideração de von Uexküll de seu reconhecimento repentino, ao ver uma árvore de praia nos bosques de Heidelberg, que “essa não é uma árvore de praia, mas até certo ponto minha árvore de praia, algo que eu, com minhas sensações, construí em todos os seus detalhes. Tudo [sobre a praia] que eu vejo, ouço, cheiro ou sinto não são qualidades que pertencem exclusivamente à praia, mas até certo ponto são características dos meus órgãos sensoriais que eu projeto fora de mim” (Harrington, 1999, p. 41)14. O mesmo subjetivismo é claramente evidente na obra publicada de von Uexküll – por exemplo, em seu livro A Stroll Through the Worlds of Animals and Men (Uexküll, 1934), nos convida a:
primeiro imaginar que se sopra uma bolha de sabão em torno de cada criatura para representar seu próprio mundo, repleto com as percepções que só ela conhece. Quando, em seguida, nós mesmos entramos em uma dessas bolhas, a campina familiar é transformada. Muitas de suas variegadas características desaparecem, outras não mais se pertencem, mas aparecem em outras relações. Um novo mundo vem a ser. Através da bolha vemos o mundo da minhoca, da borboleta, do rato do campo; o mundo como ele aparece para os animais mesmos, não como aparece para nós. Podemos chamar isso de mundo fenomenal ou de mundo próprio do animal. (Uexküll, 1957, p. 5)
Cada mundo, de acordo com von Uexküll, é, desse modo, função da própria natureza do organismo, e cada mundo é então determinado biologicamente, pode–se dizer, mais do que geograficamente. De fato, que isso deva ser assim é um elemento importante que sem dúvida alimentou o racismo e anti–semitismo de von Uexküll: raças diferentes formam o mundo de diferentes modos, e o mundo dos judeus é, portanto, um mundo diferente do mundo dos arianos nórdicos. Do mesmo modo, Ludwig Clauss escreve, em (Clauss, 1932), em sua influente obra, Die nordische Seele: Eine Einführung in die Rassenseelenkunde (A alma nórdica: uma introdução à psicologia racial), que:
A maneira pela qual a alma se estende em seu mundo molda a área geográfica desse mundo em uma “paisagem”. Uma paisagem não é algo sobre o que a alma lança luz, como se ela fosse algo já dado (ready–made). De certo modo ela é algo que é moldado em virtude do modo de ver esse meio ambiente, o qual é determinado pela espécie. (p. 19)
Não é apenas a idéia de uma ligação entre o organismo e seu espaço, entre o ser humano e seu lugar, que está em questão aqui, mas a exata natureza dessa ligação. A ênfase, em von Uexküll e em Clauss, sobre o papel determinante do organismo em sua natureza de espécie, se encontra em acentuado contraste com aquelas posições que vêem o organismo como determinado pelo meio ambiente, ou com posições que vêem o organismo e o meio ambiente como mutuamente determinantes ou independentes.
Uma leitura superficial de escritos como os de Clauss pode levar a assimilar Clauss a um estilo geral ratzeliano de pensar que entende o humano como vinculado ao geográfico. De fato, Ratzel se encontra muito distante de escritores tais como Clauss, bem como de von Uexküll, justamente na base de sua compreensão bastante diversa da natureza da ligação em questão aqui. é como um determinista ambiental ou geográfico – alguém que põe a ênfase sobre o humano como determinado pelo ambiental ou geográfico – que Ratzel foi mais comumente lido, se não de todo corretamente, nos círculos de língua inglesa, e é notável que Ratzel também se pôs em clara oposição às doutrinas racistas que eram comuns na última metade do século XIX. Com efeito, ele escreve que “A tarefa da etnografia é... indicar, em primeiro lugar, não as distinções, mas os pontos de transição, e as íntimas afinidades que existem; pois a humanidade (mankind) é uma, ainda que diversamente aculturada” (Ratzel, 1896–8, p. 4). A noção, de Ratzel, de Lebensraum, espaço vital, era uma expressão de seu compromisso com a idéia de que as formas de organização humana estiveram sempre ligadas ao seu próprio espaço geográfico, e não poderiam ser entendidas à parte desse espaço. Como Robert Dickinson escreve:
Ratzel... pensou a unidade antropogeográfica como um complexo de área (areal complex) cujas conexões espaciais eram necessárias para o funcionamento e organização de um tipo particular de grupo humano, seja ele uma vila, cidade ou estado. O conceito de Lebensraum lida com as relações entre a sociedade humana como uma organização espacial (geográfica) e sua disposição (setting) física. área comunitária, área comercial, galpão de leite e galpão de trabalho, província histórica, entidade comercial, a rede de comércio entre áreas industriais vizinhas através de fronteiras de Estado – essas áreas são variações subseqüentes do conceito de “área vital”. (Dickinson, 1969, p. 71)
Embora Ratzel tenha acreditado que o desenvolvimento dos Estados implicaria um aumento no Lebensraum do Estado, ele não tomou a idéia de Lebensraum como oriunda de qualquer justificação de expansão territorial enquanto tal. Foi o último desdobramento do termo no interior da “geopolítica” de Rudolf Kjellen e Karl Haushofer (que ele mesmo lamentou ao assimilar Ratzel ao seu próprio campo) que conduziu seu uso instrumental no interior da ideologia nazista. Além disso, a oposição de Ratzel à teoria racial pode ser vista, de fato, como uma conseqüência direta de sua priorização do meio ambiente e do espaço geográfico – embora ele também tenha defendido, de forma completamente independente, ao que parece, que a mistura étnica mesma contribuiu para o vigor de uma sociedade (uma opinião que ele poderia ter desenvolvido durante suas experiências anteriores nas “novas” sociedades do México e dos Estados Unidos).
A ênfase de Ratzel sobre a importância do espaço geográfico na análise etnográfica social e cultural pode ser vista como uma importante precursora de idéias mais recentes concernentes ao caráter espacializado de formações sociais, econômicas e culturais, de escritores, não pouco importantes, tais como Deleuze e Guattari, bem como Foucault. No interior do pensamento geográfico francês, Ratzel foi especialmente influente, muito mais, em alguns pontos, do que na Alemanha ou no mundo de língua inglesa, já que na França seu trabalho parece ter sido mais diretamente absorvido do que na Alemanha ou nos Estados Unidos. A obra de Vidal de la Blanche emerge diretamente da abordagem geográfica de Ratzel sobre a história humana e sobre a etnografia. Desta maneira, o trabalho de Vidal de la Blanche pode ser vista como uma continuação da idéia ratzeliana de “geografia humana” ou antropogeografia e, como Ratzel, Vidal de la Blanche também rejeita o determinismo biológico. Mas, enquanto Ratzel enfatiza o papel do meio ambiente físico na história humana e na cultura, Vidal de la Blanche assume uma abordagem mais interativa. A geografia regional que ele iniciou foi baseada no estudo da interação entre a cultura e o ambiente, mas o lugar ou região era primariamente definido em termos culturais – em termos do modo como o meio ambiente foi formado pela interação humana – mais do que como unicamente determinado pelas características da topografia natural. O meio ambiente físico é visto mais como aquilo que abre uma gama de possibilidades para a interação humana do que como aquilo que determina essa interação – por isso o comprometimento de Vidal de la Blanche com um “possibilismo” geográfico mais do que com um “determinismo”. De maneira interessante, Henri Lefebvre foi fortemente influenciado por Vidal de la Blance, e seu trabalho anterior sobre os Pirineus pode ser visto como contendo importantes elementos da prática geográfica vidaliana. (Entrinkin, 2002, p. 143)
Em ambos, Ratzel e Vidal de la Blance, a ênfase em uma concepção de espaço geográfico não só é crucial para as posições teóricas que eles promovem, bem como para sua significância no interior da história da geografia; mas também para a diferenciação do seu pensamento daquele de von Uexküll e de outros como ele. Essa ênfase assinala, além disso, é claro, um ponto chave de diferenciação da ideologia nazista e, a este respeito, Heidegger também deve ser posto ao lado de Ratzel e Vidal de la Blanche. Além disso, não é apenas a ênfase no papel do geográfico (embora o que é significado por isso também requer um exame posterior) como oposto ao biológico que está em questão aqui. O que caracteriza o trabalho de von Uexküll, bem como teorias raciais tais como a de Clauss, é a tendência para entender a natureza do “mundo” do animal ou do humano baseado em certas formas gerais de natureza da espécie, “fundo racial” (racial stock) ou “alma”. Tal tendência já diminui a significância do espaço ou lugar geográfico – é o tipo geral que é importante em tal pensamento, em contraste com aquele cujo pensamento voltado para o lugar caracteristicamente enfatiza o regional e o local.
Esta última questão resulta em um ponto crucial de diferença quando se olha para o modo como a ideologia nazista é relacionada à tradição alemã da “Heimat”. A idéia de “Heimat” – um termo constantemente traduzido por “Pátria” (apesar da tradução não capturar a riqueza do original alemão) – está ligada às idéias do lugar de origem de alguém, o lugar ao qual se pertence, não somente no sentido da região de onde se vem e onde ainda se poderia morar; mas também no sentido de lar da infância de alguém. Em sua forma acadêmica, o foco sobre Heimat e Heimatskunde foi parte da mesma orientação em direção a um entendimento da vida humana e da cultura como posto em relação com o espaço, e então com a região e a paisagem, como é evidente em Ratzel e Vidal de la Blanche. Desta maneira, o Deutschland: Einführung in die Heimatkunde, de Ratzel, que foi um texto de referência nas escolas alemãs no início do século XX, consistiu essencialmente em uma etnografia regional da Alemanha. Elementos da tradição da Heimat foram apropriados pelos nazistas, aparecendo na propaganda e retórica nazistas, bem como no trabalho de psicólogos raciais tais como Clauss – elementos da tradição e cultura local e regional poderiam ser vistos como um reflexo do fundo racial associado com aquele local ou região. A ênfase aqui ainda não está no local e no regional enquanto tais; mas, antes, sobre o local e o regional na medida em que eles se encontram relação com o racial e o nacional. De fato, como Applegate assinalou, os nazistas presidiram sobre o que foi essencialmente um declínio na tradição da Heimat, não sobre um florescimento ou sobre um renascimento (Applegate, 1990, pp. 211–213), e um tal desenvolvimento imprevisto não seria surpreendente: a política totalitária do Estado nazista não foi de resistência às associações locais ou regionais e à cultura; mas, antes, de criação de um aparato político gerado para a satisfação de uma série de desejos e ambições universalizáveis. é desta maneira que o nazismo, por todos esses elementos românticos antimodernistas, também pode ser visto como a instanciação de algo essencialmente moderno – a tentativa de remodelar o mundo de acordo com uma certa imagem ideal, de impor sua vontade sobre aquele mundo e fazer dele o seu próprio mundo. De fato, na obra de Clauss esta tendência mesma é vista como característica de um certo tipo racial – o nórdico – cujo “objetivo é simplesmente penetrar em tudo e, conseqüentemente, integrá–lo em seu estilo e sujeitá–lo à sua lei. Tudo o que ainda não foi abarcado e marcado por ela se estende, antes, como uma nova terra – sua nova terra – a qual precisa ser descoberta, explorada, cultivada e, então, conquistada” (Clauss, 1966, p. 73)15. Aqui, o tipo de “subjetivismo” que se encontra em von Uexküll surge desenvolvido sob uma determinada forma política. – o geográfico mesmo se transforma em matéria para a raça e para o psicológico.
Isto não quer dizer, é claro, que a tradição da Heimat, ou outras tradições e discursos que abordam as noções de lugar e pertencimento, são sempre completamente inocentes de quaisquer tendências ou elementos problemáticos. O ponto é, antes, que tais tradições e discursos orientados espacialmente ou “geograficamente” não deveriam ser explicados como inevitavelmente vinculados a certas tendências ou movimentos políticos particulares. Desta maneira, bem se poderia encontrar noções de lugar e de pertencimento surgindo em associação ao reacionário e a formas exclusivamente políticas – basta olhar para os eventos na atual Palestina, nos Bálcãs, ou mesmo em Cronulla Beach, em Sydney – mas essas noções também se encontram aproximadas junto a políticas de caráter mais progressivo e inclusivo. A discussão mais recorrente sobre sustentabilidade, por exemplo, é baseada em torno da pertença e da ligação entre indivíduos, comunidades e ambientes locais ou regionais nos quais eles vivem. Projetos de regeneração urbana, geralmente com uma forte ênfase sobre a regeneração e pluralidade culturais, tendem também a delinear, nas idéias de ligação e obrigação, lugares específicos e vizinhanças; políticas indígenas, especialmente na Austrália, mas também em outras partes do mundo, conferem um papel central à necessidade de reconhecer a ligação indígena com o país e, às vezes, de encontrar formas de articulação ou modos de rearticulação de ligação que poderiam ser relevantes para os não–indígenas16. Que os conceitos de espacial e “geográfico”, que estão em questão aqui, sejam de fato tão ubíquos, desconsiderando as particularidades do compromisso político, indica a centralidade e significância desses conceitos.
é freqüentemente afirmado que entender o ser humano como se achando em uma importante relação com o lugar ou o espaço geográfico é já pressupor uma homogeneidade da cultura e da identidade em relação a esse lugar, bem como excluir outros disso. Este é o núcleo do argumento que é, em geral, usado para demonstrar o suposto caráter politicamente perigoso do pensamento “geográfico” (um argumento que aparece, por exemplo, em Levinas (1990, pp. 231–234)17, mas que também é assumido, aparentemente como auto–evidente, em diversos outros autores). Todavia, esta afirmação só costuma ser defendida em instâncias específicas – é freqüentemente direcionada contra Heidegger, por exemplo, mas raramente é desdobrada contra formas indígenas de pensamento que, similarmente, priorizam o lugar ou espaço geográfico – e depende tipicamente do pensamento “geográfico” já explicado, em uma forma que assume suas associações políticas problemáticas mais do que as exibe ou as prova (e raramente averigua mais a fundo no interior dos detalhes históricos e filosóficos atuais que poderiam ser relevantes aqui). O que a obra de pensadores tais como Heidegger, bem como as de Ratzel e Vidal de la Blanche e da grande tradição da geografia humanística, traz à tona é a própria questão do lugar ou do espaço geográfico enquanto tal.
Na obra de Heidegger, a questionabilidade do lugar é já evidente, seja indiretamente, em Ser e Tempo, em termos do status problemático da espacialidade de acordo com a estrutura do “ser–no–mundo”, seja, ao mesmo tempo, em idéias e imagens de espaço e lugar que emergem continuamente como elementos centrais no interior da análise global (por exemplo, na própria idéia de “ser–em”, bem como a noção do “Da”, o “Aí”, do Ser–aí) (Malpas, 2007, capítulo 3). Muito do último pensamento de Heidegger pode ser visto como uma tentativa fundamentada (sustained) de elucidar a natureza do lugar ou topos, daí a caracterização de seu próprio pensamento como uma “topologia” do ser (Heidegger, 2004, pp. 41–47). Em seu pensamento do lugar, Heidegger também pode ser visto como preconizando um repensar do espaço. Desta maneira, no último ensaio “Arte e Espaço” (escrito em conjunto com o escultor basco Eduardo Chillida, cujas contribuições foram em forma de uma série de litografias), Heidegger anseia por um entendimento do espaço, não em termos do espaço “físico–tecnológico” de “Galileu e Newton”, mas, antes, de “liberar” (Räumen) – a sorte de “liberação” que abre uma região para habitação (settlement) e morada (Heidegger, 1969b, p. 6 e 1973, p.4). Ao mesmo tempo que o espaço é o que Galileu e Newton teorizam, ele é também essa liberação e abertura (opening up), esse “espaçar” (spacing), que permite a possibilidade do aparecer, e que ocorre sempre e somente em relação a espaços específicos. é esse sentido de espaço, ele mesmo associado ao geográfico mais do que ao espaço puramente geométrico (para usar o contraste de Paddock) que resulta tão importante no pensamento meditativo do último Heidegger sobre o acontecimento da Quadratura e com isso a “estética” (poderíamos dizer, visando aqui ao lugar do ethos, a “ética”) da morada.
O espaço e lugar em questão aqui não são, contudo, um espaço ou lugar já determinado pelo, nem simplesmente determinante do, ser humano. Em vez disso, é isso no que e sobre cuja base o ser humano é ele mesmo levado a articular e aparecer de modo significativo (to articulate and meaningful appearance). Assim, na consideração da Quadratura, em ensaios tais como “Bauen Whonen Denken”, o lugar é aquele que é estabelecido na e através da junção de terra e céu, deuses e mortais, na coisa, ao mesmo tempo que também é aquilo no que e sobre a base do qual a coisa mesma aparece, como é também isso que permite o aparecer dos elementos da Quadratura enquanto tais – o céu é esse mesmo céu que se curva sobre nós; e a terra que jaz sob nossos pés, aqui, agora, neste lugar; e é também aqui, “neste” lugar, e só aqui, que o encontro entre mortais, e entre mortais e deuses (quer na sua ausência ou presença) também ocorre. Os mortais desempenham, desta maneira, um papel no vir a ser de lugares, embora não exclusivamente, e os lugares mesmos desempenham um papel no aparecer dos mortais. Sobre essa base, lugar poderia ser visto em termos de uma reminiscência da concepção de chora de Platão (um termo que, às vezes, é equiparado com espaço, mas também com lugar) como a própria matriz de devir – embora diferente da chora de Platão (cf. Platão. Timeu, 48E–52D), que sempre permanece indeterminada, o lugar mesmo vem a aparecer, e então aparece em uma forma singular e determinada (como apenas “este” lugar) no acontecimento, o Ereignis, do lugar que é também o acontecimento da Quadratura (Malpas, 2007, p. cap. 6).
Embora tenha existido, às vezes, uma tendência no interior da geografia humanística em tratar o lugar, que por vezes assume certo “subjetivismo” em relação ao lugar – ele é, de fato, entendido como uma função da experiência humana (uma tendência que, ocasionalmente, é evidente, por exemplo, na obra de Tuan18) – há, entretanto, uma complexidade e indeterminação que também se fundiram como um elemento chave no entendimento geográfico do lugar, tal como foi desenvolvido por volta do último século, particularmente na linha que deriva de Ratzel e Vidal de la Blanche e que compreendeu autores tais como Tuan, Relph e outros. J. Nicholas Entrikin, por exemplo, enfatiza o “entre do lugar” (cf. Entrikin 1990) (betwenness of place) (uma ênfase também presente em Heidegger), enquanto Doreen Massey também tem, ao mesmo tempo em que tem sido crítica a uma certa versão de certo modo caricaturada da posição heideggeriana (Massey, 1993, pp. 64–67), entretanto, argumentado em favor da centralidade da concepção de lugar articulada através das noções de processo, interconexão e diversidade (Massey, 1994, especialmente pp. 117–172). Lugares são, assim, entendidos como estruturas dinâmicas que permitem a interação entre o humano e o meio ambiente e, de que eles mesmos são determinados na e através da interatividade, ao mesmo tempo em que eles também participam disso. Uma tal visão está bem distante da concepção de lugar como determinação pela raça e pelo biológico, a qual pode ser encontrada em trabalhos tais como os de von Uexküll e Clauss, e em relação à qual, para reforçar o ponto, Heidegger tem de ser visto como contrário. A ascensão do lugar como um conceito central no pensamento contemporâneo, no interior da geografia cultural e humana – uma ascensão para a qual o próprio Heidegger contribuiu – deveria ser vista, desse modo, como uma função, não da ampliação do domínio de um conservadorismo reacionário e determinista, mas como completamente contrário – como a abertura de lugar como o próprio local (site) para o questionamento de nós mesmos, de nosso mundo e de nossa localidade no interior dele.
Nas preleções sobre Parmênides no início dos anos de 1940, Heidegger comenta sobre topos grego como se segue:
Topos é a palavra grega para “lugar”, embora não como mera posição em uma multiplicidade de pontos homogêneos em toda parte. A essência do espaço consiste em manter junto, como o “onde” presente, a circunferência daquilo que está em seu nexo, o que pertence a ele e é “dele” (“of” it), do lugar. O lugar é o manter junto originalmente o que se co–pertence (belongs together), e é, assim, para a maior parte, uma multiplicidade de lugares reciprocamente relacionados por se co–pertencer, o qual nós chamamos uma habitação (settlement) ou um distrito [Ortschaft]. No domínio estendido do distrito há, desta forma, vias, passagens e atalhos. Um daimonios topos [“daimonios topos”] é um “distrito sinistro”. O que agora significa: um “onde” em cujas quadras e aléias o misterioso brilha explicitamente, e a essência do Ser vem à presença em um sentido eminente. (Heidegger, 1969b, p. 117)
Que o lugar deva aparecer dessa forma como “sinistro” deve indicar quão distante Heidegger está de ver o lugar como algo meramente “dado”, que já está seguro e determinado. De fato, na “Carta sobre o Humanismo” de 1947, comentando sobre um desses ensaios anteriores, Heidegger escreve:
Na preleção sobre a elegia “Retorno” [“Homecoming”] de Hölderlin (1943) [a]... proximidade “do” ser, que é o Aí do ser–aí... é chamada a “pátria”. A palavra é, aqui, pensada em um sentido essencial, não patrioticamente ou nacionalisticamente, mas em termos de história do ser. A essência da pátria, contudo, é também mencionada com a intenção de pensar o desabrigo dos seres humanos contemporâneos da essência da história do ser... Desabrigo... consiste no abandono do entes pelo ser. Desabrigo é o sintoma do esquecimento do ser. (Heidegger, 1998, pp. 257–258)19
A “Pátria” (Heimat) que é invocada aqui não é um lugar de segurança e familiaridade. Ela é o mesmo lugar ao qual Heidegger se refere na passagem das preleções sobre Parmênides como aquele “distrito sinistro”, no qual “a essência do Ser vem à presença”. E por que isso seria sinistro? – porque no vir à presença do ser não se trata do vir a ser de qualquer ser, mas antes do vir à presença da questionabilidade que pertence essencialmente ao ser. Em Heidegger, por conseguinte, o retorno nomeia a volta da questionabilidade do ser, o qual também é a questionabilidade do nosso próprio ser. é essa volta à questionabilidade que igualmente está em pauta na volta ao lugar, e é o que distingue a “geografia” de Heidegger de um subjetivismo determinista e um biologicismo tais como os de von Uexküll.
A justaposição, feita por Agamben, de Heidegger com von Uexküll e, talvez de maneira mais importante, com Ratzel e Vidal de la Blanche, resulta ser significativa por razões muito diferentes daquelas que o próprio Agamben poderia ter tido em mente. Não apenas atenta para as complexidades das ligações intelectuais que nós poderíamos traçar entre Heidegger e outros pensadores, mas também para a forma na qual o pensamento de Heidegger se liga com um número importante de elementos no pensamento geográfico que está centrado sobre noções de espaço “geográfico”, e para as complexidades que envolvem estas noções. Um dos núcleos das questões que emergem aqui não é meramente o de que a idéia de uma ligação entre ser humano e lugar é ela mesma politicamente problemática, mas apenas como essa ligação deveria ser entendida. Trata–se de um problema, como von Uexküll, Chamberlain ou Clauss o teriam, que lugar e espaço, e então também o mundo, sejam eles mesmos funções do biológico, de uma natureza humana determinada racialmente, ou por um certo tipo de alma? Ou, trata–se, antes, de que o mundo mesmo se dá no e através do lugar, e de que o lugar fornece o próprio e único quadro no interior do qual o animal e o humano podem vir a aparecer, no interior do qual eles aparecem como animal e como humano?
Esta última questão pode ser vista como nos levando de volta para o âmbito dos comentários originais de Agamben, já que eles nos fazem voltar à questão da relação entre lugar e mundo, bem como da relação entre o humano e o animal, mas eles localizam a questão do lugar e do espaço no centro dessa discussão, considerando que isso permanece relativamente periférico em Agamben. Há, de fato, boas razões para supor que não podemos começar a entender o ser do humano ou do animal, a menos que possamos primeiro direcionar a relação entre mundo e lugar. Neste caso, e ao contrário da posição desenvolvida por Agamben, a abertura não nomeia o que se encontra entre o animal e o humano; mas antes o espaço, o lugar, aberto, mas limitado, no interior do qual um encontro entre o humano e o animal é ele mesmo possível. Agamben tem suas próprias razões, é claro, para esperar mudar o conceito do aberto da forma que ele o faz, mas, ao fazê–lo, ele afasta a discussão da questão que ele também abre através das associações que ele sugere entre Heidegger, von Uexküll e a tradição geográfica que inclui Ratzel e Vidal de la Blanche.
Referências
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Endereço para correspondência
Email: Jeff.Malpas@utas.edu.au
Enviado em: 7/2/2008
Aprovado em: 7/10/2009
* Tradutores: Rommel Luz F. Barbosa (doutorando PPGFIL–UERJ/CAPES) rommel.luz@gmail.com
Taís Silva Pereira (doutoranda PPGFIL–UERJ/CAPES) pereira_tais@yahoo.com.br
1 Para uma abordagem mais detalhada do caráter topológico do pensamento de Heidegger, ver Malpas (2007).
2 Ver, por exemplo, Tuan (1977).
3 “Place and Placelessness”, de Relph é um texto particularmente influente nesta área.
4 Ver, dentre outras obras, Buttimer e Seamon (1980); também Seamon e Mugerauer (1985). Para um excelente exame de artigos recentes sobre geografia humanística ver Adams, Hoelscher (2001). Caberia enfatizar, contudo, que esta não é a única via através da qual a influência de Heidegger tem sido sentida na geografia contemporânea. Heidegger teve, é claro, um maior impacto sobre o pensamento geográfico simplesmente em virtude do enorme impacto que ele teve sobre o pensamento do século XX em geral; mas o foco específico de Heidegger sobre os conceitos de espaço e lugar também teve, somado ao efeito imediato de ensaios tais como “Bauen Wohnen Denken”, um impacto indireto significante através de seu efeito sobre pensadores centrais como Foucault e Lefebvre (ver, especialmente, Elden. “Towards a Spatial History”).
5 A tradução inglesa aparece em Heidegger (1975).
6 Ver, por exemplo, Miller. (1995a, pp. 216–254), e também Leach (1999).
7 A este respeito, os comentários na reposta de Paddock parecem ser mais fracos e certamente menos claros na ligação que eles afirmam entre Heidegger, Ratzel e o Nazismo, do que aqueles encontrados no artigo original – ver Paddock (2004b, pp. 257–258).
8 Ver, por exemplo, a discussão de Charles Bambach sobre o papel da idéia de “enraizamento” (Bodenständigkeit) e noções associadas nos escritos e discursos de Heidegger nos anos de 1930 em Bambach (2003, pp. 12–68). Bambach argumenta que a preocupação com enraizamento e autoctonia está presente em todo o pensamento de Heidegger, não apenas nos anos de 1930, e que estas noções são sempre marcadas pela lógica da exclusão.
9Ver minha discussão sobre isto em Malpas (2007, capítulo quatro).
10 Alguém poderia argumentar que uma tal leitura pode ser extraída, em parte, do argumento de Phillips (2005), embora Phillips enfoque mais sobre a idéia de “o povo” e o papel da poesia no pensamento de Heidegger neste período do que sobre o lugar como tal (ver, contudo, a discussão de Phillips (2005, pp. 169–217) sobre a “pátria sinistra” – “unheimliche Heimat”– nas pp. 169–217).
11 Ver Harrington (1999, pp. 53–54); Harrington se refere a Uexküll (1937, p. 199).
12 Minha própria opinião é que a influência está provavelmente, se existe alguma de fato, em um nível razoavelmente geral simplesmente por causa do subjetivismo neo–kantiano – o qual eu discuto mais adiante – esse é um elemento central no pensamento de Uexküll, e do qual Heidegger claramente tenta se esquivar, se não inteiramente de forma bem–sucedida, mesmo em Ser e Tempo. Heidegger e Uexküll poderiam ambos aceitar uma explicação holística na relação entre humano, ou animal, e o mundo, mas eles diferem significativamente na forma em que a relação holística é entendida (a analogia entre ‘ser–no–mundo’ e a idéia do animal em seu ‘umwelt’ é, neste caso, algo superficial, mesmo que ambos possam ser vistos como exemplificação de uma tendência holística similar). O interesse em Uexküll, que é evidente nas leituras que compõem Os Conceitos Fundamentais da Metafísica de Heidegger, parece ser em parte corroborado pelo desejo de Heidegger de conectar seu próprio pensamento com o pensamento biológico contemporâneo e, especialmente com as tendências holísticas e antimecanicistas deste pensamento, e em parte, como eu discuto mais abaixo, pelo problema que é apresentado na conferência de Uexküll do animal como tendo de qualquer modo um mundo – conferência que parece em conflito com a própria abordagem de Heidegger do animal como “pobre de mundo”.
13 Ver também os comentários em Heidegger (1979–87, p. 141).
14 Citado das notas autobiográficas não publicadas de Uexküll.
15 Extraído de Clauss (1932, pp. 30–32).
16 Para uma exploração de algumas das complexas cadeias das considerações que estão em questão aqui, em particular, mas não exclusiva, referência ao contexto australiano, ver Miller (2006), e também, ainda que de uma perspectiva diferente, Read (2000).
17 Neste ensaio Levinas escreve, por exemplo, que “A implementação na paisagem, o comprometimento com o lugar, sem o qual o universo se tornaria insignificante e existiria de modo escasso, é a verdadeira divisão da humanidade entre nativos e estrangeiros. E à luz disto a tecnologia é menos perigosa do que os espíritos de Lugar”.
18 Ver meu breve comentário sobre isto em Malpas (1999, pp. 30, n° 33).
19 Ver, uma vez mais, a discussão de James Phillip sobre esta idéia de “pátria sinistra” (“unheimliche Heimat”) em Phillips (2005, pp. 169–217).