12 1Principes de sémantique freudienneFreud e Darwin: ansiedade como sinal, uma resposta adaptativa ao perigo 
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Natureza humana

 ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.12 no.1 São Paulo  2010

 



ARTIGOS

 

Eu sou meu corpo: o conceito de eu em Freud e de self em Damásio

 

I am my body: the Freudian concept of ego and the Damasina concept of self

 

 

Flávia Sollero-de-Campos; Monah Winograd

Departamento de Psicologia, Pontifícia Universadade Católica-Rio

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

Por acreditarmos que a dupla constituição da espécie humana (social e biológica) não pode mais ser negligenciada pela fetichização de um de seus aspectos, pretendemos realizar um esforço inicial de aproximação entre as ideias produzidas pela psicanálise e pelas neurociências. Como objeto de investigação teórica, selecionamos os conceitos de Eu em Freud e de Self em Damásio para um estudo comparativo, em função das ressonâncias que apresentam, particularmente no que se refere ao lugar do corpo na sua constituição. Estamos certas de que as ressonâncias e as dissonâncias encontradas podem servir de inspiração para o enriquecimento teórico de ambos os campos de pesquisa, guardadas as suas especificidades epistemológicas.

Palavras-chave: ego, self, psicanálise, neurociência.


Abstract

Because we believe that dual constitution of the human species (social and biological) can no longer be neglected by the fetishization of one of its aspects, we plan to achieve an initial effort for rapprochement between the ideas produced by psychoanalysis and the neurosciences. As object of theoretical research, we selected the concept of Ego in Freud's work and of Self in Damasio's theory for a comparative study, according to the resonances that they have, particularly with regard to the place of the body in its constitution. We are certain that the echoes and the discrepancies found may serve as inspiration for the enrichment of both theoretical research fields, saved their specificities epistemological.

Key-words: ego, self, Psychoanalysis, neurosciences.


 

 

Em seu artigo sobre o sujeito cerebral, Alain Ehrenberg (2004) adverte sobre a instalação de um novo contexto: hoje, o sofrimento psíquico e a saúde mental se tornaram pontos de referência do individualismo, oferecendo uma linguagem que permite exprimir as tensões sociais que acompanham o regime normativo no qual nos encontramos. Nesse contexto, as neurociências (NC) se oferecem como o discurso que traz uma abordagem científica, tecnológica e médica para os males psíquicos da subjetividade contemporânea. Mas, ainda segundo Ehrenberg (2004), é preciso distinguir um programa forte e um programa fraco das NC. O programa forte produz uma identificação, do ponto de vista filosófico, entre conhecimento do cérebro e conhecimento do psiquismo e, clinicamente, pretende fundir neurologia e psicopatologia, tratando as afecções psíquicas exclusivamente do ponto de vista neurológico. Os males subjetivos não seriam mais do que males neurológicos e assim devem ser abordados. Em última instância, pretende-se produzir uma biologia do espírito ou uma neurobiologia do indivíduo.

Do outro lado, o programa fraco objetiva avançar no tratamento de doenças neurológicas (tais como Parkinson, Alzheimer etc.) e descobrir os aspectos neuropatológicos em jogo em doenças mentais como a esquizofrenia ou como as citadas anteriormente, mas sem as pretensões reducionistas do programa forte. Assim, ao mesmo tempo em que as pesquisas realizadas pelo programa fraco das NC não desqualificam os conhecimentos produzidos por áreas como a psicologia, a psicanálise, a sociologia etc., elas lembram aos psicanalistas que, dentre os diversos saberes necessários para o entendimento dos males subjetivos contemporâneos, também merecem atenção os que se referem ao funcionamento neurobiológico: "se as neurociências têm a tendência de fetichizar o cérebro, as ciências sociais fazem o mesmo com esta entidade mágica que é o self (íntimo, social, objetivo, farmacológico, etc.)" (Ehrenberg, 2004, p. 133).

Neste artigo, não se trata de aprofundar o entendimento dos males subjetivos atuais. Por acreditarmos que a dupla constituição da espécie humana (social e biológica) não pode mais ser negligenciada pela fetichização de um de seus aspectos, pretendemos realizar um esforço inicial de aproximação entre as ideias produzidas pela psicanálise e pelas NC. Como objeto de investigação teórica, selecionamos os conceitos de Eu em Freud e de Self em Damásio para um estudo comparativo, em função das ressonâncias que apresentam, particularmente no que se refere ao lugar do corpo na sua constituição. Estamos certas de que as ressonâncias e as dissonâncias encontradas podem servir de inspiração para o enriquecimento teórico de ambos os campos de pesquisa, guardadas as suas especificidades epistemológicas.

Segundo Gilles Deleuze e Félix Guattari (1992), nenhum conceito é simples. Ou seja, todo conceito é formado por componentes que o definem e que se tornam inseparáveis nele. São distintos, diversos, mas não podem ser separados, pois se recobrem parcialmente em suas bordas como numa pintura impressionista. São essas indistinções parciais nas zonas de vizinhança entre os componentes - os pontos de juntura, segundo Deleuze e Guattari - que definem a consistência interna de um conceito, sua endoconsistência. Mas, um conceito tem também uma exoconsistência, derivada da sua relação com os outros conceitos do mesmo plano: são as pontes que articulam uns aos outros.

No caso do conceito de Eu em psicanálise, sua endoconsistência deriva da relação profunda entre, pelo menos, os seguintes componentes: Eu-real, Eu-prazer, Eu ideal, ideal de Eu e Eu-corporal. Já sua exoconsistência refere-se às pontes entre Eu e Isso, Eu e Supereu, Eu e Pré-consciente/Consciente, Eu e Inconsciente, para citar somente as mais evidentes. Tais pontes são o que confere a um conceito seu sentido, pois, tal como na definição saussuriana de signo (Saussure, 1916/1995), para significar, um conceito não pode ser nem estar isolado. Assim, abordar o Eu em Freud implica necessariamente operar com as pontes que ele supõee, eventualmente, atravessá-la. Por outro lado, embora saibamos da inseparabilidade entre os componentes do conceito de Eu, gostaríamos de aprofundar particularmente um deles - o Eu-corporal -, deixando os outros em suspenso, embora estejam necessariamente ativos.

Já o conceito de Self em Damásio apresenta os seguintes componentes: self neural ou protosself, self central e self autobiográfico. Tais elementos encontram nas noções de consciência central e de consciência ampliada sua costura, já que são essas noções que permitem a passagem de um elemento ao outro. Dentre eles, destacamos o protosself e o self central como consonantes com o Eu-corporal proposto por Freud.

 

1. As origens do conceito de Eu em Freud: breve panorama

Na medida em que existem, na teoria freudiana, duas teorias tópicas do aparato psíquico, é corrente admitir-se que a noção de Eu só ganha realmente consistência e estatuto de conceito psicanalítico após a virada de 1920. Contudo, ainda assim, ela esteve presente desde o início, tendo sido constantemente renovada por sucessivas contribuições (a introdução do conceito de narcisismo, o destaque da noção de identificação etc.).

Nos anos 1890-1900, a experiência clínica das neuroses levou Freud a transformar a concepção tradicional de Eu como unificado, permanente e identificado à personalidade e à consciência. Com efeito, nos anos 1880, a psicopatologia já operava o desmantelamento da noção de um Eu uno, através do estudo das alterações e desdobramentos da personalidade, realizado, por exemplo, por Pierre Janet (1899). Janet afirmava que, na histeria, ocorria a formação de dois grupos de fenômenos: um constitutivo da personalidade comum e, outro, suscetível de se subdividir, referente a uma personalidade diferente da primeira e por ela ignorado. A interpretação freudiana desse fenômeno consistiu em entendê lo como a expressão de um conflito psíquico. O Eu, como "massa de representações" (Freud, 1893-1895/1994, p. 133), seria ameaçado por representações inconciliáveis com ele: o resultado seria uma defesa contra tal ameaça.

No último capítulo dos "Estudos sobre a histeria" (1893-1895/ 1994), dedicado à psicoterapia da histeria, Freud se refere ao "euconsciência" (Ich-Bewusstsein) (Freud, 1893-1895/1994, p. 196), descrevendo-o como um desfiladeiro que só permite a passagem de uma recordação patogênica de cada vez, podendo ser bloqueada enquanto o trabalho de elaboração não tiver vencido as resistências. Nesse momento, Eu e consciência ainda aparecem intimamente vinculados, embora o primeiro fosse mais amplo do que a segunda, designando um verdadeiro domínio psíquico (rapidamente assimilado ao sistema Pré-consciente/ Consciente). Além disso, as resistências do paciente são entendidas como provenientes do Eu, emanando do núcleo patogênico inconsciente que nele se infiltra. Nota-se que, apesar da assiilação entre Eu e consciência, a fronteira entre o primeiro e o inconsciente é frouxa, suscitando uma questão que Freud tentará resolver posteriormente, tanto apontando para uma resistência proveniente do Isso, quanto recorrendo à noção de um Eu inconsciente.

Seja como for, é para explicar metapsicologicamente como o Eu opera seu papel de operador das defesas que Freud se lança na tentativa de entender sua origem. Trata-se do célebre "Projeto para uma psicologia científica" (1895/1994), no qual a função do Eu é descrita como essencialmente inibidora, travando a passagem do fluxo de excitação quando este vier acompanhado de sofrimento. O modelo de aparato psíquico desenhado por Freud nesse momento não é psíquico, mas neurônico, ou seja, é composto por três sistemas de neurônios:, ψ e ω. No sistema ψ, há um grupo de neurônios constantemente investido que Freud define como Eu (Ich) e que, mesmo caracterizado pela totalidade dos investimentos em ψ, é mais do que a soma de tais investimentos.

Freud faz referência a uma organização em ψ cuja função é inibir a descarga de energia na ausência do objeto e é caracterizada por vários elementos: facilitação dos trilhamentos internos a essa organização, investimento constante por uma energia endógena e distinção entre uma parte permanente e outra variável. A permanência no Eu de um nível de investimento necessariamente constante (sua parte permanente) permitelhe inibir os processos primários, não apenas os que levam à alucinação, mas também os que provocariam desprazer.

Para responder à pergunta sobre como surge o Eu, Garcia-Roza (1991), em sua introdução à metapsicologia freudiana, sugere que, em um primeiro momento de indiferenciação original - mítico, por excelência -, teria ocorrido a experiência primária de satisfação acompanhada de prazer. Trata-se do prazer de órgão, e não do Princípio do Prazer, que somente surgirá através do processo de ligação (Bindung). A ligação consiste na contenção do livre escoamento das excitações, na passagem do estado de dispersão das excitações para o estado de integração, através dos trilhamentos (Bahnung) e dos investimentos colaterais (Seitenbesetzung). Quando a excitação atinge um neurônio, ela tende a distribuir-se através do que Freud chamou de barreiras de contato (os pontos de ligação entre os neurônios que atualmente designamos por sinapses), que oferecem menor resistência, em direção à descarga motora. É a energia livre. Porém, se ocorre o investimento simultâneo em um neurônio vizinho, pela simultaneidade do investimento e pela proximidade entre os neurônios, cria-se uma espécie de rede neural que altera o curso do investimento. É a energia ligada através do investimento colateral. Tais ligações vão constituir um primeiro esboço de organização que Freud chamou de Eu.

Garcia-Roza (1991) se refere a essas primeiras ligações como sínteses passivas, pois elas apenas impedem ou limitam o livre escoamento das excitações. Apenas em um segundo momento, elas se tornam sínteses ativas através das repetições dos trilhamentos que, embora sejam repetições, sempre apresentam diferenças relativamente ao percurso queestá sendo repetido. Assim, as repetições diferenciais ou as sínteses ativas vão ocorrer sobre excitações que já foram acompanhadas de prazer ou de dor. O Eu, como organização neural, é justamente o responsável pela repetição de experiências anteriores de satisfação (prazer) ou pela inibição da descarga (dor).

Porém, Garcia-Roza (1991) também explica que são momentos e lugares diferentes do sistema ψque correspondem ao Eu resultante das sínteses passivas (primeiras ligações) e ao Eu resultante das sínteses ativas (repetições). Freud subdivide o sistema ψem dois: ψnúcleo e ψpallium. Inicialmente, o Eu consiste no conjunto dos investimentos dos neurônios no sistema ψnúcleo e que se esforça em descarregar as excitações através de alterações internas. Ou seja, o caminho em direção ao alívio motor produz apenas modificações internas, como o choro do bebê, a agitação motora etc. Como o mundo externo não foi alterado desse modo, o resultado é que o alívio da tensão não ocorre realmente, pois a estimulação endógena persiste, uma vez que não foi oferecido o objeto adequado para fazer cessar o estado de necessidade na fonte corporal.

Esse Eu originário corresponde ao que, em 1915 (Freud, 1915/ 1994), chamará de Eu-real (real-Ich). Somente depois, o Eu se amplia e passa a exercer a função de inibição, através dos signos de qualidade enviados por outro sistema neurônico, o sistema ω, que lhe permitirão distinguir a lembrança (imagem do objeto de satisfação) da percepção (presença real do objeto de satisfação). A partir daí, esse Eu ampliado passa a abranger também o sistema ψ pallium e a ter uma função reguladora do sistema ψ como um todo, permitindo os processos secundários.

Essa posição de regulação interna e de mediação entre o aparato e a realidade, distinguindo memória de percepção, são elementos que, apesar do deslizamento da linguagem neurológica para a psicológica, Freud manterá como centrais em sua concepção de Eu. Também permanecerá importante a ideia de que o Eu se forma como uma organização que integra sínteses passivas (inscrições de sensações corporais de prazer ou de dor) e sínteses ativas (repetições diferenciais e inibições).

Os anos subsequentes a tais formulações iniciais (1900-1915), em vez de esclarecê-las, foram marcados por hesitações e reviravoltas. Laplanche & Pontalis (1986) destacam alguns aspectos importantes. Com a elaboração da 1ª tópica - o famoso esquema pente, formado pelos sistemas de memória Inconsciente e Pré-consciente/Consciente -, o Eu será praticamente absorvido pelo sistema Pré-consciente/Consciente, sobretudo no que se refere à percepção e à motilidade. Também será acentuado seu papel de representante das normas da realidade relativamente às pulsões sexuais: no conflito psíquico, é o Eu a instância que se opõe ao desejo (Freud, 1900/1994). Essa oposição assume a forma de uma luta entre duas forças: pulsões sexuais versus pulsões do eu ou de autoconservação (Freud, 1909/

994). Nota-se que, ao lado da representação das normas sociais, é atribuída explicitamente ao Eu a função de conservação da vida do indivíduo através da busca da satisfação das necessidades corporais básicas, como a fome.

Contudo, em 1914, uma nova concepção emerge, dando profunda complexidade à questão: o Eu também é objeto de amor (Freud, 1914/1994). Tal concepção marcará o momento seguinte da teorização freudiana, produzindo uma verdadeira reviravolta pela elaboração de três noções interligadas: o narcisismo primário (estruturante) e secundário (defesa), a identificação como constitutiva do Eu e a diferenciação de componentes ideais internamente ao Eu.

Especificamente no que se refere à introdução do conceito de narcisismo em 1914 (Freud, 1914/1994), observa-se a ocorrência de enriquecimentos profundos da noção de Eu. Agora definido como uma unidade relativamente à anarquia e fragmentação das pulsões sexuais (características do autoerotismo), o Eu não está presente desde o início e nem se consolida através de uma diferenciação progressiva. Freud se refere a "(...) uma nova ação psíquica" (Freud, 1914/1994, p. 74) necessária para a sua constituição. Essa ação psíquica estaria possivelmente ligada ao momento em que o Eu se oferece como objeto de amor para asexualidade, assim como um objeto exterior. Daí Freud ser levado a propor a sequência autoerotismo, narcisismo primário, escolha de objeto. Daí também a imagem de "(...) um investimento libidinal originário do eu, cedido depois aos objetos" (Freud, 1914/1994, p. 73), mas que, no fundo, persiste e é para onde os investimentos podem ser novamente reconduzidos. Ou seja, o Eu não é apenas um lugar de passagem da libido, mas o lugar de uma estase permanente desta. E mais: o Eu se constitui por uma carga libidinal que deve estar permanentemente investida nele para que ele seja esta ameba com seus pseudópodos (Freud, 1914/1994, p. 73) que Freud descreve.

Nesse mesmo período, a análise dos processos em jogo na melancolia também participa das mudanças radicais na noção de Eu (Freud, 1917/1994). A identificação com o objeto perdido, manifesta no melancólico, revela uma divisão interna ao Eu e exige que este já não seja pensado como uma unidade no interior do psiquismo. Certas partes podem separar-se por clivagem, compondo uma instância crítica ou moral: uma parte do Eu opõe-se à outra, julgando-a criticamente e tomando-a como objeto. Essa diferenciação, já esboçada no texto sobre o narcisismo, constitui a primeira versão do que se tornarão os ideais com relação aos quais o Eu será medido (ideal de Eu, Eu ideal e, posteriormente, Supereu). Com isso, o vínculo estreito entre Eu e Pré-consciente/Consciente é inexoravelmente desfeito.

Poucos anos depois, em 1920, uma mudança no modelo de aparelho psíquico consolida as reorientações sofridas pelo conceito de Eu ao longo dos últimos anos. A 2ª tópica faz do Eu uma instância, entre outros motivos, pela necessidade de um melhor ajustamento às modalidades do conflito psíquico. Se a 1ª tópica tinha como referência principal os diferentes tipos de funcionamento mental - processo primário e processo secundário -, a nova tópica põe em relevo as partes intervenientes no conflito: o Eu como agente da defesa, o Supereu como sistema de interdições, e o Isso como polo pulsional. Os limites e ascaracterísticas da tópica anterior - Inconsciente, Pré-consciente/Consciente - são, agora, reagrupados nas novas instâncias. Especificamente a instância do Eu passa a reunir funções e processos que, antes, se repartiam nos diversos sistemas. A consciência - que no "Projeto" constituía um sistema autônomo (o sistema ω) e, em 1900, foi ligada ao sistema Pré-consciente - é, agora, atributo de um Eu que também engloba as funções do Préconsciente. Apesar disso, o Eu passa a ser pensado como majoritariamente inconsciente, como atestam as resistências inconscientes encontradas na clínica (Freud, 1923/1994).

Porém, esse alargamento da noção de Eu trouxe também outras implicações, como a atribuição de funções diversas que ressaltam sua não redução a ser apenas um dos polos envolvidos no conflito psíquico. Agora, além das funções de preterição, racionalização e defesa compulsiva contra as reivindicações pulsionais, ao Eu são atribuídas funções motoras e cognitivas, tais como controle da motilidade e da percepção, prova de realidade, antecipação, ordenação temporal dos processos mentais, pensamento racional etc. Se reunirmos todas essas funções em grupos antinômicos, veremos a situação destinada ao Eu com relação às outras instâncias e à realidade: ao Eu cabe o papel de mediador que deve levar em conta exigências contraditórias do mundo e do Isso.

 

2. O mais aquém da representação: a base do Eu

Além de alargar a noção de Eu, a proposta da 2ª tópica e, com ela, a do conceito de Isso, permitiu avançar para além do inconsciente composto por representações e recalcado, que passaria pela linguagem e seria passível de interpretação. Ao conceituar a instância do Isso, Freud apresentou a possibilidade (assinalada na clínica) de existirem experiências que não teriam recebido inscrição representacional e que, portanto, estariam fora de um inconsciente recalcado. Estar-se-ia, aqui, aquém dosprocessos linguísticos, no domínio do que pode ser chamado de impressões psíquicas. Não foi à toa que, na última representação gráfica do modelo de aparato psíquico, Freud o deixou aberto em suas extremidades: a borda perceptiva se abre para a exterioridade e, na outra borda, o Isso é aberto para o corpo. Com efeito, como veremos a seguir, é mesmo do corpo que o psiquismo emerge como um de seus modos de expressão. Se considerarmos que tal emergência não se dá de uma vez por todas, mas se renova incessantemente a cada instante, então, a abertura do Isso para o corpo é menos uma abertura e mais um enraizamento.

Para Freud, o psiquismo começa a se constituir a partir das primeiras sensações corporais associadas a quotas de afeto prazerosas ou desprazerosas que deixarão impressões psíquicas. Na famosa "Carta 52" (1896/1994), o metapsicólogo supõe a ocorrência de três níveis de inscrição (Niederschrift) básicos para a organização do aparelho psíquico:

1) O primeiro registro é o dos signos de percepção (Wahrnehmungzeichen constituídos pelas impressões psíquicas decorrentes da percepção (Wahrnehmungen), associados por simultaneidade e inteiramente inacessíveis à consciência.

2) O segundo registro é o da inconsciência (Unbewusstsein), composto por traços mnêmicos organizados, não mais por simultaneidade, mas, possivelmente, também por causalidade.

3) O terceiro registro é a pré-consciência (Vorbewusstsein), ligado à representação-palavra.1Esse registro corresponderia ao nosso Eu oficial, ou seja, ao que posteriormente comporá a instância euoica.

Vê-se com clareza, ainda que formulado de forma rudimentar, a suposição da inscrição de algo aquém da representação e que é a base sobre a qual o Eu se forma pela retranscrição de um registro para o outro. Ora, como o próprio Freud ensinou (1896/1994), não se deve supor que, ao se passar de um registro ao outro, a inscrição anterior desapareça. Ao contrário, os três níveis de registro coexistiriam e, do mesmo modo que nem tudo o que está no inconsciente chega necessariamente à consciência, nem tudo o que se encontra em um desses registros passará ao seguinte.

Em 1900, no capítulo VII da "Interpretação dos sonhos" (Freud, 1900/1994), retomando o tema das inscrições psíquicas, Freud desenvolve a ideia de que as primeiras representações seriam compostas por traços mnêmicos das sensações de prazer e desprazer associadas às sensações corporais. A tendência à descarga automática dessas sensações corporais diminuiria na medida em que aumentassem as representações disponíveis. Ou seja, através da possibilidade crescente de associações por contiguidade e simultaneidade, essas representações fariam a passagem gradual do processo primário, característico dos processos inconscientes, para o processo secundário, próprio ao Eu. Aqui, é possível uma aproximação com a "Carta 52": do registro dos signos de percepção para o registro seguinte, ainda inconsciente, e daí para o terceiro registro das marcas de consciência. Sabemos que o acesso à consciência, isto é, ao pleno funcionamento do processo secundário, somente é possível quando, ao pensamento inconsciente, se associam signos linguísticos. Existiria, assim, um processo secundário inconsciente que, em 1915, Freud chamou de Eu inconsciente.

O que as pontuações anteriores fazem ver é a constatação da existência de um núcleo inconsciente no Eu tão importante teoricamente quanto o recalcado ou, em outras palavras, uma gradação (Andrade, 2003) que, de um lado, aponta para sua imersão no Isso e, de outro lado, conduz à constituição do Supereu - também inconsciente e resultante da internalização da Lei.

 

3. O Eu-corporal: duas leituras

Dentre as formulações sobre o Eu da 2ª tópica, encontra-se a noção de Eu-corporal à qual Freud dedicou poucas palavras e que é recorrentemente citada em estudos sobre a questão do corpo em psicanálise. Tal noção de um Eu-corporal permite, pelo menos, duas leituras possíveis.

A primeira se refere ao fato de que, da superfície do corpo, originam-se as sensações tanto exógenas quanto endógenas. Na 2a seção do "O eu e o isso", é atribuído à consciência o lugar de superfície, ou melhor, a consciência é definida como função de um sistema que, espacialmente e partindo do mundo exterior, é o primeiro. Freud especifica: espacialmente não apenas no sentido da função, mas também no sentido do recorte anatômico (Freud, 1923/1994). Após essa descrição da consciência como interface, vem a articulação da casca e do núcleo para designar o Eu como o envoltório psíquico. Tal envoltório não tem somente a função de continente, mas desempenha o papel ativo de pôr o psiquismo em contato com o mundo exterior e de recolher e transmitir informação (Anzieu, 1995). Freud (1923/1994) descreve o Eu como um disco germinal assentado sobre o ovo, envolvendo-o, mas não separado de modo taxativo, já que conflui pra baixo em sua direção.

Eu sou meu corpo: o conceito de eu em Freud e de self em Damásio Natureza Humana 12(1): 133-162, jan.-jun. 2010 3. O Eu-corporal: duas leituras Dentre as formulações sobre o Eu da 2ª tópica, encontra-se a noção de Eu-corporal à qual Freud dedicou poucas palavras e que é recorrentemente citada em estudos sobre a questão do corpo em psicanálise. Tal noção de um Eu-corporal permite, pelo menos, duas leituras possíveis. A primeira se refere ao fato de que, da superfície do corpo, originam-se as sensações tanto exógenas quanto endógenas. Na 2a seção do "O eu e o isso", é atribuído à consciência o lugar de superfície, ou melhor, a consciência é definida como função de um sistema que, espacialmente e partindo do mundo exterior, é o primeiro. Freud especifica: espacialmente não apenas no sentido da função, mas também no sentido do recorte anatômico (Freud, 1923/1994). Após essa descrição da consciência como interface, vem a articulação da casca e do núcleo para designar o Eu como o envoltório psíquico. Tal envoltório não tem somente a função de continente, mas desempenha o papel ativo de pôr o psiquismo em contato com o mundo exterior e de recolher e transmitir informação (Anzieu, 1995). Freud (1923/1994) descreve o Eu como um disco germinal assentado sobre o ovo, envolvendo-o, mas não separado de modo taxativo, já que conflui pra baixo em sua direção. A descrição de como o Eu se funde com o Isso, aliada à abertura na base do Isso (em direção ao corpo) desenhada em 1932 (Freud, 1932/ 1994), nos lembram de um dos princípios fundamentais da psicanálise, qual seja, o de que tudo o que é psíquico está em constante referência à experiência corporal. Assim, ao pretender dar conta do modo como o Eu se destaca do Isso, Freud precisa que esse envoltório psíquico emerja apoiado no envoltório corporal. A experiência do tocar é explicitamente citada e a referência à superfície corporal remete à pele. Freud nos diz que, paralelamente à influência do sistema percepção-consciência, o corpo próprio desempenha papel essencial, principalmente, sua superfície, como"um lugar do qual pode partir simultaneamente percepções internas e externas. É visto como um outro objeto, mas proporciona ao tato duas classes de sensações, uma das quais pode equivaler a uma percepção interna" (Freud, 1923/1994, p. 27). Daí a afirmação de que o Eu é fundamentalmente uma "essência-corpo; não é só uma essência-superfície, mas, ele mesmo é a projeção mental de uma superfície" (Freud, 1923/ 1994, p. 27).

Com base em afirmações como essas, Anzieu (1995) propôs o conceito de Eu-pele, correspondendo ao Eu em seu estado original. Para esse autor, o registro tátil possui uma característica distintiva relativamente a todos os outros registros sensoriais que o situa tanto na origem do psiquismo como lhe permite fornecer permanentemente para o psíquico uma espécie de fundo mental, uma tela de fundo sobre a qual os conteúdos psíquicos se inscrevem como figuras ou, ainda, o envoltório-continente que permite ao aparelho psíquico abrigar conteúdos. Anzieu (1995) vai além e afirma que o desdobramento inerente às sensações táteis - a percepção simultânea que o tato oferece de um externo e de um interno - prepara o desdobramento reflexivo do Eu consciente apoiado sobre a experiência tátil. Segundo a sistematização realizada pelo autor (Anzieu, 1995):

1) O Eu apresenta uma estrutura dupla: a camada superficial funciona como paraexcitação, filtrando o que chega do mundo externo; a camada abaixo se dedica à recepção sensorial das excitações exógenas e à inscrição inicial de seus traços.

2) Internamente, o Eu apresenta uma diferenciação entre a percepção (consciente) como superfície vigilante e sensível, mas incapaz de conservar registros do que nela ocorre, e a memória (pré-consciente) que registra e conserva as inscrições.

3) O Eu é investido endogenamente (pulsionalmente) pelo Isso: tal investimento periódico ilumina e acende a consciência, fornecendo, por sua descontinuidade, uma representação primária do tempo.

Assoun (1993) destaca que tal analogia corporal atua em dois planos distintos: o corpo intervém na gênese do Eu e o Eu é estruturado como um corpo, ao mesmo tempo limite e extensão. Desempenhando fundamentalmente um papel relacional, o Eu opera a relação entre o fora e o dentro e é desse modo que uma autorrepresentação se constitui por um efeito projetivo, mais do que reflexivo. Por isso, Assoun (1993) sublinha ser o Eu, em Freud, menos a aparelhagem mental do corpo do que a subjetivação da superfície corporal. Trocando em miúdos, o Eu é menos produto de uma experiência corporal do que o evento da emergência do corpo como próprio.

E mais: definido como uma diferenciação no Isso pelo contato com o mundo externo, o Eu se constitui gradativamente a partir de registros das sensações de prazer e desprazer ligadas às sensações corporais. Vimos que tais registros de sensações não receberão necessariamente uma inscrição como representação, podendo permanecer como signos de percepção. Portanto, a afirmação de que a maior parte do Eu é inconsciente se refere não somente às representações inconscientes que o compõem, mas também a esses signos de percepção aquém do registro representacional. Talvez, por isso, Freud afirme a precedência dos resíduos auditivos e a importância dos resíduos mnêmicos visuais (coisas percebidas visualmente) na construção de um pensar figurativo, mais próximo dos processos inconscientes e anterior ao pensar em palavras.

Quanto à segunda leitura possível do Eu-corporal, ela deriva da ideia de que o Eu se diferencia pelo contato do Isso com a exterioridade. Trata-se do entendimento do Eu como uma espécie de amálgama entre o que o indivíduo traz à vida e o que a vida lhe traz, entre o biológico e o cultural. Em 1937, Freud apresenta a ideia de que o Eu traria tendências inatas em função de sua indiferenciação original relativamente ao Isso, a serem atualizadas ou não a partir do encontro com o ambiente: "(...) mesmo antes de o ego surgir, as linhas de desenvolvimento, tendências e reações que posteriormente apresentará já estão estabelecidas para ele"(Freud, 1937/1994, p. 275). A relação do Eu com a hereditariedade é expressa em ainda outra passagem na qual é reconhecido que: "[...] as propriedades do ego com que nos defrontamos sob a forma de resistências podem ser tanto determinadas pela hereditariedade quanto adquiridas em lutas defensivas [...]" (Freud, 1937/1994, p. 275).

Mas, se o Eu se diferencia do Isso pelo contato com o ambiente, em seu interior se forma um precipitado, o Supereu. Este se forma pela internalização da figura parental, que passará a representar, para o Eu, a lei da qual os pais foram veículo durante a infância. Assim como as tendências herdadas, a aquisição cultural exerce forte pressão sobre o Eu, o qual seria, então, uma espécie de composto que abarcaria a ação dos polos biológico e cultural (Andrade, 2003), tornando-os verdadeiramente indiscerníveis.

Composto a partir de sensações corporais não necessariamente inscritas em representações, constituído em sua origem como a projeção mental da superfície corporal e tematizado com base em sua dupla determinação biológica e cultural, o Eu em Freud está enraizado no corpo, ou melhor, dele emerge gradativamente uma projeção mental em diversos níveis: 1) sensações provenientes do corpo, 2) organização dessas sensações como a imagem mental da superfície corporal e, finalmente, 3) conjunto de representações psíquicas mais ou menos estáveis, através das quais o sujeito regula sua relação consigo mesmo e com o mundo. Acreditamos serem esses os pontos principais que permitem, se não uma aproximação, ao menos uma consonância entre os conceitos de Eu em Freud e de self em Damasio.

 

4. O corpo como referência de base: o protosself ou self neural

Em seus livros, António Damasio faz referências constantes, embora dispersas, à obra de Freud e a seu pioneirismo (2000, 2004, 2006). Tal admiração explícita abre espaço para investigarmos não apenas o uso que elefaz do termo "inconsciente", mas, sobretudo, se a definição de self 2 que ele propõe encontra ressonância no conceito de Eu freudiano, tal como exposto anteriormente.

Damasio (2000) explica que o self que nos é mais familiar - e sobre o qual versam os pesquisadores, psicólogos e filósofos - é também o mais sofisticado e mais complexo, apresentando-se como já linguístico e característico exclusivamente do cérebro humano. Trata-se do que Damasio denomina de self autobiográfico, entretecido por uma "tradução verbal irrefreável" (2000, p. 239) que é própria da "natureza do ser humano" (2000, p. 239). Essa marca estaria na origem da concepção mais corrente da consciência como eminentemente linguística e, portanto, humana.

Porém, essa concepção é considerada pelo autor como o ápice da complexidade do tema, sendo preciso iniciar seu estudo pelo que seria menos complexo, a saber, as bases da produção da consciência, ou, nos termos de Damasio, a implementação do self neural ou protosself a partir do mapeamento, a todo instante, dos sinais do corpo. Para um melhor entendimento das propostas desse autor, é preciso então começar por seuprimeiro livro, "O erro de Descartes" (1995), no qual ele desenvolve sua hipótese do marcador-somático3 ou, em resumo, a concepção de que as emoções e os sentimentos são, se não a base, pelo menos parte constitutiva e fundamental para o funcionamento da razão e para a tomada de decisões. Dito de outro modo, o corpo e os sinais corporais relativos às emoções são referência básica para o entendimento do que seria a mente. Para defender essa ideia, Damasio (1995) utiliza vários exemplos de indivíduos que, por força de lesões sofridas em determinadas regiões cerebrais, não só mudam suas características de personalidade, como também perdem a capacidade de tomar decisões, das mais simples às mais complexas. O espantoso é que, embora suas capacidades intelectuais tais como atenção, percepção, memória, linguagem estejam preservadas, esses indivíduos não conseguem utilizá-las adequadamente. E, mais grave, os prejuízos à maquinaria das suas decisões afetam suas capacidades de sociabilidade: tornam-se frios, distantes, sem ressonância emocional diante de situações que afetariam profundamente indivíduos sem tais lesões.4

O que o autor pretende demonstrar com isso é a relação estrutural entre a perda da capacidade de tomada de decisão e uma diminuição apreciável das emoções e dos sentimentos. A emoção - derivada do modo como o corpo é afetado e reage ao ambiente e ao que se passa nele mesmo - é, na proposta de Damasio, fundamental ao pleno funcionamento da racionalidade. A ideia que rege sua argumentação é simples: o corpo é referência fundamental para o entendimento do que são o sentimento e a experiência de si que Freud chama de eu e que o neurocientista chama de self, guardadas as devidas diferenças entre os dois.

Para o neurocientista (Damasio, 1995), se a mente resulta do funcionamento sincronizado das várias regiões cerebrais, ela também depende da interação entre o cérebro e o corpo do qual o cérebro é parte. Inúmeros circuitos bioquímicos e neurais os ligam (cérebro e resto do corpo), reciprocamente, e os transformam no que seria o organismo: uma totalidade integrada estrutural e funcionalmente em relação constante com o ambiente. Aqui, Damasio (1995) reafirma sua defesa da concepção evolucionária ao afirmar que não podemos separar organismo e ambiente, pois funcionam de maneira integrada com a finalidade precípua da sobrevivência do organismo. Mas, se existem referências biológicas predefinidas no decorrer do processo de evolução da espécie que comandam as regulações fundamentais à sobrevivência do organismo, existe também um grau de plasticidade que confere ao organismo a possibilidade - maior ou menor, dependendo do tipo de organismo - de adaptar-se às pressões do ambiente. Cria-se, assim, uma relação dinâmica entre as experiências individuais e as circunstâncias do ambiente, no contexto dos constrangimentos biológicos inatos que demarcam os parâmetros de sobrevivência do organismo. Tais constrangimentos envolvem a circuitaria neural mais antiga do cérebro - tronco cerebral e sistema límbico -, responsável pela regulação biológica mantenedora da vida.

No caso dos seres humanos, a complexidade da relação entre esses fatores cresce exponencialmente, tanto mais não seja pelacomplexidade da própria estrutura cerebral constituída no seu processo evolucionário. Porém, a experiência humana é adquirida no contexto de suas predefinições biológicas, as quais não podem ser desrespeitadas, sob pena do rompimento da homeostasia5 do organismo que pode levá-lo à morte.6 O neurocientista considera essa homeostasia "a chave para a biologia da consciência" (2000, p. 60). Ela é, basicamente, o conjunto dos processos fisiológicos - em geral não conscientes - fundamentais para a manutenção de estados internos estáveis dentro do organismo. A novidade é que Damasio inclui as emoções e os sentimentos, compondo o que ele denomina "leverage/alavancagem para a sobrevivência" (1995, p. 265). Dito de outro modo, a estabilidade relativa do estado interno do corpo é, assim, mantida por esse conjunto de estruturas e processos cerebrais não conscientes que funcionam de maneira sincronizada e que são responsáveis pela manutenção dos parâmetros biológicos que garantem a sustentação da vida.

Esse conjunto de processos constrói o que Damasio (1995) chama de representações primordiais do corpo em ação, ou seja, representações continuamente atualizadas do estado do corpo. Nesses estados sucessivos do organismo, neuralmente representados a cada momento em múltiplos mapas conectados, estaria ancorado o que os neurocientistas chamam de protosself ou self neural. O protosself emerge, portanto, do conjunto de padrões neurais estáveis que mapeia continuamente o estado do corpo em todas as suas dimensões numa espécie de métrica que serve de base a todas as outras representações. Damasio (1995 e 2000) enfatiza que o protosself não inclui a percepção, nem a consciência, nem a linguagem.

O protosself não "sabe" do organismo: ele é estruturalmente não consciente ou, se preferimos, inconsciente.7

As mudanças no protos self, causadas pela percepção de imagens, derivam continuamente do mapeamento cerebral da relação entre o organismo e o objeto8 (ou o ambiente). Porém, além do objeto gerar determinado padrão neural, os organismos mais complexos - e ainda mais os humanos - engendram, concomitantemente ao padrão neural do objeto, padrões mentais (imagens) para esse objeto. Eis como Damasio (1995 e 2000) acrescenta sua proposta de que o cérebro também faria emergir um sentido do self no ato de conhecer. Isto é, além do protos , engendrado pelo mapeamento cerebral dos estados internos do organismo e do próprio cérebro na relação constante com o ambiente, haveria também um sentimento de self inerentemente implicado em cada um dos estados mentais: há um self ao qual essas imagens pertencem ou, em outras palavras, há um self presente em cada uma das imagens engendradas.

É que, para o neurocientista, a consciência não surge já como racionalidade, mas como sentimento: a relação entre um organismo e um objeto gera imagens que não somente representam estados corporais em constante mudança, como também compõem uma emoção. Se emoções são o conjunto de reações corporais e orgânicas do organismo num dado momento, sentimentos são o resultado da percepção aqui e agora dessas mudanças na paisagem corporal, juntamente com a comparação com padrões anteriores e a valoração destes para o organismo. Noutros termos, as emoções e os sentimentos dependem de dois processos básicos: 1) a imagem de um determinado estado do corpo, justaposto ao conjunto deimagens que o desencadearam e lhe atribuíram um valor, positivo ou negativo; e 2) um determinado estilo e nível de eficiência do processo cognitivo que acompanha os acontecimentos anteriores, mas que funciona paralelamente a eles.

 

5. O self central e o self autobiográfico

Vimos como o precursor biológico do self - o self neural ou protosself - é viabilizado por um complexo sistema neural que cria uma representação de primeira ordem dos estados corporais na interação com o ambiente. Paralelamente, são gerados mapas sensoriais que representam os objetos, sejam esses objetos materiais ou imagens mentais, e cuja interação necessariamente altera o estado atual do organismo. Essa argumentação leva à afirmação de Damasio (2000) de que a base para um self consciente é o sentimento que surge quando o organismo representa um protosself inconsciente no processo de ser modificado pelos objetos. É quando ocorre um mapeamento de segunda ordem, em certas regiões cerebrais, de como o protosself foi alterado. Damasio o denomina self central, constituído por um tipo de consciência, a consciência central:

Ela é o conhecimento que se materializa quando alguém se vê diante de um objeto, construindo um padrão neural para ele e descobrindo automaticamente que a imagem do objeto agora realçada é formada de sua perspectiva, que ela lhe pertence e que é possível até mesmo atuar sobre ela. Chega-se a esse conhecimento, ou a essa descoberta, como prefiro dizer, instantaneamente: [...] existe a imagem da coisa e, logo em seguida, o senso de que essa imagem lhe pertence. (Damasio, 2000, p. 167)

O self central seria então o relato de segunda ordem, ainda não verbal, imagético, das alterações sofridas pelo corpo na interação com os objetos, sejam eles encontrados, recordados ou imaginados. Como o mundocontinuamente nos apresenta objetos que provocam transformações (mínimas que sejam) no protosself e que são captadas como sentimentos pelo self central, temos a sensação de que ele é contínuo no tempo, embora, tal como o protosself, esteja sendo refeito a todo instante. Damasio (1995 e 2000) compara essa concepção de consciência central e de self central à descrição da consciência proposta por William James: transitória, provisória, em constante transformação e, no entanto, nos dando a impressão de continuidade.

É importante ressaltar que, para Damasio (2000), cada estado corporal relacionado a um sentimento é representado nos centros somatossensoriais como uma combinação única e singular das atividades neuronais. Assim, cada um de nós possui "um mapa pessoal dos sentimentos" (2000). Quando experimentamos um sentimento, um determinado padrão de modificações corporais e de seus parâmetros fisiológicos fica gravado num conjunto de neurônios do córtex somatossensorial. Essa combinação idiossincrática e singular é memorizada inconscientemente. O registro desse "mapa" pode ser reativado a partir, por exemplo, de uma lembrança relacionada ao acontecimento que lhe deu origem.

As estruturas que sustentam o protosself e a construção da consciência central e do self central (os mapas de segunda ordem) são muito antigas em termos evolutivos e, ao mesmo tempo, fundamentais para a manutenção das seguintes funções:

[...] regulação da homeostase e sinalização da estrutura e do estado corporal, incluindo o processamento de sinais relacionados a dor, prazer e impulsos; participação nos processos de emoção e sentimento; participação nos processos de atenção; participação nos processos de vigília e sono; participação no processo de aprendizado. (Damasio, 2000, p. 346)

Assim, temos integrados os mecanismos da emoção, da atenção e da regulação dos estados corporais. E é o self central, constituído a partirdo protosself e viabilizado pela consciência central, que garante a regulação da vida, "e não [...] aquisições neurais modernas do neocórtex, aquelas que permitem a percepção refinada, a linguagem e o raciocínio superior" (2000, p. 349).

Assim como Freud, Damasio (1995) assinala ainda a importância, para ele crucial, da representação da pele para o estabelecimento da fronteira do corpo, pois esta tanto está voltada para o meio externo quanto para o meio interno do organismo. Existe um "mapa dinâmico do organismo ancorado no esquema do corpo e na delimitação do corpo" (p. 238), distribuído por várias áreas cerebrais que atuam de maneira sincronizada. Além disso, os sinais sensoriais vindos do exterior são duplos no seguinte sentido: por exemplo, quando se vê algo, sente-se também que se está vendo algo com seus próprios olhos. O mapa neural assim formado é dinâmico porque a paisagem do corpo está em constante mudança, dentro dos padrões fisiológicos da espécie.

Em termos sistemáticos, Damasio (2000) identifica quatro componentes da consciência: a consciência central, a consciência ampliada, a memória autobiográfica (o registro organizado dos principais aspectos de nossa biografia) e as disposições (registros que estão em nossa memória e que são ativados por uma experiência similar ou a ela relacionada). A consciência central é basicamente nosso senso de nós mesmos e das coisas que acontecem ao nosso redor, mas que não envolve um nível de consciência (awareness) propriamente dito. Ela é seletiva, contínua no estado de vigília, pessoal e restrita ao aqui e agora, semelhante à definição jamesiana de consciência.

Já a consciência ampliada, ancorada na consciência central e, como o nome sugere, mais ampla, nos fornece uma consciência do fato de que estamos vivos e atuando, de que nos lembramos do passado e de que podemos projetar um futuro. Então, o self (pelo qual esse panorama relativo ao passado vivido e ao futuro antevisto ou projetado) é mais robusto do que os selves neural e central: ele é autobiográfico, pois permite integrarnuma narrativa as imagens formadas a todo momento, dando a sensação de continuidade no tempo e no espaço. Se, na consciência central, o sentido do self surge no sentimento sutil e fugaz de conhecer, construído de novo a cada pulso, o self autobiográfico depende da reativação e da exibição consistentes de conjuntos selecionados de memórias autobiográficas.

 

6. Freud e Damasio: ressonâncias

Em resumo, vimos que o protosself precede o self central (a base da consciência central) e o self autobiográfico (base da consciência ampliada). Como tal, o protosself não apresenta capacidade de percepção, não "conhece" e nem "sabe que sabe": não seria ainda um sujeito, embora seja já a expressão da singularidade do corpo e do fato de que o corpo fornece a base para a emergência do self consciente e autobiográfico. Eis aqui a primeira e mais evidente ressonância entre as teorias de Freud e Damasio: assim como o neurocientista, também o metapsicólogo supunha ser o corpo a base para construção da experiência consciente de si - o eucorporal inicial totalmente inconsciente é o fundamento psíquico da organização egoica autobiográfica. Cabe observar que, para Damasio, o inconsciente psicanalítico se basearia na memória autobiográfica - na consciência ampliada, portanto. Nesse sentido, este autor entende o conceito de inconsciente psicanalítico como uma espécie de "ponta do iceberg" de todos os processos não conscientes que nos constituem.

No entanto, Damasio afirma que os três "selves", apesar de terem diferentes bases neurofisiológicas, atuam em geral de maneira integrada. E dá um exemplo interessante dessa integração numa entrevista dada em 2000, ao fazer a pergunta: o que percebe uma pessoa assentada, tomando chá, quando este lhe cai quente sobre o colo? (Concar, 2000). Essa situação exemplifica como Damasio propõe uma integração inextricável dos três registros da experiência de si: os selves se constroem em continuidade eem complementaridade uns com os outros. O self central ancora-se no protosself, que dá o sentido do organismo e o registra em tempo real, gerando uma autopercepção no aqui e agora. O self autobiográfico, por sua vez, capta e ressitua essa autopercepção numa continuidade temporal - não mais no aqui e agora, mas ligando passado, presente e futuro. Isto é, apresenta-se em sua pujança a memória do passado e a possibilidade de construir cenários futuros e de recordá-los como guia da ação. Temos aqui um sujeito com a capacidade linguística de recordar suas experiências, seus sentimentos e suas concepções a respeito de si e do mundo que o cerca, próximo, embora distinto em alguns aspectos, do sujeito egoico proposto por Freud.

O quadro comparativo a seguir pode nos auxiliar a entrever as proximidades entre o conceito de Eu nos dois autores, bem como atentar para suas diferenças:

 

Vê-se facilmente como o eu-corporal freudiano e o protosself/self central em Damasio apresentam ressonâncias, já que ambos descrevem um conjunto de representações, atualizado incessantemente, derivadas das sensações provenientes do corpo. É interessante notar que, nos dois autores, a pele ocupa um lugar importante. Para Freud, o registro tátil (e a percepção simultaneamente externa e interna que a pele permite) destaca-se dentre todos os outros registros sensoriais, já que fornece uma espécie de contorno inicial, melhor dizendo, um pano de fundo sobre o qual os conteúdos psíquicos serão inscritos. De modo semelhante, Damasio também dá destaque para a pele que, por estar voltada para o interior do organismo e para o meio exterior, é crucial para a representação da fronteira do corpo, atuando como o que permite a passagem do protosself para o self central.

Já com relação ao eu final freudiano e ao self autobiográfico damasiano, as semelhanças referem-se ao fato de que ambos supõem o uso pleno da linguagem em sua constituição e, consequentemente, a ocorrência de uma memória autobiográfica representacional. Contudo, se o self central de Damasio é inteiramente consciente, o eu final freudiano é definido como sendo, em sua maior parte, inconsciente, já que é responsável por operar as defesas.

Evidentemente, os campos teóricos freudiano e damasiano são epistemologicamente distintos, por isso não se trata aqui de propor uma composição teórica. Pretendemos apenas apontar aproximações e ressonâncias teóricas possíveis entre os campos em questão, menos para engendrar uma hibridação entre eles (o que traria impasses epistemológicos) e mais para facilitar uma interlocução, cujo objetivo é permitir a formulação de novas questões e, com isso, enriquecer os conceitos em jogo. Acreditamos que os conceitos de eu em Freud e de self em Damasio, pelas ressonâncias que apresentam, podem ser um bom começo.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: winograd@uol.com.br

 

 

Enviado em 10/01/2009 Aprovado em 13/03/2009

 

1 A representação-palavra é relativa à linguagem verbal, distinta da representaçãocoisa como a imagem sonora se distingue da imagem visual. No livro sobre as afasias (Freud, 1891/1996), a representação-coisa é descrita como um complexo aberto de imagens, enquanto a representação-palavra aparece como um complexo fechado (composto pela imagem da leitura da palavra, imagem da escrita, imagem acústica e imagem motora), que reuniria as "associações de objeto" em "complexo", constituindo a identidade da coisa.
2 Na primeira página do livro de Damasio intitulado "O mistério da consciência" (2000), uma nota do revisor assinala que o próprio autor sugeriu que se mantivesse no texto a palavra "self". Nas últimas páginas do capítulo 7 desse mesmo livro, Damasio desenvolve uma reflexão sobre como as línguas inglesa e alemã nomeiam os fenômenos da consciência diferentemente das línguas neolatinas, como o francês e o português. Estas não dispõem de palavras para diferenciar, por exemplo, consciência no sentido de estado mental, de consciência moral. Já na língua inglesa existem os termos consciousness e conscience. Também as línguas neolatinas não possuem uma tradução de self que seja mais precisa e mais adequada do que os pronomes pessoais eu e mim. A tradução portuguesa do livro manteve o pronome reflexivo "mim"/ "si", assim como o subtítulo da tradução brasileira ("Do corpo e das emoções ao conhecimento de si"). No entanto, não substituiu, tanto em "O erro de Descartes" (1995) quanto em "O mistério da consciência", o termo self. Portanto, a questão da tradução da palavra self permanece em aberto, assim como a sua substituição pelo pronome pessoal eu. Nesse contexto, torna-se ainda mais problemática a mera transposição para os termos eu ou ego, já aqui na acepção de uma das instâncias psíquicas postuladas pela Segunda Tópica psicanalítica. Por outro lado, acreditamos existirem aproximações possíveis entre self e eu.
3
O marcador-somático seriam as sensações corporais (emoções e sentimentos) que, experimentadas durante as ações, ficam associadas, "(...) por via da aprendizagem, a certos tipos de resultados futuros ligados a determinados cenários" (Damasio, 1995, p. 186). Assim, o marcador-somático pode funcionar como uma campainha de alarme, se o resultado futuro for perigoso, ou como um incentivo, se o resultado futuro parecer agradável.
4 Porém, se Damasio (1995) aponta a relação entre certas regiões cerebrais e processos de raciocínio e decisão, isso não significa que esteja propondo uma nova frenologia. Pelo contrário, o autor defende dois temas: 1) o primeiro consiste em demonstrar que cada uma dessas regiões é, em si mesma, de extrema complexidade e 2) o segundo, crucial para a recusa da frenologia, consiste em defender que é impossível encontrar no cérebro uma centralização de funções localizada numa única estrutura. Nosso sentimento de termos uma experiência integrada de nós mesmos - tema que será desenvolvido em "O mistério da consciência" (1995) - decorre do funcionamento sincronizado das várias estruturas cerebrais. Podem estar anatomicamente separadas, mas se estiverem no que Damasio chama de "mesma janela temporal" (1995, p. 257), teremos a impressão de um todo integrado. E é essa característica que nos dá a sensação de que existiria um lugar ou uma estrutura cerebral responsável por essa experiência. A experiência de si, característica da mente humana, decorreria, para Damasio, dessa sincronização.
5 Cabe ressaltar que Damasio prefere o termo "homeodinâmica", proposto por Steven Rose (1999), em vez de homeostase, na medida em que "nossos termostatos são feitos de tecido vivo, e não de metal ou de silício" (p. 184).
6 Seriam essas as "exigências da vida", propostas por Freud no "Projeto" (1895/1994)? Embora não seja esse o objeto de nossa investigação, fica aqui a indicação de mais uma possível convergência entre os dois autores.
7 Damasio (2000) entende o inconsciente psicanalítico como aquele que se refere à memória autobiográfica característica da consciência ampliada, relacionando-se indiretamente com todos os outros processos que lhe permanecem desconhecidos - nesse sentido, inconscientes. 8 Objeto, aqui, é a designação genérica para qualquer padrão neural que afete o cérebro; pode ser qualquer circunstância - uma música, um rosto, uma dor em algum lugar do corpo.