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Natureza humana

 ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.12 no.1 São Paulo  2010

 



Estudo de caso

 

Caso B: a experiência da perda do concernimento e a importância da análise1

 

The loss of concern and the role of analysis: case B study

 

 

Ariadne Alvarenga de Rezende Engelberg de Moraes

Centro Winnicott de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

Este artigo tem o objetivo de mostrar a importância da conquista do concernimento e sua consolidação no processo de amadurecimento pessoal. Para isso, farei uma sistematização da teoria do estágio do concernimento e usarei o caso B como ilustração, examinando-o com base nesse ponto teórico. Encerrarei com algumas considerações teóricas sobre o diagnóstico e o desenvolvimento da análise conduzida por Winnicott.

Palavras-chave: Winnicott, análise, concernimento, caso B.


Abstract

The objective of this article is to demonstrate the importance of the achievement of concern and its consolidation in personal maturation process. To demonstrate this, I will make a systematization of the concern stage theory and I will use "Case B" as an illustration, examining it from such theoretical point on view. I will conclude with a number of theoretical considerations about the diagnosis and analysis.

Key-words: Winnicott, analysis, concern, case B.


 

1. Introdução

Duas afirmações de Winnicott relativas à conquista do concernimento2 embasam este artigo. A primeira, proferida ao introduzir o caso B, diz: "este fragmento de uma análise é oferecido como ilustração da posição depressiva tal como ela pode surgir durante uma análise" (1986a/2001, p. 27). A segunda refere-se ao fato de B haver perdido a capacidade para preocupar-se. Winnicott afirma: "eu disse que, de certa forma, era possível que ele houvesse alcançado a preocupação e depois perdido essa capacidade por causa do desespero em alguma situação infantil" de modo que, a partir de então, "essas coisas não dependiam só dele, mas também do analista" (1986a/2001, p. 45).

Apoiada na teoria do amadurecimento pessoal, é possível dizer que essas afirmações evidenciam que os problemas com a depressão, a sexualidade, relacionamentos interpessoais e o trabalho, enfrentados por B, estavam relacionados a dificuldades originadas na passagem do estágio da dependência absoluta para o estágio da dependência relativa. Tais dificuldades culminaram na impossibilidade de B solidificar as conquistas dos estágios iniciais, tornando difícil tanto a realização das tarefas do estágio do concernimento - a integração dos instintos e da destrutividade - como a consolidação da conquista do concernimento. Aqui está o sentido da afirmação de Winnicott de que, naquele momento, B precisava de um novo ambiente para recuperar o amadurecimento e que isso só poderia acontecer na análise.

Com o intuito de mostrar a importância da conquista do concernimento e sua consolidação no processo de amadurecimento pessoal, farei uma sistematização da teoria do estágio do concernimento eexaminarei o caso B com base nesse ponto teórico, destacando os momentos que se relacionam com a problemática de B. Encerrarei com algumas considerações sobre o diagnóstico e o desenvolvimento da análise conduzida por Winnicott.

 

2. Sobre o paciente e a análise

A análise de B ocorreu em dois períodos, havendo um intervalo de mais ou menos 11 anos entre um e outro.3 O primeiro período durou aproximadamente dois anos e, desde o início, Winnicott decidiu registrar o caso por perceber que estava diante de um "material clínico bastante incomum" (1986a/2001, p. 10). Nessa época, B tinha 19 anos e foi levado por sua mãe. De sua parte o paciente reconhece que, naquele momento, não tinha "consciência nenhuma" da necessidade de análise e muito menos consciência de seus problemas, mas tinha o objetivo "de chegar a algum lugar diferente". Por isso entende que, quando aceitou procurar Winnicott, "a decisão foi arbitrária" e a interrupção da análise ocorreu "simplesmente por conveniência" (1986a/2001, p. 123).

Reportando-se a essa fase da análise, Winnicott comenta que o paciente chegou "num estado de depressão com forte colorido homossexual, embora sem uma homossexualidade manifesta", em um estado "de confusão e irrealidade", mas se apresentava como uma pessoa inteligente, capaz de lidar bem com conceitos e de filosofar, e tido comoum homem de ideias interessantes" (1986a/2001, p. 128). Sobre a análise em si, recorda-se que B "apresentou uma recuperação satisfatória", mas que o processo "não foi longe o suficiente para capacitá-lo a efetuar a separação" (1986a/2001, p. 14) da mãe, tal como aconteceu durante o período em que estava sob tratamento. Acrescenta que, durante o tempo que antecedeu a segunda análise, B se manteve relativamente bem, porque foi indiretamente beneficiado pela recuperação da mãe, que fizera análise.

No intervalo entre os dois períodos de análise, Winnicott entrou em contato com a mãe de B e teve encontros esporádicos com ela, com o intuito de obter informação sobre o paciente.

Com 30 anos, já casado, com um filho (o segundo nasceu durante o segundo período de análise), B retomou a análise devido a um colapso que o levou a internação, em razão de "sentimentos de irrealidade e de uma incapacidade geral de lidar com o trabalho e com a vida" (1986a/ 2001, p. 28).

De modo geral, B se queixava, nessa fase, da ausência de espontaneidade nos relacionamentos, "da incapacidade de ser impulsivo" e de enfrentar a competição. Para ele, esse colapso teve início quando se graduou em medicina e encontrou-se "pela primeira vez numa posição de responsabilidade, tendo de tomar decisões como médico". B assume que a doença surgiu, "em parte, porque eu não sabia o que fazer no momento seguinte" (1986a/2001, p. 123). Ele também admitia que, apesar de não ter a potência perturbada, era incapaz de excitação sexual e não conseguia fazer amor. Sua queixa poderia ser resumida a uma incapacidade de rir, chorar e amar. No momento do retorno para a análise, B convivia, sem problematizar, com o fato de a esposa ter um amante e também arrumou uma amante.

Durante a fase de internação, o psiquiatra responsável pelo caso informou Winnicott sobre o estado de B e sobre a resistência deste a retornar à análise com Winnicott. Mais uma vez houve contatos entre Winnicott e a mãe de B, e esta passou o novo telefone e endereço dopsicanalista para o paciente, que acabou entrando em contato. Esse último período de análise iniciou-se ainda durante a internação de B.

 

3. A teoria do concernimento

À luz da teoria do amadurecimento pessoal, o estágio do concernimento está inserido no período da dependência relativa, e é a fase intermediária entre o bebê dependente da adaptação da mãe e a criança que já começou a caminhar, que começa a reconhecer os aspectos instintivos e que ruma para as relações interpessoais. Entende-se por concernimento a incipiente culpa surgida pós-integração do bebê em uma unidade e que se confirma como uma conquista quando o círculo benigno é estabelecido e mantido sem quebras. Quando isso acontece, o concernimento será experienciado na posição do Eu Sou, fase em que a criança será capaz de avançar em seu amadurecimento, usando com autonomia todo o seu potencial instintivo e agressivo, pois já se reconhece responsável pelas suas ações e pensamentos, assumindo-se capaz de reparação. Um aspecto essencial das passagens de amadurecimento desse período e de todas as experiências relacionadas à conquista do concernimento diz respeito ao fato de elas acontecerem no interior da relação diádica inicial. A conquista do concernimento é, portanto, característica da fase dual da relação mãe- bebê, ocorre antes da fase de relacionamentos triangulares e, por isso, é uma experiência pré-edípica.4

A tarefa de amadurecimento referente ao estágio do concernimento é a integração da vida instintual e da destrutividade como parte do si-mesmo que, se realizada sem contratempos, culmina na solidificação da conquista do concernimento. Assim, o concernimento, que inicialmente se apresenta como um simples interesse em relação àmãe, vista nesse momento como apenas um não-eu, configura-se, com o passar do tempo, como uma preocupação com os resultados das experiências instintivas, que fazem parte do relacionamento com a mãe, agora já apreendida como pessoa pelo bebê.

É durante o estágio do concernimento que o bebê se reúne como uma pessoa (percebe que ele é a mesma pessoa, quer excitada quer tranquila) e passa a perceber a mãe (antes vista como ambiente e objeto) também como uma pessoa. Assim, reconhece algo da destrutividade do impulso amoroso primitivo5 e percebe seu incompadecimento anterior. Pode-se dizer, então, que a conquista do concernimento se traduz pela passagem gradual do bebê de um estado de incompadecimento inicial para um estado de ser compadecido (concernido, preocupado) e responsável pelas consequências do que sente, pensa e faz. O bebê naturalmente vê-se às voltas com um sentimento de culpa não patológico e um senso de responsabilidade pessoal. O estado de ser concernido será experienciado como um sentimento algo próximo da preocupação. Essa capacidade para preocupar-se com constitui a condição para que o bebê, de posse da noção de ser um si mesmo, uma pessoa diferenciada da mãe, possa lidar com as dificuldades inerentes ao estar com o outro.

A consolidação da conquista do concernimento depende do oferecimento de condições ambientais de facilitação associadas às seguintes tarefas maternas: 1) a sobrevivência - que, se exercida, incentiva e libera a vida instintiva do bebê, possibilitando a ele arriscar-se em direção ao relacionamento com a realidade externa, mediante a confiança em sua capacidade de reparação " e 2) o sustentar a situação no tempo - tarefa que colabora com a temporalização do bebê, circunstância em que o passado passa a fazer parte do presente e o presente irá se tornar o lugar de onde poderá fazer as projeções para o futuro.

Contratempos relativos à falha ambiental, ou seja, ligados à não sobrevivência da mãe e à não sustentação da situação no tempo, agregam dificuldades para o amadurecimento pessoal do bebê, com diferentes consequências para a organização do ego (pensado em termos de estado de integração estabelecido) e estruturação da personalidade. As consequências incluem a perda de conquistas do amadurecimento e/ou organização de defesas variadas. A avaliação disso em termos de patologia está subordinada ao conhecimento tanto da fase do amadurecimento, em que o bebê/criança se encontrava no momento da falha, como ao tipo de falha.

A conquista do concernimento - que, em amadurecimentos saudáveis, ocorre entre seis meses e um ano - propicia à criança a possibilidade de vir a tornar-se parte do mundo, de relacionar-se com o mundo e de contribuir para com ele mediante o uso construtivo dos instintos. As condições para que isso aconteça são: 1) que o bebê esteja integrado em uma unidade; 2) que os estágios iniciais tenham sido "atravessados sem demasiados problemas na vida ou na análise, ou em ambas" (1958a/2000, p. 357); 3) que o bebê/pessoa tenha uma noção de tempo mais estabelecida e 4) que tenha percepção da diferença entre fatos e fantasias.

No entanto, é importante destacar que, em relação à tarefa específica desse estágio - a integração da vida instintual e da destrutividade -, o ápice do processo ocorre por volta dos dois anos e, apenas quando isso ocorre, a satisfação instintual será experienciada como fortalecedora da integração e do si-mesmo verdadeiro. No que se refere ao sentimento pessoal de culpa, raramente se estabelece de modo seguro antes dos cinco anos. Por ser um longo período de desenvolvimento, a ambiência se faz necessária para que as conquistas alcançadas não sejam perdidas.

O bebê que conquista o concernimento, e tem essa conquista confirmada por um tempo teoricamente definido como círculo benigno, alcança a posição de dizer Eu Sou, na qual já é capaz de distinguir seus impulsos instintivos e reconhecê-los como pessoais. Alcança a capacidadepara a ambivalência, passa a tolerar os elementos agressivos contidos em sua personalidade e pode transformá-los em outros modos de expressão (raiva, ciúme, ódio). Também conquista uma autossuficiência para viver e é capaz de descansar e de estar só sem o apoio da mãe ou de um objeto transicional, pois "incorporou os cuidados da mãe" e adquiriu um ambiente interno. Para a criança pequena, essa é a base do brincar construtivo; para o adulto, a base para a capacidade de trabalhar de modo pessoal e com sentido.

Somente quando essas questões estiverem bem estabelecidas para o bebê, ele poderá ampliar sua identificação para outras unidades além da mãe. O pai será introduzido gradualmente como pessoa e terá a importante função de proteger a mãe, que será cada vez mais odiada à medida que o princípio da realidade for se tornando parte mais integrante da relação da criança com o mundo externo.

 

4. Problemas com a conquista do concernimento e o caso B

Para compreender a importância dessa conquista, duas outras situações precisam ser ainda consideradas: as dos bebês que não conquistaram o concernimento e a dos bebês que realizaram a conquista, mas esta não se consolidou. Os bebês que não alcançaram o concernimento no estágio esperado e, por isso, não conquistam a capacidade para preocuparse com seguirão sem essa conquista; o concernimento poderá ser alcançado mais tarde com a transferência, em um processo analítico. Para esses casos, Winnicott diz que

os bebês [...] sobreviverão com alguma coisa faltando em seu desenvolvimento emocional, algo de importância vital, resultando numa intranquilidade e numa falta de capacidade para o concern, na ausência de profundidade e na incapacidade para o brincar construtivo, sofrendo, mais cedo ou mais tarde, uma inaptidão para o trabalho [...]. (1988/1990, p. 176)

Entretanto, para aqueles que conquistaram o concernimento (a preocupação) e o perdem, como é o caso de B,6 as dificuldades são maiores. Todo o amadurecimento até então conquistado passa a desfazer-se e a dissociação entre o bebê excitado e o bebê tranquilo reaparece. Ponto importante é que a criança "fracassa em descobrir" a capacidade de sentir culpa ou perde essa capacidade, no caso de já a ter conquistado (como B). Nesse caso, ao invés de um sentimento de culpa saudável, que encaminha o amadurecimento rumo à preocupação, ao envolvimento, à responsabilidade (sustentado na capacidade de reparação) e a uma atividade construtiva (trabalho), a pessoa será acometida por uma culpa patológica que levará à inibição dos instintos e ao uso de defesas, tais como a desintegração, a cisão dos objetos em bons e maus e/ou a organização de um falso si-mesmo como defesa. A cisão atenuará o sentimento de culpa, mas, em contrapartida, o amor perderá parte de seu valioso componente agressivo e a pessoa perderá a capacidade de amar com afeição. Por sua vez, quando a defesa do falso si-mesmo predomina, a pessoa viverá baseada na necessidade de ser perfeito.

Sendo assim, o amadurecimento pessoal é interrompido e, consequentemente, as capacidades de brincar e trabalhar (entendidas como a expressão de um modo de ser pessoal) irão se perder. O entrelaçamento com a realidade externa será reduzido em razão da perda de esperança nos relacionamentos e da impossibilidade de fazer projeção para o futuro, havendo, desse modo, um empobrecimento da personalidade. A inibição e o retraimento (oposto de espontaneidade) caracterizarão a personalidade dessa pessoa.

Do estudo do caso B, é possível reconhecer que as dificuldades anteriormente mencionadas fazem parte da queixa do paciente e são o motivo de ele se decidir pela análise após sofrer o colapso. Também se verifica que são temas assinalados por Winnicott em vários momentos daanálise desse paciente. Passarei agora a apontar algumas passagens do atendimento de B com o intuito de ilustrar essas observações.

No início dos últimos seis meses de análise, momento em que Winnicott passa a anotar sistematicamente as sessões, vemos que B confirma a experiência de dificuldades relativas à culpa, ao trabalho e ao futuro, mesmo já podendo sinalizar as conquistas alcançadas em razão da análise. B relata:

ainda existem perguntas sem respostas no que diz respeito ao trabalho e à família. Eu sinto apreensão e culpa por estar me sentindo bem, e, é claro, por sair com outra mulher em segredo [...]. Eu não posso ignorar o que ainda resta a ser feito. Mas existe uma diferença. Eu agora posso vislumbrar um futuro. No passado eu me sentia como se tivesse dificuldades insolúveis no presente e nenhuma perspectiva para o futuro. Eu não tinha nenhuma esperança de algum dia levar uma vida normal. Minha depressão estava relacionada com a procura da dependência. (1986a/2001, p. 38)

Na sequência dessa fala, Winnicott faz uma interpretação compreensiva, na qual confirma que as dificuldades de B estão relacionadas à perda de uma conquista. Ele diz:

a desesperança em relação ao futuro e ao presente nada mais é do que a desesperança em relação ao passado que você desconhece. O que você está procurando é a sua capacidade de amar, e, sem conhecer todos os detalhes, podemos dizer que alguma falha no início de sua vida fez com que você duvidasse da sua capacidade de amar. (1986a/2001, p. 38)

A incapacidade de amar com afeição era reconhecida por B no relacionamento com as mulheres e experienciada como uma dissociação entre ser capaz de fazer sexo, por estar fisicamente pronto, mas incapaz de fazer amor devido à ausência de envolvimento e dificuldade para a intimidade pessoal. Essa incapacidade de se envolver e sentir afeto também aparecia em experiências relacionadas às suas filhas. Um exemplo disso ocorreu na festa de abertura do ano escolar da filha mais velha, na qual Bcomenta sua dificuldade em se interessar pelo evento, a incapacidade de se comover e o uso da imitação do modo como os outros agiam no local como recurso para lidar com a situação. Outro exemplo está relacionado à festa de aniversário de um ano da filha caçula, na qual ele se dá conta da sua falta de entusiasmo. Esse ponto é significativo, pois Winnicott considera um sinal evidente do desenvolvimento de B na análise este haver chorado ao se lembrar da filha durante uma sessão de cinema, experienciando, pela primeira vez, um sentimento de amor, inteiramente novo em relação à filha mais nova.

A perda da capacidade de amar de B, problema característico da quebra do círculo benigno, também está relacionada ao fato de ele chupar o dedo até os 11 anos. Para compreender o que essa experiência nos revela a respeito do amadurecimento de B, é preciso fazer uma análise teórica, considerando-se dois lados da questão.

Por um lado, chupar o dedo pode ser considerado um hábito saudável, pois nos mostra que B alcançou a capacidade para "usar certos objetos" como se fosse o "seio materno e, portanto, a mãe", e, como Winnicott enfatiza, o bebê só alcança essa possibilidade "quando a ideia do seio foi incorporada à criança, através de experiências concretas" (1964a/ 1982, p. 60).7 Chupar os dedos é, nesse sentido, uma prova evidente do início do contato com a realidade externa, só possível quando paralelo ao "início de um sentido de segurança" e "ao início das relações da criança com uma pessoa" (1964a/1982, p. 190). Desse ponto de vista, é possível dizer que o fato de B ser capaz de chupar os dedos revela que tudo estava indo bem em seu desenvolvimento emocional e que ele já entrara na fasede transição do estado de unidade com a mãe para "o estado de relacionamento com a mãe como algo externo e separado" (1964a/1982, p. 190), podendo inclusive acumular "as recordações" dessa relação. Chupar os dedos configurava, portanto, uma primeira manifestação de um comportamento afetivo.

Por outro lado, a extensão temporal do hábito de chupar dedo, mais tarde substituído por B pela masturbação compulsiva, precisa ser avaliada. Winnicott define, do ponto de vista teórico, que o hábito de chupar o dedo, quando mantido por um tempo além do esperado, é usado para "enfrentar a angústia de um tipo mais primitivo ou psicótico, como seja, o medo de desintegração da personalidade, de perda do sentido do corpo ou de perda do contato com a realidade externa" (1964a/1982, p. 178, itálicos meus).

Para esclarecer esse ponto, é necessário lembrar que, da mesma forma que segurar algum objeto e poder brincar com ele, chupar o dedo significa que o bebê já sabe da existência da mãe e está mantendo controle sobre ela. Dessa forma, essa experiência com o dedo mantém a memória da mãe para o bebê. Porém, se a mãe se ausentar por um tempo maior do que aquele que o bebê consegue mantê-la viva na memória (isso sempre do ponto de vista do bebê), ela estará perdida para o bebê (cf. 1987b/ 1990, p.117). Ou seja, se a mãe desaparece por um longo período (que pode ser a mesma coisa de ela aparecer apenas quando julga adequado, como no caso da mãe de B, que se julgava perfeita), "a versão interna da mãe morre, e a criança fica com um estado de espírito deprimido, e logo em seguida o objeto transicional e todos os seus derivados perdem o significado" (1987b/1990, p.117). Do ponto de vista do bebê, a mãe não sobreviveu e de fato se perdeu. Nesse contexto, entende Winnicott, chupar o polegar pode ser entendido como "uma defesa contra a perda do objeto ou no mundo externo ou no interior do corpo, ou seja, contra a perda do controle sobre o objeto" (1958a/2000, p. 232).

Ainda do ponto de vista teórico, Winnicott considera "difícil falar sobre as anomalias no uso" (1987b/1990, p. 118) de objetostransicionais sem levar "em conta a psicologia ou o estado psiquiátrico da mãe" (1987b/1990, p. 118). Segundo ele, é possível perceber como uma mãe desempenha seu papel quando o bebê evita o uso de objetos transicionais ou quando os usa obsessivamente.

A ansiedade de perfeição da mãe de B, que levou Winnicott a interpretar que o fato de ser "satisfeito enquanto criança por uma mãe perfeita" (1986a/2001, p. 188) trazia a impressão de que "a satisfação aniquilava o objeto" (1986a/2001, p. 188), pois, ao mesmo tempo em que a tensão instintiva desaparecia, a "fonte do prazer de viver" (1958a/ 2000, p. 362) ia embora repentinamente. Nota-se que aqui se fala de satisfação e aniquilação do objeto, duas experiências possíveis quando há o reconhecimento da mãe como objeto externo. Antes disso, na fase do relacionamento dois em um, a falha materna interrompe a continuidade de ser, já que ainda não há reconhecimento da mãe como objeto externo.

Isso nos permite pensar que, a partir de certa época, a mãe de B deixou de sustentar a situação no tempo, ou por não permanecer o tempo necessário na presença do filho para que ele pudesse elaborar imaginativamente essa experiência ou por não retornar no tempo necessário para que B mantivesse a memória da mãe. Por isso, B imaginava, após ser atendido em sua necessidade, que o objeto (mãe) havia sido destruído. Essa experiência configura-se como a não sobrevivência de sua mãe, uma falha ambiental que inibe o brincar, o uso construtivo dos instintos e o amadurecimento. Há uma fala de B em que a percepção de que a mãe não sobreviveu fica evidente:

Um fato muito importante é que minha mãe não sabe dos meus sentimentos porque havia alguma coisa que eu não ousava contar a ela, pois envolveria a sua destruição. Minha única esperança naqueles dias era crescer de repente e evitar uma porção de situações desagradáveis. Eu tentei me tornar um adulto aos cinco anos. Queria ser sociável, mas dispensando os estágios intermediários entre a infância e a vida adulta. Era a única forma segura e possível. (1986a/2001, p. 192)

Dessa forma B, que até então confiava na possibilidade de usar a mãe, pois tinha esperança em sua capacidade de reparação, passa a inibir os instintos (a excitação), pois, de alguma maneira, a noção da mãe como um fenômeno objetivo foi perdida. B perde então a capacidade de sentir culpa saudável e passa a ser acometido por um sentimento de culpa patológico e a lançar mão de defesas como a desintegração, a dissociação e a cisão dos objetos em bons e maus. A prática obsessiva de B de chupar o dedo até aos 11 anos revela, portanto, falha ambiental, perda da mãe no sentido de não sobrevivência e quebra do círculo benigno.

Na análise, a primeira vez que B, "sem ter consciência do que estava fazendo" (1986a/2001, p. 33), direcionou o polegar esquerdo em direção à boca foi na sessão do dia 27 de janeiro (1986a/2001, p. 33). Esse movimento se deu após uma sequência de interpretações na linha da neurose de transferência a respeito do envolvimento de B com uma amiga, que foram assumidas por Winnicott como erradas. Winnicott percebeu o equívoco quando se deu conta de que as tentativas realizadas para compreender a situação não haviam conduzido a análise "ao tema da experiência erótica e, sim, ao tema da dependência" (1986a/2001, p. 32). Nessa hora, Winnicott reconhece que B está assustado com a intensidade da relação desenvolvida entre ambos, fato demonstrado pela pergunta dele sobre se o analista poderia sustentar toda a situação agora vivida. Na sequência, B reclama o direito de ser dependente e relembra que seu pai só aceitava a posição de ter B dependente dele até certo ponto, pois logo passava a tarefa para a mãe. E, reconhece B, sua mãe "não lhe servia de nada, pois já havia fracassado" (1986a/2001, p. 33). Abandonando a primeira linha de interpretação, Winnicott faz agora a interpretação que entende ser correta e diz para B que "finalmente o seu polegar voltava a significar alguma coisa" (com certeza referindo-se à presença dele, como analista, para sobreviver e sustentar a situação no tempo), pois "provavelmente desistira da prática porque não havia ninguém a ser representado pelo polegar" (1986a/2001, p. 33).

Pode-se pensar que a experiência de falha ambiental nessa fase configurou a base para a organização da defesa do falso si-mesmo para B. Ele passou, então, a tentar "encontrar o cuidado perfeito" da mãe "através da ansiedade de perfeição", já que, por trás da ausência da mãe, o que existia era "a falta de esperança de amar e ser amado" (1986a/2001, p. 61). Isso levou B à ansiedade de que "a imperfeição significa rejeição" (1986a/2001, p.133) e a acreditar que "só existe uma forma de alcançarmos qualquer coisa, e é através da perfeição" (1986a/2001, p. 133). Por essa razão, entendeu que o seu destino era ser perfeito. Para tanto, seu verdadeiro si-mesmo precisava ficar oculto e um falso si-mesmo perfeito assumiu o comando da vida.

Pode-se pensar que a experiência de falha ambiental nessa fase configurou a base para a organização da defesa do falso si-mesmo para B. Ele passou, então, a tentar "encontrar o cuidado perfeito" da mãe "através da ansiedade de perfeição", já que, por trás da ausência da mãe, o que existia era "a falta de esperança de amar e ser amado" (1986a/2001, p. 61). Isso levou B à ansiedade de que "a imperfeição significa rejeição" (1986a/2001, p.133) e a acreditar que "só existe uma forma de alcançarmos qualquer coisa, e é através da perfeição" (1986a/2001, p. 133). Por essa razão, entendeu que o seu destino era ser perfeito. Para tanto, seu verdadeiro si-mesmo precisava ficar oculto e um falso si-mesmo perfeito assumiu o comando da vida.

B diz: "talvez eu tenha tentado atacar, ou melhor, atrair a atenção de minha mãe, ela fez pouco caso e eu me senti ignorado" (1986a/2001, p.159). Winnicott chama a atenção para a troca de palavras, realçando que atacar possa ser a palavra significativa. B diz: "se for espontâneo [oque significa oposto de ser perfeito] eu sinto que não serei aceito; então eu ataco para restaurar a situação. Isto deixa implícita a ideia de que os meus ataques de humor representam o impulso destrutivo dirigido à minha mãe porque ela não dava ouvidos a minha tagarelice" (1986a/2001, p.160). Aqui B confirma que para ter a mãe "viva" e presente pelo tempo necessário ele precisava lançar mão de recursos, ou melhor, de defesas.

O tema do tagarelar permeou várias sessões. Na sessão que se seguiu à anteriormente citada, B traz indagações sobre o fato de uma criança presentear a mãe com as fezes e a mãe ignorar. Winnicott realça a importância de relacionar essa atitude da mãe ignorar o bebê nessa situação com os atos de ela ignorar o balbuciar, o tagarelar e o conversar. B se lembra de como se comporta no jogo de tênis, onde substitui o ato de jogar pela ideia de estar no lugar certo. Diz saber que isso é ridículo, porque nem chega perto da bola, mas que, ao agir assim, evita "um perigo ainda mais sutil e também evito a culpa", quem sabe, de ter tido uma excitação e acreditado nela, e de se ver não reconhecido. Winnicott associa isso com o fato de B não conversar espontaneamente, já que, ao não falar, evita os erros. B completa: "mover-se [no tênis] significa largar o lugar onde estou. Conversar livremente significa correr um risco. Tudo fica fora de controle". Winnicott mostra que, agindo assim, ele "não consegue manifestar o seu self real". B responde: "é estranho. É como se eu tivesse um pai em vez de um superego...8" (1986a/2001, p. 164). Winnicott pontua que "pode ser um superego patológico" (1986a/2001, p.164), que, em linguagem winnicottiana mais tardia, pode ser entendido como uma culpa patológica inibidora, característica de pessoas envolvidas com falha ambiental no estágio do concernimento.

Um mês antes do encerramento da análise, B volta ao mesmo assunto, associando o tema da perfeição. Ele diz que agora se vê

sem esperança de ser amado ou desejado pelo que sou e não pelo que faço ou realizo. Já discuti isto antes, quando falávamos sobre perfeição. Eu não reconhecia a possibilidade de ser amado ou respeitado pelo que sou, de forma que a perfeição era a única alternativa e qualquer outra coisa significaria um fracasso completo. Então, quando reclamei que estava doente, eu estava horrorizado com o dilema, já que me sentia muito distante da perfeição, o que significava fracasso absoluto. Antes disso me retraía e, desse modo, evitava o ataque direto, e, portanto, os problemas de ser amado e desejado ou mesmo de ser perfeito. (1986a/2001, p. 196)

Assumido isso, B é capaz de reconhecer a falha materna do seu ponto de vista: "será que é possível superar o fato de algo ter me faltado durante anos, o fato de não ter sido amado ou de não ter percebido que me amavam?" (1986a/2001, p. 196).

O processo analítico conduzido por Winnicott foi dirigido para a retomada do amadurecimento de B, tendo a integração dos instintos e da destrutividade, bem como o restabelecimento da conquista do concernimento, como fatores centrais. Numa sessão em que B assume se sentir independente da esposa e, por isso, capaz de negociar com ela sem a necessidade de implorar compaixão, Winnicott diz que a "aproximação do canibalismo [agressividade] e dos instintos" parece "ter fortalecido toda a sua personalidade" (1986a/2001, p. 35).

Algumas sessões após a anteriormente citada, seguindo a temática da satisfação que aniquila o objeto, que agora surgira na relação com o analista, Winnicott usa uma metáfora para explicar as reações esquizoide e depressiva na relação com o objeto. Ele explica que uma reação possível, quando um bebê puxa um botão do casaco e consegue ficar com o botão, é este perder a importância, pois a satisfação em conseguir tal botão era o aspecto central. Era assim que B reagia até então, já que, em sua experiência, a satisfação aniquilava o objeto. Outrareação - que Winnicott destaca como presente na análise de B, mas ainda não percebida por ele - estaria relacionada com a preocupação com o casaco, agora sem o botão, e com o destino do botão. B demonstra compreender o que foi dito ao introduzir suas dúvidas em relação ao rumo profissional. Winnicott então diz que, se a análise não avançasse além do ponto em que alcançaram, B enfrentaria essa questão de uma forma esquizoide. No entanto, afirma que a análise mostrava que B "estava bem perto da linha alternativa de desenvolvimento, de preocupação pelo objeto. Caso a análise abrangesse esse aspecto, surgiria automaticamente uma nova solução para o problema principal, de como lidar com a carreira" (1986a/2001, pp. 44-45).

Ao afirmar isso, Winnicott assinala que B estava próximo de alcançar a condição em que a destrutividade se transforma em construtividade, em razão de o sentimento de culpa pessoal - algo potencial, silencioso e não consciente - poder agora ser substituído por uma atividade construtiva pessoal.

Avançar neste ponto era essencial para B, já que a questão da agressividade, mais especificamente a falta de agressividade, era tão marcante, que ele considerava sua impossibilidade de agir com agressividade nas relações - fato que pode ser associado à inibição dos instintos - como um defeito de sua personalidade. Com o progresso na análise e a conquista e estabelecimento do concernimento, ele alcançou a condição de contribuir e a posição de poder afirmar "eu também posso ser franco e duro sem culpa" (1986a/2001, p. 59).

 

5. Diagnóstico e desenvolvimento da análise

Para compreender a natureza do trabalho analítico desenvolvido por Winnicott e a relação disso com a proposição de esse caso ser um exemplo da conquista do concernimento na análise, faço algumasconsiderações a respeito do diagnóstico e da análise de B. O panorama dessa discussão é a compreensão winnicottiana de que o diagnóstico é a base para o analista estabelecer a forma de cuidado (técnica) de que um paciente necessita. Por sua vez, a análise é o contexto profissional do cuidado, cujo fundamento é a confiança. Já o analista é a pessoa que humaniza esse contexto, ao torná-lo previsível e adaptado ao paciente.

Winnicott considera B, na época da primeira análise, "um doente de tipo esquizofrênico", e se refere a ele, na época da segunda análise, tanto como "um caso de esquizoidia" (1986a/2001, p. 28) como "um paciente esquizoide-depressivo" (1986a/2001, p. 254). Essa posição diagnóstica não deixa dúvidas de que, para Winnicott, B era um psicótico, cujas defesas entraram em colapso, sendo a principal delas o falso simesmo.

Faz-se necessário compreender o que a depressão conta sobre o amadurecimento pessoal, e aqui, sobre o diagnóstico de B. Winnicott defende a ideia de que os estados depressivos são a expressão de que há saúde latente atrás do sofrimento e da tristeza. Ou seja, revelam que há um estado de integração, uma unidade, um eu com condição de reconhecer-se e reconhecer o outro. A capacidade para deprimir mostra que há um si-mesmo verdadeiro, incipiente e/ou oculto por um falso simesmo, procurando encontrar um meio de começar a existir sem precisar usurpar sua espontaneidade.

Por outro lado, como se sabe, o falso si-mesmo funciona como uma fachada, proporcionando à pessoa uma "saúde aparente", e tem por objetivo proteger o verdadeiro si-mesmo. Apoiado nessa falsa saúde, a pessoa poderá realizar todos os tipos de experiências; contudo, elas irão se revelar sem valor. As experiências instintivas e agressivas não são experienciadas como fortalecedoras da integração e muito menos entendidas como uma contribuição para o sentimento de sentir-se real. Ao contrário, podem ser avaliadas como um fator de ameaça para a integração. Até o momento do colapso, B alternou períodos de aparente saúde com estados deprimidos.

Detalhando esses aspectos. A questão da dissociação entre verdadeiro e falso si-mesmo foi diversas vezes mencionada na análise de B, às vezes relacionada ao tema da perfeição, e explicitada por Winiccott da seguinte maneira: "sua vida foi fundada sobre uma base de perfeiçãoimperfeição. Isso teria de se manifestar algum dia e acabou por fazê-lo na forma de doença" (1986a/2001, p. 131). Apareceu de forma clara na interpretação de Winnicott a respeito de o controle exercido sobre a conversa ser uma forma de ocultar o verdadeiro eu e diretamente abordada por Winnicott na seguinte passagem: "você falou sobre essa profunda divisão em sua natureza que bloqueia os seus impulsos, mas o fato é que a sua aceitação da realidade é feita por um self falso, que não parece real" (1986a/2001, p. 214).

Da parte de B, a compreensão dessa dissociação aparece em algumas falas, como na seguinte: "o que me parece é que numa idade muito remota, digamos 4 ou 5 anos, eu substitui o self emocional real por um self intelectual, porque aquele não era capaz de se fazer sentir" (1986a/ 2001, p. 191) ou "eu estive obcecado por uma necessidade de agradar todo o mundo, sendo que tudo isso faz parte da perfeição e do impulso para conseguir amor e respeito. Eu me preocupo em não aborrecer os outros, mais do que com os aspectos positivos das relações" (1986a/2001, p. 197). Aqui B confirma que a dificuldade de relacionamento com a mãe perdurou e a saída foi a submissão ao ambiente, em seu caso pela tentativa de ser perfeito.

Há uma situação em que B comenta ter percebido que discutir sobre o como se sentia tinha uma importância relativa, pois havia se dado conta de que os sentimentos e o humor são instáveis, transitórios, dependentes de fatores variáveis, sendo o mais importante "descobrir o que está por trás dos estados de humor" (1986a/2001, p. 200). A isso Winnicott diz: "sim você está dizendo uma coisa sobre a qual eu não havia pensado antes. Seu humor foi o mais próximo que você conseguiu chegar de seu self verdadeiro" (1986a/2001, p. 200).

Outro momento, em que todos esses aspectos são reunidos e mostram o amadurecimento pessoal de B, conquistado na análise, aconteceu um mês e meio antes do final da análise. B chegou para a sessão 15 minutos atrasado e, durante esta, Winnicott se reporta a esse atraso, indagando se haveria algum significado especial. B entende que não há significado especial e diz que talvez ele tenha sido apenas rude. Realça que se, em outro tempo, sua preocupação seria com a punição dessa atitude ("o efeito que isto teria sobre mim"), agora, o que o preocupava era o fato de Winnicott se aborrecer ("o efeito que teria sobre você) e, por isso, entendia que agora havia sentido pedir desculpas pelo atraso. Em suas palavras:

Meus sentimentos são menos distantes do que eram há dois anos, quando eu era simplesmente intelecto. Eu achava que tinha a obrigação de me preocupar. Agora eu não penso nisso, mas, se me atraso, fico preocupado, achando que vou aborrecêlo. (1986a/2001, p. 177)

Na sequência, falando sobre se as mudanças acontecidas nele, em decorrência da análise, seriam percebidas pelas outras pessoas, especialmente pela esposa, B confirma a mudança no modo de experienciar a preocupação, agora mais ligada à capacidade de reparação do que à culpa patológica. A esse respeito, B afirma:

Ficar preocupado com os sentimentos dos outros é arriscado. Anteriormente, quando a minha preocupação era mais intelectual, eu podia ignorar o que os outros pensavam. Eu podia dizer "dane-se" para qualquer pessoa. Mas, se me importo com os outros, eu fico mais preocupado e é natural que notem as minhas imperfeições. Antes eu dizia que estava doente e não pensava mais nisso, mas agora que não estou mais doente tenho de encarar a ideia de ser imperfeito. (1986a/2001, pp.177-178)

Com isso, fica firmado que, na perspectiva da psicanálise winnicottiana, a análise é o lugar que propicia a possibilidade da experiênciade uma provisão concernente com as necessidades do paciente que vive um colapso das defesas psicóticas. A base para essa posição está na ideia de que "a psicanálise não nos leva de volta a alguma coisa boa que foi esquecida, mas a um fracasso ou à falta de alguma coisa" (1986a/2001, p. 230). Temos, desse modo, na análise de B, um exemplo do direcionamento teórico-clínico de Winnicott.

Para ele, o diagnóstico sobre a posição da pessoa em relação à conquista do concernimento é um importante aspecto para a definição do tipo de trabalho analítico a ser realizado e um aspecto fundamental para o estabelecimento do término da análise. Ciente das dificuldades para que essa conquista seja alcançada e mantida (como observamos no caso B), Winnicott admite que a capacidade para o concernimento, embora esteja "a caminho, em circunstâncias favoráveis, entre os 6 e 9 meses de idade, geralmente não é alcançada até que o sujeito venha à análise" (1958a/2000, p. 373).

Assim, estabelece que, para quem consolidou a conquista do concernimento e é capaz de relacionar-se com o meio ambiente ampliado, a "análise normal", que se ocupa das infinitas variações de relações triangulares, "é viável" (1958a/2000, p. 355). Porém, para as pessoas que não foram abonadas com uma boa condição inicial e permanecem lidando com os problemas da integração da personalidade e com o início do relacionamento com o meio ambiente - isto é, ainda não alcançaram "a posição depressiva em seu desenvolvimento pessoal" (1958a/2000, p. 356) ou a perderam, como é o caso de B -, outra natureza de cuidado é necessária.

Sendo assim, Winnicott considerou mais adequado para o tratamento da psicose e da depressão uma forma de atendimento inspirado no modelo do cuidado materno. Sua proposta de atendimento inclui: o holding para pessoas que ainda lutam para conquistar o eu pessoal; o manejo, baseado na transferência dual, para indivíduos imaturos e com impurezas no amadurecimento; e a análise da transferência clássica paraaqueles que chegaram a um estado de relativa saúde mental (neurose e depressão reativa).

Reconhecendo que, do ponto de vista de B, "sendo verdade ou não", a "mãe foi incapaz de se identificar" com ele, Winnicott sabe que teria de estar pessoalmente inserido no processo da análise, no processo de regressão à dependência e no processo de "crescimento emocional subsequente" (1986a/2001, p. 203). Por isso, quando B veio para a primeira análise e na fase inicial da segunda análise, o holding foi usado para que "os fenômenos da dependência" pudessem "ser testados em relação aos momentos e ideias instintivas" (1986a/2001, p. 39), momento em que a falha materna se instalou em razão de a mãe de B não sobreviver e nem sustentar a situação no tempo.

Para Winnicott, a regressão à dependência acontece quando o analista é capaz de reconhecer a regressão e ir ao encontro dela, facilitando o processo. Se isso acontece, esta será, de acordo com ele, "a oportunidade de correção de uma adaptação inadequada presente na história passada do paciente, isto é, no manejo do paciente como bebê" (1986a/2001, p. 261). Na análise de B, foi o manejo dos estados passageiros de retraimento por parte de Winnicott que permitiram as regressões do paciente.

No entanto, mesmo quando lançava mão da interpretação nesses períodos, fazia isso com a certeza de que "uma interpretação certa no momento certo" equivalia "a um contato físico" e que, dessa forma, o analista estaria "tomando parte de um relacionamento no qual o paciente está em algum grau regredido e dependente" (1986a/2001, p. 261). Winnicott chegou a dizer para B: "eu lhe sustento o tempo todo. Além disso, existem vários métodos; por um lado, o manejo de forma geral, e por outro lado, a interpretação do material" (1986a/2001, p. 129).

Somente depois de constatar a conquista do concernimento por B e ter certeza de B ter alcançado um novo lugar como pessoa, Winnicott reconhece que "o material gradualmente assumiu a forma de uma neurose transferencial do tipo clássico" (1986a/2001, p. 29). Foi apoiado nesserecurso diagnóstico, que lhe dava indicações do estado de amadurecimento do paciente em cada momento da análise, que Winnicott pautou sua intervenção.

Quando B comenta perceber uma modificação na forma de perceber suas dificuldades, sinalizando que nesse momento tinha consciência de sintomas específicos e que eles se configuravam como mais pessoais, Winnicott interpreta: "você não poderia ter um sintoma mais específico no início, porque você não existia como pessoa [...] uma parte do seu surgimento enquanto pessoa é o fato de você poder apresentar esses sintomas pessoais" (1986a/2001, p. 97).

Mais adiante na análise, B comenta que os problemas atuais começaram a parecer mais úteis e Winnicott retoma a posição de sinalizar o fortalecimento da integração ao dizer: "você está menos dissociado, se é que posso usar essa palavra" (1986a/2001, p. 114). B compreende isso e declara: "há um ano eu me sentia como duas pessoas, e agora essas duas pessoas parecem se mesclar uma com a outra" (1986a/2001, p. 114). B confirma essa nova posição ao comentar sua menor necessidade de se retrair, uma maior capacidade para tomar decisões e a condição de reconhecer bons resultados: "agora parece que sou capaz de perceber quando faço alguma coisa bem" (1986a/2001, p.114). Na sequência, B continua falando sobre uma "habilidade maior de sentir as coisas que me cercam... e uma capacidade real de sentir ciúme emocionalmente em vez de intelectualmente" (1986a/2001, p. 115). Winnicott confirma a posição de B como pessoa integrada, capaz de tolerar o que existe em sua realidade interna e de se responsabilizar por isso - característica da pessoa que consolidou a conquista do concernimento - e diz: "é muito desconfortável sentir ciúme, mas você prefere o desconforto à falta de sentimentos de antes" (1986a/2001, p. 115).

Em outro momento, ao assumir que no passado havia nele uma falta geral de reação emocional, B coloca o pé no chão e diz pensar que isso significava algum progresso. Winnicott reconhece esse gesto, comentajá ter percebido o mesmo em outras ocasiões e afirma entender que "isso estava relacionado com algum novo tipo de relação com a realidade externa" (1986a/2001, p. 115). Winnicott estende a interpretação, sinalizando mais uma vez a mudança de posição de B na análise. Ele esclarece: "de certa forma, esse é o primeiro passo para o final da análise e, de outra forma, é o estabelecimento de uma igualdade comigo, que é o oposto da dependência" (1986a/2001, p. 115). B compreende e acrescenta que, ultimamente, tem se sentido mais irritado e que sente "isso como um desenvolvimento na análise. É uma nova fase" (1986a/2001, p. 115).

Uma possibilidade que precisa ser oferecida para uma pessoa que conquista o concernimento é a de poder retornar a um estado de dependência em razão de necessidades que surgem nas relações, apesar de já estarem se relacionando de uma outra forma.

Podemos ver um exemplo dessa experiência quando B, apesar de já ter caminhado na análise para uma posição de certa independência, pontuar ainda a sua dependência. Isso aconteceu na última sessão antes de um intervalo de três semanas para o feriado da Páscoa, na qual B relata: "eu realmente fiquei satisfeito com a ideia de tirar uma férias de você, mas ao mesmo tempo isso me aborrece" (1986a/2001, p. 120). Winnicott assinala que B admite a existência de "dois sentimentos de uma vez só" (1986a/2001, p.120), o que indica boa consolidação do concernimento. Mas, devido ao comentário de B de que "o problema com a psicanálise é que muita coisa sempre depende dela", sinalizando ainda uma certa dependência, Winnicott diz: "dessa forma, enquanto você está em análise, eu continuo sendo uma figura parental" (1986a/2001, p. 120).

Ao retornar desse período de férias, B traz algumas questões que configuram essa mudança de modo mais expressivo. B comenta sobre o quanto a interrupção pareceu mais longa que três semanas e que essa experiência permitiu que ele sentisse como seria encerrar a análise. Fala que ficou deprimido, questionando se deveria parar a análise ou diminuira frequência. Faz uma avaliação do relacionamento com a esposa, assumindo estarem nesse momento diante de um impasse em relação ao fim do casamento. Trazendo essas impressões para análise, reflete: "sinto agora certo ressentimento por ter de vir aqui. É uma coisa ilógica. Eu tenho a ideia de que você está me mantendo contra o meu desejo. Percebo que estou esperando você dizer: você não pode ir, e eu estarei lutando pelo meu direito de ir" (1986a/2001, p. 122).

Winnicott confirma reconhecer a estabilidade da conquista do concernimento de B ao responder: "parece ter ocorrido uma mudança do necessitar para o querer, e, junto com o querer, vem o não querer" (1986a/ 2001, p.122). Com essa fala, Winnicott assinala a mudança de posição do paciente em relação à análise e à vida, reconhecendo B como pessoa separada e capaz de deliberar sobre seus sentimentos. B admite a mudança e assume que chegou "a uma posição em que [pode] avaliar as coisas" (1986a/2001, p.122). Diante dessa fala, Winnicott afirma: "em conformidade com esse fato, estou me modificando, deixando de ser um terapeuta para me tornar uma pessoa" (1986a/2001, p. 122).

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: ariadne.moraes@uol.com.br

 

 

Enviado em 12/4/2009
Aprovado em 23/12/2009

 

 

1 Este artigo teve como base o texto apresentado na mesa redonda "Estudos de caso" do "XIII Colóquio Winnicott", cujo tema foi "Os casos clínicos de Winnicott", ocorrido na PUC-SP, em maio de 2008.
2 Usarei em todo texto os termos "estágio do concernimento" e "concernimento", em lugar da expressão "posição depressiva", aderindo à sugestão de Winnicott no artigo "A posição depressiva no desenvolvimento emocional normal" (1958a/2000). Reservarei o uso da expressão "posição depressiva" apenas para as citações do autor.
3
Winnicott escreveu dois artigos baseados nesse caso. O primeiro, "Retraimento e regressão" (1955e/2000), refere-se aos 16 primeiros meses do segundo período da análise. O segundo, intitulado "Fragmento de uma análise", um registro literal dos últimos seis meses do segundo período de análise, foi publicado no livro "Holding e interpretação" (1986a/2001). Além disso, na introdução de Masud Khan do referido livro, foi publicado um conjunto de anotações de Winnicott relativas à primeira análise de B, inéditas até então. Fora isso, Winnicott fez referências a esse paciente em outros artigos.

4
Essa é uma importante diferença entre a teoria da posição depressiva proposta por Melanie Klein e a redescrição dessa teoria realizada por Winnicott.

5
Termo cunhado por Winnicott para descrever, na fase do pré-concernimento, a agressividade não intencional do bebê.
6 Conforme assinalado na introdução, pela afirmativa de Winnicott.
7
Segundo Winnicott, os bebês desenvolvem "uma capacidade para usar certos objetos como símbolos do seio materno e, portanto, da mãe. A relação com a mãe (tanto excitada como tranquila) é representada pela relação da criança com o punho, o dedo polegar ou os dedos, ou com um pedaço de tecido, ou um brinquedo macio. Verifica-se um processo gradual no deslocamento dos objetivos dos sentimentos infantis, e um objeto só passa a representar o seio quando a ideia do seio foi incorporada à criança, através de experiências concretas" (1964a/1982, p. 60).
8 "o conceito de superego é utilizado para descrever o que quer que seja construído, incorporado ou organizado no interior do ego para fins de controle, orientação, estímulo e apoio da pessoa. O controle não se refere apenas aos instintos, mas aos complexos fenômenos do ego que dependem da recordação de experiências instintivas e suas respectivas fantasias" (1988/1990, p. 75).