Natureza humana
ISSN 1517-2430
Nat. hum. vol.12 no.2 São Paulo 2010
ARTIGOS
Natureza e normatividade na hermenêutica ontológica de Martin Heidegger – parte II1
Nature and normativity in Heidegger's ontological hermeneutics - part II
Róbson Ramos dos Reis
Departamento de Filosofia – Universidade Federal Santa Maria.
Endereço para correspondência
Resumo
Na primeira parte do artigo apresentamos algumas críticas à abordagem existencial da natureza e caracterizamos as operações metodológicas fundamentais do programa de uma hermenêutica da natureza esboçado por Martin Heidegger. Nesta parte final, nos concentramos nas indicações formais da articulação dos modos de encontro com a natureza. O ponto central de nossa contribuição é uma caracterização do modo de encontro com a natureza em sentido originário. A natureza em sentido originário aparece no compartilhamento humano com a intencionalidade dos organismos vivos, o que permite falar de um aspecto emergente e retracional da natureza. Por fim, após a consideração da noção de formação de mundo (Weltbildung), indicamos sucintamente a importância da noção originária de natureza para uma interpretação normativa da abertura humana para os sentidos de ser.
Palavras-chave: Heidegger, hermenêutica da natureza, indicações formais da vida, normatividade.
ABSTRACT
In the first half of this paper we presented some criticisms against Heidegger's existential approach of nature. We made also a characterization of his sketched program of a hermeneutic of nature. The issues that concern us in this final part are the formal indications for an articulating of the mode of encounter with nature in an original sense. Nature in primordial sense appears by the sharing of the human intentionality with that of the living organisms. The dynamics of this sharing allow us to identify both an emergent and a retentive aspect of the nature. After considering the notion of world-formation (Weltbildung), we briefly point out the relevance of the primordial notion of nature for a normative interpretation of the human openness to the meanings of being.
Key-words: Heidegger, hermeneutics of nature, formal indications of life, normativity.
1. Indicações formais na hermenêutica da natureza
A hermenêutica da natureza permaneceu não desenvolvida no interior do projeto da ontologia fundamental. Assim, o que podemos apresentar é um comentário de diferentes passagens de "Ser e tempo" e da "Gesamtausgabe" nos quais são mencionados os modos de apresentação da natureza, com o intuito de vislumbrar uma articulação que sinalize as direções formalmente indicadas. De início, o aspecto destrutivo da interpretação previne que se assumam de antemão distinções como natureza viva e natureza não viva, ou mesmo um primado da natureza material como substrato físico de todos os entes intramundanos. Não se trata de recusar tais determinações, mas de suspendê-las em detrimento de uma hermenêutica fenomenológica que descreva os modos de encontro com o natural, interpretando a seguir os sentidos de ser que os fazem possíveis.
Não é demais ressaltar que Heidegger admite expressamente que há uma experiência da natureza, preservando a distinção entre entes naturais e entes históricos. Referindo-se à necessidade humana da visão e da claridade para se poder levar a cabo as lidas cotidianas, Heidegger é claro: "Com a abertura fática de seu mundo, a natureza está descoberta para o ser-aí. No seu estar lançado ele está entregue à mudança do dia e da noite. Com sua claridade o dia propicia a visão possível, a noite a retira" (Heidegger, 1977, p. 545). Além disso, com a instituição pública e impessoal do mundo das ocupações também aparece a natureza do mundo circundante (Umweltnatur), natureza que também pode ter uma significação histórica (Heidegger, 1977, pp. 95 e 504). Assim sendo, o ponto de partida para a construção fenomenológica é dado pela diferença entre mundo e natureza, de acordo com a qual a natureza é um ente que pode ser encontrado no interior de um mundo, sendo descoberta em diferentes graus e caminhos (Heidegger, 1977, p. 86; e 1976, p. 314). Como ente, a natureza é acessível de diferentes maneiras, e como categoria ontológica a natureza é um caso limite dos possíveis entes intramundanos (Heidegger, 1977, p. 88). Quais são então os modos de descobrimento da natureza?
A interpretação das ocupações produtivas apresentou a categoria da Zuhandenheit em termos de uma estrutura relacional constituída por remissões (Verweisungen). Decaído nas suas ocupações cotidianas, o ser humano está referido a obras e tarefas para finalizar, assim como aos meios e utensílios pertinentes e disponíveis para tal. No utensílio e na obra a natureza comparece como um dos polos remissivos. Assim, ao final das remissões teleológicas dos utensílios aparece o produto, a obra a ser concluída. Nesse sentido, a natureza aparece como matéria-prima desde onde pode resultar o produto. Como material bruto para a produção, a natureza tem aqui o sentido daquilo que não precisa ser produzido. Além disso, nos utensílios e itens identificados pela inserção em remissões teleológicas há uma segunda remissão, uma relação em última instância ao material constituinte. A natureza vem ao encontro como aquilo de que é feito um utensílio. Por fim, a remissão ao usuário da ferramenta ou do produto também encontra a natureza. Considerando o perfil mediano do usuário que é coinstituído juntamente com a estabilização impessoal do mundo e das significações, então a natureza é descoberta no mundo público como natureza circundante.
É importante ressaltar que a referência ao usuário individual não encontra a natureza pura e simplesmente como constituição física ou biológica, mas como possibilidade existencial. Nesse sentido, dada a historicidade primitiva do existente humano, a natureza que aparece na remissão ao usuário tem também caráter histórico. A natureza assim descoberta abrange, por exemplo, os impulsos e pulsões existencialmente mediados, assim como aquela classe muito peculiar de fenômeno que Heidegger denominou de fenômenos intermediários (Zwischenphänomen), por exemplo, a morte fisiológica (Heidegger, 1977, p. 328)2. Genericamente, a natureza que aparece ligada às remissões constitutivas da Zuhandenheit é historicamente determinada. A natureza em nós e a natureza em torno de nós – como os lugares de culto ou exploração, o espaço do mundo circundante, as catástrofes naturais etc. – apresentam-se ligadas ao contexto da Zuhandenheit3.
Heidegger também reserva lugar a um modo de encontro especial com a natureza que não se reduz à ligação com a Zuhandenheit. É aquele sentido capturado pela expressão "natureza lá fora, ao ar livre": montanha, bosque, arroio, prados, trigais, canto de pássaros (Heidegger, 1976, p. 314); uma queda-d'água, as pinhas que se desprendem do pinheiro, ou uma pedra que se solta da rocha e cai (Heidegger, 1976, p. 314). A natureza lá fora é experimentada de uma maneira direta e pré-científica. Contudo, diz Heidegger, "... esta natureza lá fora é a natureza da Física e da Biologia, somente que ainda não descoberta em seu ser natural específico" (Heidegger, 1976, p. 314). Ou seja, esse modo de encontro com o natural não está ligado ao contexto da Zuhandenheit, mas se refere potencialmente ao modo de encontro com o natural que é possível pela tematização científica.
Assim sendo, entes naturais também se apresentam como o substrato material de todos os entes intramundanos. Nesse sentido, é a natureza que pode ser acessível quando se faz a abstração do modo de ser da Zuhandenheit. Esse modo de apresentação não é ainda temático-científico, mas é caracterizado pelo desligamento do aspecto da Zuhandenheit (Heidegger, 1976, p. 314). Do mesmo modo, o espaço natural homogêneo é acessível pela abstração da específica espacialidade do mundo circundante, também ligada à Zuhandenheit (Heidegger, 1977, p. 150). A desmundanização do ente intramundano de uso oferece a natureza como algo subsistente e simplesmente presente, capaz de ser acessível tematicamente segundo diferentes maneiras. Para ser concebida tematicamente nas ciências naturais, é preciso, além da abstração da Zuhandenheit, a projeção construtiva do modo de ser do domínio de referências, o que é variável de acordo com as ciências em questão.
Por fim, convém destacar que, numa breve passagem de "Ser e tempo", Heidegger acena para um terceiro modo de encontro com a natureza que não possuiria nem relação com a Zuhandenheit nem com a Vorhandenheit. "A natureza que nos 'rodeia' é, sem dúvidas, um ente intramundano, mas não tem o modo de ser nem do disponível nem do que subsiste simplesmente aí ao modo da 'coisidade natural'" (Heidegger, 1977, p. 280). O reconhecimento desse modo de ser não é elaborado numa interpretação ontológica. Contudo, ao não lhe atribuir o sentido da Vorhandenheit, pode-se concluir que Heidegger não visava o sentido mencionado acima, a ,natureza lá fora. O tópico fica sem desenvolvimento, mas sugere uma relação com o fenômeno do estar situado em meio ao ente, pelo qual se tem um modo de apresentação da natureza em sentido originário.
Como já foi dito, as referências acima recolhidas não foram objeto de uma interpretação articulada no interior da ontologia fundamental. Não obstante, há uma passagem muito citada em "Ser e tempo" na qual são mencionados quatro modos possíveis de apresentação da natureza. Após considerar a natureza como produto natural, no sentido daquilo que não carece de produção e sempre está disponível para o uso, Heidegger afirma que:
Natureza aqui, porém, não deve ser compreendida como o apenas subsistente e também não como poder natural (Naturmacht). A floresta é reserva florestal, a montanha é pedreira, o rio é energia hidráulica, o vento é vento "nas velas". Com o "mundo circundante" descoberto, a "natureza" assim descoberta vem ao encontro. Pode-se prescindir de seu modo de ser disponível, sendo ela descoberta e determinada somente em sua pura subsistência. Porém, a esse descobrimento da natureza fica oculta a natureza como o que "se agita e cria" ("webt und strebt"), nos assalta, e nos cativa como paisagem. As plantas do botânico não são as flores no campo, o "nascimento" de um rio, constatado geograficamente, não é "a fonte no solo" (Heidegger, 1977, p. 95)
Observa-se que a passagem não é uma tematização ontológica sistemática, mas tem o sentido de enfatizar a diferença entre o natural dependente da Zuhandenheit e a natureza como subsistente e presente, capaz de ser tematizada cientificamente, com o que ela apresenta-se como pura subsistência (pure Vorhandenheit). Para tal, é necessário abstrair o modo da Zuhandenheit. No entanto, também é grifado o termo poder natural, sem que seja oferecido um esclarecimento sobre o sentido em questão. A natureza como poder natural é redutível aos dois outros sentidos ou designa um sentido próprio de ser?
Por fim, Heidegger distingue a natureza tematizada na ciência em relação a outro modo da presença do natural. Aparentemente, esse modo alternativo não se reduz à natureza que aparece nas ocupações cotidianas. Três características são indicadas: a natureza que se agita e cria, que assalta os seres humanos, e que os cativa como paisagem. Dois exemplos com função contrastiva são referidos: as flores do campo e a fonte no solo, que não são os objetos temáticos do geógrafo e do biólogo. O uso das aspas sugere uma referência indireta, sem indicação de fonte4. A natureza assim descoberta não apenas é distinta da natureza como tema do descobrimento científico, mas permanece oculta na natureza descoberta nas ciências. Heidegger não oferece uma denominação geral para o sentido de ser que tornaria presente a natureza nessa acepção, nem para o comportamento que a descobriria. De fato, as indicações sugerem a autonomia do natural e a passividade do existente humano diante do que se lhe sobrevém.
Seria tentador aproximar esse sentido especial de natureza do conceito romântico de natureza ou de comportamentos relacionados ao belo natural, portanto da dimensão poética (Foltz, 1995, pp. 43 e 49-50; Dreyfus, 2001, pp. 73-74). Contudo, não há nenhuma referência expressa nessa direção. Os exemplos oferecidos permitem um comentário. Paisagem também é o exemplo que Heidegger oferece para identificar casos da natureza como ente histórico. Na passagem em questão, a ênfase parece estar colocada no assalto que toma conta do ser humano, cativando-o. Mesmo num ente histórico, como uma paisagem, estaria presente a natureza como algo não histórico, como aquilo que mantém cativo o ser humano. Em relação às plantas e às flores, apesar da diferença indicada por Heidegger, em ambos os casos se trata da vida, da natureza viva. A diferença incidiria sobre a vida como tema da Biologia, que possuiria o sentido de natureza tematicamente descoberta, e a vida que nos é manifesta de outro modo. Evidentemente, não se trata da vida descoberta em ligação com a Zuhandenheit. Em relação à fonte no solo, sem a determinação da origem da citação não é possível adiantar nem mesmo uma sugestão interpretativa.
Em termos gerais, pode-se concluir da passagem citada que as diferentes situações de encontro com o natural são relativas aos sentidos de ser da Zuhandenheit, da Vorhandenheit e do poderio (Mächtigkeit5). Natureza produtiva, natureza tematizada e natureza como poderio. Foltz (1995, pp. 31, 43 e 51) interpreta o significado de natureza indicado nos exemplos da paisagem e das flores no campo como sendo aquele encontro com a natureza em sentido originário de que fala a nota antes citada de "Sobre a essência do fundamento". A natureza em sentido originário seria poeticamente acessível, em modos de encontro que não se reduzem a nenhuma das três classes anteriormente referidas. O ponto é controverso, pois em "Ser e tempo" Heidegger não faz tal vinculação. Contudo, é admissível seguir nessa direção, caso lembremos que a natureza em sentido originário é acessível no ser-aí por este encontrar-se situado em meio ao ente. A situação em meio ao ente é sugerida nos traços de passividade e abarcamento que são relacionados com a cativação pela paisagem, por exemplo.
Além disso, a relação com o problema da vida não é circunstancial (motivada pela simples menção às flores no campo). Vimos como a situação de encontrar-se em meio ao ente foi elucidada por Heidegger nos "Conceitos fundamentais da metafísica" a partir de características estruturais da vida animal: os círculos envoltórios e a abertura orgânica para um ambiente e entes ambientais. Assim sendo, na hermenêutica preocupada em interpretar os modos de encontro com a natureza, é preciso considerar o modo de ser da vida. Seria no encontro com a vida que estaria dada a posição prévia para a doação originária da natureza?
Seja como for, um componente ontológico formal pode ser identificado em todos os modos do aparecer na natureza: a retração e o ocultamento. A lida apropriada com os utensílios exige que a utensilidade esteja retraída, portanto também a natureza que nela se apresenta. A natureza tematicamente objetivada requer a abstração da mundaneidade da natureza produtiva e uma projeção positiva de sentidos determinados de ser. Para tal, é preciso que fique oculta a natureza que cativa e abarca6. A consideração do modo de ser da vida será relevante, porque na ontologia do vivo Heidegger identifica um traço fundamental relacionado ao ocultamento da natureza e também a uma estrutura que tradicionalmente esteve ligada ao sentimento do sublime.
2. A vida e a natureza
Como visto, Heidegger elucida a estrutura elementar do estar em meio ao ente como um todo como sendo a experiência cotidiana de uma transposição para o quase mundo dos seres vivos. A vida não aparece apenas como matéria-prima para a produção ou como material de que são feitos alguns utensílios. A transposição humana para o interior do campo circundante dos organismos não é possível apenas como um experimento de pensamento (Heidegger, 1983, p. 297). Dessa forma, a interpretação da vida não precisa tomar como posição prévia a ocupação ou a tematização da natureza viva, mas pode voltar-se para o modo como a vida se oferece nos acompanhamentos cotidianos com plantas e animais. A partir da vida como tema ou como matéria dos utensílios, talvez não se alcance a vida como aquilo em que já sempre estamos transpostos. O contrário sim, e buscar privativamente a vida tal como é acessível no ser-aí não tem um sentido abstrativo além daquele que afasta as confusões hermenêuticas originadas do primado da ocupação e da objetivação temática dos entes.
Em "Ser e tempo" não há uma elaboração da ontologia da vida, que, entretanto, foi esboçada nos "Conceitos fundamentais da metafísica". Assim, as indicações metodológicas oferecidas nos dois textos são suficientes para reconhecer que a hermenêutica da vida procede em dois momentos coordenados: uma interpretação privativa e uma interpretação circular em cooperação com as ciências biológicas7. De um ponto de vista destrutivo, a interpretação privativa retira o apoio sobre o qual repousa a polêmica entre mecanicistas e vitalistas. Construtivamente, porém, a privação focaliza a estrutura da abertura. Se a vida aparece desde a formação de mundo, então, é preciso considerar aquilo da vida que se ausenta na abertura de mundo. Essa operação, no entanto, exige a segunda operação da hermenêutica da vida, pela qual são introduzidos os conceitos fundamentais e os resultados empíricos das ciências biológicas.
Em "Conceitos fundamentais da metafísica" Heidegger desenvolveu uma interpretação ontológica do modo de ser da vida. Apesar da orientação comparativa da tematização da vida animal, os resultados alcançados são decisivos para o problema da hermenêutica da natureza como um todo8. Tomando como ponto de partida o conceito de organismo, e considerando certos resultados experimentais da Zoologia da época, Heidegger chega a resultados gerais que resumimos a seguir9.
A vida deve ser entendida como organismo10. Os organismos são unidades relacionais de órgãos regulados por aptidões. As aptidões regulamentam os comportamentos ambientais das unidades orgânicas, comportamentos que são desencadeados por desinibições pulsionais. Os organismos estão envoltos em círculos ecológicos de comutação de pulsões exercidas em comportamentos regulados. A despeito das dificuldades, Heidegger reconhece comportamentos intencionais nos organismos vivos. As unidades orgânicas ambientais estão relacionadas não apenas a algo puramente subsistente, mas sim a algo que lhes aparece de uma forma especial (Heidegger, 1976, pp. 214-216). A vida possui algo similar a um mundo. Essa posição já aparece, por exemplo, nas "Conferências de Kassel", apesar de que ainda sem a restrição semântica em relação ao termo Umwelt, que será estabelecida a partir de "Ser e tempo":
Vida é uma realidade que é em um mundo, e ela é de um modo tal que possui um mundo. Todo ser vivo não possui o seu mundo circundante como algo subsistente presente ao seu lado, mas sim como algo que lhe está aí aberto, descoberto. Este mundo pode ser muito simples (para um animal primitivo). Porém, a vida e seu mundo não são nunca duas coisas uma ao lado da outra, como duas cadeiras que estão colocadas lado a lado, mas a vida "tem" seu mundo. Este conhecimento começa a avançar pouco a pouco também na Biologia (Heidegger, 1992-1993, p. 162).
Por sua vez, a noção de perturbação ou cativeiro (Benommenheit) descreve a estrutura dessa intencionalidade. A perturbação mantém o organismo cativo do movimento de inibição, desinibição e comutação de pulsões. A perturbação pulsional nunca leva para além de si mesma, pois, não havendo transcendência em relação aos entes do ambiente, não há vincularidade a algo como algo para a intencionalidade orgânica.
No entanto, a noção de perturbação não conclui a ontologia da vida. As características de autoprodução, da autodireção e da autorrenovação são reconhecidas como próprias dos organismos (Heidegger, 1983, p. 325). Contudo, a vida também precisa ser concebida a partir da noção de possibilidade. Diz Heidegger:
"Por fim, pertence justamente à essência da realidade do animal o ser-possível e poder em um sentido determinado; não apenas de modo tal que tudo o que é atual, conquanto o seja, precisa ser em geral possível, não esta possibilidade. Ser-apto pertence muito mais ao ser-atual do animal, à essência da vida. Só o que é e continua sendo apto vive" (Heidegger, 1983, p. 343).
É certo que o tema introduz muitos problemas adicionais em todo arcabouço ontológico da analítica existencial, no qual fora postulada uma problemática ampliação das modalidades, em particular com a noção de uma possibilidade existencial. Desse modo, a natureza viva precisa ser concebida como uma dinâmica temporal e histórica, que não é derivada da historicidade que lhe é concedida pela intramundaneidade. A vida é uma mobilidade de possibilidades e aptidões estruturadas pela perturbação.
O movimento dos organismos vivos é um processo qualitativo manifesto na dinâmica de nascimento, crescimento, envelhecimento e morte. Heidegger admite que o problema da hereditariedade precisa ser considerado nesse contexto, apesar de não o ter desenvolvido (1983, p. 386). A perturbação não é um estado estacionário, mas uma mobilidade que se estrutura e definha. A vida deve ser compreendida, portanto, como um tipo de possibilidade formativa de círculos de desinibições, de estruturas e órgãos, mas também como um ser-possível que está sob a lei de um movimento em direção ao definhamento e à morte, e ao longo do qual uma herança é transmitida11.
A partir desses elementos surge um dos problemas mais centrais da hermenêutica da vida, de cuja elaboração resultará a determinação do que significa o fenômeno do estar situado em meio ao ente. Portanto, é a partir desse problema que se poderá ver o sentido originário da natureza, a naturalidade do natural. O problema refere-se ao limite na comparação entre a estrutura da intencionalidade existencial e a estrutura da intencionalidade dos animais. O abismo que separa a existência humana de todo o reino da vida reside na impossibilidade de traçar uma fronteira que não seja apenas comparativa. Ao final da elaboração do tema, estaremos diante do que Heidegger chamou de "enigma da vida".12
O problema é de segunda ordem e já dá por resolvido o problema da atribuição de estados intencionais aos animais13. Com restrições é possível conhecer a estrutura da intencionalidade animal. Por conseguinte, é possível compará-la com a estrutura da intencionalidade humana. Esta é condicionada pela transcendência a ser, abrindo o campo do relacionamento com algo enquanto algo. Os organismos são aptos a desinibições pulsionais em círculos envoltórios, portanto algo aparece para o organismo na função de desinibição de pulsões. Porém, mesmo esta comparação é limitada. O limite é dado pela análise de um fenômeno muito especial: o acompanhamento na intencionalidade animal.
Heidegger aborda o problema sobre se podemos nos transpor para o campo dos organismos, isto é, se somos capazes de acompanhar os organismos nas suas ligações ambientais com algo14. A resposta é afirmativa. Temos essa experiência cotidianamente, e não apenas em relação a animais domésticos. Podemos compartilhar a nossa relação intencional com a relação intencional dos animais, acompanhando-os em suas ligações com algo. Rigorosamente falando, não é possível afirmar que a intencionalidade orgânica, caracterizada pela estrutura da perturbação, seja integralmente compartilhada pela intencionalidade humana (Heidegger, 1983, p. 291). E isso não em razão de uma limitação nas capacidades cognitivas humanas. Os organismos animais recusam um acompanhamento completo nos seus trânsitos ambientais (Heidegger, 1983, pp. 49-50).
Apesar de não haver uma transposição completa, o acompanhamento parcial faculta a identificação de uma forma própria de intencionalidade orgânica. Os animais são expelidos em direção a algo diverso que não pode ser compreendido como algo meramente presente e subsistente. Heidegger ainda formula uma sentença adicional que declara um traço ontológico igualmente central na ontologia da vida. Como os organismos são compreendidos como um tipo especial de possibilidade, então sua abertura para algo proporciona um abalo na essência modal dos organismos. Como perturbador, o objeto da intencionalidade animal proporciona um estremecimento na essência do vivo. O cativeiro no qual está mantido o organismo proporciona uma modificação nas determinações modais da vida, e então não é apenas o correlato ambiental que fica vedado para a intencionalidade humana: é o organismo como unidade relacional e histórica que fica parcialmente de fora da abertura de mundo dos homens.
Portanto, da comparação entre a estrutura hermenêutica da intencionalidade humana e a estrutura perturbacional da intencionalidade animal resulta uma limitação: não há como determinar completamente o que significa ser um organismo vivo intencional. A hermenêutica da vida chega a um resultado geral, limitativo do escopo da ontologia fundamental: o sentido de ser da vida não admite uma determinação completa e, portanto, uma interpretação a partir da temporalidade ek-stática e horizontal do ser-aí (Heidegger, 1983, p. 404). A contingência da intramundaneidade da natureza não é relativa apenas à contingência do ser-aí, mas precisa ser atribuída ao próprio modo de ser do natural. Os organismos exibem de forma privilegiada o retraimento autônomo da natureza, que, ao tornar-se intramundana – como tema científico, como remissão do utensílio ou como acompanhamento cotidiano de animais e plantas –, mantém algo de si no ocultamento. Este traço formal será retomado ao considerarmos o sentido normativo que o sentido de ser da natureza representa para a abertura de mundo do ser-aí. No momento cabe destacar uma determinação ontológica mais geral que Heidegger identifica a partir da consideração do modo de ser da vida.
Como vimos, o estar situado em meio ao ente como um todo é interpretado como a transposição humana para a engrenagem dos círculos envoltórios dos organismos. A móbil interpenetração dos círculos ambientais revela o modo próprio de ser da natureza. Nas palavras de Heidegger:
Esta engrenagem dos círculos envoltórios dos animais uns nos outros, que surge a partir da luta dos próprios animais, mostra um modo fundamental de ser, que é diverso de todo mero ser-simplesmente-dado. Se pensarmos que em cada uma de tais lutas o ser vivo adapta uma vez mais para si em seu círculo envoltório algo da natureza mesma, então precisaremos dizer: revela-se para nós nestas lutas próprias aos círculos envoltórios um caráter interno de dominação por parte do vivente no interior do ente em geral, uma supremacia da natureza sobre si mesma vivenciada na própria vida (Heidegger, 1983, pp. 402-403).
Assim, a luta entre os seres vivos é caracterizada por uma adaptação, uma incorporação de algo da natureza em cada círculo envoltório. Essa inclusão da natureza significa a dominação do ente vivo, na medida em que caracterizado por círculos envoltórios constantemente adaptativos. Nesse contexto, Heidegger estende o movimento de incorporação de elementos do círculo ambiental para a natureza como tal. A elevação da natureza sobre si mesma é expressa pelo termo Erhabenheit, que também significa sublimidade. A supremacia da natureza é também a sua sublimidade (Reis, 2008). Estar em meio ao ente significa, portanto, estar transposto para a abertura dos círculos envoltórios. Assim sendo, a abertura do ser-aí é capturada pela elevação e sublimidade da natureza.15
Em síntese, ao considerar o modo de ser da vida, Heidegger também alcança a determinação do sentido originário de natureza, tal como está desvelado no próprio ser-aí como um ente situado em meio ao ente no todo. Esse desvelamento não ocorre pela tematização e pela remissão utensiliar, mas pelo acompanhamento vivenciado cotidianamente da abertura ambiental dos organismos. Nesse acompanhamento torna-se visível a natureza como uma vigência, como um poder de elevação sobre si mesma, mas também formando possibilidades que são apenas parcialmente abertas pela compreensão humana de ser. Heidegger encontra, portanto, dois traços fundamentais do conceito originário de natureza: emergência, como o vigorar de um poder de formação de possibilidades; e auto-ocultamento, isto é, a retirada autônoma do mundo humano16. Em suma, a hermenêutica da natureza virtualmente presente na analítica da existência não apenas oferece indicações formais sobre os diferentes sentidos de ser que possibilitam o encontro com entes naturais, mas também o modo de encontro com a natureza em significado originário é indicado e, mais importante, são oferecidas determinações tanto do modo de ser da natureza quanto das implicações para o modo de ser da existência que se encontra situada em meio ao natural. São essas implicações que nos permitem considerar agora o sentido normativo da natureza e, portanto, do ser em geral.
3. Formação de mundo e normatividade
Antes de considerarmos a relação entre a hermenêutica da natureza e o problema da normatividade, convém nos determos num problema mais geral. A ênfase no componente destrutivo da fenomenologia hermenêutica permite que surja uma objeção à tentativa de considerar elementos normativos na ontologia fundamental. Como é bem sabido, um aspecto decisivo da pergunta sobre o sentido do ser reside na realocação da prioridade concedida pela fenomenologia e pelas escolas neokantianas à problemática epistemológica. Nesse sentido, a crítica à filosofia do valor e à filosofia da consciência normal é uma instância específica dessa reorientação. Assim, por exemplo, na interpretação do modo de ser da Zuhandenheit, Heidegger considera que, se partirmos da noção de valor, então não se poderá alcançar o ser dos utensílios, pois novamente se chegará a uma ontologia dualista17. Num sentido mais básico, a crítica de Heidegger remonta ao conceito de Geltung na obra de Lotze e focaliza o dualismo que resulta da admissão do domínio da realidade física ou psíquica, de um lado, e do reino das validades, de outro. Com base nesse dualismo, que aparentemente seria o preço a pagar para a saída do psicologismo, aparece um problema derivado: o problema da participação. É correto que no vocabulário da analítica da existência há quase nenhuma referência a expressões normativas. Contudo, o elemento destrutivo não deve impedir o reconhecimento de um campo muito especial do normativo na analítica existencial e no problema do ser como um todo18. Não é necessário que toda normatividade implique platonismo, apesar das dificuldades que já os representantes da Escola de Baden encontraram para lidar com o problema da relação entre o fatual e o normativo (Beiser, 2009).
A despeito do elemento destrutivo da crítica à filosofia do valor e da consciência normal, uma interpretação construtiva da analítica existencial e da ontologia fundamental procura mostrar que é admissível apresentar o conceito de ser em termos normativos. Steven Crowell tem ressaltado diferentes aspectos em que o problema da normatividade pode ser enfocado na obra de Heidegger, tanto no período de "Ser e tempo" quanto em escritos posteriores (2005, 2007a, 2007b, 2008). Dessa forma, a fenomenologia do chamado da consciência em "Ser e tempo" pode ser entendida como a abertura do existente humano para o espaço do normativo. Ouvir o chamado da consciência significa responder a um apelo que torna possível não apenas ter razões como algo simplesmente dado, mas submeter-se a razões que podem justificar, e em face das quais há um espaço diferenciado de aceitação ou recusa (Crowell, 2008, p. 267).
A interpretação de Crowell tem uma pretensão muito mais fundamental, pois a tese que pretende ser justificada é que todo acontecimento dos sentidos de ser pode ser entendido como uma orientação para o normativo. Dessa forma, a base transcendental da intencionalidade deve ser vista como uma extensão da identidade modal da existência humana para todos os sentidos de ser. Assim como a identidade própria é prático-normativa, também os entes de todas as classes e modos possuem um status normativo. Os sentidos de ser operam como instâncias reguladoras que nos permitem tomar algo como sendo de tal e tal feitio. Nesse sentido, fazer frente a algo como algo consiste em responder aos entes segundo um padrão normativo. "Ser é a norma para os entes" (Crowell, 2007b, p. 2).19
Que os entes não carreguem em si mesmos tal status normativo leva a um fator adicional. Somente ligando-se de forma vinculada aos entes é que eles adquirem tal condição normativa. Essa vinculação consiste em transferir para o campo ôntico uma normatividade determinada: a diferença entre existir e não existir, as propriedades e modos de ser. A ligação vinculada a entes é que institui a possibilidade de estar sob normas. Tal vincularidade é proporcionada pela compreensão de ser, explicando a condição humana de ser-aí. Nesses termos, os sentidos de ser discriminam as condições hermenêuticas que permitem o aparecer de algo que vale como algo (Carman, 2003, p. 41). De acordo com essa interpretação, haveria uma força normativa nos sentidos de ser. Porém, Heidegger não teria construído a orientação humana para o normativo nos termos da posse de alguma lei, norma ou regra. Há certamente muitos problemas exegéticos e conceituais na reconstrução de uma força normativa sem caráter nomológico (Crowell, 2008, pp. 274-275). Neste trabalho nos limitamos a examinar o sentido normativo que a hermenêutica da natureza permite reconhecer na abertura para os diferentes sentidos do natural. Para examinarmos brevemente o ponto, é preciso considerar um dos núcleos temáticos dos "Conceitos fundamentais da metafísica": a formação de mundo como abertura para o ente no todo. Desse modo, o problema da natureza mostra-se igualmente privilegiado para reconhecer um elemento normativo no problema do ser. Nossa hipótese é que no sentido originário do encontro com a natureza fica manifesto um aspecto da normatividade de ser que está relacionado com a finitude existencial e do próprio ser. Muito menos do que estabelecer esta hipótese, o nosso esforço aqui consiste em simplesmente tornar visível aquilo que pode ser tomado como a origem de uma força normativa na transcendência do ser-aí.
Após a publicação de "Ser e tempo", Heidegger promove uma alteração no modo de conceber a abertura pré-temática que condiciona a intencionalidade. A abertura para entes determinados não é qualificada apenas como pré-temática, pré-lógica e pré-objetual, mas é vista como uma dimensão originária composta por momentos diferenciados e ligados de modo unificado. Essa dimensão não é um estado ou um produto acabado, mas um acontecimento que Heidegger denomina de formação de mundo (Weltbildung). A formação de mundo condiciona todas as classes de comportamentos intencionais. Portanto, também o encontro com a natureza em significado originário acontece em uma formação de mundo.
No vocabulário da analítica existencial o termo "mundo" conota uma referência à totalidade. Contudo, designa a abertura do ente enquanto tal no todo, e não uma coleção completa de objetos ou uma propriedade comum aos elementos dessa coleção. Já o conceito de formação é apresentado em três significados (Heidegger, 1983, p. 506): 1) a instalação de mundo, 2 a apresentação de um aspecto, o dar uma imagem para abertura, e 3) a constituição que enquadra e envolve.20
Dessa forma, a abertura pré-temática é a formação de mundo, entendida como uma história fundamental que tem vigor, e cuja vigência condiciona a intencionalidade humana. A formação de mundo significa a abertura para o ente enquanto tal no todo, abrangendo três momentos que estão em relações de imbricamento mútuo, constituindo assim uma unidade. São eles: 1) a manutenção de uma vinculação de obrigatoriedade com os entes, 2) a integração dos entes em um todo, 3) o desvelamento (desentranhamento) de ser.
A ligação vinculante com entes é o momento de normatividade na formação de mundo. A abertura significa o estabelecimento de relações para com entes. Essas ligações ocorrem com base na possibilidade constante do insucesso. A vinculação é um submetimento aos entes, uma ligação que é regulada pelos sentidos de ser, mas que se faz no espaço de uma possível desvinculação. Dito de modo um tanto vago, há um vínculo de obrigatoriedade que é feito sob a possibilidade incondicional do sim e do não. Em toda formação de mundo ocorre uma vinculação que obriga determinadamente a relação com os entes. Ao referir-se especificamente aos princípios fundamentais da Lógica, Heidegger reconheceu essa conexão entre submissão à legalidade e liberdade:
A vincularidade e legalidade pressupõem em si mesmas a liberdade como fundamento de sua própria possibilitação. Apenas o que existe como criatura livre (freies Wesen) pode estar em geral ligado a uma legalidade enquanto vinculante. Apenas a liberdade pode ser a origem da vinculação (Bindung) (Heidegger, 1978, p. 25).
O segundo momento da formação de mundo é designado pela expressão no todo: abertura do ente enquanto tal no todo. É importante não confundir essa estrutura com a totalidade dos entes, algo assim como o conjunto completo de todas as coisas, o universo, a série completa dos fenômenos etc. Abertura para entes no todo não quer dizer, portanto, acesso à multiplicidade completa dos entes. A expressão no todo também não designa a forma do acesso intencional, uma espécie de forma a priori que governaria os comportamentos intencionais (Heidegger, 1983, p. 505). A expressão no todo significa a relacionalidade sempre presente na abertura para entes singulares, quer são acessíveis a partir da inserção em contextos qualificados que remetem a outros contextos e a outros entes. Tais contextos são diversificados tanto em relação à amplitude e à riqueza de componentes, quanto em relação à transparência com a qual podem ser acompanhados. Apesar de preservarem certa estabilidade mediana, essas totalidades limitadas sofrem modificações variáveis na cotidianidade.
Assim sendo, a formação de mundo significa a abertura do ente em totalidades, em todos particulares. Contudo, o feitio, a modelagem dessas totalidades é que constitui um momento estrutural da formação de mundo. Esse momento é designado pelo termo integração (Ergänzen). Formar mundo significa integrar os entes em totalidades. A integração de um ente em um todo não deve ser vista como a junção de um elemento que estava faltando. No sentido artesanal do termo, diz Heidegger, a ação central na integração é o agregar um elemento a um contexto global a partir da visualização e pré-delineamento do todo (Heidegger, 1983, p. 505). A formação de mundo significa, portanto, a integração dos entes em contextos relacionais, formando articulações sistemáticas que abrangem e condicionam o aparecer de entes singulares.
Por fim, o terceiro momento da formação de mundo é o desvelamento de ser. A integração em contextos totais que se mantêm em vincularidades obrigatórias é um estar aberto para os entes. Essa abertura para entes como entes é qualificada, no sentido de ser sempre acompanhada de diferenciações tácitas sobre o que eles são, como são, e se existem ou não. Tais articulações ontológicas pré-temáticas são capturadas pelo termo ser. Assim sendo, na integração de entes em totalidades está desvelado o ser de tais entes.
Em síntese, a formação de mundo é o desvelamento de ser na integração em totalidades que vinculam normativamente aos entes. Todos os entes acessíveis em comportamentos intencionais são condicionados pela abertura prévia proporcionada pela formação de mundo. Até mesmo os seres humanos aparecem apenas com base na dimensão de abertura pré-temática. Tal consequência não significa apenas o acesso ao domínio específico dos seres humanos, mas também que as possibilidades da existência estão condicionadas pela vigência da abertura de entes no todo. De outro lado, a abertura de multiplicidades regionalizadas de entes – outros seres humanos, coisas materiais, obras de arte, animais e plantas – não é apenas uma multiplicidade de domínios encaixados aleatoriamente (Heidegger, 1983, p. 414). A formação de mundo é sempre em unidades qualificadas, nas quais se encontram interpenetrados os diferentes domínios de entes e suas respectivas condições de inteligibilidade. As regiões de entes que podem nos ser acessíveis não estão simplesmente articuladas ou justapostas, mas têm unidade no interior de uma formação de mundo.
É importante ressaltar que o próprio Heidegger empregou uma expressão normativa para qualificar a formação de mundo. Entendida como um acontecer histórico, a formação de mundo tem o sentido de uma legalidade primordial (Urgesetzlichkeit) que vigora no tornar-se fenômeno de algo. A seguinte passagem exibe o ponto com clareza:
Se nos lembrarmos apenas da esfera particular do reino animal, então já notaremos lá uma peculiar engrenagem e um peculiar acoplamento dos círculos envoltórios dos animais, que estão uma vez mais incorporados de maneira peculiar ao mundo do homem. O que designamos formalmente como a multiplicidade do ente necessita de condições totalmente determinadas para vir-a-ser manifesto enquanto tal – de maneira alguma esta multiplicidade necessita apenas da possibilidade de diferenciar os diversos gêneros do ser, como se estes estivessem ordenados por assim dizer no vazio uns ao lado dos outros. Enquanto esta vigência, o entrelaçamento das próprias diferenças e o modo como este entrelaçamento nos acossa e suporta são a legalidade originária (Urgesetzlichkeit), a partir da qual compreendemos pela primeira vez a constituição ontológica específica do ente que se encontra contraposto a nós ou mesmo do ente que se tornou objeto teórico da ciência (Heidegger, 1983, p. 514).
A passagem citada aponta claramente para um sentido normativo na formação de mundo. O problema que desejamos tematizar agora se refere ao modo como a natureza em sentido originário pode ser vista no contexto da formação de mundo. Dado que a natureza em sentido originário apresenta-se como um vigorar que se eleva sobre si mesmo, e que se retira da abertura humana de mundo, então como deve ser concebido o encontro com o natural na formação de mundo? Além disso, considerando que há uma retração constitutiva da natureza em sentido originário, então que implicações essa estrutura de ocultamento acarreta para a própria noção de formação de mundo? Nesse caso, a nossa sugestão é que a natureza em meio à qual se está situado tem a capacidade de mostrar a participação humana numa história da formação de mundo, história na qual a natureza aparece contingentemente mas se retrai necessariamente.
4. Natureza e normatividade na formação de mundo
Ao considerarmos a noção de formação de mundo e os resultados indicados na hermenêutica da natureza, alguns problemas ficaram sem resposta. De que modo os diferentes sentidos de ser da natureza ganham unidade na formação de mundo? Caso a vida tenha que ser compreendida como dotada de uma classe especial de mobilidade e historicidade, haveria uma temporalidade própria da natureza viva? Em caso afirmativo, qual a relação com a temporalidade da existência? Além disso, os fenômenos intermediários, reconhecidos por Heidegger em "Ser e tempo" (Heidegger, 1977, p. 247), necessitariam de uma compreensão de ser específica? Não estaria aqui a base de condições para atender às demandas críticas de Löwith e Plessner? Para concluirmos este trabalho, abordaremos agora um problema mais geral, relativo ao encontro com a natureza em sentido originário na formação de mundo. Esse contexto temático permitirá visualizar o significado da normatividade ligada à formação de mundo e o privilégio da hermenêutica da natureza no reconhecimento de tal normatividade.
A formação de mundo foi apresentada em três momentos, abrangendo a unidade dos sentidos de ser configurados em totalidades integradas. Em um desses momentos há a submissão aos sentidos de ser. Como formador de mundo, o ser-aí humano pertence aos sentidos de ser que regulam a ligação a entes. Como foi visto, a natureza viva mostra-se no compartilhamento cotidiano com os círculos envoltórios dos animais. A vida aparece como uma abertura para algo, mas que se subtrai ao compartilhamento completo na abertura existencial. Desse modo, a comparação na estrutura da intencionalidade é apenas parcial e deve-se reconhecer um retraimento da essência mesma da vida na própria formação de mundo. Portanto, na vida fica manifesto um retraimento da natureza, a qual se revela apenas parcialmente na sua emergência contingente no mundo21. Essa característica da vida é integrada na formação de mundo? Como?
A hermenêutica da natureza identificou diferentes sentidos do natural e as condições de sua inteligibilidade. Podemos falar de sentidos relacionais do natural, a natureza temática e a natureza produtiva, ambas relacionadas às possibilidades existenciais do ser-aí. Caso lembremos de que o conceito existencial de ciência nos mostra o comportamento científico como uma tematização veritativa dos entes ancorada no modo de ser autêntico, então até mesmo a natureza tematizada na ciência mantém uma ligação com o modo da existência. Talvez se possa falar do natural eminentemente relacional e do natural derivadamente relacional, para guardar uma correspondência com os modos derivados e eminentes de ser-no-mundo. Em ambos os casos o retraimento do natural é uma condição para o adequado comportamento com os entes. Na ocupação com os entes disponíveis na Zuhandenheit, é preciso o retraimento da própria Zuhandenheit e, portanto, da natureza nela remissivamente presente. Na tematização científica não apenas é preciso a abstração da Zuhandenheit, mas a projeção do modo de ser dos domínios de referência mantém oculta a natureza em sentido originário. Pode-se reconhecer nessas formas de retraimento do natural uma dependência em relação aos comportamentos do ser-aí. É a adequação ao propósito regulado dos respectivos comportamentos que assegura o retraimento do natural.
No entanto, quando consideramos o modo originário da natureza, revelado no estar situado em meio ao ente, é possível falar não artificialmente de um modo irrelacional da natureza, e isto não apenas porque não se trataria de um sentido do natural ligado a possibilidades humanas. A independência da natureza refere-se ao seu retraimento autônomo da abertura humana de mundo. Esse traço formal já anunciado por Heidegger na diferença entre natureza e história, dado que os entes históricos são necessariamente intramundanos, assume agora uma determinação concreta em relação ao retraimento da vida. Esse sentido originário do natural aponta, portanto, para uma estrutura ontológica geral que gradativamente assumirá uma posição destacada na formulação da questão do ser e da história do ser (Foltz, 1995, p. 123). A formação humana de mundo acontece em meio à transposição para o interior dos círculos envoltórios da vida, desde os quais fica manifesta em concreto a retração ou ocultamento do natural. Ou seja, a formação de mundo ocorre desde um fechamento do mundo para a natureza viva.
Este aspecto fundamental é relevante para o problema da normatividade dos sentidos de ser. Como ser-aí, os seres humanos pertencem a uma abertura compreensiva para diferentes sentidos de ser, pertencem a formações de mundo. Tal pertencimento significa uma ligação que se submete de modo determinado aos entes. No caso dos utensílios e obras, há uma submissão à consolidação de práticas regulamentadas que permitem que algo apareça como algo para um propósito determinado. Em relação à tematização teórica, há uma submissão às determinações próprias dos entes pertinentes aos diferentes domínios de referência assertiva. No caso da própria existência, há uma submissão às decisões antecipatórias e às possibilidades recebidas de uma herança. Responder a tais demandas na forma da consciência é o modo de fazer-ser responsável por um espaço de razões que não apelam somente como fatos causais dados, mas que podem operar como instâncias de justificação (Crowell, 2007a). É oportuno lembrar que as condições para o pertencimento à história da formação de ser não se concentram apenas no modo de existir autêntico, mas remontam ao colapso das projeções em habilidades. Somente quem pode desabar das capacidades pode agir segundo normas (Crowell, 2007a, 2007b, p. 8, 2005, pp. 125-132).
Em relação ao encontro com o natural em sentido originário da natureza que vigora numa emergência retracional, a resposta não é propriamente um comportamento. Precisamente, segundo Heidegger, já se está situado em meio ao vigorar e ocultar-se do natural. Assim, da natureza em sentido originário resulta a limitação na autonomia da responsividade existencial, o que podemos ler na seguinte passagem:
Trata-se aqui de um conceito de natureza por princípio mais amplo e mais originário: natura, nasci, a partir de si, a partir do que o ser-aí não pode apoderar-se como um si próprio livre. Não é apenas em razão do fato de lhe ter vindo à cabeça que o ser-aí entra em uma ligação com a natureza, mas antes de todo comportamento livre em relação à natureza ele está em meio a ela. Ele já sempre se encontra a cada vez nela. O ser-aí como tal não tem poder sobre essa disposição em meio a esse transpassamento dominante do ente (Heidegger, 1996b, pp. 328-329).
Dessa forma, se a angústia era capaz de revelar a finitude de ser, na medida em que a perda e a recomposição de toda significatividade mostram a falta de fundamento de ser (a falta de toda dedução transcendental para os sentidos de ser, cf. Pippin, 2007), o encontro com a natureza originária na formação de mundo revela outro aspecto da finitude humana e de ser. Como os sentidos de ser são relativos à sua compreensão e também possuem uma identidade modal, então o necessário retraimento da vida e da natureza revela a origem da força normativa dos sentidos de ser. A não atualização das possibilidades confere força normativa às possibilidades existenciais. O vigorar que emerge a partir de um retraimento mostra que a força normativa do pertencimento à formação de mundo repousa numa negatividade que nada tem de niilista. Ao contrário, é essa retração que preserva uma riqueza oculta para a abertura humana e assim submete a existência a ligações determinadas.
Portanto, com a hermenêutica da natureza não apenas são articulados os diferentes sentidos do aparecer de algo como algo natural. O reconhecimento de um sentido originário do natural também indica uma direção para avançar na questão sobre a origem da normatividade não nomológica da formação de mundo. A negatividade revelada pela presença da vida na formação de mundo não é a negatividade da existência finita. A essa negatividade corresponde certamente uma determinação no campo da existência. Ao estar situado em meio ao ente como um todo corresponde um afinamento fundamental que Heidegger nomeia pelo termo contenção (Verhaltenheit) (Heidegger, 1983, p. 397).
Caso a hermenêutica da natureza seja concebida como um empreendimento histórico que deve corresponder à historicidade da formação de mundo (logo, também à emergência retracional da natureza) e à historicidade das ciências da vida e do natural, então as indicações fornecidas por Heidegger precisam ser renovadas na situação presente, especialmente se considerarmos o grande impacto do conhecimento biológico atual. Nesse sentido, as demandas críticas de Plessner e Löwith podem perfeitamente ser acolhidas na hermenêutica da natureza sinalizada por Heidegger. A elaboração dos sentidos relacional (temático e produtivo) e irrelacional da natureza (emergente e retracional) deveria ser examinada no caso específico dos fenômenos intermediários, pois este aparenta ser o campo fenomenal do que Löwith chamou de a natureza em nós. Contudo, talvez o aspecto mais importante da indicação do sentido normativo do encontro com a natureza em sentido original resida numa cláusula não apenas semântica, a saber, a de corresponder à naturalidade da natureza no modo da contenção (Verhaltenheit).
Em relação a todos esses problemas a hermenêutica da natureza virtualmente esboçada por Heidegger representa não apenas um projeto a ser criticamente examinado à luz do conhecimento e do envolvimento humano com a natureza. Além de examinarmos a repercussão das mudanças internas na problemática do ser, também precisamos nos perguntar se as indicações metodológicas fornecidas para uma interpretação da natureza seriam capazes de ainda se manterem firmes diante da historicidade com a qual a filosofia precisou lidar com os desafios postos pela ciência e tecnologia do natural. Nesse caso, a ligação entre natureza e normatividade parece sugerir o início de uma nova investigação.
Referências
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Endereço para correspondência
E–mail: reis@smail.ufsm.br
Enviado em 30/7/2010
Aprovado em 01/9/2010
1 Este trabalho recebeu o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/Brasil.
2 Blattner analisa a noção de fenômeno intermediário em conexão com a noção de possibilidade existencial, diferenciando-a de uma abordagem que se aproximasse da noção de papel ou status social. O tema é importante, pois revela a dependência de toda a problemática da natureza no ser-aí em relação ao conceito de possibilidade existencial (1999, pp. 85-87).
3 Ver as referências em "Ser e tempo" à natureza do mundo circundante como solo histórico (Heidegger, 1977, p. 504), à natureza como ente histórico (paisagem, lugar de culto, de ocupação e exploração, de catástrofes naturais, pp. 513-514), assim como à natureza do mundo circundante (Heidegger, 1977, pp. 95-96).
4 Na literatura que elucida esta passagem não foi dada atenção para as fontes que estariam sendo citadas, caso de fato sejam referências indiretas e não menções a certos usos coloquiais da linguagem. 5 Heidegger referiu-se a esse sentido de ser ao tratar do surgimento da existência mítica e científica. Ambas teriam como base comum um encontro com o fenômeno da natureza a partir do padrão que as identifica como poder e força sobrepujante dos objetos (1996b, pp. 357-358).
6 Este tópico foi examinado em detalhes por Foltz (1995, pp. 40, 42 e 50), abrangendo inclusive a obra de Heidegger posterior à Kehre, na qual o sentido de emergência e retração ligado à physis é característico do próprio ser.
7 A via da privação não foi bem compreendida, e o próprio Heidegger registrou que a passagem correspondente em "Ser e tempo" fora grosseiramente mal-entendida, pois diria que o ser vivo seria apenas a privação do ser-aí. E ele insiste que o problema é a possível determinação da animalidade do animal por meio do homem (Heidegger, 2003, pp. 243-244). As dificuldades com a interpretação circular são motivadas pela incompreensão do realismo científico presente na ontologia fundamental, assim como do papel construtivo do conceito existencial de ciência (cf. Reis, 2010b; Reis & Silveira, 2010).
8 Reconstruímos os procedimentos e os passos detalhados desta interpretação em Reis (2010a).
9 É digno de nota que Heidegger não se refira à obra de Darwin, a despeito de caracterizar a vida orgânica como uma luta pelos círculos envoltórios. As observações críticas estão dirigidas ao darwinismo, que também não é caracterizado. Por outro lado, as referências positivas são dirigidas aos trabalhos de Hans Driesch e Jacob J. v. Uexküll, que também são apropriados criticamente na interpretação da vida.
10 Heidegger afirmará posteriormente que o conceito de organismo é um conceito técnico-mecânico (1996a, p. 255), o que sugere um abandono da noção de organismo em relação à ontologia da vida.
11 Não é nosso objetivo realizar um estudo sistemático da evolução do conceito de vida na obra de Heidegger. Sobre isso, cf. Backman (2005), Schmidt (2005) e Imdahl (1997). Agradeço a Roberto Rubio pela consulta ao seu trabalho ainda inédito "La ontología de la vida en el joven Heidegger: alcances y límites", no qual são examinados alguns pontos fundamentais da ontologia da vida em relação à recepção heideggeriana de Aristóteles. Sobre a vida no sentido de autoemergência intensificada, ver Foltz (1995, pp. 130-134).
12 A enigmaticidade (Rätselhaftigkeit) está referida inicialmente ao traço de afastamento do correlato da intencionalidade animal (Heidegger, 1983, p. 367). Juntamente com o vocábulo "enigma", no curso sobre Parmênides aparecerá também a palavra "mistério", relativa ao oculto para nós da ligação da vida com algo (Heidegger, 1992, pp. 238-239). Um resultado metateórico será a restrição da adequação do aparato conceitual para falar sobre o que vive. O dizer significativo sobre a vida precisa adotar em alguma medida a forma do discurso apofático, pois será preciso riscar os nomes com os quais dizemos o que a vida tem em seu ambiente (Heidegger, 1983, p. 291).
13 Taylor Carman (2003, pp. 48 e 50) apresenta a abordagem de Heidegger como uma transformação no modelo analógico da conexão entre intencionalidade e linguagem (introduzido por Robert Brandom (1994, pp. 150-153). Como Heidegger admite a existência de comportamentos para com algo enquanto algo mesmo nos níveis pré-predicativos e não dóxicos, então não vale a restrição de atribuir estados intencionais apenas a um sistema capaz de sustentar atitudes proposicionais. Mesmo que os animais não se expressem em proposições descritivas, é possível que eles tenham ligações com algo num campo ambiental (Umfeld).
14 De fato, na literatura sobre o tratamento heideggeriano da vida nos "Conceitos fundamentais da metafísica" pouca atenção tem sido concedida ao problema, que não é apenas metodológico, da possibilidade do acompanhamento humano da abertura ambiental dos organismos. Uma importante exceção é o artigo de Rafael Winkler (2007), no qual o fenômeno do acompanhamento parcial é a base para formular a noção de uma pobreza humana no mundo.
15 Nos humanos, o ser-para-o-fim não é relacional, não admite representação. Com os animais, o seu estar em um ambiente é o irrelacional, não admite compartilhamento completo e, portanto, representação. O sentimento da natureza não seria tanto uma vivência análoga àquela com o belo natural, mas um análogo da atmosfera da impossibilidade existencial de morrer e nascer pelo outro. Sobre a equiparação da vida como o que é o fim para os seres humanos, ver Winkler (2007, p. 259).
16 A centralidade que a noção de physis possui na abordagem posterior à Kehre encontra seus antecedentes na interpretação da natureza viva apresentada já em 1929/1930 (Heidegger 1983, pp. 45-52).
17 O domínio da Zuhandenheit seria concebido como uma estrutura em camadas, na qual a base puramente subsistente seria recoberta por uma camada valorativa, instituída a partir da ligação interessada dos seres humanos ao mundo de coisas. Sobre a crítica de Heidegger ao conceito de valor, ver Gutiérrez (2008). Não consideramos aqui o problema da suposta ausência do elemento normativo em sentido moral, que tem sido objeto de ampla discussão na recepção da obra de Heidegger em termos éticos. De um ponto de vista histórico, o desenvolvimento crítico do problema da normatividade na Escola de Baden é muito importante para definir o sentido específico em que o conceito de normatividade pode ser vinculado à ontologia fundamental. Num certo sentido, aos problemas formulados por Heidegger se atribui a base para poder lidar com as dificuldades apresentadas pelo problema da normatividade (Beiser, 2009, p. 25).
18 Ian Lyne (2000, p. 307) ressalta que a ausência do elemento normativo é fruto de uma reação ao neokantismo, o que não impede que se reconheça a necessidade de trazer esse elemento para compreender a própria noção de ser-aí. Caso se entenda a compreensão de ser como uma submissão que habilita a comportamentos intencionais regrados, então o ser-aí pode ser visto como um jogador que se submete a compromissos por meio de práticas normatizadas (Lyne, 2000, p. 310).
19 Apoio-me integralmente na interpretação normativa da intencionalidade transcendental humana segundo Crowell (2001, 2007a, 2007b, 2008), Dreyfus, Brandom e Haugeland, apesar das importantes diferenças críticas presentes nessa interpretação. Seguindo na direção aberta por Crowell (2007a), McGuirk (2010) examinou criticamente a abordagem de Husserl e Heidegger em relação às fontes da vida racional e da redução, reconstruindo o tratamento de Heidegger como um modo de fundação existencial da vida racional.
20 A formação de mundo, por outro lado, pode ser vista como um acontecer que tem a natureza do jogo. Bem entendido, o conceito de jogo designa a formação dinâmica do acontecimento, que somente a posteriori admite a fixação de regras. Além disso, ele também designa a vigência de um acontecer que submete a autonomia dos jogadores. É nesses termos que os seres humanos estão jogados na abertura pré-temática: eles não são os formadores do acontecimento que possibilita o aparecer de algo em comportamentos intencionais (Reis, 1999).
21 McDonough (2006) inaugurou uma interpretação emergentista de toda a obra de Heidegger, com uma hipótese controversa, que deixamos sem examinar aqui.