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Natureza humana

 ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.12 no.2 São Paulo  2010

 

ARTIGOS

 

Winnicott clínico1

 

Winnicott as a clinician

 

 

Zeljko Loparic

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Universidade Estadual de Campinas

 

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

De início, o presente artigo apresenta, de maneira esquemática, a concepção freudiana dos distúrbios que fazem parte do domínio de aplicação da psicanálise. Em seguida, dedica-se, de modo mais detalhado, ao estudo da teoria winnicottiana da etiologia, natureza, classificação, solubilidades e de procedimentos de resolução desse mesmo tipo de problemas clínicos. Um dos resultados obtidos é um conjunto de evidências adicionais a favor da tese de que Winnicott operou uma mudança paradigmática na psicanálise.

Palavras-chave: Winnicott, Freud, problemas clínicos, relacionamentos ambientais, paradigma winnicottiano.


ABSTRACT

This paper begins with an outline of the Freudian view of the disorders that are dealt with in psychoanalysis. It then describes in a more detailed manner the Winnicottian theory of the etiology, nature, classification, solutions, and procedures for resolving those same kinds of clinical problems. One of the results obtained is a set of additional evidence for the thesis that Winnicott performed a paradigm shift in psychoanalysis.

Key-words: Winnicott, Freud, clinical problems, environmental relationships, Winnicottian paradigm.


 

 

1. Teses de Freud sobre distúrbios a cargo da psicanálise

Freud definiu a psicanálise como um procedimento de cura (por interpretação) e um método de pesquisa (por transferência) associados a uma teoria do ser humano (psicológica descritiva e metapsicologia). Essa teoria era concebida como guia para a cura e como quadro de organização dos resultados da pesquisa, que inclui uma concepção da etiologia, da natureza, dos tipos (classificação), da solubilidade e dos procedimentos de resolução dos distúrbios a serem tratados psicanaliticamente.

Na linguagem da psicologia descritiva de Freud, o trauma causador dos distúrbios a cargo da psicanálise é descrito como decorrência do conflito entre o desejo sexual de um objeto do mundo externo real e a censura desse desejo. O desejo, a censura e conflito entre ambos são tratados como fatos psíquicos, isto é, mentais, potencialmente conscientes. Por conseguinte, o desenvolvimento dos distúrbios propriamente ditos é visto como um processo psíquico, interno à mente humana.

Na linguagem da metapsicologia freudiana (mais precisamente, na segunda versão dessa linguagem, usada na segunda tópica), o conflito traumatizante é caracterizado como "representante" de um conflito pelo controle e uso de objetos entre as forças sediadas em instâncias do "aparelho psíquico" – mais precisamente, entre as forças do id, libidinais ou destrutivas, e as do ego ou do superego –, a sua severidade (intensidade) variando de acordo com a quantidade das forças em jogo. Assim interpretado, o conflito causador dos distúrbios psicanalíticos permanece um estado mental, psíquico, interno, mas se torna essencialmente inconsciente – as forças em questão, objetos (referentes) de ideias especulativas da metapsicologia, não sendo, por definição, acessíveis à consciência –, impessoal e mecânico. O desenvolvimento dos distúrbios preserva as mesmas características: ele é inconsciente, impessoal e mecânico.

O desenvolvimento dos distúrbios não é um efeito direto do trauma gerado pelo conflito. Este é apenas um primeiro passo nessa direção. O segundo passo é a reação do aparelho psíquico à censura e, por conseguinte, ao trauma. De acordo com um texto de Freud de 1924, essa reação pode seguir dois caminhos, ambos determinados pelo funcionamento automático do aparelho psíquico. Pode buscar refúgio num mundo de fantasia, gerado pelo fantasiar a partir de objetos externos efetivamente percebidos no passado e satisfatórios, mas reprimidos – operação que consiste na atribuição, semelhante ao que acontece no brincar infantil, de um significado especial e um sentido secreto a determinadas partes da realidade externa. Essa reação permite que seja alcançado um compromisso entre o desejo e a censura, isto é, que o sacrifício do desejo e a perda correspondente da realidade externa seja parcial, pois certa conexão associativa com o passado fica preservada. A segunda possibilidade é que o aparelho psíquico reaja à censura e ao trauma alucinando um outro mundo, um mundo que vale como percebido, mas que não é real. Nesse caso, não há compromisso, pois o objeto inicial censurado afunda no inconsciente e o desejo é redirigido para um objeto novo, não censurado, mas irreal e sem relação associativa (deslocamento, metaforização) com o objeto censurado real.

No texto mencionado, os distúrbios psíquicos são classificados por Freud de acordo com o tipo de reação da qual se originam. Se essa reação consiste em produzir um mundo de fantasia, o distúrbio resultante é uma neurose. Se a reação toma o caminho da alucinação, o distúrbio correspondente é a psicose.

No início da sua obra, Freud defendia a tese segundo a qual os problemas mentais classificáveis como neuroses eram solúveis pelo procedimento psicanalítico de cura, prevendo inclusive a possibilidade de profilaxia. O objeto reprimido pela censura e o desejo dirigido inicialmente para ele de modo satisfatório poderiam ser reencontrados pela interpretação do sentido secreto de dados transferenciais e restituídos à consciência livres da censura. Desta feita, o conflito traumatizante desaparece. Mas Freud não admite a solubilidade das psicoses: como os objetos do mundo do psicótico não são nem reais nem fantasiados a partir de fatos reais, mas alucinados, as perdas do psicótico não podem ser restituídas por meio de regressão aos dados relativos ao período de vida real e satisfatório, anterior à censura. Segue-se daí a impossibilidade de pesquisar os fatos relativos à etiologia da psicose pelo método de pesquisa da psicanálise (a transferência) e de tratar as psicoses pelo procedimento psicanalítico de cura (a interpretação do sentido secreto do material transferencial).

Na fase final de sua obra, Freud recua em relação à solubilidade e à profilaxia até mesmo das neuroses. Em 1937, no artigo intitulado "Análise terminável e interminável", ao retomar o assunto do fim da análise introduzido em 1928 por Ferenczi, Freud afirma ter sérias dúvidas quanto à tese de a psicanálise poder, pelos meios à sua disposição, 1) resolver definitivamente, para todo o sempre, um conflito entre o ego e o id; 2) vacinar o paciente contra todas as possibilidades de conflitos futuros desse tipo; 3) ter o poder de transformar todo conflito patogênico latente entre as pulsões e o ego – na linguagem descritiva, entre o desejo e a censura – em conflito atual susceptível de análise; 4) exercer a profilaxia. Essas dúvidas são baseadas em considerações metapsicológicas, a principal das quais consiste em dizer que é impossível estabelecer defesas definitivas (os "diques") contra novas irrupções de forças psíquicas decorrentes seja das moções pulsionas determinadas pela constituição do aparelho psíquico, seja dos acidentes da vida real. Dessa forma, a neurose deixa de ser um problema psíquico humano, humanamente (psicanaliticamente) solúvel, tornando-se, assim como a psicose, um mecanismo do destino.

 

2. Dos conflitos mentais aos problemas do relacionamento

Winnicott muda radicalmente a concepção psicanalítica tanto da etiologia e da natureza de distúrbios que pertencem ao domínio de aplicação da psicanálise, como da sua classificação e solubilidade. Essa mudança, baseada na sua teoria do amadurecimento, aspecto central do paradigma winnicottiano da psicanálise, abrange ainda os procedimentos de seu tratamento.

Os distúrbios que se situam no domínio da psicanálise não são mais vistos como reações a conflitos entre o desejo de um objeto e a censura desse desejo, que consistem em operações internas à mente e potencialmente conscientes. Eles são desenvolvimentos igualmente mentais, mas inconscientes, que decorrem de conflitos impessoais entre forças psíquicas disputando objetos externos. Winnicott os pensa como perturbações da existência psicossomática, isto é, do indivíduo considerado na sua totalidade e na sua história, incluídas, portanto, as aquisições do seu desenvolvimento desde o início. Esse indivíduo não é um eu que pensa e, portanto existe, sua existência sendo comprovada pela mente, mas um SOU, um funcionamento somático elaborado imaginativamente, um estado de ser não consciente, à parte dos exercícios de autoconsciência, que, com o tempo, se torna um EU SOU, um indivíduo total.

O retrato ("diagrama") desse indivíduo é o esquema corpóreo com seus aspectos temporais e espaciais – ou seja, o funcionamento corpóreo esquematizado pela elaboração imaginativamente criativa e espontânea a cargo da psique –, no qual não há espaço para a mente (1958a/1992, p. 243). Na origem, a fantasia e o sonho são modos de elaboração de funções corpóreas, não operações mentais criadoras de fantasmas. Há boas razões para dizer que a mente nem ao menos existe como uma entidade separada, mas como um caso especial do funcionamento do esquema corpóreo – uma especialização da parte psíquica do psique-soma, uma versão da elaboração imaginativa a serviço da resolução de tarefas específicas, como as de acompanhar os desejos ou de representar, catalogar, comparar e categorizar os estados psicossomáticos e seus correlatos para fins práticos2.

Agora posso ser mais preciso e dizer que, colocando-se nessa perspectiva temporal do amadurecimento, Winnicott pensa os distúrbios como modificações da elaboração imaginativa criativa do vir ao mundo e do ser no mundo; em outras palavras, como perturbações do início do relacionamento do indivíduo humano com o mundo externo ou dos relacionamentos já estabelecidos. Esses relacionamentos têm como base os estados somáticos excitados e são dirigidos a dois tipos de correlatos: primariamente, ao ambiente, ao conjunto de cuidados ativamente ministrados, e, secundariamente, aos objetos. Com efeito, os relacionamentos ambientais (estar no ambiente ou no mundo facilitador dependendo dele, incorporar o ambiente) são condições de possibilidade dos relacionamentos objetais (identificar-se com um objeto, encontrar e estar junto aos objetos, agir sobre eles ou sofrer a ação deles). Ao serem elaborados imaginativamente, os funcionamentos corpóreos e seus correlatos são experienciados. Essas experiências não são estados mentais, nem meramente psíquicos, mas ganhos da integração, pela elaboração imaginativa criativa, das funções do corpo no tempo (executados no presente, mas conectados com o passado e o futuro) e no espaço (acontecendo aqui, distantes do que está ali). Além de funções corpóreas, a elaboração imaginativa esquematiza e padroniza também as partes do corpo e os sentimentos, em suma, todos os fenômenos do estar vivo.

Para que isso seja possível, o tempo e o espaço precisam ser previamente habitados e, dessa forma, eles mesmos já experienciados pelo indivíduo. Pela integração criativa no tempo/espaço previamente integrados e servindo de horizonte da dação do sentido (meaning), os movimentos e outros estados excitados do corpo adquirem sentidos específicos que permitem ao indivíduo valer-se deles pessoalmente e de fazer uso pessoal de seus correlatos – relacionar-se com o mundo e os objetos encontrados nele3. Essa concepção exige, repito, que o termo winnicottiano "fantasia" seja entendido em dois sentidos: no sentido originário, como elaboração imaginativa de partes do corpo, de sentimentos e de funções corpóreas – atividade que, assim com o sonho, é um ingrediente constitutivo da capacidade de existir e da confiança em si mesmo – e, no sentido secundário, comumente empregado como uma representação que acompanha o desejo e é produzida pela mente, isto é, por um funcionamento peculiar da unidade psique-soma.

O processo de constituição da existência psicossomática no tempo pode sofrer perturbações. Estas incidem fundamentalmente sobre os funcionamentos corpóreos e seus correlatos, bem como sobre os diferentes modos de dação de sentido (o fantasiar, o sonhar etc. winnicottianos). Assim como os próprios relacionamentos, as suas perturbações são experienciadas não como estados mentais potencialmente conscientes (fantasias, alucinações freudianas), mas como perdas de sentido ou mesmo como perda da capacidade de dar sentido de modo criativo e espontâneo, resultando na impotência de fazer uso pessoal dos estados excitados do corpo. As mais graves atingem o início de relações ambientais fundamentais e a manutenção da sua continuidade. Winnicott fala, por exemplo, de "agonias impensáveis" – lutas pela continuidade do ser do indivíduo –que não têm sentido representável mentalmente, nem mesmo – e isso é mais traumatizante ainda – um sentido existencial, mas que interferem na execução de funções corpóreas no tempo e no espaço.

As perturbações do tipo winnicottiano são divididas em dois grupos, segundo as suas duas fontes: o ambiente e o indivíduo. As do primeiro grupo resultam dos relacionamentos intrusivos do ambiente com o indivíduo (com seu processo de amadurecimento) e as do segundo são devidas aos modos de relacionamento do indivíduo, que, tendo certo grau de amadurecimento com o ambiente, não leva em conta a distinção entre o que é real e o que é elaborado imaginativamente de modo defensivo (o fantasiado winnicottiano).

O ambiente é intrusivo não devido ao seu aspecto quantitativo, a intensidade da sua intervenção, mas por se fazer presente fora do tempo e de maneira inadequada. Nesses casos, produz-se uma modificação não na consciência ou na mente do indivíduo, mas no seu ser no mundo, no seu existir psicossomaticamente. Quando tal acontece, o indivíduo reage: ele modifica seu relacionamento com o mundo não produzindo fantasias e alucinações, mas por meio de organizações de defesa patógenas de vários tipos, características de sucessivos estágios de amadurecimento, o que constitui um segundo passo na formação do distúrbio. A combinação da intrusão ambiental com a reação defensiva constitui o distúrbio, a doença relacional propriamente dita, que se manifesta como parada e bloqueio (hold-up) do processo de amadurecimento.

A segunda fonte de distúrbios são, como disse, os modos de relacionamento do indivíduo com o ambiente externo, nos quais está borrada a distinção entre o correlato ambiental ou objetal do funcionamento corpóreo efetivo e o correlato produzido pela elaboração imaginativa defensiva; na terminologia tradicional, entre o real e o fantasiado produzido sob censura. Isso acontece quando o indivíduo não consegue resolver o problema de diferenciar entre o que ele precisa ter e fazer nos momentos excitados – agora se trata de impulsos com organização genital – e o que lhe é efetivamente facultado. Ele reage produzindo "fantasias defensivas" ou, na linguagem canônica winnicottiana, elaborando imaginativamente suas funções somáticas e seus correlatos de modo a gerar relacionamentos defensivos. O resultado é a perda de elementos constitutivos da sua condição de existente adquirida até então, perda que é passageira se o ambiente contribuir, mas que pode se agravar se ele falhar.

Como os relacionamentos ambientais são primários e fundamentais, Winnicott atribui, como veremos a seguir, o papel paradigmático e decisivo na formação dos distúrbios relacionais às perturbações que possam vir do ambiente.

 

3. Mais sobre o mesmo tema

Convém aprofundar alguns pontos dessa nova teoria da etiologia e da natureza dos distúrbios. As intrusões que resultam nas paradas ou bloqueios do processo de amadurecimento são relativas ao não atendimento de necessidades (needs) maturacionais. Essas necessidades emergem, inicialmente, do próprio fato de o bebê estar vivo e estar aí a fim de ser. Winnicott divide consequentemente as necessidades fundamentais em dois grupos: as instintuais, somáticas, e as do ego, decorrentes da tendência à integração. Um indivíduo sadio não se deixa enganar a ponto de pensar que os impulsos instintuais são tudo, pois ele é "essencialmente concernido com o ser, com ser em algum lugar, com sentir-se real e com alcançar um grau de constância de objetos" (1986b/1986, p. 25). O atendimento dessas primeiras necessidades pela aquisição e manutenção da continuidade da existência psicossomática num ambiente (um meio, um mundo) estável junto aos objetos estáveis não é um destino (um processo automático), mas, assim como o resto do amadurecimento, a realização de um potencial herdado total, instintual e integracional ("egoico") que precisa de um ambiente facilitador.

Todas as outras necessidades (Winnicott fala ainda de "urgências") derivam dessa necessidade bifurcada, desse ter-que-ser fundamental psicossomático, e assinalam os diferentes tipos de dependência do indivíduo que vai amadurecendo – dependência no início absoluta, depois relativa – da provisão ambiental (1965b/1990, p. 183; 1986b/1986, pp. 41-42). Depois de nascer e resolver tarefas específicas de chegar ao mundo e alojar-se nele, o indivíduo precisa que o ambiente suporte seu amor primitivo destrutivo e incompadecido; ele precisa, em seguida, que o ambiente falhe dando-lhe a oportunidade de criar um novo espaço/tempo que é condição para que possa criar novos objetos e novas formas de uso de objetos (estágio de transicionalidade). Mais adiante, para que o indivíduo saia do mundo subjetivo e crie o mundo externo objetivamente percebido, o ambiente precisa sobreviver e não revidar a seus ataques instintuais (estágio do uso de objeto). Necessita, depois disso, de apoio para estabelecer-se como um EU SOU integrado, um existente (exister, diz Winnicott, criando um neologismo). Tendo adquirido essa condição, o indivíduo se dá conta de que o seu amor pela mãe, que é objeto externo, é também agressivo, fica compadecido e passa a precisar que essa mesma mãe mantenha a situação no tempo até que essa ambivalência, esse conflito entre o relacionamento amoroso ("amor") e agressivo ("ódio"), entre o bem e o mal nele mesmo, torne-se tolerável (estágio do concernimento); mais tarde, cabe ao ambiente aguentar a ambivalência entre o amor e o ódio embasados sexualmente – o relacionamento genital amoroso e agressivo (estágio de relações triangulares) –, saber lidar com o confronto (a adolescência) e tolerar conflitos que caracterizam uma sociedade pluralista democrática (estágio da vida adulta)4. As falhas do ambiente em oferecer essas facilitações – necessárias, segundo o estágio do amadurecimento, para que o indivíduo comece a ser, estabeleça contato com a mãe, continue sendo e se torne um existente, uma pessoa inteira com um passado e um futuro, e, tendo conseguido isso, continue sendo num mundo, cada vez mais complexo, com outros seres humanos, cada vez mais diferenciados – constituem o primeiro passo na formação de distúrbios.

Winnicott não nega a possibilidade de certos distúrbios do relacionamento exigirem explicações em termos da constituição herdada. Mas, ao conceder esse ponto, ele não tem em vista a teoria dinâmica do aparelho psíquico ficcional, defendida por Freud na sua metapsicologia, mas duas teorias mais recentes: a teoria genética da hereditariedade e a teoria cibernética da fisiologia e do funcionamento cerebral. A teoria de Freud é, por um lado, tributária da teoria das explicações dinâmicas apoiada na física de Newton e, por outro, inspirada na neurofisiologia especulativa do Projeto. Segundo essa teoria, o sistema nervoso se assemelha à máquina hidráulica, cujo modelo básico é a máquina de vapor (de calor), a qual era o exemplar paradigmático na teoria dos autômatos no século XIX, capazes de controlar fluxos causais de forças. As teorias genética e cibernética atuais, consideradas por Winnicott – ele atribui a crescimento físico dos indivíduos aos genes, não às forças do tipo newtoniano, e trata o cérebro como um "aparelho eletrônico" (1965b/1990, pp. 56 e 217) –, inscrevem-se num outro paradigma, o de máquinas eletrônicas "inteligentes" (os computadores), capazes de processar fluxos causais de informação, objetos de estudo da teoria da comunicação e produtos da engenharia da comunicação5. Winnicott, contudo, insistirá em dizer que, tal como os mecanismos psíquicos freudianos, os genes e o aparelho eletrônico não explicam tudo. É preciso reconhecer que há distúrbios psíquicos que resultam das dificuldades próprias da vida humana, isto é, de problemas inerentes ao desenvolvimento individual e ao processo de socialização (das dificuldades do relacionamento ambiental e objetal) (cf. 1988/1990, p. 10)6. Precisamente esses são os problemas relacionados ao não atendimento de necessidades maturacionais que interessam à psicanálise winnicottiana.

Decerto, Winnicott continua usando o termo "conflito", mas não no sentido de queda de braço entre o desejo objetal e a censura – ou entre as instâncias do aparelho psíquico –, e sim num sentido modificado, explicitado com base na sua teoria do amadurecimento. No estágio do concernimento, por exemplo, o que pode estar acontecendo não é um conflito do tipo freudiano, impessoal e mecânico, mas o conflito pessoal entre dois modos de relacionamento ambiental e objetual elaborados imaginativamente: entre o "amor" e o "ódio" experienciados, "sentidos", efetivamente. Os termos entre aspas referem-se a modos de ser de um existente, não de estados mentais. Por um lado, a criança vive o relacionamento instintual excitado que agora lhe pesa por danificar e desgastar a mãe que ama; por outro lado, ela experiencia a urgência pessoal, decorrente da tendência à integração, de remendar esse objeto amado. Se puder realizar essa urgência, a agressão será transformada em cuidado para com a mãe usada excitadamente, relacionamento que Winnicott chama de "ambivalência complexa" no qual o amor e o ódio coexistem no indivíduo. Quando tal modificação do relacionamento não é conseguida, o indivíduo fica paralisado pela culpa ou recorre a outros expedientes defensivos.

Casos clínicos de Winnicott podem ser usados para esclarecer essa mudança conceitual introduzida por ele na teoria psicanalítica da etiologia e natureza dos distúrbios a cargo da psicanálise. Piggle tinha 1 ano e 9 meses quando nasceu sua irmã Susan. A mãe ficou intensamente angustiada, por razões que faziam parte da sua própria história, e começou a falhar em relação à filha mais velha. Deprivada, Piggle reage e passa a odiar a mãe externa real. Como consequência, ela fica presa no conflito entre o amor antigo pela mãe suficientemente boa, que teve no início da vida, e o ódio novo pela mãe atual. Contudo, na situação em que estava, não conseguia integrar esses dois tipos de relacionamento. Por defesa, ela transforma a mãe real, que odeia, em mãe preta, que a persegue (no dia a dia, nos sonhos etc.). Essa re-elaboração dos relacionamentos ambiental e objetal, por um lado, permite a Piggle preservar a sua mãe real, que falhou contra seu ódio (ela não é a mãe preta), mas, por outro lado, a afasta e distancia dessa mesma mãe que, inicialmente, cuidou dela de modo suficientemente bom. A mãe fica cindida em mãe boa, objeto subjetivo do passado, e mãe preta, elaboração imaginativa da mãe má, objeto objetivamente percebido no presente. A própria Piggle perde a identidade pessoal, por não tolerar ser ao mesmo tempo boa e má, amorosa e agressiva. Durante o tratamento, com a ajuda de Winnicott, Piggle recupera primeiro sua unidade pessoal – consegue ser agressiva – e, em seguida, desfaz a cisão da mãe: ela descobre que a mãe preta atual é a mãe boa antiga que foi perdida (na ocasião do nascimento de Susan e por motivos pessoais da mãe). A partir desse momento, ela pode se livrar da mãe preta persecutória: ela mata essa mãe preta com um tiro, reconhecendo, desta forma, que a mãe preta é um sonho, isto é, uma elaboração imaginativa defensiva do seu relacionamento agressivo com a mão real que falhou. Piggle adquire a capacidade de fazer a distinção entre "fantasia e realidade", entre a elaboração imaginativa defensiva e a percepção da realidade externa e, além disso, de aceitar as coisas como são. Essa nova modificação do relacionamento ambiental e objetal a põe no caminho da cura. Piggle, então, torna-se capaz de ambivalência complexa: de ao mesmo tempo "amar" e "odiar" a sua mãe real, capacidade cuja aquisição foi facilitada grandemente pela própria mãe real, a qual, sob a orientação de Winnicott e com a participação ativa do pai, se dispôs a transformar a vida familiar em "hospital mental" para cuidar da filha mais velha.

Um outro exemplo, relativo ao estágio posterior ao de concernimento, pode ser útil para enfatizar a importância do fator tempo para a aquisição da capacidade de relacionamentos complexos. Robin, o paciente do caso II de Consultas terapêuticas, padece do conflito entre "ir em frente para o mundo ou se preparar para correr de volta ao colo materno" (1971b/1996, p. 40). A esse conflito de Robin, relativo à direção do processo de amadurecimento, isto é, ao desenvolvimento no tempo de suas relações ambientais e objetais, corresponde um conflito igualmente pessoal da mãe dele entre desmamar de verdade o seu filho e retomar atividades para as quais foi treinada ou permanecer dedicada à preocupação materna primária (1971b/1996, pp. 28 e 40).

 

4. Classificação winnicottiana dos distúrbios do relacionamento

O fundamento da classificação winnicottiana dos distúrbios relacionais – no presente contexto, limitei-me a distúrbios mais facilmente identificáveis – difere radicalmente do utilizado por Freud. O lugar de processos mentais representacionais perturbados – a fantasia e a alucinação que funcionam sob censura – é ocupado pelos relacionamentos psicossomáticos, que resultam do não atendimento de necessidades maturacionais. Partindo dessa base, Winnicott tem condições não somente de redescrever as patologias identificadas previamente, mas também de introduzir novas, tais como tendência antissocial e a formação do falso si-mesmo, que não podem ser definidas no âmbito do paradigma freudiano.

Vimos que o atendimento das necessidades nas fases iniciais assegura uma série de conquistas que constituem o indivíduo como um existente, em outros termos, que passam a fazer parte da estrutura da sua personalidade. As falhas do ambiente, nessas fases, não geram frustração, mas levam à aniquilação ou, nas fases mais adiantadas, à perda da capacidade de existir no mundo e de ser alguém. Para se defender, o indivíduo reage e assim surgem organizações de defesa psicóticas do tipo esquizoide ou do falso si-mesmo, ou seja, as psicoses, que levam ao bloqueio do processo de amadurecimento e de integração.

Depois da constituição do EU SOU, o indivíduo depara-se com uma nova necessidade, já mencionada anteriormente: a que diz respeito à aquisição da capacidade de tolerar a ambivalência gerada pela presença dos relacionamentos amorosos e agressivos, que fazem parte de formas mais sofisticadas de relações objetais de um indivíduo já devidamente constituído como pessoa inteira. Aqui a tarefa não é mais a constituição da continuidade do ser e da unidade pessoal, mas a administração de impulsos que compõem os relacionamentos conflituosos (1965b/1990, p. 22). A dificuldade decorre do fato de a criança, por um lado, se dar conta de que não pode deixar de agredir o que ama e, por outro lado, não aceitar simplesmente continuar vivendo assim7. Até no mais satisfatório dos ambientes, pelo simples fato de estar viva, real, ter impulsos reais e de elaborá-los imaginativamente, a criança faz a experiência do conflito entre o amor e o ódio do qual resulta a angústia de culpa. O acolhimento pelo ambiente da ambivalência da criança e o fornecimento, como ajuda, de um código externo de comportamento, permite transformar a angústia e a culpa em responsabilidade, e criar a capacidade de tolerar – e até mesmo de valorizar – elementos agressivos no seu impulso amoroso. Esse passo no processo de amadurecimento livra o indivíduo da necessidade de recorrer a defesas por dissociação e depressão. Ao mesmo tempo, faz da vida humana amadurecida uma luta constante entre o bem e o mal, e do ser humano um sofredor.

Outra necessidade refere-se à preservação do ambiente externo suficientemente bom. A percepção de que a perda de tal ambiente, a deprivação, deve-se a fatores externos, gera no indivíduo a tendência antissocial, agressividade compulsiva contra o ambiente que falhou ou aqueles no ambiente que falharam. Uma patologia relacionada à tendência antissocial é o distúrbio de caráter, não definido, como em Freud, pela rigidez de reações a conflitos8, mas – aqui temos mais uma consequência da mudança paradigmática winnicottiana – pelo fato de a criança precisar acomodar, mudando a estrutura da sua personalidade, um grau de tendência antissocial; fenômeno que deve ser compreendido sob a luz da tendência à integração, que impõe à criança a tarefa de suportar pessoalmente e relacionar aos requisitos e expectativas do ambiente imediato as complicações do seu desenvolvimento (1984a/1994, p. 248).

Quanto às neuroses, elas se originam, segundo Winnicott, das dificuldades das crianças em tolerar a ambivalência no uso dos impulsos instintuais nas relações triangulares e multilaterais, devido principalmente à sua incapacidade de distinguir entre a realidade e a fantasia, da qual então resulta a repressão interna (1989a/1989, p. 68). Essa incapacidade – que pode denunciar que houve problemas anteriores com a realidade – fica agravada pelo não acolhimento dos comportamentos impulsivos pelo ambiente, ou seja, pela repressão externa, que gera a angústia da ambivalência e exige defesas adicionais. As estratégias de defesa usadas incluem, essencialmente, dissociações e regressões. As primeiras tornam incomunicáveis partes da personalidade inteira, sem, contudo, ameaçar a unidade pessoal do indivíduo. As segundas consistem na exclusão do campo de controle pessoal não apenas de fantasias, mas da própria capacidade de fantasiar, isto é, da atividade de elaboração imaginativa, e na simultânea inibição de impulsos, perda de uma parte do ímpeto nos relacionamentos objetais, a custa da espontaneidade pessoal e leva − por resultar não só em inibições, mas também em regressões − a um sério empobrecimento da experiência de vida da criança (1989a/1989, pp. 68-69). A repressão, gerada seja pelas falhas ambientais, seja pelas fantasias ameaçadoras do próprio indivíduo, incide em primeiro lugar sobre as capacidades de relacionamento adquiridas anteriormente, expulsando para o inconsciente os conteúdos representacionais e os afetos correspondentes. As defesas neuróticas consistem, portanto, em uma série de perdas maturacionais cada vez mais profundas, cujo limite inferior, imediatamente acima das regressões psicóticas, é o estabelecimento de dissociações típicas da fase do concernimento (1988/1990, pp. 63-64).

 

5. Teoria winnicottiana da solubilidade e dos procedimentos de resolução de problemas clínicos

Segundo Winnicott, os distúrbios psicóticos gerados pelo não atendimento das necessidades precoces – as psicoses – precisam e, dependendo das circunstâncias, podem ser tratados. Winnicott é claro a respeito tanto da solubilidade desses problemas como do procedimento de sua resolução: as psicoses "podem ser tratadas, certas vezes [sometimes] com êxito, por uma nova provisão ambiental, e esse pode ser o trabalho psiquiátrico social de vocês, o trabalho de atendimento assistencial [casework]" (1965b/1990, p. 228). Uma nova provisão ambiental com efeitos de cura – isto é, permitindo ao paciente deixar de lado a organização de defesas, regredir à dependência e, desta feita, retomar o processo de amadurecimento – é um cuidado que pode ser oferecido mesmo fora do setting psicanalítico, por um psiquiatra ou um assistente. Em certos casos, o ambiente cotidiano, talvez uma amizade ou umas conversas de bar9 podem "prover uma correção da falha da provisão básica e desfazer o bloqueio que impedia o amadurecimento de um modo ou de outro" (1965b/1990, p. 232). O mesmo papel pode ser desempenhado pela família, quando, devidamente orientada, ela se torna "hospital mental", assumindo os cuidados que se fazem necessários. Quanto ao setting psicanalítico, a fim de fornecer a provisão ambiental da qual o paciente psicótico necessita para retomar o caminho da cura, ele deve ser redefinido como "somatório de todos os detalhes de manejo" e, tomado nesse sentido, considerado "mais importante que a interpretação" (1958a/1992, p. 297).

O manejo, prática pela qual Winnicott revoluciona a clínica psicanalítica, consiste em uma série de atitudes e providências, que incluem a confiabilidade do analista, a regularidade ambiental, a capacidade do analista de reconhecer seus erros e decisões de ordem prática. No tratamento por manejo, o relacionamento analista-paciente não é o mesmo que o tratamento por interpretação. O aliado do analista não é o EU SOU do paciente (seu ego, na linguagem de Freud) – pois esse aspecto da estrutura da personalidade ainda não foi constituído –, mas o seu verdadeiro si-mesmo, o seu ir espontaneamente ao encontro de algo. Esse é o elemento estrutural da natureza humana em virtude do qual o ser humano começa e continua a comunicar-se e relacionar-se, mas que só deixa de ser meramente potencial e torna-se base real do seu existir (ter experiências, juntar o presente com o passado e o futuro, vir a integrar-se num EU SOU etc.) num ambiente facilitador. No caso de psicóticos, contudo, o si-mesmo verdadeiro está encoberto – esse fato faz parte do distúrbio – e permanece assim até que as defesas protetoras (fragmentação autoinfligida, o falso si-mesmo) sejam paulatinamente abandonadas graças ao manejo ambiental devidamente testado.

Daí seguem duas consequências importantes para a prática psicanalítica. Em primeiro lugar, a teoria winnicottiana dos distúrbios psicóticos permite prever a profilaxia: esses distúrbios podem ser prevenidos pelo atendimento adequado dispensado no tempo certo pelo ambiente original ou por algum ambiente alternativo o mais próximo possível da situação original. Há os que têm – que receberam e continuam tendo a provisão ambiental necessária e que estão a salvo dos perigos da psicose, da tendência antissocial ou do distúrbio de caráter – e os que não têm ou deixaram de ter, que foram privados ou deprivados, e que correm esses perigos. O seguinte trecho esclarece bem esse ponto:

Sugiro que encontremos, no aspecto cuidado-cura do nosso trabalho profissional, um contexto para aplicar os princípios que aprendemos no início de nossas vidas, quando éramos pessoas imaturas e nos foi dado um cuidado suficientemente bom, e uma cura, por assim dizer, antecipada (o melhor tipo de medicina preventiva) por nossas mães "suficientemente boas", por nossos pais. (1986b/1986, p. 120; os itálicos são meus)

Em segundo lugar, é possível dizer que, em princípio, os casos de psicose são curáveis. Winnicott reconhece, como vimos, que "só certas vezes" o tratamento por manejo resulta em êxito. De que dependeria o êxito? Essencialmente, de duas condições: a provisão ambiental precisa ser fornecida no momento certo, corresponder ao estágio de dependência quase absoluta ao qual o paciente regrediu na análise, e ser adequada, atender às necessidades do paciente, não às do analista ou da sociedade. É verdade que fica difícil determinar se e quando essas condições são realizadas. Contudo, em princípio, diferentemente de desejos e de pulsões, as necessidades maturacionais, uma vez atendidas, cessam e, por isso mesmo, o indivíduo não precisará de novas provisões10. Ele será curado, no sentido de poder retomar seu processo de integração por conta própria e, ganhando aos poucos autonomia que nunca teve ou que perdeu, ser capaz e mesmo precisar dispensar o analista. Vemos a diferença em relação a Freud. Para este, as psicoses não são tratáveis porque o mundo alucinado não tem conexão associativa com o mundo real censurado. Segundo Winnicott, as psicoses são tratáveis porque a conexão com o passado é estabelecida pela regressão à dependência atendida.

Winnicott defende também a solubilidade de distúrbios do tipo da tendência antissocial. Nesse caso, o tratamento consiste em "o médico e o paciente se concentrarem numa espécie de história policial, usando todas as pistas que possam existir, inclusive o que é conhecido da história passada do caso" (1984a/1994, p. 240). Os dois cuidam, portanto, de resolver um problema semelhante a um quebra-cabeça da vida cotidiana: achar o culpado pelo crime cometido ou a maneira como aconteceu. Para tanto, não deverão trabalhar apenas no nível da consciência, mas, diz Winnicott, numa fina camada que se situa em um lugar entre o inconsciente profundamente enterrado e a vida consciente e o sistema mnemônico do paciente, e que só é acessível e que só pode ser explorado num relacionamento de confiança e "descontraído", podendo incluir também o brincar e o sonhar. Cabe enfatizar que esse tipo de ajuda é eficiente apenas nos estágios iniciais do distúrbio, antes de se estabelecerem ganhos secundários e habilidades delinquentes.

Winnicott prevê, diferentemente de Freud, também o tratamento psicanalítico para os distúrbios de caráter – seria igual ao tratamento de qualquer outro distúrbio psíquico –, passo que estende o poder terapêutico e, portanto, assinala o progresso da psicanálise. Um aspecto importante do tratamento nesses casos é que "o analista pode esperar encontrar o acting-out na transferência e deve entender o significado desse acting-out e estar apto a conferir-lhe valor positivo" (1984a/1994, p. 249).

Quanto às neuroses, Winnicott reconhece que esses distúrbios, na medida em que expressam dificuldades pessoais, não podem ser prevenidos. Contudo, ao refazer a teoria freudiana das neuroses no quadro da sua teoria do amadurecimento – a qual, como vimos, não trabalha com etiologia constitucional e desconhece fatores quantitativos (dinâmicos) –, ele formula esses distúrbios como problemas de administração de impulsos instintuais em situações triangulares e multilaterais, geradores das dificuldades "internas" em discriminar entre a fantasia (elaboração imaginativa defensiva) e a realidade, aflições contra as quais são erguidas defesas neuróticas rígidas. A origem da falha da criança em evitar desenvolver essas defesas reside em falhas ambientais nos estágios anteriores e a sua rigidez depende, em parte, das falhas ambientais atuais. Assim caracterizados, os distúrbios relacionais do tipo neurótico podem ser prevenidos − dando à criança o que é necessário nos estágios da primeira infância, incluindo o do concernimento − e amenizados pelas mudanças no ambiente (1958a/1992, p. 319). Eles também podem ser tratados por práticas apropriadas, seja ainda durante o processo de amadurecimento, seja posteriormente na clínica. Winnicott não compartilha o pessimismo de Freud quanto à solubilidade dos distúrbios neuróticos e, nesse ponto também, está do mesmo lado de Ferenczi.

Quais são as práticas de cura preconizadas? Visto que as neuroses não resultam apenas de falhas ambientais, mas principalmente de dificuldades dos indivíduos já devidamente constituídos em administrarem (elaborar imaginativamente) seus impulsos, elas não podem, diferentemente das psicoses, ser curadas pelo manejo ou pelos cuidados ambientais e necessitam de ajuda psicanalítica especializada, incluindo a interpretação (1965b/1990, p. 258). Contudo, aspectos importantes de cuidados ambientais devem ser incorporados nas práticas clínicas relativas às neuroses. Em particular, ao tratar de neuroses, o analista precisa tomar atitudes semelhantes às dos pais quando ajudam os filhos a tratar da ambivalência.

Consideremos, então, em primeiro lugar, a maneira como os pais ajudam uma criança a lidar com a ambivalência na situação triangular, "edípica", ou multilateral. Ver os pais juntos "torna tolerável a fantasia ou o sonho da sua separação ou da morte de um deles". Assim sendo, "a cena primária (pais sexualmente juntos) é a base da estabilidade do indivíduo, pois ela torna possível todo o sonho de tomar lugar de um parceiro" (1988/1990, p. 59). Num outro texto, lemos:

A união sexual de pai e mãe fornece um fato concreto em torno do qual a criança poderá construir uma fantasia, uma rocha a que ela se pode agarrar e contra a qual pode desferir seus golpes; e, além disso, fornece parte dos alicerces naturais para uma solução pessoal do problema das relações triangulares. (1964a/1987, pp. 114-115; os itálicos são meus)

No presente contexto, o termo "fantasia" não se refere ao fantasiar psicótico (fantasying), cindido da vida e do sonhar, repetitivo e meramente defensivo, mas à elaboração imaginativa das funções corpóreas e de seus correlatos objetais. Ao se tornar capaz de se haver pessoalmente com fatos reais, a criança poderá projetar situações inteiramente novas de modo igualmente pessoal, por exemplo, a substituição criativa da mãe, como objeto inercial do relacionamento instintual ou de desejo, por outras mulheres11.

A fim de que essa solução, que abre para a criança perspectivas sobre novos estágios de amadurecimento, possa ser alcançada, faz-se necessária a ajuda do ambiente. Para fornecer essa ajuda, os pais não devem se pôr a interpretar o inconsciente (as fantasias) dos seus filhos, isto é, tentar decifrar e verbalizar o conteúdo representacional e o afeto sob pressão (1965b/1990, p. 251). O que eles precisam fazer é distinguir claramente, eles próprios, entre o sonho da criança e o fato. Os pais, escreve Winnicott,

podem [equivocadamente] apresentar a ideia como se fosse um fato, ou reagir sem pensar a uma ideia como se esta fosse um ato. Na verdade, é possível que eles temam mais as ideias que os atos. A maturidade implica, entre outras coisas, a capacidade de tolerar ideias, e os pais precisam dessa capacidade que, no seu melhor ponto, é parte da maturidade social. Um sistema social maduro (se por um lado faz certas exigências no tocante à ação) permite a liberdade das ideias e sua livre expressão. A criança só aos poucos alcança a capacidade de distinguir entre sonho e realidade. (1988/1990, p. 59)

Quando ajudadas pelos pais nesses termos, as crianças podem encontrar uma maneira de tolerar os conflitos e angústias que atingem seu ponto máximo no auge da experiência instintual:

A solução dos problemas da ambiguidade inerentes à infância chega mediante a elaboração imaginativa de todas as funções; sem a fantasia, a expressão crua do apetite, da sexualidade e do ódio seria a regra. Dessa maneira, a fantasia se revela como a característica do humano, a matéria-prima da socialização e da própria civilização. (1988/1990, p. 60; os itálicos são meus)

Com base nessas considerações12, Winnicott dirá que, mesmo no tratamento das neuroses, a tarefa do analista não reside em apenas interpretar – trazer à consciência representações inconscientes carregadas afetivamente. Isso porque a principal necessidade do paciente winnicottiano neurótico não é tomar consciência de um conteúdo representacional e afetivo censurado; o que o paciente quer, em primeiro lugar, é obter "uma ajuda pessoal do tipo que torne possível a diminuição das forças da repressão e a libertação da energia pessoal para o impulso não premeditado" (1989a/1989, p. 70), ou seja, para que possa ser espontâneo. Já sabemos: para tanto, ele precisa, por um lado, adquirir a capacidade de ser realista e, por outro, manter a capacidade de fantasiar e enriquecer a experiência da vida a fim de poder continuar o processo de amadurecimento. Em Winnicott, como já em Freud, faz parte da tarefa analítica

utilizar a contribuição pessoal do paciente para a relação profissional, numa tentativa organizada de trazer o passado para o presente (retomar, no presente, o passado como passado), e, assim, criar condições em que podem ocorrer a mudança e o crescimento, onde antes só era possível a rigidez. (1988/1990, p. 61)

Em vista disso, o analista deve, ele próprio, possuir a "capacidade para tolerar ideias e sentimentos (amor, ódio, ambivalência) e para entender o processo, e também para mostrar essa compreensão pela expressão mediante a linguagem (a interpretação daquilo que o paciente está justamente em condições de admitir conscientemente)" (1988/1990, p. 61; o itálico é meu).

Esse é o contexto no qual Winnicott situa a interpretação. Quando correta e feita no tempo certo, a interpretação não tem apenas a função, enfatizada por Freud, de trazer à consciência conteúdos reprimidos; ela provê o paciente de

um senso [sense] de estar sustentado [held] fisicamente, que é mais real (para o não psicótico) do que se ele estivesse sendo concretamente sustentado ou amamentado. A compreensão penetra mais fundo e, pela compreensão demonstrada pelo uso da linguagem, o analista sustenta fisicamente no passado, ou seja, na época em que havia necessidade de estar no colo, quando o amor significava adaptação e cuidados físicos. (1988/1990, pp. 61-62)

A interpretação apresentada na análise de amores, ódios e fantasias correspondentes não resolve apenas uma charada verbal, ela proporciona também – nesse ponto o analista faz o mesmo papel de cuidador que os pais – uma comunicação profunda e um relacionamento confiável, baseado na compreensão. A cura não consiste tão somente em trazer à tona a palavra censurada que designe o objeto amado ou odiado, mas também e, sobretudo, na reconstituição das capacidades perdidas, em particular, a de tolerar o amor, o ódio e as fantasias correspondentes. Em suma, o tratamento não se restringe ao campo da representação, mas inclui relacionamentos de cuidado, relevantes existencialmente. Winnicott concorda com Freud que os pacientes não devem ser atendidos mediante satisfações substitutivas – isso seria um pecado imperdoável. Contudo, por recusar o ponto de vista econômico da metapsicologia freudiana, Winnicott não pensa que o analista deva zelar para que o sofrimento do paciente não termine antes do tempo ou até mesmo para restabelecer uma frustração efetiva.

Em suma, na psicanálise winnicottiana, o tratamento de distúrbios a cargo da psicanálise, concebidos como relacionados direta ou indiretamente ao não atendimento de necessidades de amadurecimento nesse ou naquele estágio do amadurecimento, é possível dentro de certos limites – que dizem respeito ao grau de rigidez alcançado pelas organizações de defesa e à capacidade pessoal do analista e de outros agentes terapêuticos de suportar regressões que são pedidos de ajuda – e exige providências concretas, adequadas para a fase na qual o distúrbio se originou e à qual o paciente precisa regredir para reconstruir – ou, conforme o caso, constituir – o seu ser si mesmo, os seus relacionamentos e seguir no processo de integração. O psicanalista winnicottiano não fornece soluções prontas, mas, antes, provê a oportunidade para que o próprio indivíduo crie capacidades para enfrentar e resolver seus problemas pessoais referentes às relações ambientais e objetais que o afligem: essas capacidades são as peças que faltam para completar interativamente os quebra-cabeças psicanalíticos winnicottianos13. Um aspecto do resultado almejado é, como em Freud, a libertação do paciente de defesas rígidas. Um outro é novo: ele consiste na retomada em primeira pessoa do processo de amadurecimento, que pressupõe, como acabo de dizer, a restauração das capacidades de ser e de existir (ter relacionamentos que têm um futuro pessoal baseado num passado também pessoal) ou, nos casos mais graves, a sua aquisição. Em nenhum momento, trata-se de educar o paciente para o aperfeiçoamento do seu ser, como prevê Freud. Se o tratamento for bem conduzido e mesmo assim não levar na direção de uma solução efetivamente alcançável, então é preciso esperar mais, às vezes por muito tempo – isso acontece frequentemente também no tratamento de distúrbios físicos – ou, então, reconhecer que o caso está fora do alcance do paradigma winnicottiano da psicanálise.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: loparicz@uol.com.br

 

 

Enviado em 05/09/2010
Aprovado em 15/11/2010

 

 

1O presente texto é baseado em dois trabalhos mais extensos sobre a solubilidade e os procedimentos de resolução dos problemas psicanalíticos em Winnicott e Freud, previstos para publicação em Winnicott e-Prints.
2Esse assunto é tratado com detalhes em Loparic, 2000.
3O deslocamento dos distúrbios de alcance da psicanálise do domínio da mente e da consciência para o domínio dos relacionamentos experienciáveis, mas nem sempre representáveis, bem como a distinção entre relacionamentos ambientais e objetais, são duas teses básicas da psicanálise winnicottiana que podem ser proveitosamente analisadas à luz da analítica existencial de Heidegger, elaborada em Ser e tempo (cf. Loparic, 1999 e 2001).
4Para a base textual dessa interpretação, cf. Winnicott, 1990/1988, pp. 50 e 60; 1989a/1989, pp. 68-69.
5É interessante notar que, na sua teoria da biologia, Kant considera insuficientes as explicações dinâmicas do tipo newtoniano e, para dar conta do crescimento, a organização e os distúrbios de organismos vivos, trabalha com conceitos não mecânicos tais como germes, predisposições, pré-formações e epigênese, que antecipam os conceitos da teoria genética atual.
6Sobre as diferenças que separam a psicanálise winnicottiana das neurociências atuais, cf. Loparic, 2008.
7Note-se que, na psicanálise winnicottiana, o "amor", fenômeno psíquico apoiado em impulsos e pressupondo a elaboração imaginativa da excitação somática que lhe é inerente, ocupa um lugar atribuído por outros autores, Lacan, por exemplo, aos desejos (wishes, desires).
8
Winnicott se distancia também da definição do caráter proposta por Fenichel (1945, cap. 20).

9
Winnicott fala em snack-bar psychotherapy (1965b/1990, p. 258).

10
Sobre essa virada na concepção da prática clínica, veja Winnicott, 1965b/1990, cap. 15.
11Para uma ilustração da importância dessa conquista, cf. Winnicott, 1986a/1986, sessão de 24 de março.
12
Observações que vão nessa mesma direção, encontram-se em Winnicott, 1958a/1992, p. 319.

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