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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.12 no.2 São Paulo  2010

 

TRADUÇÕES

 

Heidegger Na Cidade De Benjamin1

 

Heidegger in Benjamin's City

 

 

Jeff Malpas

Professor of Philosophy at the University of Tasmania in Hobart, Tasmania

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

O lugar comum, no que tange à imagem de Heidegger, é a de um filósofo firmemente enraizado, não na cidade de Freiburg, na qual passou grande parte de sua vida, mas na região rural alemânico-suábia, nos arredores do povoado de Messkirch, onde nasceu. Poderia parecer que a distância entre Heidegger e Benjamin, entre Messkirch e Berlim, ou Paris, não poderia ser maior. Mas até que ponto estão as predileções pessoais de Heidegger pelo provinciano e o bauerlich (camponês) de fato ligadas às posições filosóficas que ele desenvolveu? Poderia ser este o caso, de que a cidade, talvez ainda mais do que o campo, devesse desempenhar um papel central em qualquer tentativa séria de se pensar até o fim as implicações do pensamento de Heidegger sobre o ser? Esta apresentação investigará como Heidegger se sentiria na cidade de Benjamin, bem como o lugar da cidade no pensamento do próprio Heidegger, com o propósito de lançar luz não apenas sobre o pensamento de Heidegger, mas também sobre o do próprio Benjamin.

Palavras-chave: Heidegger; Benjamin; cidade; província; imagens


Abstract

The commonplace image of Heidegger is of a philosopher firmly rooted, not in the city of Freiburg in which much of his life was spent, but in the Alemannic-Schwabian countryside around the village of Messkirch in which he was born. It would seem that the distance between Heidegger and Benjamin, between Messkirch and Berlin or Paris could not be greater. But to what extent are Heidegger's own personal predilections for the provincial and the bauerlich actually tied to the philosophical positions that he developed? Might it be the case that the city, perhaps even more than the countryside, has to play a central role in any serious attempt to think through the implications of Heidegger's thought of being? This presentation will explore how Heidegger might find himself in Benjamin's city, and of the place of the city in Heidegger's own thought, with the aim of shedding light, not only on Heidegger's thought, but also on that of Benjamin himself.

Key-words: Heidegger; Benjamin; city; countryside; images.


 

 

A obra de Walter Benjamin está inextricavelmente ligada às imagens e ideias associadas a espaços metropolitanos e a lugares que aparecem com tanta proeminência em sua escrita, e em estreita proximidade com aqueles onde sua própria vida foi vivida, desde a infância em Berlim até os últimos anos em Paris. Considera-se usualmente que a obra de Martin Heidegger, por outro lado, traz consigo um conjunto de associações quase que inteiramente contrário – aquelas do rural e do provinciano, do camponês e do interiorano –, que podem ser percebidas como derivando, elas mesmas, do enraizamento próprio de Heidegger na região rural alemânico-suábia, e, em particular, de sua conexão com o povoado de Messkirch, onde nasceu, passou sua infância e em cujo adro se encontra enterrado. Poderia parecer que a distância entre Benjamin e Heidegger – entre Paris e Messkirch – não poderia ser maior. Mas até que ponto está a aparente fixação de Heidegger no provinciano e no bauerlich (camponês) de fato ligada às posições filosóficas que ele desenvolveu? Seriam tais detalhes de atitude pessoal e de preferência, de fato, secundários em relação a um conjunto de considerações mais básico e filosoficamente relevante, no qual a diferença entre o metropolitano e o provinciano, pelo menos como usualmente entendidos, é de muito menor significância do que pode, ao contrário, parecer? Como se sentiria Heidegger na cidade de Benjamin e qual seria o lugar da cidade no pensamento do próprio Heidegger? Ademais, que luz poderiam tais considerações lançar, por sua vez, sobre a obra de Benjamin, e como poderia Benjamin ser colocado em relação à paisagem onde Heidegger se situa?

Vamos começar, contudo, deixando Benjamin e a cidade momentaneamente de lado, e nos voltando, em vez disso, para o provincianismo que parece tão evidente em Heidegger – um provincianismo que frequentemente é considerado como estando mais claramente expresso não apenas em seu vínculo afetivo com respeito a seu vilarejo natal de Messkirch, mas também no papel desempenhado por um outro lugar, e por um edifício particular neste lugar, a saber, Todtnauberg, na Floresta Negra, e a pequena cabana de dois cômodos que Heidegger, ou, mais precisamente, sua esposa, construiu lá2. Era nesta cabana que Heidegger se recolhia em tempos de crises pessoais, bem como em tempos de intensa produtividade filosófica – foi lá que o primeiro esboço de Ser e Tempo foi completado –, e foi também para a cabana que Heidegger convidou seus mais importantes hóspedes. O significado da cabana e de sua localização rural, tanto na vida de Heidegger, como, pode-se presumir, em seu pensamento, é indicado no curto ensaio, publicado em 1934 (e primeiramente apresentado como uma palestra no rádio, no mesmo ano), "Por que permanecemos na província?". Nela ele descreve o mundo de Todtnauberg:

Em uma encosta íngreme de um amplo vale nas montanhas, ao sul da Floresta Negra, a uma elevação de 1150 metros, ergue-se uma pequena cabana de esqui. Sua planta mede seis metros por sete. O teto baixo recobre três cômodos: a cozinha, que também é a sala de estar, um quarto de dormir e um gabinete. Espalhadas em amplos intervalos por toda a estreita base do vale, e pela igualmente escarpada encosta do outro lado, encontram-se casas de fazenda, com seus amplos telhados em balanço. Encosta acima, as campinas e pastagens levam aos bosques, com seus escuros pinheiros, antigos e elevados. Sobre todas as coisas, estende-se um claro céu de verão, e em sua radiante amplidão dois falcões planam ao redor em largos círculos. (Heidegger, 1981, p. 27)

A realidade deste mundo, Heidegger nos diz, tem um espaço aberto para ela pela obra empreendida no interior deste, uma obra que "permanece encravada no que acontece na região", e ele continua:

Este trabalho filosófico não transcorre como os altivos estudos de algum excêntrico. Ele pertence ao âmbito mesmo do trabalho dos camponeses. Quando o jovem menino de fazenda puxa seu pesado trenó encosta acima e com uma alta pilha de lenha o conduz, descendo o perigoso declive, em direção a sua casa; quando o boiadeiro, caminhando lentamente e perdido em pensamentos, guia seu gado para o alto da encosta; quando o lavrador, em seu galpão, apronta as incontáveis telhas para o seu telhado, assim é meu trabalho. Ele está intimamente enraizado na vida dos camponeses, e a ela conectado. A relação interna de minha obra com a Floresta Negra e seu povo vem de um enraizamento centenário e insubstituível no solo alemânico-suábio... Toda a minha obra é sustentada e guiada pelo mundo desta montanhas e sua gente. (Heidegger, 1981, p. 28)

Além disto, o próprio Heidegger chama a atenção para o contraste entre o mundo de Todtnauberg e o mundo da cidade. Em particular, e em contraste com a paisagem montanhosa de Todtnauberg, a cidade não deixa espaço para o caráter solitário (the solitariness) do pensamento, que permite às coisas chegarem a nós em sua presença simples e essencial. A cidade, Heidegger nos diz, permite a solidão (loneliness), mas não a solitude (solitude); ela promove "uma impertinência muito ativa e elegante", que traz consigo o risco de "erro destrutivo" (Heidegger, 1981, p. 28). Dada a tendência do próprio Heidegger a empregar imagens retiradas da vida e das paisagens rurais, a atitude e o sentimento articulados nesse ensaio prontamente aparecem como que nos oferecendo uma verdadeira compreensão do solo sustentador e da essência do pensamento de Heidegger – tanto que podemos concluir que o pensamento de Heidegger não está meramente enraizado na vida camponesa, mas que ativamente a exalta em oposição à ascensão do urbano, do metropolitano, e também, é claro, do moderno.

A solitude (solitude) que Heidegger encontra na paisagem montanhosa de Todtnauberg tem, diz ele, "o poder peculiar e original não de nos isolar, mas de projetar nossa existência como um todo na ampla proximidade da presença [Wesen] de todas as coisas" (Heidegger, 1981, p. 28), e o que predomina em suas descrições de Todtnauberg é, de fato, uma certa clareza e lucidez no simples estar aí da paisagem e do que é nela encontrado – uma paisagem que não é observada, mas que emerge no e através do engajamento ativo nela e com ela. A solitude (solitude) que Heidegger encontra em Todtnauberg é, assim, tanto um caráter solitário (solitariness) da coisa – um projetar-se no mundo – como é uma solidão (solitariness) vivenciada pelo próprio Heidegger, e, contudo, esta não é uma solitude (solitude) constituída pelo isolamento, mas antes uma solitude (solitude) que vem do deixar-estar (ou -ser) que permite às coisas estar presentes como aquilo que são, mas também, portanto, em íntima conexão com aquilo a que pertencem.

Se esta é a solitude (solitude) que Heidegger teme estar perdida na cidade, então isto se dá talvez em parte porque, como as críticas de Simmel a Soja têm frequentemente observado, o que se encontra na cidade não é nunca a coisa em seu simples estar diante em sua própria presença, mas se dá, sim, uma constante proliferação de coisas, ou, antes, de aparências de coisas, como nas palavras de Simmel: "o rápido amontoar-se de imagens mutantes, a brusca descontinuidade na apreensão de um único relance e o inesperado das impressões que avançam sobre nós" (Simmel, 1950, p. 410). A experiência da cidade como uma experiência de múltiplas imagens obtidas através do próprio movimento de uma única pessoa, bem como o movimento que caracteriza os arredores urbanos, através dos quais alguém se movimenta, é uma parte essencial da experiência do flâneur no que ele perambula pela cidade apreendendo seus sons e especialmente suas visões – pois a experiência da cidade em Simmel, assim como em Benjamin, está intimamente atrelada ao visual – como uma montagem em constante mutação, na qual imagens são justapostas com e recobertas por outras imagens. Desta forma, como tem sido frequentemente observado, a cidade é, em si, essencialmente cinemática, e assim Benjamin pode imaginar a forma propriamente espacial da cidade como que transformada em filme, e o ato de flanar como ele mesmo realizando uma tal transformação cinemática:

Não poderia um filme emocionante ser feito a partir de um mapa de Paris? Do desdobramento de seus vários aspectos numa sucessão temporal? Da compreensão de um movimento centenário de ruas, boulevards, passagens e praças num espaço de meia hora? E faz o flâneur qualquer coisa diferente? (Benjamin, 1999, C1, 9, p. 83)

Embora o interesse de Benjamin no flâneur seja um interesse num fenômeno que pertence propriamente ao século XIX, mais do que ao XX, o flâneur proporciona tanto um meio de descobrir certos aspectos do passado, como também de analisar certos elementos críticos do futuro – o flâneur, com isso, permite o acesso tanto ao advento da modernidade, como àquilo o que ela pressagia. Consequentemente, o ensaio mais famoso de Benjamin, "A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica" (Benjamin, 1969, pp. 217-252), ainda que não fazendo qualquer menção ao flâneur ou às passagens parisienses, está, entretanto, também preocupado com a imagem, sua multiplicação e transformação, como encontrando-se no cerne da experiência do moderno.

Se tentarmos situar Heidegger nessa moderna cidade de imagens, parece, então, que imediatamente encontramos Heidegger numa posição que deve ser contraposta à de Benjamin. De fato, o ensaio do próprio Heidegger sobre a obra de arte, que foi primeiramente apresentado como uma palestra no ano anterior ao do aparecimento do famoso ensaio de Benjamin, parece afirmar a primazia da obra de arte em sua singularidade enquanto obra, de um modo que parece compatível com a ênfase de Heidegger na solitude (solitude) da coisa em sua palestra sobre a "Província". Esta não apenas remete a um paradigma pré-moderno, aquele dos gregos, e uma obra como ela se apresenta em meio a uma paisagem natural, mas também focaliza na maneira em que aquela obra, em sua própria presença autossubsistente, reúne mundo e terra a ela – e assim se coloca contra o que Benjamin declara ser a destruição da singularidade e da solitude (solitude) da obra, que ocorre como um resultado de sua reprodutibilidade e a proliferação de sua imagem. É difícil imaginar Heidegger no papel de flâneur, mas é talvez igualmente estranho imaginá-lo no cinema, e a razão disto é certamente a mesma em ambos os casos: nem a flâneurie nem o cinema possibilitam o tipo de "habitar" envolvido no deixar as coisas projetarem-se em sua presença singular (um habitar que parece estar em contraste com o uso ocasional que Benjamin faz dessa noção); tanto a flâneurie, quanto o cinema, constantemente nos movem para diante, para longe da coisa, para um jogo constantemente fugaz de imagens e impressões. Em termos da linguagem do "Ser e tempo" de Heidegger, se caminhamos pelas ruas com o fIâneur, ou se nos sentamos diante das imagens bruxuleantes do cinema, estamos, em cada um desses casos, imersos no mundo de qualquer um, do anônimo das Man – dispersos, deslocados e distraídos – literalmente, no caso do flâneur, no mundo da multidão.

Na medida em que a cidade é vista como essencialmente ligada a tal dispersão anônima, a tal movimento e proliferação, e na medida em que estas dispersão e proliferação são vistas, em Heidegger, como ligadas ao "esquecimento" do ser, ao "esquecimento" da presença das coisas, que é característica da modernidade, então a cidade deve ser o local essencial para esse esquecimento – com Benjamin, talvez, como um de seus mais conscienciosos frequentadores. Contudo, deve-se tomar cuidado com as conclusões que podem ser daqui tiradas. Seria, parece-me, um erro grosseiro tratar Benjamin como um exemplo do tipo de "esquecimento" que Heidegger poderia ter em mente aqui – ainda que seja verdade que a reação de Benjamin, bem como sua compreensão do que tal esquecimento consistiria, seja bastante diferente daquela que é encontrada em Heidegger. O interesse na presença, na proximidade das coisas, pode ser também observado em Benjamin, mas é buscado precisamente através da preocupação com a imagem, com sua multiplicação e condensação, e mesmo seu vestígio como "traço" – "O traço é aparência de uma proximidade, não importa o quão distante possa estar a coisa que o deixou para trás [...]. No traço tomamos posse da coisa" (Benjamin, 1999, p. 447). Em Benjamin, o problema a que Heidegger se refere como a "proximidade da presença das coisas" não está ausente nem é negligenciado, mas, antes, é explorado através de espaços e lugares especificamente urbanos que, de fato, parecem ser tão característicos da modernidade. Aqui, a presença das coisas não é menos possível, nem menos significante do que na paisagem rural à qual Heidegger parece nos referir, ainda que a maneira pela qual aquela presença é concebida possa mostrar-se um tanto diferentemente.

Se o foco na obra de Benjamin está, como se diz, na imagem, então a imagem pode ser compreendida tanto em termos de um modo da presença da coisa, como de sua ausência. Compreendida como o modo pelo qual a coisa está presente, então a imagem, que nunca é uma imagem única, mas sempre múltipla, pode ser descrita como possibilitando um vir-à-presença da própria multiplicidade que já está dada na coisa. Quando focamos na imagem enquanto substituta da coisa, enquanto sua reposição e, ao mesmo tempo, tratamo-la antes como unitária do que como múltipla em si mesma, é que a imagem acaba por nos distanciar da coisa ou, ao menos, a solidifica em uma única apresentação na qual a coisa, sempre ela mesma múltipla, efetivamente se perde. O que a proliferação da imagem pode possibilitar – se essa proliferação surge através do movimento da rua urbana ou da projeção cinemática – é uma compreensão da maneira pela qual a coisa sempre sustenta uma multidão de imagens sem a necessária perda da coisa mesma. Na verdade, é através dessa proliferação que a coisa, como coisa, se torna disponível. Desta forma, a imagem poderá nos conduzir de volta à coisa, de um modo tal que a mera concentração de atenção na coisa em sua aparente solitude (solitude) pode também ser vista como tendo potencial para nos desviar da coisa, ao encorajar uma identificação da coisa simplesmente com a aparência singular que ela apresenta em qualquer dado momento de sua presença. Heidegger pode ser visto como argumentando contra o esquecimento da coisa, tanto se esse esquecimento surge no tratamento da coisa como sendo meramente idêntica à sua presença no presente, e, assim, como presente numa única aparência, quanto contra a perda da coisa que se poderia pensar ocorrer devido à proliferação da imagem. Contudo, aquilo para o qual Heidegger parece não atentar, e que Benjamin talvez traga para nossa atenção, é a continuada presença da coisa em meio à multiplicidade de suas imagens, e, portanto, a possibilidade, em tal proliferação, de um redespertar daquilo que a própria coisa pode ser e que sempre excede o que é dado no meramente presente, ou na imagem singular.

O modo como a presença da coisa aparece em Benjamin não é apenas pela proliferação da imagem em relação à coisa, mas também pela possibilidade da recaptura da coisa através de seus traços. Assim, a solidificação de memórias no interior da textura complexa e constantemente reescrita da cidade concede a possibilidade sempre presente do aparecer e reaparecer das coisas, em modos que chamam a atenção para seu caráter de coisas, precisamente pela maneira como permanecem, ainda que somente como traços ou memórias. A possibilidade do persistir das coisas desta forma, a despeito da perda que possa ocorrer no tempo, é indicativa tanto do modo como a cidade pode servir para preservar as coisas em seus traços ou resíduos (à medida que a cidade constantemente se reescreve, ela também retém algo daquilo que é sobrescrito), como também do caráter da cidade, como sendo ela mesma construída pelo reter das coisas em seus resíduos e traços. O projeto de Benjamin, então, está dirigido para a constante escavação de tais traços e para a recuperação das vidas das coisas na vida da cidade − e, ao fazer isso, iluminando o caráter complexo da coisa e dos espaços e lugares nos quais, num sentido que não está inteiramente desconectado de Heidegger, esta de fato habita.

O caminho de volta à coisa, que nos conduz através das ruas da cidade ou das passagens parisienses, ou, alternativamente, pela interioridade bruxuleante do cinema, é um caminho que permite à coisa ser vista do modo como está engastada, quase arqueologicamente, poder-se-ia dizer, em um denso depósito de coisas, caminhos, imagens. Mesmo em sua solitude, então, a coisa, como o pensador, nunca permanece sozinha. Uma maneira de se compreender a incrustação da coisa em seu mundo, a qual, talvez, seja mais claramente apreendida no interior do espaço densamente comprimido da cidade do que na abertura do campo, é desconstruindo a separação entre os espaços do interior e do exterior − e não meramente entre os espaços dentro dos quais a coisa pode estar colocada, enquanto opostos aos espaços que se encontram fora, mas também o espaço que se poderia considerar interior à coisa, enquanto oposto à sua própria externalidade. Ademais, essa desconstrução espacial deve aplicar-se não apenas à coisa, mas também àquele que já se encontra posto numa relação àquela coisa. Enquanto o flâneur poderá permanecer em certa medida como algo exterior e apartado daquilo que ele observa, o que ele observa é, contudo, também parte de seu próprio modo mental e material de ser. A atração da flâneurie é, assim, aquela a ser encontrada na exploração de uma obra onírica, na qual alguém é capturado mesmo quando esse alguém já o reconhece como um mundo de sonho. Em "Ser e tempo", de Martin Heidegger, a maneira pela qual o mundo emerge para um ente, que possui um sentido de seu próprio aí, é por seu movimento em e através de uma rede multiplamente conectada de coisas, lugares e regiões, ligados na temporalidade do cuidado, mas da qual tal modo de ser não pode nunca se desembaraçar. Tanto em Heidegger como em Benjamin, embora de formas bem distintas, a desconstrução espacial da dicotomia entre interior e exterior (o que não significa dizer sua dissolução) é essencial para que se permita à coisa, e ao si-mesmo, aparecer em sua presença como singular e, contudo, como essencialmente conectada no interior da mutualidade e multiplicidade do mundo.

A ideia da coisa que emerge aqui, e que está sempre ligada à multiplicidade, apesar da antiga preferência de Heidegger por uma linguagem da solidão (solitariness) e da singularidade, é de fato uma ideia que está essencialmente atrelada a uma certa concepção da esfera pública que é exemplificada na forma específica da cidade construída, ainda que não restrita a esta. A multiplicidade da coisa, e a forma pela qual a coisa está presente através de seu caráter múltiplo, é apenas possível através do caráter múltiplo de sua relação com o humano. A desconstrução do espaço da interioridade e da exterioridade não é apenas, no que concerne a isto, uma desconstrução de uma certa separação espacial no que diz respeito à coisa, nem mesmo do si-mesmo individual em relação à coisa, mas também do eu em relação aos outros. O tema da transparência, considerado tão proeminente em Benjamin (a transparência que ele toma como sendo uma característica essencial da modernidade) é, mais uma vez, não uma transparência que deva ser entendida em termos de uma perda do eu, do outro ou da coisa, mas, antes, em termos do estar engastadas das coisas, de seu estar aninhadas em relação às outras coisas, em relação à sua mútua incorporação e implicação. Além disto, a multiplicidade da coisa está diretamente ligada à multiplicidade da esfera pública, que se torna, ela mesma, possível através de sua unificação na coisa enquanto singular. Este é, sem dúvida, um tema particularmente evidente em Arendt, mas é um tema que talvez possa ser visto, em Arendt3, como já sendo apropriado de Heidegger, que está também presente, embora de uma maneira bem menos nítida, em Benjamin. A cidade, o que significa dizer, o espaço concreto do convívio humano, é o espaço no qual estamos constantemente engajados num processo de negociação entre si mesmo e outro, por nosso estar relacionados uns aos outros em nossa corporeidade, incluindo a corporeidade do discurso, e no que isto é possibilitado através de nosso engajamento mútuo com a coisa multiplamente presente. Assim, Heidegger pode falar da cidade, compreendida em termos da pólis grega, como:

... a pólis, o polo, o lugar ao redor do qual toda coisa que aparece para os gregos como um ente gira de um modo peculiar. O polo é o lugar ao redor do qual todos os entes têm sua estruturação de tal modo que, no domínio deste lugar, os entes se mostram em sua estruturação e em suas condições de estruturação. (...) A pólis é a essência do lugar [Ort] nós dizemos, ela é a lugar-ização [Ort-schaft], ou seja, a morada histórica da humanidade grega. (...) Entre pólis e "ser" vige um relacionamento primordial. (Heidegger,2008, p. 32)

Aqui, a ênfase de Heidegger é na pólis como aquele lugar no qual o ser humano estabelece o "aí" de seu próprio ser, que é sempre um "aí" pertencente antes a muitos do que a um − um "aí" que deve ser sempre múltiplo e nunca único em qualquer forma simples − e assim também como o lugar no qual o ente, isto é, a proximidade da presença das coisas, igualmente vem à luz. O fato de que essa "proximidade da presença" sempre ocorra num lugar, embora num lugar que se abra para dentro e para fora da multiplicidade, significa, contudo, que tal presença sempre ocorre a respeito de um certo tipo de singularidade (singularity), ainda que não seja aquela de um simples ser singular (singleness). Além do mais, o aparecer das coisas nesse lugar, e o aparecer do si-mesmo, tanto em termos de uma experiência de interioridade personalizada e de exterioridade pública, é sempre uma experiência tanto de ser atraído para esse lugar e de pertencer a ele, como de ser capaz de permanecer separado deste. Esta dinâmica de aproximação e afastamento, de pertencimento e alienação, é evidente, até certo ponto, na experiência do flâneur, mas é também o que corrobora a experiência da estranheza que é um elemento central tanto em Heidegger quanto em Benjamin. A própria linguagem de Heidegger, do "caseiro", bem como do doméstico e da origem, é sempre uma linguagem que os percebe como essencialmente não familiares, como estranhos e alienantes − em Heidegger, então, é crucial ver a maneira como o estranho inquietante emerge mesmo do meio do que é mais familiar − até mesmo na Heimat de Todnauberg e Messkirch.

A linguagem da Heimat, ainda que uma estranha-inquietante Heimat (como James Phillips salienta4 ), não precisa ser concebida recorrendo-se apenas ao mundo a nós apresentado nas imagens heideggerianas do rural e do provinciano. Para Benjamin, as ruas de Paris e de Berlin também aparecem como uma Heimat de um certo tipo, por incongruente que esta linguagem possa parecer. Além do mais, Benjamin tem também um mundo do trabalho (a work-world) − uma versão, talvez, da cabana heideggeriana − que é dele próprio, e na qual sua obra está enraizada. Podemos ficar tentados a tomar aquele mundo do trabalho como sendo a cidade enquanto tal, mas, como Arendt parece sugerir, a contraparte benjaminiana à cabana heideggeriana é, de fato, o escritório, ou biblioteca, a ser encontrada no interior da paisagem da cidade5. Poderíamos, é claro, tratar a rua como tal biblioteca, uma biblioteca ou arquivo de imagens, e similarmente, o espaço feito de palavras que é a linguagem pode ser pensado como constituindo uma biblioteca de um certo tipo, e o modo como ambos podem funcionar como partes do mundo de Benjamin não deveria ser visto apenas por alto, mas a biblioteca que é o coração do mundo do trabalho de Benjamin é seguramente a biblioteca real, aquelas salas repletas de livros, nas quais Benjamin escreveu e leu, nas quais sua obra foi levada a cabo e da qual emergiu.

Todo pensar tem, em si, uma certa solidão (solitariness), e para Benjamin é a biblioteca que constitui o espaço "solitário" no qual o pensamento se torna possível − não somente o espaço privado da própria coleção de livros de Benjamin (sua única posse mais valiosa), mas também os espaços públicos, tais como a Biblioteca Nacional, em Paris, na qual "Passagens6" foi realizado. Ao contrário de Heidegger, o pensamento é possível na cidade − embora seja também verdadeiro que os espaços que a cidade abre ao pensar devem imprimir-se no caráter daquele pensamento de modos significativos, embora talvez nem sempre óbvios ou esperados7. O próprio Benjamin parece ter tido algum senso do lugar de seu próprio pensamento no interior do espaço da biblioteca, e isto contrasta com a evocação de Heidegger de seu próprio estar engastado na paisagem montanhosa de Todtnauberg. Como Benjamin escreve sobre "Passagens" e sua relação com a Biblioteca Nacional:

Aquelas notas devotadas às passagens de Paris foram iniciadas sob um céu aberto de um azul sem nuvens que se arqueava sobre a folhagem; e contudo − devido às milhões de folhas que foram visitadas pela brisa da diligência, a estertorosa respiração do pesquisador, a tempestade do ardor juvenil e o vento sem propósito da curiosidade − foram cobertas com a poeira dos séculos. Pois o céu pintado do verão, que olha para baixo, a partir das passagens na sala de leitura da Biblioteca Nacional, em Paris, espalhou sobre elas seu teto devaneador e escurecido. (Benjamin, 1999, N 1, 5, pp. 457-458)8

 

Referências

Arendt, H. (1958). The Human Condition. Chicago: Chicago University Press.         [ Links ]

Arendt, H (1968). Walter Benjamin 1892-1940. In H. Arendt, Men in Dark Times. New York: Harcourt Brace Jovanovich.         [ Links ]

Arendt, H. (1994). The Concern with Politics in Recent European Political Thought. In H. Arendt, Essays in Understanding (J. Kohn, Ed). New York: Harcourt Brace Jovanovich.         [ Links ]

Benjamin, W. (1969). Illuminations. (H. Arendt, Ed.; H. Zohn, Trans.). Nova York: Schocken Books.         [ Links ]

Benjamin, W. (1999). The Arcades Project. (Howard & K. McLaughlin, Trans.). Harvard: Harvard University Press.         [ Links ]

Heidegger, M. (1981). Why Do I Stay in The Provinces. In T. Scheehan (Ed.), Heidegger: The Man and The Thinker. Chicago: Precedent.         [ Links ]

Heidegger, M. (2008). Parmênides (trad. Sérgio Mário Wrublevski, trad.). Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Phillips,J. (2003). Heidegger's Volk. Stanford: Stanford University Press.         [ Links ]

Scharr, A. (2006). Heidegger's Hut. Cambridge, Mass.: MIT Press.         [ Links ]

Sebald, W.G. (2001), Austerlitz. Harmondsworth: Penguin.         [ Links ]

Simmel, G. (1950). The Metropolis and Mental Life. In K. Wolff (Ed.), The Sociology of Georg Simmel. Nova York: Free Press.         [ Links ]

 

 

Endereçoo para correspondênciaEmail: Jeff.Malpas@utas.edu.au

 

 

1 O texto original "Heidegger in Benjamin's City" foi publicado em Journal of Architecture, 12, pp. 489-499, 2007. O autor e os editores cederam os direitos para esta tradução.
2 Ver Scharr, 2006.
3 Ver, por exemplo, a discussão de Arendt em "The Human Condition" (Arendt, 1958), pp. 50-58, especialmente p. 57, bem como pp.199-200.
4
Ver Phillips, 2003.
5 Ver Arendt, 1968, pp.176 e 194.
6Esta obra foi publicada no Brasil pela Ed. UFMG em 2006, organizada por Willi Bolle. (Nota da Tradutora).
7Pode-se argumentar, é claro, que Heidegger não nega a possibilidade do pensamento no interior do espaço da cidade, mas está, em vez disso, preocupado em criticar um certo enfraquecimento do pensar que tem lugar na modernidade − algo que é também o foco da famosa discussão do Das Man, em "Ser e Tempo", parágrafo 27, H126ff, e que é também brevemente tratado por Hannah Arendt no prefácio de "Man in Dark Times" (Arendt, 1968, p. ix), bem como no ensaio "The Concern with Politics in Recent European Political Thought" (Arendt, 1994, p. 433). Na medida em que os comentários de Heidegger em "Por que permanecemos na província?" têm sido tratados, é importante que o contexto particular daquele ensaio não seja visto por alto, isto é, sua renúncia ao cargo de Reitor em Freiburg e da maneira como deve ser visto o jogar no contraste entre o chamado da vida pública e o chamado do pensamento, tal como apresentados neste ensaio.
8
W.G.Sebald, um escritor que tem muito em comum com Benjamin, tem um de seus personagens, Austerlitz, que fala eloquentemente do mesmo estranho lugar na Rua Richilieu: "Na semana em que fui diariamente à Biblioteca Nacional... e usualmente permanecia lá em meu lugar até o anoitecer, em silenciosa solidariedade com tantos outros imersos em seus trabalhos intelectuais, perdendo-me nas pequenas marcas impressas das notas de rodapé das obras que lia, nos livros que encontrava mencionados naquelas notas, nas notas de rodapé destes mesmos livros, por sua vez, e assim escapando dos relatos fatuais, escolares, para os mais estranhos detalhes, numa espécie de regressão contínua, expressa na forma de minhas próprias observações em suas margens e comentários, que cada vez mais se bifurcavam nas mais variadas e impenetráveis das ramificações... minha mente frequentemente se detinha na questão de se lá, na sala de leitura da biblioteca, que era cheia de um zumbir, de um sussurrar e purificar de gargantas, eu estava nas Ilhas dos Abençoados, ou, ao contrário, em uma colônia penal..." (Sebald, 2001, pp. 363-365).

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