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Natureza humana

 ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.13 no.1 São Paulo  2011

 

Artigos

 

A função da angústia na metapsicologia freudiana

 

The function of anxiety in Freudian metapsychology

 

 

Lara Cristina D' Avila LourençoI; Milena de Barros VianaII; Danúbia Cristina de PaulaIII

I Professora adjunta do Departamento de Saúde, Educação e Sociedade da Unifesp
E-mail: laracdl@hotmail.com
II Professora do Departamento de Biociências da Unifesp
IIIAluna do curso de Psicologia da Unifesp

 

 


Resumo

Desde as primeiras hipóteses de Freud sobre a gênese da histeria, a angústia ocupa um lugar fundamental para a compreensão do psiquismo, servindo como elemento estruturante do pensamento freudiano. O objetivo desse trabalho é analisar e comparar teorias sobre a angústia desenvolvidas por Freud em duas obras metapsicológicas – Projetopara uma psicologia científica e Além do princípio do prazer –, particularmente no que diz respeito às origens e funções desempenhadas por esse afeto fundamental. Conclui-se que, embora 25 anos separem as duas obras, similaridades importantes podem ser estabelecidas entre ambas no que diz respeito à conceituação da angústia e seus desdobramentos.

Palavras-clave: angústia, dor, prazer, psiquismo, trauma.


Abstract

Since Freud's first conceptions on the genesis of hysteria, anxiety plays a critical role for the understanding of the psychic functioning, and serves as a key element of Psychoanalytic theory. The purpose of this study is to analyze and compare theories on anxiety developed by Freud in the metapsychological texts Project for a scientific psychology and Beyond the pleasure principle, particularly emphasizing his hypotheses about the origins and functions played by this fundamental affect . It is concluded that, although 25 years separate both texts, important similarities can be found between them regarding the concept of anxiety and its derivations.

Key-words: anxiety, pain, pleasure, psychism, trauma.


 

 

Em 1895, Freud descreve uma nova entidade nosológica, a Angstneurose, ou neurose de angústia. O artigo inaugural (1895/1976), que apresenta e caracteriza o quadro clínico, é publicado na mesma época em que Freud trabalhava na redação do Projeto para uma psicologia científica (1950/1976). Nos moldes do Projeto, a Angstneurose é descrita em termos quantitativos, como resultado de um acúmulo de excitação que não encontra representação psíquica. Esta excitação acumulada e não representada psiquicamente transforma-se em angústia. É com base nessa descrição quantitativa que Freud formula o que vem a ser conhecido como sua "primeira teoria" sobre a questão da angústia. Posteriormente, Freud introduz algumas modificações nessas primeiras elaborações teóricas, o que hoje tem sido chamado de "segunda teoria". Como será demonstrado ao longo desse trabalho, é possível, entretanto, traçar um pano de fundo comum às concepções freudianas acerca da angústia, com base na descrição de funcionamento do aparelho psíquico contida no Projeto (1950/1976). Nesse sentido, o presente trabalho tem como objetivo analisar e comparar as ideias que norteiam o conceito de angústia em duas obras metapsicológicas de Freud, distantes 25 anos uma da outra: Projetopara uma psicologia científica (1950/1976) e Além do princípio do prazer (1920/1980). Iniciaremos apresentando alguns dos conceitos fundamentais contidos na primeira obra, para em seguida analisar como a questão da angústia em Além do princípio do prazer (1920/1980) aproxima-se das ideias originais defendidas no Projeto (1950/1976).

 

1. O Projeto para uma psicologia científica (1950/1976)

Ainda que escrito na mesma época em que as primeiras elaborações teóricas de Freud acerca da questão da angústia foram publicadas, o Projeto (1950/1976) é uma obra publicada apenas postumamente. Seu objetivo principal é descrever o funcionamento do aparelho psíquico, em termos neuronais. Para Freud, um sistema nervoso primitivo funcionaria segundo o que ele chamava de "princípio da inércia". Esse é um princípio que fundamenta todo o movimento reflexo. Um organismo primitivo recepcionaria estímulos ambientais (expressos na forma de quantidades, Q) e os eliminaria por meio de mecanismos musculares, conservando-se, portanto, sem estímulos (daí, a ideia da inércia). A eliminação seria, assim, a função primária do sistema nervoso. Já os caminhos privilegiados de eliminação, que caracterizam a fuga do estímulo, Freud irá chamar de função secundária.

Se um organismo primitivo funciona, entretanto, segundo o princípio da inércia, com o aumento da complexidade dos organismos, o sistema nervoso passa a receber estímulos endógenos, que determinam as necessidades orgânicas (fome, respiração, sexualidade, são os exemplos utilizados por Freud). Desses estímulos, não é possível escapar: é necessário que o organismo atue sobre o mundo externo, interrompendo, assim a estimulação. Essas ações, responsáveis pela interrupção da estimulação ambiental sobre o organismo, são chamadas por Freud de específicas. E, para que elas possam ser realizadas, é necessário o armazenamento de determinada quantidade neuronal (Qn). O que ocorre, portanto, é um abandono da inércia em prol da constância.

Em um sistema nervoso complexo, que funciona segundo o princípio da constância, os neurônios podem encontrar-se ocupados por uma determinada Qn, ou vazios. Quando ocupados, os neurôniossão dirigidos à eliminação (que se dá por meio do cilindro do eixo, ou axônio). Segundo o princípio da constância, entretanto, é necessária a acumulação de Qn para que a ação específica seja levada a cabo. Assim, segundo Freud, existem também resistências opostas à eliminação: as "barreiras de contato". Com a estimulação repetida, a resistência diminui, ou seja, ocorre uma facilitação dessas barreiras. Isso se passa em agrupamentos neuronais constituídos por células "recordativas" (ou neurônios Ψ). Em contraposição às "células perceptivas" (neurônios Ф), que seriam permeáveis e funcionariam recebendo estímulos ambientais, as "células recordativas" seriam impermeáveis e responderiam pela memória e por processos psíquicos em geral.

Os neurônios Ψ seriam, portanto, segundo Freud, continuamente modificados pelos processos de excitação, e a memória estaria representada pelas facilitações existentes entre neurônios desta ordem. Tais facilitações, obviamente, dependem do número de repetições de um determinado processo (ou seja, das experiências de vida do sujeito) e servem à função primária do sistema nervoso, isto é, a eliminação de Qn. Em termos anatômicos, Freud argumenta que os neurônios Ф corresponderiam provavelmente aos neurônios que se comunicam com a medula espinhal, enquanto os Ψ seriam neurônios encefálicos (mais especificamente, neurônios corticais). O que tornaria os neurônios Ф permeáveis seria o fato de que estes neurônios recebem, diretamente, estímulos oriundos do mundo externo, ou seja, seriam continuamente bombardeados por grandes Qs. Para amortecer estas grandes Qs exógenas, tal sistema lançaria mão de mecanismos protetores. Já o sistema Ψ não possuiria ligação direta com o mundo externo e, por isso mesmo, receberia Q de grandezas menores (o que o tornaria também impermeável). Em última análise, dirá Freud, a organização do sistema nervoso serviria ao afastamento e a função à eliminação de Qn.

Ora, se o sistema nervoso em condições fisiológicas encontra-se protegido de grandes Qs externas, quando estas proteções falham, tem-se um fenômeno intimamente relacionado com a experiência de dor. De fato, para Freud, a dor consistiria em uma falha nos mecanismos de proteção do sistema nervoso e na consequente incursão de grandes Qs em direção a Ψ, decorrendo daí facilitações permanentes nas "barreiras de contato".

Todos esses processos independem do acesso à consciência do sujeito. São processos neurônicos que existem, portanto, sem que necessariamente se tornem conscientes. A consciência, dirá Freud, atribui aos processos psíquicos o que se chama de qualidade, e que se encontra a critério de um terceiro sistema neuronal proposto pelo autor, o sistema ω. Este sistema, movido por Qs ainda menores do que o sistema Ψ, detectaria as diferenças nos períodos de excitação, que já teriam seu início, segundo Freud, nos próprios órgãos dos sentidos, os quais funcionariam como crivos, só permitindo a passagem de estímulos com determinados períodos. Os diferentes períodos detectados seriam assim transferidos de Ф para Ψ e daí para ω, produzindo, neste último agrupamento neuronal, sensações conscientes de qualidade, de prazer e desprazer. Para Freud, portanto, consciência nada mais é do que "o lado subjetivo de uma parte dos processos físicos do sistema nervoso" (Freud, 1950/1976, p. 414). Uma ocupação forte de ω resultaria em desprazer, enquanto uma ocupação fraca resultaria em prazer. Dessa forma, tem-se um sistema que recebe estímulos do mundo externo, de acordo com a quantidade e o período, de maneira reduzida (de acordo com a quantidade) e descontínua (de acordo com a qualidade, já que certos períodos não são captados como estímulos). Uma maior Q em Ф resultaria em uma maior ocupação de neurônios Ψ (ou seja, Q se expressa de Ф para Ψ, por complicação). Já a qualidade expressa-se por tópica, ou seja, pelas relações anatômicas que os órgãos dos sentidos estabelecem com Ф e este com Ψ. Para explicar melhor seu argumento, Freud propõe que os neurônios Ψ poderiam ser subdivididos em dois agrupamentos: os neurônios do manto, que recebem ocupação de Ф, e os neurônios do núcleo, que seriam ocupados por Q, de origem endógena. Estes últimos só seriam ativados com o aumento dos estímulos, gerados pelo próprio organismo. Ou seja, a somação de estímulos endógenos tornaria os neurônios Ψ, do núcleo, permeáveis. Para Freud, estas Qs endógenas funcionam como um "impulso que sustenta toda a atividade psíquica" (Freud, 1895[1950]/1976, p. 421; o termo utilizado é Trieb). E é disto que trata, na linguagem do Projeto (1950/1976), o conceito de "pulsão".

De acordo com o princípio da constância, a ocupação dos neurônios Ψ pelas Qs endógenas leva a um esforço de eliminação. Como é impossível a fuga destes estímulos, é necessário que o organismo intervenha sobre o meio ambiente para que a estimulação seja interrompida. Com isso tem-se o que Freud irá chamar de "vivência de satisfação". Ao contrário da vivência de satisfação, a dor produz em Ψ uma forte ocupação, sentida como desprazer em ω, levando a uma inclinação para a eliminação e a uma facilitação entre esta e a imagem recordativa do objeto que gerou a dor. De tal maneira, que, se a imagem do objeto for novamente ocupada por uma nova percepção, é gerado um estado não doloroso, mas similar ao estado de dor. Esta reprodução da vivência de dor, Freud irá chamar de "afeto". A angústia, da qual Freud irá tratar na segunda parte do Projeto (1950/1976), ao descrever o caso Emma, é um afeto primordial1. A reprodução implica a ocupação de neurônios Ψ (trata-se de uma memória). Com a ocupação destes neurônios, diz Freud, desprazer é liberado do interior do organismo e, a partir daí, novamente transposto para cima. Com isto, Freud introduz a ideia de neurônios secretores que, quando excitados pela ocupação recordativa, gerariam Q, ativando ainda mais os neurônios Ψ. O funcionamento destes neurônios secretores, também chamados de "neurônios-chave", só seria ativado a partir de um determinado nível de excitação, de acordo com as facilitações deixadas pela vivência de dor.

Enquanto a vivência de dor pode gerar afetos, a vivência de satisfação, segundo Freud, pode gerar os chamados "estados desiderativos". Estes últimos são resultantes da atração pelo objeto de desejo, pela sua recordação, enquanto da vivência de dor resulta uma repulsa a manter ocupada a imagem hostil.

Nesse ponto, no Projeto (1950/1976), é introduzido o conceito de "Eu" (ou Ego). Tanto a atração desiderativa quanto a repressão levam a certa organização de Ψ (tendo em vista que trilhas são formadas em função da facilitação de "barreiras de contato"). É esta organização de Ψ, determinada pelas vivências do próprio organismo, que Freud irá chamar de "Eu", composto, segundo o autor, por uma parte permanente e uma variável. A parte permanente mencionada corresponde à Qn necessária para a função secundária. Já a parte variável corresponde às diversas Qs que ocupam neurônios Ψ e que são eliminadas. A isto, segue-se a observação de que o curso de uma determinada Qn pode ser influenciado (ou inibido) pela ocupação de um neurônio vizinho. Portanto, para Freud, se existe um "Eu", sua função seria a de inibir processos psíquicos primários (atração desiderativa e defesa primária) pela ocupação lateral. E isto seria indubitavelmente vantajoso para Ψ. Pois, caso contrário, o "Eu" em Ψ sofreria desamparo e dano. Desamparo tendo em vista que a recordação do objeto desiderativo não gera satisfação, já que o objeto não possui existência real. No segundo caso, a recordação da imagem hostil geraria liberação de desprazer e defesa primária excessiva. Tanto a ocupação desiderativa quanto a liberação de desprazer podem ser biologicamente prejudiciais ao organismo. Para que ambas não ocorram, portanto, o organismo necessita de um signo de realidade. Este signo, diz Freud, é provavelmente fornecido por ω. E isto somente ocorre, mediante grandes Qs, desde Ψ. Logo, se o "Eu" inibir adequadamente Qn pela ocupação lateral, não é dado o signo de realidade a Ψ. Portanto, dirá Freud, é a inibição do curso de Qn proporcionada pelo "Eu" que diferencia uma percepção de uma recordação. A excitação dos neurônios ω chama, assim, a atenção de Ψ para a presença ou ausência de uma percepção. Se um signo de realidade for emitido, a eliminação deverá ocorrer na direção de uma ação específica.

Dessa forma, em contraposição aos processos primários (nos quais ocorre descarga excessiva de Q, tendo em vista que a inibição por ocupação lateral não se deu ou se deu de forma insuficiente), Freud introduz a noção de processos secundários (nos quais Q permanece constante, em função das ocupações laterais, ou seja, de uma boa ocupação do "Eu"). Estes últimos se dão, devido ao uso adequado dos signos de realidade. Dependem, portanto, de um "Eu" ativo e substituem gradativamente os processos primários, à medida que o desenvolvimento do sistema nervoso ocorre.

A partir daí, o Freud do Projeto (1950/1976) vai tratar da análise dos processos patológicos. O quadro clínico analisado no texto de 1895 é a histeria. Freud argumenta que os histéricos encontram-se submetidos a compulsões, decorrentes de ideias intensas. Tais ideias apresentam consequências importantes (liberação afetiva, inervações motoras, impedimentos) e não são plenamente compreendidas pelo sujeito. E é nisto que uma compulsão histérica difere de uma ideia intensa, encontrada em um indivíduo não histérico. Como um sonho, dirá Freud, a compulsão histérica é incompreensível, insolúvel pelo trabalho pensante e incongruente. Com base no trabalho analítico, entretanto, ela pode ser esclarecida. Pois, pela análise de casos histéricos, foi possível perceber que "para cada compulsão existe uma repressão correspondente e para cada intrusão excessiva na consciência existe uma amnésia correspondente" (Freud, 1950/1976, p. 460). E isso se dá à semelhança do que ocorre na vivência de dor, porque o sujeito tende, a todo custo, evitar a ocupação da imagem recordativa hostil. Para tanto, Q retirada de uma ideia qualquer (B, por exemplo) é transferida para outra (A). É o que Freud vai chamar de deslocamento. Tem-se, assim, uma formação de símbolo, como no sonho. A compulsão histérica difere, entretanto, de uma defesa normal pelo fato de que, no primeiro caso, tem-se uma resistência extraordinariamente grande à ocupação de B. A formação de símbolo, na defesa patológica, ultrapassa o observado com a defesa normal. E, para Freud, as ideias que despertam no "Eu" um afeto defensivo desta grandeza são de natureza sexual.

Para ilustrar suas observações, Freud recorre ao relato de um caso clínico. O caso relatado é o de Emma, uma jovem que se encontra sob uma compulsão: a de não poder ir sozinha a uma loja. Para fundamentar sua compulsão, Emma relata o seguinte episódio: quando tinha 12 anos, foi a uma loja sozinha comprar algo. Dois balconistas conversavam e riam entre si. Emma foge, "tomada de uma espécie de susto" (Freud, 1950/1976, p. 464; grifo do autor). Recorda-se também de ter acreditado, na ocasião, que riam de seu vestido e que um dos balconistas lhe agradara sexualmente.

Suas explicações não justificam, entretanto, seu medo de ir sozinha a lojas, ou seja, não explicam nem a compulsão nem determinam o sintoma. Com base em uma investigação posterior, Freud descobre que, anos antes, quando Emma tinha 8 anos de idade ela havia, por duas ocasiões, ido sozinha a uma mercearia comprar doces. Na primeira ocasião, o merceeiro, rindo, beliscou-lhe os genitais por baixo do vestido. Apesar disto, Emma retorna uma segunda vez. Ao relatar essa lembrança, recrimina-se por ter ido a segunda vez.

Ao analisar os dois episódios conjuntamente, é possível entender o episódio 1. Em ambos os casos, há o relato do riso (o riso dos balconistas desperta a lembrança do riso do merceeiro) e do "estar sozinha". A diferença é que, entre o episódio com o merceeiro e o episódio da loja, Emma havia-se tornado púbere. Ou seja, diz Freud, "a lembrança evocou o que ela certamente não estaria apta a sentir na ocasião, uma liberação sexual, que se transformou em angústia" (Freud, 1950/1976, p. 467, itálico do autor). É essa angústia, resultado de um acúmulo de excitação sexual, que faz com que Emma fuja, na ocasião. A ideia de que tensão sexual física transforma-se em ansiedade quando há acumulação , proposta no Projeto (1950/1976), fundamenta o artigo inaugural de Freud acerca da neurose de angústia (Angstneurose): "Sobre os critérios para separar da neurastenia uma síndrome particular intitulada neurose de angústia" (1895/1976). É importante observar que o sintoma só é formado quando a paciente ingressa na puberdade. Um histérico, portanto, para o Freud do Projeto (1950/1976), é um indivíduo que se tornou sexualmente excitável precocemente. Esta excitação precoce levaria a um aumento de Qn, que não teria como ser eliminada por meio de uma ação específica (cópula), tendo em vista a imaturidade sexual do sujeito. Este fluxo de Qn alteraria o curso normal do pensar. Mas como se daria essa inibição? De diferentes maneiras. Primeiro, caminhos deixam de ser trilhados (fazendo com que o indivíduo se esqueça). Segundo, não se elimina Q de maneira apropriada. Portanto, o processo afetivo é muito semelhante ao processo primário não inibido pelo "Eu" ativo. Logo, é interessante para o "Eu" impedir qualquer liberação afetiva. Assim, se ocorrer recordação de uma vivência dolorosa, haverá desprazer, mas o "Eu" desenvolvido tenderá a criar ocupações laterais, que tendem a aumentar com as repetições, devido às facilitações das barreiras de contato. De tal maneira que, a cada nova repetição, a liberação de desprazer é menor, até que finalmente ela se reduz a um sinal (a ideia, portanto, de uma angústia sinal, desenvolvida em textos posteriores do autor, já se encontra aqui presente).

 

2. O Além do princípio do prazer (1920/1980)

2.1. Trauma e angústia

Embora as relações entre angústia e perigo sejam notadas desde os primeiros textos de Freud, é na Conferência XXV (1917/1980) que o autor as formaliza. Por meio da tese de que os perigos, internos e externos, são sinalizados pelo "Eu" por meio da angústia, o autor dota claramente esse afeto de um aspecto funcional. Em Além do princípio do prazer (1920/1980), essa tese é reiterada, na medida em que a noção de perigo, especificamente de trauma (a equiparação entre trauma e perigo é feita, porquanto ambos são relativos ao desamparo do aparelho psíquico diante do excesso de estímulos), é retomada e de certa maneira aprofundada.

Nessa obra de 1920, Freud adota as premissas apresentadas no Projeto (1950/1976) para ratificar o trauma como a invasão excessiva de estímulos, que ultrapassa os meios de defesa do aparelho psíquico. Ou seja, o trauma é oposição ao princípio de constância. Tal princípio, seguindo as teses então apresentadas sobre o dualismo pulsional (Freud, 1920/1980), pode ser visto como o resultado de uma relativa acomodação entre os funcionamentos das pulsões de vida e das pulsões de morte, uma vez que essas pulsões funcionam no sentido da descarga total dos estímulos e aquelas no sentido do domínio e armazenamento destes (D'Avila Lourenço, 2009). Sem designar esse dualismo pulsional, o Projeto (1950/1976) já afirmara que o princípio de constância baseia-se em certo compromisso entre a tendência à evacuação total dos estímulos e o armazenamento de Qn, necessária para a realização das ações específicas (afirmação reiterada nos textos metapsicológicos subsequentes). O texto de 1920 enfatiza ainda que, para que tal compromisso aconteça, é necessário que o aparelho psíquico realize uma preparação dos estímulos excessivos e desligados. Tal preparação seria a operação primordial do aparelho psíquico.

Freud declara que essa operação psíquica primordial refere-se ao processo de ligação dos estímulos às representações (designado pelo termo Bindung). Essa ligação é uma forma de dominá-los, na medida em que ela os impede de circularem livremente (processo discutido no Projeto como a inibição de Q pela ocupação lateral). Tal mecanismo é a condição para que os estímulos sejam devidamente descarregados (especificamente, que essa descarga não seja contrária ao princípio de constância), e o prazer, então, experimentado. Ou seja, trata-se da condição para o estabelecimento e funcionamento do princípio do prazer.

A grande hipótese de Além do princípio do prazer (1920/1980) está em que há situações nas quais tal princípio ainda não foi estabelecido ou é temporariamente suspenso. São as situações traumáticas. Ou seja, situações nas quais o processo de Bindung é falho. Essa condição é denunciada pela chamada compulsão à repetição, mecanismo descrito em diversos textos anteriores, até mesmo na apresentação do caso de Emma, no Projeto (1950/1976). Nesse caso clínico, as explicações de tal mecanismo referem-se ao processo de simbolização histérica. Em "Recordar, repetir e elaborar" (1914/1980), o autor segue linhas semelhantes, isto é, a compulsão à repetição é explicada conforme o funcionamento da repressão (o retorno do reprimido apareceria compulsivamente). É em 1919, em "O estranho" (1919/1980), que a compulsão à repetição é apresentada como mecanismo inerente ao funcionamento pulsional, de alguma forma ligada a situações aflitivas. Essa explicação é mantida em Além do princípio do prazer (1920/1980), que apresenta ainda uma observação adicional: a compulsão à repetição teria a função de desenvolver retrospectivamente a angústia (Angstentwicklung, termo que pode ser compreendido como certo incremento, desdobramento da angústia), a qual não se teria apresentado no momento do trauma.

Com efeito, a compulsão à repetição funcionaria como forma de solução (ou melhor, tentativa de solução) para o trauma. Isso na medida em que, segundo o autor (Freud, 1920/1980), a angústia (especificamente Angstbereitshaft)2 caracteriza um estado de preparação para o perigo, ou seja, um estado em que o aparelho psíquico possui quantidade suficiente para investir nos estímulos traumáticos, assim dominando-os. E, nesse ponto, reaparece a tese, já discutida no Projeto (1950/1976), de que a angústia funciona como sinal de perigo, ou melhor, como certa preparação para ele.

As hipóteses sobre o lugar da angústia, no Além do princípio do prazer (1920/1980), e suas ressonâncias sobre as afirmações presentes no Projeto (1950/1976), serão desenvolvidas a seguir.

2.2. Antes do princípio do prazer, a compulsão à repetição

O título Além do princípio do prazer justifica-se na tese de que tal princípio não é absoluto na direção dos processos psíquicos. Se houvesse essa prevalência, a maioria desses processos redundaria em prazer. Não é isso, contudo, que se apresenta. O prazer é antes uma tendência, que nem sempre obtém êxito em sua realização. E o autor descreve então quais seriam as situações que evidenciariam a não prevalência do princípio do prazer.

Cumpre notar que Freud (1920/1980) fundamenta a ideia de prazer conforme o fizera no Projeto (1950/1976). Ambos os textos concluem que a relação entre as sensações (de prazer e desprazer) e Q levam em consideração a ideia de período, ou qualidade: "[...] o fator que determina o sentimento é provavelmente a quantidade de aumento ou diminuição na quantidade de excitação num determinado período de tempo" (Freud, 1920/1980, p. 18). Sobre isso, lembramos que a apropriação do período de tempo, com a consequente tradução em qualidade das sensações, era função dos neurônios ω. Esses neurônios eram responsáveis pela produção da consciência, a qual abrangia apenas uma parcela dos fenômenos psíquicos. Sem a referência ao sistema neuronal, Freud (1920/1980) restringe a consciência ao "Eu", dada a relação dessa instância psíquica com a percepção externa e interna. E, tal como no Projeto (1950/1976), o autor afirma que apenas uma amostra dos processos mentais alcança a consciência, e que o "Eu" é em grande parte inconsciente.

Com base no princípio de constância, o "Eu" traduz como desprazer os estímulos que ultrapassam determinado limite. Tal afirmação sobre o desprazer não contradiz a prevalência do princípio de prazer. Freud (1920/1980) enumera duas situações nas quais se observa um desprazer dessa ordem: a primeira diz respeito ao desprazer decorrente das exigências do princípio de realidade, as quais, em última instância, têm a função de preservar o princípio do prazer; a segunda refere-se ao desprazer sentido pelo "Eu" diante do chamado retorno do reprimido e que, em essência, consiste em um prazer que não pode ser sentido como tal.

É nos pacientes acometidos de neurose traumática, que Freud (1920/1980) nota a fixação em experiências que nunca trouxeram possibilidade de prazer. Pacientes cujos sonhos levam o autor a reavaliar o que, até então, considerava ser a função primeira dos sonhos, qual seja, a realização de desejos. Em seus sonhos, esses sujeitos repetem compulsivamente a cena traumática, o que não estaria conforme ao princípio de prazer.

Essa linha de raciocínio continua na avaliação dos processos de repetição, apresentados nos jogos infantis. Freud (1920/1980) descreve a brincadeira, realizada por uma criança de 1 ano e meio, que consistia no arremesso e retorno do brinquedo (um carretel). Esse jogo, na interpretação do autor, representaria as idas e vindas da mãe, as quais teriam sido sofridas passivamente pela criança. O grande interesse nessa atividade está em que o que é mais enfaticamente repetido pela criança é o arremesso do brinquedo (supostamente, representação das partidas da mãe). Logo, como justificar a prevalência do princípio do prazer num jogo que equivale essencialmente à repetição de uma experiência penosa? Freud conclui que o motor dessa repetição é a tentativa de apoderar-se da condição passiva de ser abandonada pela mãe. Nessa representação via jogo, a criança tentaria dominar a ausência materna. Cumpre enfatizar que essa conclusão é o eixo para a organização das teses presentes no Além do princípio do prazer: "Assim, ficamos em dúvida quanto a saber se o impulso para elaborar na mente alguma experiência de dominação, de modo a tornar-se senhor dela, pode encontrar expressão como um evento primário e independentemente do princípio do prazer" (Freud, 1920/1980, p. 28).

No esforço para dominar uma situação traumática, Freud (1920/1980) reconhece o predomínio da função da ligação (Bindung) dos estímulos. É tal processo que garante a sobrevivência do aparelho psíquico, uma vez que, sem serem submetidos a ele, os estímulos não podem ser descarregados ou mantidos de forma que permitam as ações específicas para a satisfação das necessidades. Sem dúvida, o Projeto (1950/1976) já apontara isso, quando oferecia uma topologia e tipologia neuronal que buscava justamente garantir as ligações psíquicas mais eficientes conforme a complexidade exigida para as ações específicas (basta que remetamos ao papel do "Eu" e à ideia da inibição de Q pela ocupação lateral).

O fato de o princípio do prazer ser antecedido pela ligação psíquica modifica a ideia de que os processos psíquicos, sob a ordem desse princípio, caracterizam-se por uma desinibição absoluta. Embora isso não seja claramente afirmado pelas palavras de Freud (1920/1980), é possível entender que as descargas pulsionais, realizadas segundo os processos psíquicos primários, já supõem certo grau de organização3.

Deve-se, entretanto, assinalar que a conquista do domínio psíquico pode não ser o único objetivo da compulsão à repetição. Freud (1920/1980) adverte que, na maioria das vezes, vários motivos podem desencadear a compulsão. E, concluindo que a compulsão à repetição é um dos conceitos psicanalíticos mais difíceis de elucidar, Monzani (1989, p. 182) reitera que é correto encontrar múltiplos propósitos nesse processo de repetição: no caso da repetição de jogos infantis, pode haver tanto a busca pelo agradável, como a tentativa da passagem da passividade para a atividade; no caso das neuroses traumáticas, a repetição das cenas pode ter o intuito de soldá-las a um afeto, neutralizando assim a invasão pulsional.

Mas o aparelho psíquico pode dominar suficientemente a energia desligada que o percorre? O processo de ligação parece ser incessante, e é justamente esse estado que movimenta o aparelho psíquico. O Além do princípio do prazer (1920/1980), ademais de apontar a atuação incessante dos processos de ligação, de certa maneira também formaliza as razões desse fato quando traz o conceito de pulsão de morte (isto é, quando afirma a existência de uma força constante no sentido do desligamento, portanto, concorrente às ligações psíquicas). Ou seja, a ideia de que a repetição é um processo ininterrupto é ratificada com a formalização do conceito de pulsão de morte, com base no qual fica estabelecido que a repetição é inerente ao caráter conservador das pulsões.

De onde surgem os estímulos que devem ser alvo da Bindung e qual o limite a partir do qual eles determinam um trauma? Para responder a essas questões, Freud (1920/1980) mais uma vez retoma teses apresentadas no Projeto (1950/1976), especificamente aquelas referentes à proteção contra estímulos e localização psíquica.

2.3. Proteção contra estímulos e localização psíquica

No Projeto (1950/1976), Freud afirma a existência de mecanismos de proteção que filtram os estímulos externos, antes que eles atinjam as camadas mais profundas do organismo. Diz também que os estímulos internos, reduzidos, em comparação aos externos, têm atuação direta e ininterrupta sobre o aparelho psíquico. O Além do princípio do prazer (1920/1980) confirma essa hipótese por meio da noção de escudo protetor contra estímulos. Para descrever a formação dessa barreira de proteção, Freud toma a figura de um organismo simples, uma vesícula que, sob impacto incessante de estímulos externos, tem sua superfície tornada inorgânica, tornando-se assim capaz de filtrar as estimulações externas. Isto é, a atuação direta dos estímulos externos ocasiona a morte da camada mais superficial do organismo, a qual passa a funcionar como proteção contra a morte das camadas mais profundas.

Ainda mantendo as teses do Projeto (1950/1976), Freud (1920/1980) declara que somente filtrados dessa maneira os estímulos podem ser experimentados. E, descrevendo uma topologia, nos mesmos moldes daquela descrita em 1895, o autor diz que o espaço dessa experimentação situa-se abaixo do escudo protetor, no córtex sensitivo (o órgão diferenciado para a recepção de estímulos e onde seriam localizadas a consciência e a pré-consciência). Esse órgão recebe estimulações externas e internas, mas somente em relação às primeiras existe a atuação do escudo protetor; os estímulos internos atuam diretamente sobre ele, e, nessa atuação, provavelmente a magnitude e o ritmo da estimulação são determinantes da consciência e das sensações de prazer e desprazer.

O trauma caracteriza exatamente o estado em que o excesso de estímulos ultrapassa a capacidade do escudo protetor. Mas o escudo atua somente em relação aos estímulos externos. Como então explicar as consequências do excesso de estimulação interna? Notando que esses estímulos dão origem à série de sentimentos de prazer e desprazer, e que as hipóteses psicanalíticas sobre estes ainda tinham muitas lacunas, Freud (1920/1980) só pode resumir dois pontos sobre a consequência da falta do escudo protetor contra estímulos internos: as sensações de prazer e desprazer prevalecem sobre os efeitos dos estímulos externos; quando os estímulos internos aumentam demasiadamente o desprazer, a única forma de defesa do aparelho psíquico é tratá-los como se fossem externos (o que explicaria as bases do mecanismo de projeção). Dessa forma, haveria a possibilidade da atuação do escudo protetor (talvez fosse melhor dizer atuação semelhante à do escudo protetor). De qualquer maneira, o intuito do autor é enfatizar que o excesso de estímulos, internos ou externos, causa o prejuízo das funções do "Eu". Nesse ponto lembramos que o "Eu", desde o Projeto (1950/1976), fora descrito como um arranjo de Qn, cuja quebra interromperia seu funcionamento.

Conforme já fizera no Projeto (1950/1976), para explicar o trauma psíquico, Freud parte do modelo de sofrimento físico. Na dor física, uma área histológica limitada é lesada, permitindo a invasão de um fluxo contínuo de estímulos externos para o interior do corpo. A consequência dessa situação é o investimento psíquico na área de ruptura, numa tentativa de cicatrizá-la. No encontro entre os estímulos invasores e aqueles com fins narcísicos (isto é, aqueles que tentam imobilizar a invasão), estaria a dor. Ou seja, a dor tem um caráter diferente daquele do desprazer: o desprazer está no aumento de tensão; a dor é consequência do processo de ligação psíquica que decorre da invasão excessiva de estímulos (Monzani, 1989).

O choque mecânico, que está na base do trauma físico, também explica o trauma psíquico. Isso porque ele desencadeia uma estimulação para a qual o aparelho psíquico não se mostra preparado. Mais uma vez é possível encontrar ressonâncias das declarações do Projeto (1950/1976), especificamente aquelas referentes à sexualidade histérica (na histeria, haveria uma prematuração da estimulação sexual, para a qual o aparelho psíquico não estaria preparado). O despreparo do aparelho psíquico, para receber esse excesso de estímulos, é o que determina a neurose traumática, uma vez que, surpreendido, esse aparelho não pode promover o domínio exigido para o funcionamento do princípio do prazer. E, dessa maneira, Freud (1920/1980) enfatiza a funcionalidade do estado de expectativa.

2.4. Angústia e preparação para o perigo

Desde as definições do Projeto (1950/1976) e dos textos contemporâneos a ele que tratam sobre a angústia, a gênese da neurose traumática é explicada com base na libido excessiva e desligada, que seria desencadeada por meio de choque mecânico. Isto é, a neurose traumática estaria fundamentada na reação de susto. Conforme afirma Monzani:

No caso de um acidente aconteceria o seguinte: o choque provocado geraria um grande susto e, simultaneamente, uma liberação excessiva de libido sexual. Essa libido, no entanto, permanece livre, flutuante, porque não tem ou não encontra um objeto específico no qual se apazigue. Ora, nesse caso, como sabemos, essa libido livre, flutuante, não encontrando um canal adequado de liberação, se "desestrutura" (e se transforma em angústia) (Monzani, 1989, p. 171).

O Além do princípio do prazer (1920/1980), seguindo as indicações já apresentadas na Conferência XXV (1917/1980), justamente faz a distinção entre susto e angústia, salientando o estado de expectativa e preparação para o perigo, que a angústia caracterizaria. Embora essa distinção não esteja formalizada no Projeto (1950/1976), Freud refere-se ao estado em que Emma se encontra no episódio com os balconistas (episódio 1) como uma espécie de susto. Afirmar que o aparelho psíquico foi tomado de susto significa dizer que não houve angústia para sinalizar a ameaça e, dessa forma, incitar a defesa (notando que a defesa diz respeito ao nível de investimento, capaz de vincular os estímulos afluentes). Ou seja, quando o sistema psíquico não se acha em Angstbereitschaft (prontidão angustiada), ele não está em condições de vincular as quantidades afluentes de estímulos, e as consequências da ruptura do escudo defensivo decorrem ainda mais facilmente.

A compulsão à repetição intenta desenvolver retrospectivamente a angústia. Ou seja, ela busca o desenvolvimento desse afeto (Angstentwicklung), ausente no momento do trauma. Nesse estado de expectativa retroativo, digamos, o aparelho psíquico tem tensão suficiente para sujeitar a estimulação recebida passivamente. Baseado nessa hipótese, Freud refere-se aos sonhos apresentados nos quadros de neurose traumática: "Esses sonhos esforçam-se por dominar retrospectivamente o estímulo, desenvolvendo a angústia de cuja omissão constituiu causa a neurose traumática" (Freud, 1920/1980, p. 48).

2.5. O conceito de pulsão de morte: novo enfoque do dualismo pulsional

Conforme mencionado, o trabalho da ligação psíquica, cujo efeito é certo domínio dos estímulos, funda-se na tendência primeira do organismo, qual seja, a evacuação total da energia. Cumpre salientar que essa direção já era observada no Projeto (1950/1976), em que era designada como tendência à inércia. O Além do princípio do prazer (1920/1980) localiza essa tendência no então denominado princípio de Nirvana e acrescenta que a descarga total da estimulação acontece com o intuito de retornar ao primordial estado dos organismos vivos, o estado inorgânico.

Por meio da ideia desse retorno, Freud (1920/1980) afirma que a repetição é a principal atividade das pulsões. Vale considerar que tal afirmação não contradiz as teses evolucionistas adotadas por esse autor, particularmente a de que a ontogenia recapitula a filogenia4. Sem dúvida, Freud não abandona suas definições anteriores sobre as pulsões. Até mesmo, de certa forma, as direções sobre as pulsões de morte já estavam dadas desde o Projeto (1950/1976), por meio do conceito de tendência à inércia. O Além do princípio do prazer (1920/1980) apresenta, contudo, o surgimento da pulsão também em novos termos, especialmente seguindo a tese de que o orgânico surge do inorgânico5. Nas palavras do autor, a atuação de forças externas desconhecidas teria gerado propriedades vitais na matéria, antes inanimada. A reação da matéria é descarregar essa tensão e retornar ao estado inanimado. Nesse processo estaria o surgimento da pulsão. E, continua o autor, a constante influência das forças externas fez com que esse retorno fosse cada vez mais complexo e longo. Qualquer avanço nesse percurso contraria os interesses do organismo, que só deve alcançar a morte (ou seja, o estado inorgânico) após concluir todos os passos desse retorno.

O retorno ao estado inanimado seria dirigido pela então designada pulsão de morte. E, embora suas indicações sejam dadas pelo princípio de Nirvana (ou tendência à inércia), eles não se confundem. Ou seja, tal princípio não é a mesma coisa que a pulsão de morte. Como observa Monzani (1989), a tendência à descarga total dos estímulos é apenas uma das expressões singulares dessa pulsão. Além dessa, ela traz novas expressões, especialmente no que se refere à possibilidade (ou melhor, impossibilidade) de domínio psíquico. Vale ressaltar que, no Projeto (1950/1976), a pulsão era vista como uma força de origem somática que periodicamente transformava-se em estímulos psíquicos. Enquanto impulso motor do mecanismo psíquico, a pulsão encontrava-se no limite entre o somático e o psíquico. E agora Freud diz justamente que essa pulsão, primeira e principal, pode ser exercida sem a participação de qualquer representação. Essas manifestações pulsionais estariam nos níveis mais biológicos, em que se baseia o aparelho psíquico.

No Além do princípio do prazer (1920/1980), Freud afirma que as pulsões de morte não alcançam o domínio psíquico, apenas seus efeitos é que são sentidos na esfera psíquica. Trata-se de impulsos que não impelem na direção das ligações psíquicas, mas do desligamento psíquico. A única direção desses impulsos seria a descarga imediata e total dos estímulos. Essa última afirmação indica, todavia, apenas a tendência primeira dos organismos. Para que essa tendência seja efetivada, conforme já mencionado, é necessário o processo de ligação e domínios dos estímulos. Processo garantido, segundo o autor, por outro grupo de pulsões, os quais, por possibilitar que o organismo só retorne devidamente ao estado inorgânico, recebem a denominação de pulsões de vida.

Assim como as direções da pulsão de morte já estavam dadas, desde a afirmação da tendência à inércia, também as teses sobre as pulsões de vida não estão ausentes dos textos anteriores do autor. São aquelas referentes à libido, egoica e objetal (que afinal é a melhor distinção, com base nas teses sobre o narcisismo). Mas agora essa força sexual parece ampliada, porquanto está mais inscrita no funcionamento biológico. E essa é uma das grandes contribuições da obra de 1920. Para explicar essa sexualidade, Freud (1920/1980) baseia-se no funcionamento das células germinais, concluindo que a força que as move é a da sexualidade. Para explicar o funcionamento dessas células, Freud parte de algumas experiências com protistas (organismos elementares), as quais afirmam que a conjugação de células diferentes (porém da mesma espécie), bem como o influxo de novas quantidades de estímulos nelas, trabalha a favor da conservação da vida, pois inibe os processos de degeneração celular. Por outro lado, se o organismo é isolado e submetido aos seus próprios excrementos, há uma dissolução das tensões químicas que coincide com a morte. A conclusão é que a natureza do organismo, por si só, conduz ao estado de inércia.

É nos resultados dessas experiências que Freud (1920/1980) encontra a explicação figurada para justificar a distinção entre pulsões de vida e pulsões de morte: aquelas buscam a união com células diferentes e o incremento do nível energético; as segundas, o isolamento e a descarga total dos estímulos. Freud ainda afirma que tais grupos de pulsões estão sempre em fusão (e isso estrutura o princípio de constância), o que não significa que estejam equilibrados. Aliás, nas palavras do autor, essa fusão se dá em quantidades desconhecidas.

Todo esse jogo entre a tendência à evacuação total dos estímulos e o armazenamento de Q, leva Freud a reinterpretar os interesses originais do princípio do prazer. Assim, se no Projeto (1950/1976) o desprazer era identificado na desestabilização dos estímulos conforme o princípio de constância, no Além do princípio do prazer, Freud (1920/1980) admite a hipótese de que o princípio do prazer também pode ser interpretado conforme os vetores da pulsão de morte. Naquele caso, o prazer seria relativo à estabilidade das excitações; neste, o prazer coincidiria com a descarga total dos estímulos.

 

3. Conclusões

Apesar dos 25 anos que separam o Projeto para uma psicologia científica (1950/1976) do Além do princípio do prazer (1920/1980), existem, conforme apontado no decorrer deste trabalho, pontos de semelhança entre essas duas obras, no que diz respeito às origens e funções do conceito de angústia.

A ideia de quantidade (Q) é uma das principais ideias norteadoras do Projeto (1950/1976). Pensar no funcionamento do aparelho psíquico nessa obra é considerar a existência dinâmica do acúmulo e liberação de energia. Tal conceito pode ser claramente identificado no Além do princípio do prazer (1920/1980). A relação prazer-desprazer tem por base a ideia de um esforço constante do organismo em livrar-se do acúmulo de Q. Considerando as exigências para a sobrevivência, o aparelho psíquico tenta manter Q o mais baixa possível, ou pelo menos mantê-la constante. Assim, entender o esforço do psiquismo em controlar a entrada e saída de Q é considerar um organismo que segue o princípio da constância, princípio sistematizado desde o Projeto (1950/1976). Ações específicas precisam ser realizadas para a interrupção dos estímulos presentes, e, para que isso aconteça, certo grau de excitação precisa ser tolerado.

Se a manutenção do princípio da constância é ineficiente, prejuízos ao aparelho psíquico podem ser observados. O mecanismo de proteção (bem como seus limites) necessário para evitar a entrada excessiva de Q já se encontra descrito desde o Projeto (1950/1976). No Além do princípio do prazer (1920/1980), a função desse mecanismo de proteção continua a ser enfatizada. É utilizado, nesse texto, o termo "escudo protetor". De maneira semelhante, tanto no Projeto (1950/1976) como no Além do princípio do prazer (1920/1980), a relação entre angústia e trauma é destacada. No Projeto (1950/1976), a angústia surge ulteriormente como consequência do trauma. A funcionalidade da angústia como sinal, que é reiterada no Além do princípio do prazer (1920/1980), já pode entretanto ser encontrada naquele texto: a angústia não seria apenas um resultado direto do trauma, mas também um estado funcional para evitar processos de excitação que representam perigo.

A compulsão à repetição, que já aparece no Projeto (1950/1976) e que tem como função elaborar o sofrimento psíquico decorrente do trauma (ligando Qn a representações), é enfatizada no Além do princípio do prazer (1920/1980). Em ambos os textos, a compulsão à repetição objetiva o desenvolvimento da angústia ausente no momento do trauma. No texto de 1920 é enfatizado também que a angústia encontra-se direcionada pela pulsão de morte, a qual cria obstáculos ao processo de ligação psíquica. Embora no Projeto (1950/1976) não exista o conceito de pulsão de morte, o princípio de inércia já apontava a direção dessa pulsão.

Por fim, a função do "Eu", conforme descrita em ambos os textos, é a de proteção e organização do aparelho psíquico por meio da inibição da liberação de grandes Qn, que geram desprazer. Isto se dá por meio do processo de ligação. É esse desprazer, tolerado em doses moderadas pelo "Eu" do Projeto (1950/1976), que também se encontra intimamente relacionado à angústia no Além do princípio do prazer (1920/1980), angústia produzida na tentativa de preparar o organismo e com isso assegurar o princípio do prazer.

 

 

Referências

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Recebido em 18/05/11
Aprovado em 01/08/11

 

 

1 Segundo Gabbi Jr. (2003), posteriormente, Freud irá ampliar o sentido do termo, tratando não apenas das vivências de dor, mas também das vivências de satisfação, como afetos. Para Green (1973), entretanto, a experiência de dor remete, de maneira mais explícita, ao modelo de afeto do que a de satisfação, já que os traços de dor implicam, também, uma descarga interna (ideia de neurônios secretores)
2 Termo que, seguindo D'Avila Lourenço (2005), preferimos traduzir por prontidão angustiada
3 Concordamos com Rechardt & Ikonen (1988) quanto à afirmação de que haveria vários níveis de ligação psíquica
4 Para uma revisão sobre o tema, ver Viana (2010)
5 Segundo Ritvo (1992), essa ideia era sustentada pela biologia da época, até mesmo por Darwin.