Natureza humana
ISSN 1517-2430
Nat. hum. vol.14 no.1 São Paulo 2012
Artigos
Notas sobre a relação entre indiciação formal e experiência
Notes on formal indication and experience
Paulo Rudi Schneider
Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul
e-mail: adamy@unijui.edu.br
Resumo
O artigo procura compreender a relação entre formale Anzeige e experiência em Heidegger. O fenômeno da formale Anzeige apresenta-se com o sentido de conteúdo, de relação e de comprometimento existencial. As práticas literárias de metasxematizein (metaesquematismo) do apóstolo Paulo e de metacrítica e matagrabolisieren de Hamann apresentam semelhanças que cooperam na compreensão de formale Anzeige no pensamento de Heidegger.
Palavras-chave: indiciação formal, existência, experiência.
Abstract
The article intends understanding about the relation between formale Anzeige and experience by Heidegger. The phenomenon of formale Anzeige presents itself us a sense of content, of relation and of existential commitment. The literary practices of metasxematizein from apostle Paul and of metacriticism and matagrabolisieren from Hamann present similarities cooperating in understanding about formale Anzeige in the thinking of Heidegger.
Keywords: formal indication, existence, experience.
O termo Erfahrung do alemão traduzimos por experiência no português, apesar das possíveis significações adjacentes em ambos os idiomas. Tal tradução não nos poderá atrapalhar no acerto do tema que intenta abordar a relação entre experiência e indiciação formal – formale Anzeige – em Heidegger. Na tradução da expressão formale Anzeige é prudente que se tente coadunar os significados possíveis na língua alemã com a intenção de sentido de Heidegger, no intuito de encontrar no português a melhor versão.
Provindo do latim, o adjetivo feminino formale permanece com o mesmo significado, isto é, formal. Anzeige, por sua vez, pode significar Mitteilung, isto é, uma informação simplesmente, mas imediatamente também é Meldung, no sentido de indiciação, indiciamento, denúncia, comunicação às autoridades, intimação, notificação; além disso, pode dar a entender Bekanntmachung, isto é, anúncio, participação (em jornal: casamento, morte, nascimento, um prospecto, uma proclamação); por último, pode também significar indício, sinal e marca, no sentido de sintoma de doença. Temos, então, como possibilidades de tradução de formale Anzeige as seguintes expressões no português:
a) Indício formal: no sentido de rastro, pista. Apesar de não podermos definir por certeza prévia o uso que Heidegger dá ao termo, julgamos que essa tradução tem a vantagem de apontar para o fato de que pistas aparecem para quem as nota; ou até que indícios sejam buscados, mas sem previamente saber a direção definitiva do caminho a que irão levar. Isso, porém, seria muito pouco, pois o termo alemão pretende captar muito mais do que apenas o seguimento de pistas. Além disso, com a expressão Heidegger também quer significar muito mais do que só dar atenção a indícios para então segui-los.
b) Indicação formal, no sentido de que um conceito filosófico aponta previamente para uma direção determinada. Essa tradução também daria conta de apenas uma parte do sentido da expressão alemã, pois parece dar a entender que o conceito em pauta já estaria imediatamente sugerindo o rumo do sentido e a solução orientadora de modo formalmente exato, o que Heidegger, ao longo da sua obra, quer precisamente evitar.
c) Indiciação formal. Em sua obra Logik (Heidegger, 1995a, p. 243) Heidegger usa a expressão "proposições hermenêuticas indiciadoras" (hermeneutische indizierende Sätze) em relação ao "tempo como existencial do ser-aí" (Heidegger, 1995a, p. 409). Isto quer dizer, em primeiro lugar, que os conceitos, ou até frases feitas, na filosofia configuram indiciamentos, sem juízo prévio ou indicativo quanto ao rumo de seu sentido, e sem serem somente indícios a seguir. A tradução de formale Anzeige por "indiciação formal" pode abarcar as duas acepções anteriores e ainda chamar a atenção para a possibilidade de abertura de um processo em que a palavra, o ente, ou o fenômeno em questão estão diretamente implicados e facticamente comprometidos. A expressão "indiciação formal" denotando a instauração de um processo emergente tem o sentido de fornecimento e aproveitamento de indícios, de indicações em geral e, além disso, o sentido de indiciamento prático, ostensivo e ao mesmo tempo formal de algo. Na indiciação há também a alusão a arriscar uma hipótese de vereda discursiva, ou de caminho do pensamento a se tomar como mera possibilidade, ou seja, não como julgamento definitivo, mas precisamente a caminho, passo a passo. No texto a seguir, que aborda algumas relações entre indiciação formal e experiência, a expressão em questão procurará intermitentemente evidenciar o sentido para ela até aqui elaborado.
No texto "Notas sobre psicologia das visões de mundo de Karl Jaspers", do ano de 1919/21 (Heidegger, 1976, p. 73), Heidegger diz que as considerações de Jaspers sobre a relação da psicologia com as visões de mundo não serão atacadas, ou confrontadas, com a instrumentação de uma filosofia desenvolvida e detalhada, nem avaliadas com base em uma sistemática objetiva, e tampouco medidas com um ideal metódico de rigor científico-filosófico. Antes, tratar-se-ia de incrementar concretamente o aguçamento da consciência (Gewissensschärfung), intentando de modo bem determinado a destruição dos motivos originais (Ursprungsmotiven) das visões de mundo como idealizações filosóficas. Seria o caso de testar se esses motivos e conhecimentos subjacentes às visões satisfazem o sentido mais fundamental do exercício e da experiência do filosofar. De jeito nenhum se poderia deixar de lado o processo de afiar a consciência ativando-a para a realização concreta da destruição do simplesmente "traditado". Tal tarefa de desconstrução significaria o mesmo que a explicação expositiva das situações motivadoras originais do tema de Jaspers. Esse tipo de crítica que exercita seria voraussetzungslos, isto é, sem pressupostos, pois o sentido de originalidade não indicaria uma ideia extra ou trans-histórica em que pudesse haver apoio como fundamento metafísico. Ao contrário, na originalidade se mostraria que a falta de pressuposição só pode ser alcançada precisamente na dinâmica da autocrítica, orientada de modo factual e historicamente, desvelando suposições subjacentes ao pensamento. O que caracteriza tal crítica é a realização, a execução (Vollzug) da inquietação (Bekümmerung) pela conquista do que ela mesma inevitavelmente perfaz em seu processo. É uma exposição via debate com a história que nós mesmos imediatamente somos, e não só temos, como se fosse uma posse objetiva e articulável somente por instrumentação teórica.
Heidegger quer dar a entender que ser sem pressupostos é precisamente o sentido da tarefa de encetar o trabalho de dar-se conta deles, isto é, de indiciá-los desvelando e acentuando todas as antecipações que se carregam consigo e se é, e não só se tem, como captação de um suposto sujeito identificado como produtor de sentido válido. Há que indiciar-se concretamente a si mesmo e concordar com o fato de que as antecipações não só estão, mas são facticamente subjacentes em todas as experiências de vida. Essas antecipações que possibilitam perspectivas para objetivações devem ser experimentadas, degustadas até nos casos em que elas mesmas exigem clareza e transparência em seus supostos e na dinâmica de sua aplicação. Toda a problemática da antecipação, ou da concepção prévia, que dá suporte a um discurso, é uma questão de método, o qual depende da originalidade, da tendência, da orientação regional do saber e do grau teórico da perspectiva antecipatória. Isso obriga a perceber que o sentido, a direção do método (metá odós: através do caminho), é previamente dado junto com a própria perspectiva antecipatória de um âmbito determinado, de uma visão de mundo. Concepção prévia e método, caminho encetado, jorram da mesma fonte de sentido. Sabendo-se isso, há que deixar em aberto (offenzuhalten) a fixação de sentido de método em favor de um significado formal indiciador, por exemplo, caminho para descrições e determinações propriamente concretas. Uma vez efetuado e consumado o processo da indiciação formal de significado por concretizações próprias singulares, consumações singulares de caso a caso, então simultaneamente são anulados os aspectos antecipatórios na dinâmica da realização em processo.
Heidegger propõe que a temática propriamente em questão no que se refere à fonte de sentido pode ser fixada em termos de indiciação formal como existência. Esse significado indiciado formalmente tem a tarefa de indiciar o fenômeno de eu sou, o sentido do ser que se encontra no eu sou "como início de uma conexão de fenômenos e de uma problemática que lhe pertence" (Heidegger, 1976, p. 10). E aí Heidegger comenta:
Com a indiciação formal (na qual se deve ver um sentido fundamental metódico de todos os conceitos filosóficos e conexões conceituais [...]), precisamente se intenta evitar a derrocada ante uma concepção específica de existência, por exemplo, a de Kierkegaard ou a de Nietzsche, a fim de seguir um sentido genuíno do fenômeno da existência, e explicitar tal seguimento. (Heidegger, 1976, p. 13)
Quer dizer, o termo formal do conceito indiciado intenta significar o fenômeno típico e recorrente da existência tanto em Kierkegaard como em Nietzsche, mas sem comprometer-se como as infinitas execuções teóricas e existenciais possíveis concretizadas por eles. A concretização e a assunção específica e singular fica por conta de cada um. Na continuidade do texto, o filósofo diz (Heidegger, 1976, p. 22) que o fenômeno assim indiciado no conceito abarca um sentido de conteúdo (Gehaltssinn), de dinâmica referencial (Bezugssinn) e de sentido de efetuação, ou consumação (Vollzugssinn). Quer dizer, naquilo que concretamente é comungando com conteúdos, o ente Dasein é totalmente referido numa concernência referencial de estar relacionado e não solitário, e, então, de estar comprometido facticamente com a efetuação de si precisamente assim no mundo. A indiciação formal coopta o Dasein em seu todo relacional centrando-o num foco de realização compreensiva e sempre relacionada.
Ainda no mesmo texto Heidegger diz que, a fim de preparar uma abordagem em termos de indiciação formal, deve-se entender que existência é uma determinação de algo; esse algo determinado, porém, já seria um equívoco sobre o sentido de existência, caso fosse entendido meramente como uma caracterização de alguma região do ser. Mesmo assim, a existência pode ser entendida como um determinado modo de ser, um determinado sentido de é, que é essencialmente o sentido de sou, o qual não pode ser alcançado genuinamente numa abordagem teórica logicamente construída, mas somente numa consumação da assunção de sou, de uma forma de ser de eu, de mim. O decisivo é que nessa dinâmica eu me tenho numa experiência fundamental, na qual eu mesmo me encontro como si mesmo, que agora precisamente nessa experiência posso perguntar-me sobre o sentido de meu eu sou (Heidegger, 1976, p. 29). Essa experiência não expressa a individuação em relação a alguma generalização abstrata, mas de eu simplesmente como si mesmo, descartando qualquer compromisso com algum saber específico regional. Esse movimento é necessariamente acompanhado de uma suspeita radical contra qualquer antecipação teórica regional objetivante, contra todas as conexões conceituais de concepção prévia e seus diversos modos de surgimento. O sentido de ser como sentido de é aparece em experiências de mim envolvidas com objetivações teóricas, nas quais sempre de algo é dito aquilo o que é. Trata-se nem tanto de alguma objetividade teórica, mas geralmente da experiência de mundo autorreferida na vida fáctica com os outros sobre algo significativo a que se tem acesso e com que se transita na vida facticamente. Assim, o sentido da existência aparece envolvido, mas transparece expressando-se concretamente como angustiada experiência fundamental em ter-se a si mesmo em realização, em processo, antes de qualquer tomada de conhecimento sobre algo objetivamente assentado. Essa experiência de jeito de ser não se perfaz, portanto, direcionada para uma finalidade teórica qualquer, nem pode ser elucidada pela categoria explicativa de causa e efeito, mas fazendo-se travessia histórica pelo tempo, desde um passado próprio que se carrega consigo e que ainda se é. A questão da experiência de jeito de ser indicia um passado que não é como bagagem que se arrasta pelo chão, mas como vislumbre de um eu mesmo vindo pelo caminho da peregrinação do ter sido e, ao mesmo tempo, acossado por um horizonte prévio feito de expectativas. Nesse caso o histórico-narrativo não é a contemplação de algo teórico e objetivável, mas a própria maneira (Wie), da aflição do si mesmo consigo. Trata-se de um ponto focal em que há a experiência angustiada do que foi passagem de si mesmo, da espera de agora e da expectativa quanto ao que está por vir, sem a fuga para um esquema de tempo calculado e sistematizado objetivamente. Esse jeito de ser da existência é precisamente o problema difícil do meta odós, do método, do caminho, isto é, do método em realização histórica de interpretação como explicação comprometida com os modos de experiência fáctica e aflita de ter-se a si mesmo e assim ser, sem respaldo externo seja do que for, sem qualquer apoio metafísico.
Sobre a indiciação formal, o filósofo pretende mostrar desse modo que ela trata preliminarmente de um determinado grau da explicação fenomenológica, um desdobramento. Em outros termos, um conceito, um ente, um fenômeno é indiciado para merecer a atenção aguda e radical a ponto de transformar-se, desde uma mera tematização teórica supostamente afastada e sem maiores compromissos, numa compreensão concreta de si mesmo, numa comprometida assunção de compreensão consumada. O conceito indiciado e sob a lupa da atenção é o recado de uma questão aberta muito mais abrangente do que a competência teórica de intenção sistemática seja capaz, pois por essa via é atingido o estágio de indiciação do compromisso, de implicação da referência e de concernência fundamental do si mesmo com o próprio processo que se iniciou. Essa concernência em situação mutante na peregrinação temporal é impossível de ser apanhada teoricamente, pois a própria teoria e qualquer compreensão de sistema derivam-se daí, elas surgem daí, emergem como tematização ao modo daquelas águas que, após o jorro original emergente, estão impossibilitadas de retornar por si mesmas à sua própria fonte.
Knut Martin Stünkel (2005) aborda a questão exposta de modo peculiar e quase inesperado. Inicia mencionando a constante referência de Johann Georg Hamann à Bíblia e a utilização variada de imagens de pensamento e figuras bíblicas em seu modo de filosofar.
Hamann literalmente falava utilizando palavras emprestadas à Bíblia, aplicando os mais diversos textos às questões que abordava. Nesse seu modo de uso não se tratava tanto da mera informação sobre o conteúdo específico da mensagem bíblica, mas sobre um novo testemunho em realização fundamentado na Bíblia. A relação de Hamann com a Bíblia era determinada pela relação de dependência e de liberdade na condição de testemunha diante de obras e personagens históricos de seu próprio tempo.
De modo semelhante, em Heidegger as muitas passagens bíblicas que aparecem em sua obra significariam mais do que somente ilustrações introdutórias. Stünkel estipula que elas fazem parte da encenação de seu modo de filosofar de acordo com o que propõe e exemplifica. Entre Hamann e Heidegger haveria uma relação de semelhança que se poderia denominar uma encenação de paulinismo performativo no que tange à escrita de cada um. Seria certa mimesis paulina, isto é, o gesto grandiloquente do profeta, pois a figura do profeta seria de igual modo fascinante para ambos. No caso de Heidegger, a atitude querigmática de uma fenomenologia gestual performática seria igualmente fruto de uma elaboração produtiva da Bíblia, da religião e da teologia em seu modo de pensar. O mencionado caráter de encenação da posição de autor seria oriundo de prefigurações bíblicas, constituindo-se também para ele num repertório de configurações dramáticas em favor da realização concreta do filosofar. A questão central trataria então da semelhança entre o metaesquematismo do apóstolo Paulo e a indiciação performativa de Heidegger. Stünkel explica que o termo grego metasxematizein é utilizado pelo apóstolo Paulo como uma ferramenta da escrita no sentido de intentar uma transformação compreensiva concreta nos leitores pela expressão literária das proposições constantes em seu texto. O termo metasxematizein, ou metaesquematismo, significa transformar, figurar, transformar-se a si, e o apóstolo em I Coríntios 4,6 assim se expressa na sua aplicação desse metaesquematismo: "Essas coisas... apliquei-as figuradamente a mim mesmo e a Apolo por vossa causa, para que por nosso exemplo aprendais..." Isso é, o apóstolo usa como exemplos a si e a Apolo, um judeu alexandrino seguidor do pregador João Batista, bem falante e chegado à cidade de Corinto antes de Paulo. A comunidade da cidade de Corinto dividia-se em dois grupos, alguns preferindo a arte da fala racional de brilho retórico de Apolo, inspirado no deus do mesmo nome, e, outros, dando mais valor à forma apaixonada de Paulo. Apolo não é atacado por Paulo nem pelo seu nome, nem pelo seu brilho racional e retórico. Ao contrário, Paulo antes suplicava que a mensagem, mesmo chegando aos ouvidos dos fiéis como informação por meio de retórica perfeita, também pudesse ser de fato assumida na existência de cada um, não interessando, portanto, a forma de pregação de Apolo ou Paulo. Ambos estão indiciados pela mensagem conceitualmente elaborada e pelo exemplo próprio de assunção e consumação fáctica, pois há o sentido do conteúdo (Gehaltssinn), o sentido da relação (Bezugssinn) e o sentido da efetuação (Vollzugssinn). Ambos estão indiciados, como, aliás, todos os membros da comunidade de Corinto, pela dádiva da revelação.
Os argumentos em torno do significado objetivo da figura e da perspectiva de Paulo e de Apolo, que poderiam parecer, ou gerar, o início de grande polêmica, sofrem uma torção meditativa e reflexiva para favorecer a visão prévia originária que dá condições tanto a Apolo quanto a Paulo. O importante é a assunção do caráter derivado e dependente tanto da perspectiva de Apolo em prática de testemunho, como aquilo que o apóstolo diz e testemunha. Paulo indicia Apolo e a si mesmo no que se refere aos significados postos para que o mais originário seja tema de preocupação em todos os positivismos particularizados. Todos os arrazoados guerreiros provindos da loucura da razão humana e postos como absolutos são evidenciados como sem fundamento, precisamente como loucura. E isso o apóstolo consegue pondo-se a si mesmo como exemplo na forma de indiciação de si mesmo, utilizando relacionadamente ao mesmo tempo as crenças e as razões daqueles a quem escreve, a fim de que também sejam indiciados num processo sobre o sentido de suas próprias existências no dito tempo kairológico.
De acordo com Stünkel (2005), Hamann segue essa forma de argumentação quando, entre outros exemplos da época do Iluminismo, depois de ter lido e refletido profundamente a respeito da Crítica da razão pura, dialoga com Immanuel Kant sobre as condições originais de surgimento desta obra e sobre seus compromissos com toda a tradição veiculada pela linguagem. Em outros termos, a Razão Pura é indiciada e, junto com ela, Kant e o próprio Hamann. A razão é pura? Apesar da pretensão de pureza apodíctica, ela não dependeria da linguagem para poder significar o que significa? Qual é a relação entre a linguagem e a razão? A lógica inerente à Razão Pura dá conta de toda a dinâmica da vida? Hamann chamava essa atitude de metacrítica imitante do metaesquematismo do apóstolo. Hamann, além disso, também lembrava indiciando o termo matagraboliser, da obra Gargântua e Pantagruel, de Rabelais, por seu efeito crítico e destruidor de ingenuidades. Hamann, então, germanizou o termo instaurando a palavra matagrabolisieren para expressar no alemão a indiciação de seu próprio jeito de atuar em meio à cultura iluminista da época. Metaesquematismo do apóstolo, grabolisieren de Rabelais e Hamann, metacrítica de Hamann e indiciação formal de Heidegger pertenceriam assim à mesma dinâmica intencional e de indiciamento de termos e fenômenos, na expectativa de compreender sua mutação, sua transformação de foco compreensivo e, ao mesmo tempo, sua permanência na atenção continuada aos fenômenos, facticidades e existências. Esse fenômeno em sua emergência constituiria a própria situação hermenêutica, isto é, a fenomenologia se tornaria hermenêutica. O termo grego metasxematizein utilizado pelo apóstolo remete a uma transformação do revestimento externo e da transformação de conteúdo. Isso significa que a transformação de um conteúdo objetivo e abstrato tende para o conteúdo de pensamento no sentido de uma concreção de algo geral e objetivo para a própria pessoa falante, isto é, para a realização concreta numa situação dinâmica de mundo. Trata-se da reivindicação de comprometimento da própria pessoa no sentido de assumir o que antes era apenas teórico, geral, ou objetivo, beirando uma conversão constante (Umkehr, Kehre) para o plano singular, xistencial, envolvido com o tempo que, por sua vez, implica inevitavelmente a mudança constante de si. O metaesquematismo, além das características abordadas, implica necessariamente também a possibilidade de inscrição compreensiva e efetiva do indivíduo num possível contexto formalizado à disposição.
Jürgen Frese (Frese, 1985) elabora a teoria dos formulários para caracterizar a intenção de Hamann no caso da metacrítica. Por sua própria estrutura, o formulário pode ser descrito como algo em parte já preenchido antecipadamente em termos de indiciamento. Na imagem, na forma do formulário, as características, os dados, os fatos e as experiências de cada um podem ser então inscritas. O formulário é sempre muito mais do que apenas a fixação de preenchimentos possíveis, pois é forma, mas, por outro lado, é muito menos do que uma predeterminação dos conteúdos possíveis na ocasião da inscrição. Para Hamann, a história bíblica implicada em sua conversão apareceria como um formulário geral, típico e conhecido, e, ao mesmo tempo, individual referido a sua própria história de vida. A sua própria vivência estaria inscrita no formulário em questão. Resulta disso a possibilidade de compreender o modo de proceder da metacrítica, ou o metaesquematismo, como uma inevitável conclamação de si mesmo à conversão via uma performance formal indiciativa. Hamann arma-se formalmente com o formulário paulino e indicia formalmente, por exemplo, a crítica kantiana para seu ingresso possível no pensamento sobre uma condição de possibilidade mais ampla que seria a linguagem. A crítica kantiana assim foi matagrabolizada, isto é, pela escrita ela foi sondada e escavada até os seus fundamentos, chegando a um vazio que leva ao silêncio e à continuidade do pairar sobre o abismo sem fundo numa atenção angustiada. Com isso também Hamann mudou podendo falar de um antes e depois. Hamann assim empreende uma nova valorização de conceitos filosóficos, que, como formulários vazios, têm a oportunidade de se tornarem vivos, fácticos, preenchidos com a compreensão vivencial particularizada na existência de cada um. O decisivo, portanto, não é apenas o conteúdo da conceituação filosófica em si mesmo no sentido teórico, mas é a realização de sua indiciação na intenção de relação consigo mesmo, na execução e consumação de si mesmo no tempo, e, antes de tudo, na compreensão de que tudo isso é insinuado e dirigido praticamente pela coisa, isto é, pelo fenômeno em questão, ao qual sempre pertencemos e somos pela oportunidade do encontro.
Uma concepção semelhante do status dos conceitos filosóficos pode ser evidentemente comprovada na obra de Heidegger. A sua relação com a teologia cristã é marcada pela tensão. Numa carta a Karl Löwith em 19/8/1921 (Tietjen, 1990, p. 29), ele, por um lado, confessa-se em situação fáctica como teólogo cristão, mencionando a aflição própria quanto à necessidade de cientificidade radical, objetividade severa na elaboração objetiva da facticidade, ao mesmo tempo consciência histórico-espiritual, pois, diz ele, "eu sou isso no contexto da universidade". Por outro lado, afirma: "Pesquisa filosófica é e permanece ateísmo..." A tensão entre esses dois polos, a passagem do teólogo cristão para o necessário ateísmo angustiado do pesquisador impedem uma fixação definitiva, o que, por sua vez, se torna dinâmica produtiva. A dificuldade de uma exposição fora a fora lógico-objetiva de convencimento meramente teórico sobre a questão da facticidade da existência e o aproveitamento da moldura teológica como recurso de linguagem depreende-se da citação bíblica, como se sabe, por vezes referida na obra de Heidegger: "Quem tem ouvidos para ouvir, ouça". Ela é um convite para a passagem do abstracionismo filosófico para a assunção e execução concreta como característica da existência. Essa frase proclama uma postura fenomenológica fundamental pregando ao interessado em filosofia o comportamento a ser assumido diante da questão central que os textos da metafísica ocidental trazem consigo. A ideia é que se tivermos a boa vontade de ver e ouvir o que nos sugerem os termos centrais da metafísica, se os abordarmos metacrítica e exaustivamente como Hamann fez com a CRP, então faremos uma experiência pelo desdobramento encetado, uma experiência filosófica. Faremos uma experiência com a filosofia e nós talvez resultemos muito mais experientes a caminho. Ver e ouvir, mas principalmente ouvir é a postura fundamental da fenomenologia. Num tal ouvir atento consegue-se elucidar fenomenologicamente as artimanhas do movimento fundamental da modernidade. Na conferência de Heidegger Introdução à fenomenologia da religião encontra-se esse amálgama inicial do aspecto teológico e filosófico, pois aí ele chega à beira de desenvolver uma teoria do método fenomenológico enquanto indiciação formal. Ele diz: "O uso metódico de um sentido que se torna condutor para a explicação fenomenológica, nós denominamos indiciação formal. Os fenômenos são visados no sentido de acordo com que o significado indiciador traz consigo" (Heidegger, 1995b). Assim, o sentido não é um instrumento de uso imediato para explicação, mas se torna primeiramente apenas condutor. Não há método a priori, nem um predeterminado âmbito de investigação para o desdobramento explicativo fenomenológico. O fenomenólogo precisa embarcar assumidamente no processo do próprio fenômeno, sem se deixar fixar em termos de só conteúdo, pois em situação já está referido, concernido, indiciado. Para tanto, necessita-se de uma fortíssima defesa contra os preconceitos armados pela filosofia em seu modo de ciência teórica. A filosofia formalmente indiciadora não é, portanto, apenas uma teoria, mas muito mais uma realização de vida na travessia do tempo, como para Hamann a história de Israel tornou-se forma, jeito de viver como metaesquematismo. Tal qual o metaesquematismo, a indiciação formal é investimento passivo e sobremaneira uma postura de escuta que não liquida o modo de ver teórico anterior, mas precisamente o conserva como exemplo de elucidação do caráter existencial de antes, de agora e depois.
A Carta aos Gálatas do apóstolo Paulo, que, como se sabe, serviu a Heidegger como texto temático oferece um relatório histórico do próprio Paulo sobre o fato de sua conversão. Aí então se trata de registrar a experiência religiosa fundamental e, como fenomenólogo, permanecer nele para compreender o conjunto de todos os fenômenos em termos de concretização, de conteúdo e de sentido relacional. Nessa perspectiva a vida do cristão desdobra-se em antes e depois. O que foi antes é a parte da experiência profana, mas conservada, e a cisão tem como consequência uma renovação, ou, mais ainda, uma mutação pondo em jogo e até instaurando tempo como compreensão intensa da própria compreensão. É isso que também o fenomenólogo procura com seu empreendimento filosófico. O saber sobre o seu próprio vir a ser implica uma tarefa explicativa bem específica, isto é, dessa travessia deve-se determinar o sentido da facticidade que agora é acompanhada por um determinado saber. Costumeiramente nós cindimos, separamos a facticidade e o saber, mas, no exemplo típico do cristão, a existência é experiência acompanhada de um saber. Ela é um saber que sempre acompanha a experiência de tal modo, que o seu vir a ser é o seu ser de agora, ou, o seu ser de agora é o seu vir a ser. Aí é que a ciência sistemática em geral encontra seus limites, pois não é capaz de conectar os fenômenos deste modo. No caso indiciado da vida religiosa percebe-se que a vivência realiza-se, que ela está relacionada a algo e que tem um saber de algo. E, a fim de permanecer no rastro, nos indícios desse fenômeno, necessita-se que esse sentido permaneça indiciado formalmente para a continuidade do processo que é caminho. Percebe-se que o caminho fenomenológico e o objeto investigado se interpenetram. O saber sobre si, a relação regressiva para si mesmo, a constante conversão no ser do homem não é só a origem da teologia, mas também do filosofar e do sentido da produção de conceitos. A conversão que a fenomenologia de Heidegger realiza repõe a esta concretamente na vida, e força a filosofia para a situação concreta, fáctica. O resultado desse processo de indiciação decerto tem um efeito angustiante, pois, como o apóstolo Paulo com o seu metaesquematismo não veio para acalmar a população numa pasmaceira teórico-objetivista pela solução que apresenta, assim também Heidegger não intenta acalmar os ânimos pelo entorpecimento meramente científico tradicional e metafísico. Já Hamann angustiava-se com a experiência de que na leitura da Bíblia era ele que no fundo se encontrava na situação de lido e interpretado: o indiciado era ele mesmo formalmente de acordo com o adágio conhecido em que o eu é diretamente implicado pelo local que é obrigado a ocupar, mesmo que doa: fabula de te narratur, ou, uma cisão completa na autocompreensão do antigo e do agora novo leitor. De modo semelhante Heidegger propõe: "Essa aflição da filosofia de sempre se revolver em inquirições prévias eu quero acelerar tanto e conservar tão desperta até que ela se torne uma virtude de fato" (Heidegger, 1995b, p. 82). O aumento da aflição é a tarefa do fenomenólogo, isto é, não deixar que a questão seja direcionada pelos trilhos confortáveis de uma filosofia que se entende por especializada cientificamente, ou que se atenda aos apelos de uma fé como porto seguro a salvo de dúvidas. Logo no início do referido texto Heidegger faz uso de quatro temas do apóstolo e os institui como características do filosofar: a) o intencionado aumento da aflição, b) a revalorização do estado de fraqueza para uma virtude característica, c) pois a perseverança na fraqueza da vida é fator decisivo, d) a exigência de permanecer vigilante e o ser afligido por um processo doloroso. Para esse estado de coisas o apóstolo havia criado uma metáfora por todos conhecida: O espinho na carne (Heidegger, 1995b, p. 107).
No início do texto mencionado encontra-se a afirmação:
O problema da autocompreensão da filosofia sempre foi tratado com leviandade. Abordando-se esse problema de modo radical, depara-se então com o fato de que a filosofia emerge da experiência fáctica da vida. Daí ela salta na experiência fáctica da vida de volta para si mesma. O conceito de experiência fáctica da vida é fundamental. (Heidegger, 1995b, p. 1996)
Deve-se, porém, com Heidegger, insistir em dizer que essa indiciação formal permanece constante enquanto consegue libertar-se da tentação de tornar-se ciência específica. A filosofia emerge da experiência fáctica, e esta é então o "antes" do processo de conversão. Heidegger diz:
O ponto de partida do caminho para a filosofia é a experiência de vida fáctica. Parece, porém, como se a filosofia conduzisse novamente para fora da experiência fática. Aquele caminho de fato de certo modo conduz apenas à frente da filosofia, e não até ela. A filosofia só pode ser alcançada por uma volta daquele caminho; mas não por uma simples volta em que o conhecer assim seria meramente dirigido a outros objetos; ao contrário, de modo mais radical, por uma transformação própria. (Heidegger, 1995b, p. 108)
O filósofo acentua a filosofia como resultado de uma transformação radical, mas sem que o filosofar devesse ser alçado para fora da experiência fáctica da vida. Antes havia sido estipulado que a filosofia na experiência fáctica da vida salta de volta para esta. Isso significa que o seu ter vindo a ser em forma de saber precisamente sobre este ter vindo a ser é novamente acolhido em sua consumação. Como já sugerido, a filosofia é a forma articulada do saber sobre esse ter vindo a ser. Esse conhecimento proporciona uma nova valorização dos conceitos filosóficos. Na preleção Conceitos fundamentais da metafísica todos os conceitos filosóficos são determinados como indiciação formal: "Todos os conceitos filosóficos são indiciadores formais, e apenas se assim forem considerados eles proporcionam a genuína possibilidade de compreensão" (Heidegger, 1983, p. 425). Como já indicado, conceitos não são posse segura, precisam ser indiciados, sondados matagrabolizados, metaesquematizados, pois passam pela formalização da indiciação. Filosofia é apenas enquanto processo de filosofar, isto é, em constante processo de conversão inevitável e perceptível como torção compreensiva, ultrapassamento recordando situações anteriores, convalescência de fixidez compreensiva. O grande perigo é a comodidade de instalar-se num jardim de infância conceitual, tornando-se indiferente no que concerne à própria realização de vida. Instalar-se comodamente é o acontecimento de depositar todas as significações em conteúdos fixos de alguns conceitos. A filosofia tem um caráter processual de indiciação constante em que o aprendiz de filosofia se envolve, se desdobra, convalesce da violência das transformações como se fossem doenças superadas, consumadas. Heidegger mais tarde em sua obra usa o termo "Verwindung" como convalescência e superação das transformações, agora objeto de recordação (Heidegger, 1982, p. 19). A filosofia ao modo fenomenológico e hermenêutico não é uma rocha sobre a qual se pudesse construir um sistema filosófico. De acordo com Heidegger, a tendência de somente procurar segurança é um equívoco fundamental da pesquisa filosófica.
Por fim, podemos reiterar que o termo método por vezes utilizado para a indiciação formal não pode significar uma instrução de uso no sentido de chegar a algum resultado predeterminado, mas significa permanecer no caminho do experienciar na visada dos fenômenos mesmos, no encontro com eles em que fazemos parte de um encontro, livres das antecipações meramente teóricas e da perspectiva objetivante. Trata-se da experiência do próprio Dasein em que experiência significa o fato de eu calçar o sapato, assumir a questão, aceitar que é como no dito Fabula de te narratur, em que não há caminho predeterminado, nem direção a ser mostrada, mas um susto e uma aflição a ser assumida como virtude filosófica pelo fato de estar sendo indiciado pela própria vida.
Resumidamente a indiciação formal expressa-se principalmente nas características
- de perceber-se escutando atentamente um conceito filosófico para possível relação consigo mesmo;
- de suspeitar e até rejeitar o que se pretendeu saber até então, recordando, porém, o caminho andado;
- de estar aberto para o que se mostra como possibilidade concreta de compreensão;
- de estar preparado para a mudança de si mesmo pela emergência concreta do fenômeno que a mim se refere, o qual é concernente à minha vida ao ponto de me levar à transformação, à conversão de mim mesmo;
- de sensibilizar-se pela questão aberta da própria vida em forma de execução da pergunta sobre si, tornando duvidosas e até equívocas as próprias pressuposições e alvos de vida postos. De algum modo, todos nós somos uma indiciação formal em proclamação, mesmo que sejamos muito espertos nas questões teóricas. Sem as questões abordadas teoricamente, não há filosofia. Por outro lado, somente com as questões teóricas também não há filosofia, pois se permanece prisioneiro da metafísica que alija o Dasein da relação com sua inevitável existência fáctica, sua experiência concreta.
Referências
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Recebido em 01/09/2011
Aprovado em 12/11/2011