Natureza humana
ISSN 1517-2430
Nat. hum. vol.14 no.1 São Paulo 2012
Resenha
Christensen, Carleton B. (2008). Self and world – from analytic philosophy to henomenology. Berlim: Walter de Gruyter, 394 páginas. ISBN: 978-3-11-020401-8
Jonatan Willian Daniel
Mestrando na UFSM, bolsista da Capes
e-mail: jonatan_filosofia@yahoo.com.br
Em Self and world – from analytic philosophy to phenomenology, Christensen (Australian National University) inicia seu ambicioso projeto de elaborar uma reconstrução interpretativa de Ser e tempo, de Martin Heidegger. Essa reconstrução interpretativa precisa, ele diz, dar-se-á em um "estilo novo", uma vez que já encontramos dois estilos insatisfatórios de interpretação de Heidegger na literatura anglo-americana. Um desses estilos encontra-se em certa vertente da filosofia analítica ou pós-analítica que se apropria de Heidegger ao tornar dele os interesses de Wittgenstein, do pragmatismo de Dewey e James e do neopragmatismo de Sellars, Rorty e Brandom, entre outros. Para Christensen, esse estilo interpretativo peca por falta de verossimilhança ao estabelecer relações entre Heidegger e problemas em filosofia da mente, da psicologia, da linguagem e de metafilosofia, muitos dos quais não têm ligação evidente com a obra heideggeriana. Embora tenha sido responsável por assegurar uma ampla visibilidade a Heidegger, esse estilo de interpretação atribui a ele concepções que dificilmente endossaria. Entre seus representantes, encontramos Brandom, Dreyfus, Haugeland, Mulhall, Polt, Rorty e Taylor.
Outro estilo bem difundido de interpretação é mais acadêmico e historicamente bem informado, mas não se preocupa em interpretar Heidegger de maneira que explicite sua relevância para questões específicas da filosofia (analítica) contemporânea. Embora bastante preciso, esse estilo peca por ser excessivamente exegético, tão limitado à interpretação textual, que torna difícil compreender a relevância atual dos problemas filosóficos específicos com os quais Heidegger se ocupava. Entre os representantes desse segundo estilo interpretativo encontramos Caputo, Kisiel, Sheehan e van Buren. O projeto de Christensen pretende unir o que há de bom nos dois estilos, a saber, uma reconstrução interpretativa de Heidegger que situe historicamente seu pensamento de maneira precisa sem abrir mão de inseri-lo, na medida do possível, na problematização filosófica contemporânea, mais precisamente, da tradição analítica.
Não é controverso considerar como uma das principais metas de Heidegger o ataque e a reformulação do conceito de autoconsciência, do sujeito que pensa e diz "eu". Segundo Christensen, contudo, a dificuldade da reconstrução interpretativa começa quando queremos entender o que ele está criticando e o que pretende pôr em seu lugar. Sabemos que foi em diálogo crítico e muitas vezes em oposição a Husserl que Heidegger escreveu, porém entender o porquê de ser ele o alvo dessas críticas enquanto vários contemporâneos seus compartilhavam teses que também seriam passíveis das críticas heideggerianas é um dos pontos-chave para chegar-se a uma compreensão substancial de sua filosofia. Para tanto, Christensen entende que é preciso primeiramente reapropriar-se da concepção husserliana de filosofia como fenomenologia e da noção de intencionalidade por ela esposada como conceito-chave. Nessa direção, o livro objeto desta resenha é apenas a primeira parte do projeto mais amplo de Christensen e serve de propedêutica para a devida reconstrução interpretativa de Ser e tempo, que ocorrerá na segunda parte, ainda não publicada.
Para levar a cabo essa propedêutica, Christensen vale-se de uma reconstrução da proposta apresentada por John McDowell em Mente e mundo. Isso explica a ausência de referências a autores da tradição fenomenológica no decorrer de quase todo o livro – apenas no último capítulo referências a estudos nessa tradição aparecem. Ao longo do livro, Christensen tenta mostrar que, embora McDowell identifique os problemas existentes nas tentativas de alguns de seus contemporâneos – em particular, Davidson e Evans – de explicar a relação existente entre a intencionalidade de nossos pensamentos empíricos e o mundo no qual eles se dão e ao qual eles se dirigem, sua proposta (de McDowell) permanece insatisfatória. Ainda mais, essa proposta apontaria para a necessidade de uma compreensão de mundo e de filosofia nos moldes fenomenológicos husserlianos, e ainda além – entenda-se aqui, heideggerianos.
Nos sete capítulos (mais introdução e conclusão) que compõem Self and world, Christensen desenvolve uma detalhada exposição da proposta de McDowell, tentando dar máxima clareza a suas posições e críticas, o que implica também uma detalhada reconstrução de algumas posições de Davidson, o qual figura como o principal interlocutor coerentista de McDowell. No primeiro capítulo, intitulado "Escaping the oscillation", Christensen apresenta, sempre com base em McDowell, o problema da oscilação entre coerentismo e mito do dado. Encontramos aqui uma reconstrução da crítica ao mito do dado e a formulação de uma alternativa – a saber, o coerentismo davidsoniano, segundo o qual a experiência sensorial desempenharia apenas o papel de causar nossas crenças empíricas, mas não as justificaria. McDowell não se satisfaz com a alternativa de Davidson, uma vez que ela falharia em assegurar que nossos pensamentos, em vez de fechados em si mesmos, incidam sobre a realidade. A solução para tal garantia, segundo ele, seria assegurar na percepção sensorial uma verdadeira unidade entre as faculdades da receptividade e da espontaneidade, e não uma cisão destas, como propõe Davidson. Para Christensen, contudo, McDowell não é claro o bastante na hora de mostrar o que torna a posição davidsoniana insatisfatória para assegurar que nossos pensamentos incidam na realidade.
Sendo assim, no segundo capítulo, intitulado "Regaining the world", Christensen dedica-se a uma reconstrução da ideia de Davidson segundo a qual os conteúdos proposicionais asseridos no tipo mais básico de declarações são fixados, quando elas são verdadeiras, por aquilo mesmo que as causa. A posição davidsoniana é corroborada pelo fato de explicar a possibilidade de casos de tradução radical e traria consigo uma espécie de rejeição ao ceticismo em relação ao mundo externo, uma vez que só haveria identidade entre o conteúdo de nossas crenças compartilhadas na medida em que compartilhássemos o mesmo mundo, isto é, que compartilhássemos as causas de nossas crenças. Desse modo, o âmbito causal seria mais fundamental que o intencional, já que relações de identidade no primeiro âmbito determinariam relações de identidade no segundo.
Christensen, então, no lugar de McDowell, tenta mostrar o ponto que torna a posição de Davidson insatisfatória, a saber: num caso de interpretação ordinária, que estaria pressuposto numa interpretação radical, nós somente identificamos a causa da crença do sujeito a ser interpretado porque justamente pressupomos aquilo que ele é capaz de perceber como. Ou seja, precisamos primeiramente identificar os objetos do conteúdo intencional correspondente à sua percepção, descobrir se é acerca de um gato, uma árvore, um pássaro etc., para podermos então identificar a causa dessa crença como sendo um gato, uma árvore, um pássaro etc. Desse modo, "a identidade dos conteúdos da intencionalidade empírica fixa a identidade das causas de tais intencionalidades, e não o contrário" (Christensen, 2008, p. 118). Se a tese de Christensen procede, obtemos a inversão da posição de Davidson, pois precisamos reconhecer que são as identidades no âmbito intencional que determinam as identidades no âmbito causal, e não o contrário.
No terceiro capítulo, intitulado "Perceptual appearance and perceptual world", Christensen desenvolve o insight kantiano adotado por McDowell acerca da necessária unidade entre receptividade e espontaneidade para garantir que nosso pensamento incida sobre a realidade. Embora McDowell reconheça a primazia do âmbito intencional e pretenda expandi-lo para que abarque a percepção e esta possa desempenhar sua função de restringir racionalmente, mas de maneira externa, nossas crenças empíricas, ele peca, segundo Christensen, por equiparar o âmbito intencional ao âmbito proposicional. Tal associação, aos olhos de Christensen, é um preconceito comum entre os filósofos de tradição analítica, que tomam a linguagem como modelo para a intencionalidade, até mesmo a intencionalidade da experiência perceptual. Desse modo, McDowell associa o conteúdo intencional da percepção ao ato de julgar e asserir, pretendendo restabelecer assim o lugar dos conteúdos perceptuais no espaço lógico das razões.
Na visão de Christensen, a posição de McDowell não é satisfatória, pois, ao se restringir simplesmente ao caráter apofântico da intencionalidade perceptual, deixa de lado o caráter estético, no sentido fenomenal. Christensen expõe o que consistiria, para ele, uma concepção que permitiria uma perfeita unidade entre receptividade e espontaneidade, a saber: cada percepção sensorial envolveria simultaneamente um perceber apofântico de que x é F e um perceber estético, isto é, do modo como, no nível fenomenal, F é instanciado por x. A proposta de Christensen parece preservar mais adequadamente que a de McDowell o mote kantiano de que "pensamentos sem conteúdo são vazios, intuições sem conceitos são cegas". Embora McDowell pretenda justamente restabelecer essa unidade entre intuições e conceitos na percepção sensorial, em virtude de restringir seu conteúdo à forma proposicional, acaba por dar pouca ênfase a seu aspecto fenomenal, o como estético de Christensen.
No quarto capítulo, intitulado "The view from the sideways-on, commom factors and other loose ends", Christensen tenta mostrar as possíveis causas do insucesso de McDowell em obter uma perfeita cooperação entre espontaneidade e receptividade na percepção sensorial. Dois motivos parecem ser os principais, a saber: a posição de McDowell estaria tão próxima da posição davidsoniana, que o impediria de ver de maneira clara o que há de errado com ela. Ele também pecaria por adaptar e adotar algumas posições de Evans que o impedem de dar um tratamento adequado ao aspecto fenomenal da percepção sensorial. O objetivo principal do capítulo é mostrar que a concepção da percepção sugerida por Christensen é tudo o que é preciso para que nos livremos da visão davidsoniana da receptividade como algo que está aquém do âmbito epistêmico.
Christensen também pretende mostrar que, dada a prioridade da intencionalidade sobre a causalidade, o ceticismo acerca da incidência ou não de nossos estados intencionais empíricos sobre o mundo deixa de ser uma ameaça. Nossos estados intencionais ocorrem no mesmo mundo em que estão seus objetos, quando tais estados intencionais são verdadeiros, e no qual esses objetos causam nossas percepções. Cada percepção sensorial de um objeto, devido a seu caráter "autocontextualizador", que implica sempre um perceber "daqui" e "agora" que "ali há tais e tais coisas", põe um horizonte de outras inúmeras possíveis percepções desse mesmo objeto, de diferentes perspectivas, distâncias e condições de iluminação, que também são acessíveis a outras pessoas. Nesse sentido, o mundo está intrinsecamente conectado com nossos estados intencionais empíricos e seus objetos, pois cada percepção tem de ocorrer e, assim, estar localizada em algum ponto de um espaço-tempo contínuo.
No quinto capítulo, intitulado "Two senses of nature?", encontramos a exposição da tese metafísica denominada "naturalismo ontológico", que consiste na suposição de que tudo o que existe faz parte ou será mostrado, com o avanço das pesquisas, como fazendo parte de um sistema fechado de relações causais interno a uma das ciências naturais, como a química, a biologia ou, preferencialmente, a física. Essa concepção de natureza enquanto reino de relações causais fechadas explicáveis pelas ciências naturais, de acordo com McDowell, seria o principal motivo de a posição davidsoniana priorizar o âmbito da causalidade em relação ao intencional. Uma análise histórica do naturalismo ontológico mostra que ele surge com o sucesso meteórico que obtiveram as ciências naturais modernas quando passaram a subsumir regularidades de eventos a leis universais, criando uma imagem determinística de mundo como uma rede fechada de relações causais explicadas por tais leis universais.
Se reconhecermos que nossa faculdade conceitual consiste na espontaneidade da operação de conceitos que respeita padrões normativos que regulam a operação correta e incorreta destes, parece inevitável que a compreendamos por oposição ao mundo concebido como enclausurado em relações causais. A relação entre nosso aparato sensorial e os objetos que o afetam foi tradicionalmente relegada ao mundo da causalidade em virtude de nossa passividade nessa relação. Sendo assim, a percepção sensorial, que seria nossa maneira primordial de nos relacionarmos cognitivamente com o mundo, acabou banida do reino da espontaneidade.
McDowell, tentando superar esse naturalismo ontológico, apela para a noção de "segunda natureza". A segunda natureza surge quando os seres humanos são iniciados nas capacidades conceituais e passam a perceber e interagir com o mundo de maneira significativa. Entenda-se aqui significatividade em termos do aparecer das coisas como assim e assado, do pensar que tal coisa é o caso, de se querer tal outra coisa; em suma, a segunda natureza traz consigo o reino da intencionalidade, da espontaneidade. Christensen tenta, contudo, mostrar que, embora McDowell veja no naturalismo ontológico a fonte de muitos enganos na filosofia contemporânea, seu conceito de segunda natureza não é suficiente para diferenciar suas formulações substancialmente das de Davidson. Uma vez que McDowell toma, na qualidade de bom representante da filosofia analítica, a linguagem como modelo para conceber a intencionalidade, acaba por limitar o âmbito do intencional ao âmbito do proposicional. Tal posição, segundo Christensen, não permite dar o devido tratamento ao aspecto fenomenal da percepção, o que impede McDowell de obter uma perfeita cooperação entre espontaneidade e receptividade.
Historicamente a rejeição ao naturalismo ontológico teria sido associada ou igualada à rejeição das próprias ciências naturais. Christensen, no sexto capítulo, intitulado "From nature to world", realiza uma análise detida do conceito de ciência natural e de sua relação com a tese metafísica da ontologia naturalista, mostrando que se pode rejeitar a última sem rejeitar-se a primeira. No entanto, Christensen entende que essa rejeição traz consigo o reconhecimento de que as cadeias causais esposadas por uma ciência natural são necessariamente parciais e incompletas, uma vez que partem ou chegam a relações de causas e efeitos que não se enquadram nos tipos enquadrados pelas leis das ciências naturais. Esses pontos de partida e chegada das ciências naturais encontram-se no "mundo natural", entendido como mundo no qual vivemos, agimos e percebemos em nosso cotidiano. Cada ciência natural seria capaz apenas de realizar uma sistematização parcial das relações causais nas quais nos envolvemos, porque se limitariam a apenas alguns aspectos específicos dos eventos, propriedades, relações e estados de coisas que encontramos em nossa vida ordinária. Sendo assim, o mundo natural da cotidianidade pré-teórica teria primazia em relação ao mundo descrito pelas diversas ciências naturais e seria "o cais" em que estas estariam "ancoradas".
Aqui se inicia a guinada mais drástica em direção à fenomenologia enquanto filosofia. McDowell pretende, com seu conceito de segunda natureza, mostrar que o mundo no qual vivemos enquanto seres com habilidades conceituais é também constituído por nossas práticas linguísticas, culturais e históricas, e isso é vedado aos demais seres vivos sem tais habilidades. Christensen entende que a posição de McDowell de adotar uma perspectiva filosófica enfatizando o ponto de vista da primeira pessoa, e não, como fizeram Sellars e Davidson, da terceira, traz consigo a concepção de nosso mundo ordinário, pré-teórico, permeado por relações conceituais, culturais e históricas, seguindo o caminho da concepção fenomenológica husserliana de mundo, mesmo que McDowell não o saiba. Para corroborar essa aproximação, Christensen destaca uma menção que McDowell faz de Gadamer e sua distinção entre mundo e meio ambiente.
No sétimo e último capítulo, intitulado "On the brink of phenomenology", Christensen dedica-se a traçar paralelos entre a concepção proposta por McDowell de uma epistemologia enquanto filosofia transcendental da intencionalidade empírica e do sujeito que a tem, e a proposta husserliana de filosofia enquanto fenomenologia transcendental. Ambas as propostas resgatam o sujeito e o "mundo da vida" como pontos de partida para o pensar filosófico e pretendem "deixar as coisas como estão", e acrescenta que, quanto a esse ponto, McDowell teria se inspirado no quietismo wittgensteiniano. Christensen, porém, entende que a fenomenologia de Husserl possibilita uma abordagem mais completa e profunda dos problemas que podem surgir entre mente (sujeito) e mundo reconhecidos e suscitados por McDowell. Uma das razões para isso é que Husserl não se limita a compreender a intencionalidade como proposicionalmente articulada, o que lhe permite dar um tratamento mais completo ao aspecto fenomenal das "coisas como elas nos aparecem".
Christensen, contudo, não abre mão de destacar várias vezes que, embora a concepção husserliana leve vantagem em relação à de McDowell, ela também tem seus próprios problemas internos e deficiências: precisamos ir para além dela. Na conclusão, intitulada "From McDowell to Husserl and beyond", Christensen elabora os últimos paralelos entre McDowell e Husserl e esboça alguns pontos da posição de Husserl que seriam vistos por Heidegger como problemáticos. A título de adiantamento, Christensen argumenta que, se pretendemos entender a relação intencional do sujeito com o mundo e com as coisas elas mesmas, precisamos de uma concepção mais geral de fenomenologia transcendental, que não se limite a uma epistemologia transcendental. A fenomenologia de Husserl não daria conta dos conteúdos intencionais que instanciamos na maioria das vezes em nossa lida cotidiana com objetos e outras pessoas. Uma alternativa é proposta por Heidegger em Ser e tempo e caminha na direção da realização de uma ontologia transcendental que possibilite uma melhor compreensão do ser-no-mundo. Christensen encerra o livro nesse ponto e promete a reconstrução interpretativa de Ser e tempo, com base nas críticas à fenomenologia de Husserl, para a parte dois do projeto Self and world.
Para concluir esta resenha, gostaria de salientar que o livro, além de ser escrito de modo elegante e claro, é bastante denso, muito bem documentado e apresenta, num grau acima do usual, análises pontuais e detalhadas. O autor é feliz na condução da reflexão acerca das relações entre os estados intencionais do sujeito e o mundo que ele habita, de um ponto de partida da filosofia analítica para o que aparece como um ponto de chegada cogente na fenomenologia. Esse é, todavia, apenas o novo ponto de partida da segunda parte do projeto, que culminará na reconstrução interpretativa de Ser e tempo. Aguardemos.
Recebida em 04/10/2012
Aprovada em 09/10/2012