Natureza humana
ISSN 1517-2430
Nat. hum. vol.14 no.2 São Paulo 2012
Artigos
Hermenêutica e linguagem em Schleiermacher
Hermeneutics and language in Schleiermacher
Aloísio Ruedell1
Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí)
e-mail: aloisio@unijui.edu.br
Resumo
O presente artigo resulta de uma investigação sobre a hermenêutica de Schleiermacher, visando a relacioná-la com recentes debates sobre a racionalidade hermenêutica, com destaque ao caráter indicativo-formal dos conceitos filosóficos. Sem entrar numa discussão direta sobre "índices" ou "indicativos formais", constantes da obra de Heidegger, serão apenas discutidos conceitos e expressões do autor, de modo que se evidencie sua relação com o tema.
Palavras-chave: Indícios formais, arte de compreensão, finito, infinito, universalidade, individualidade.
Abstract
This article results from an investigation into the hermeneutics of Schleiermacher, in order to relate it to recent debates about the rationality hermeneutics, especially the character of formal indication of philosophical concepts. Without entering into a direct discussion about "rates" or "formal indications", contained in Heidegger's work, will only be discussed concepts and expressions of the author, in order to demonstrate its relationship to the subject.
Keywords: Formal indication, art of understanding, finite, infinite, universal, individuality.
"Como todo discurso tem uma dupla relação, com a totalidade da linguagem e com o pensar geral de seu autor:
assim também toda compreensão consiste em dois momentos, compreender o discurso enquanto extraído da linguagem
e compreendê-lo enquanto fato naquele que pensa."
(Schleiermacher, 2005, p. 95)
Esta citação esclarece o título e fornece uma certa chave de leitura da hermenêutica de Schleiermacher, enquanto arte de compreensão e interpretação. Sua perspectiva indica, aomesmo tempo, o quanto ela é produto da modernidade e que, sobretudo, é tendência ou movimento para sua superação. Considerando que Kant inaugurou uma maneira de filosofar que se sustenta indagando por suas condições de possibilidade, também a hermenêutica não seria poupada dessa exigência, para manter seu lugar no cenário filosófico. Seria, contudo, desafiada a pôr a transcendentalidade no contexto da linguagem. E isso é muito mais do que um simples deslocamento espacial ou geográfico. Representa uma nova virada no pensamento filosófico, acompanhando o giro linguístico, ou sendo por ele permitido. É, no dizer de Frank, "a transformação da crítica da razão em crítica do sentido" (Schleiermacher, 2005, p. 17).
É precisamente nesse entremeio ou movimento, do moderno para o não moderno, que emerge a questão hermenêutica. É uma perspectiva em que não se conta com a clareza da modernidade, nem com a segurança do cogito cartesiano. Nem se tem nela a preocupação de competir em resultados com as ciências modernas. Isso, porém, não significa menos rigor e empenho na busca da verdade. Embora não seja possível precisar definições e elencar resultados objetivos, a discussão hermenêutica põe-nos a caminho e faz buscar. O caráter fragmentário do conhecimento e a finitude da compreensão humana não permitem fechar-nos sobre nós mesmos ou nossas pretensas verdades. Desafiam-nos, ao contrário, a uma busca conjunta incessante.
Essa é, sem dúvida, uma constante da hermenêutica de Schleiermacher: ser movimento, caminho ou indicação para, sem nunca chegar ao fim do caminho. É nesse sentido que pretendo desenvolver o tema aqui anunciado. Não entrarei numa discussão direta sobre a questão dos "indícios" ou "indicações formais", constantes da obra de Heidegger, examinarei, entretanto, conceitos e expressões que se encontram em Friedrich Schleiermacher, e que talvez também poderiam ser designados por "indícios" ou "indicações formais". Refiro, entre outras: a arte hermenêutica e a articulação entre o finito e o infinito; o ideal hermenêutico da compreensão do outro e a distância infinita para sua realização; a relação entre razão e História; a concepção singular da subjetividade, vinculada ao "giro linguístico"; a não identificação com as ciências e o caráter sui generis da ciência hermenêutica; a crítica à absolutização de uma razão lógico-semântica e a concepção de uma racionalidade mais ampla e abrangente, com a introdução do conceito de linguagem; a não universalidade da linguagem ou seu constante processo de singularização, na instituição de seu sentido e no ato de sua compreensão.
1.
Inicio pelo conceito de hermenêutica, "arte de compreender corretamente o discurso do outro, predominantemente o escrito" (Schleiermacher, 2005, p. 87), ou "arte de compreender e interpretar". "A verdadeira tarefa da hermenêutica", afirma Schleiermacher (2005, p. 99), "deve ser entendida como obra de arte."
Pergunta-se, então, por que arte? Qual o sentido de uma compreensão e/ou interpretação com arte? Não se trata, obviamente, de fazer da hermenêutica uma obra de arte, no sentido restrito do termo, como se a tarefa devesse concluir com uma obra de arte. O termo designa, sobretudo, o rigor metodológico ou "científico" próprio da hermenêutica. Uma atitude e um procedimento artísticos mostram a seriedade e o rigor na atividade hermenêutica. Para demarcar bem sua posição sobre essa questão, Schleiermacher faz uma distinção entre strengere e laxere práxis, uma práxis mais rigorosa e uma de sentido mais lato ou displicente. É uma distinção fundamental, que, de alguma forma, representa um "divisor de águas" entre um antes e um depois na história da hermenêutica. São duas perspectivas de compreensão e interpretação. Em sua base estão princípios e ideias motivadoras distintas. A práxis no sentido amplo e menos rigoroso supõe que a compreensão realiza-se por si, e que a interpretação só precisa ser feita em caso de algum problema de entendimento. A strengere práxis, ao contrário, parte da ideia de que o mal-entendido se dá por si mesmo, e que a compreensão sempre precisa ser querida e buscada. Ela nunca se dá por si.
Nessa distinção, lemos em Gadamer (2003, p. 255), está fundamentada a real contribuição de Schleiermacher: "desenvolver uma verdadeira doutrina da arte do compreender, em vez de uma agregação de observações". É algo totalmente novo em relação às hermenêuticas especiais. A dificuldade de compreender ou o mal-entendido já não são vistos como ocasionais, e sim como momentos integradores, que se procura eliminar de antemão. Schleiermacher chega a afirmar: "a hermenêutica é a arte de evitar o mal-entendido" (Gadamer, 2003, p. 255). Ela se eleva à autonomia de um método, na medida em que "o mal-entendido se produz por si mesmo, e a compreensão é algo que temos de querer e procurar sob todos os aspectos" (Schleiermacher, 2005, p. 113). A compreensão requer um empenho efetivo, uma hermenêutica positiva, o contrário de um procedimento meramente negativo, no sentido de esclarecer eventuais mal-entendidos. A orientação pela strengere práxis equivale à atitude "científica" ou filosófica, que não se satisfaz com a atitude ingênua do senso comum, típica da laxere práxis.
Aqui, entretanto, interessa destacar que, na hermenêutica como obra de arte, o qualificativo de arte está mais no modo de sua execução do que na obra; que a atividade hermenêutica traz em si o caráter de arte, não podendo ser mecanizada. Referir-se à hermenêutica como à arte significa que ela depende mais da destreza do artista ou intérprete do que de uma aplicação metódica de regras ou padrões universais de interpretação. E não poderia ser diferente. Todo discurso, bem como cada compreensão de discurso, é sempre "a construção de um determinado finito a partir de um indeterminado infinito" (Schleiermacher, 2005, p. 99). Pois a linguagem é um infinito, porque são infinitas suas possibilidades de ser determinada por terceiros. Da mesma forma, é infinita a intuição particular de alguém, bem como são infinitas as possibilidades de influência que alguém pode sofrer de fora. Interpretar e compreender um texto requer movimentar-se nessa tensão entre o finito de uma construção particular e o infinito de sua linguagem e de seu autor, em que nenhuma regra pode dar-nos a certeza de sua aplicação. Compreensão e interpretação com arte dependem, principalmente, da atitude e do empenho do intérprete.
Mas essa aposta na destreza do intérprete supõe também seu talento, mais precisamente, um duplo talento, um talento linguístico e o talento do conhecimento particular do ser humano. No primeiro, não se entende tanto a facilidade de aprender línguas estrangeiras ou de comparar línguas, mas, sobretudo, o recordar-se da própria língua e o sentido da analogia e da diferença. O outro talento é a "compreensão da significação peculiar de um ser humano e de suas peculiaridades em relação ao conceito de homem" (Schleiermacher, 2005, p. 99). Por enquanto, observa Schleiermacher, ainda precisamos desse duplo talento na hermenêutica, porque, até o momento,
ainda não podemos enquadrar essa duplicidade num conceito. Se pudéssemos reconstruir plenamente toda linguagem a partir de sua singularidade peculiar e compreender o indivíduo singular a partir da linguagem, como a linguagem a partir do indivíduo, então o talento poderia ser reduzido a um. (2005, p. 100)
2.
Voltemos novamente a atenção ao conceito de hermenêutica, "arte de compreender o discurso do outro" (Schleiermacher, 2005, p. 87). No centro da definição está a linguagem, efetuada como discurso. Sem ela, nenhuma manifestação humana seria possível, e nada poderia ser pensado. Pois todo pensar já é um falar, um "falar interior" (Schleiermacher, 1990, p. 416), mediante palavras. Já é um discurso, um discurso silencioso, determinado pelo paradigma da linguagem, especificamente, pelo "âmbito da linguagem comum ao autor e seu público originário" (Schleiermacher, 1974, p. 86). O discurso é a manifestação da gramática da língua, mas uma gramática historicamente dada, que conserva "a interpretação coletiva e prática, que, em dada época, determinado grupo ou sociedade fez referente à relação entre os seus membros e ao mundo que lhes é comum" (Frank, 1985, p. 290). Ninguém pode ser arrancado de sua época e de seu povo. Schleiermacher demonstra e exemplifica isso, em sua obra Das Leben Jesu (= A vida de Jesus), ao afirmar que "Cristo não se podia expressar de outra maneira, a não ser através da linguagem que lhe era familiar e estava na base de sua vida social com as outras pessoas" (1832/1864, p. 13), ou seja, inserido num povo e vivendo em determinada época. Ele só podia influenciar os outros e deixar sua mensagem, valendo-se de termos e de expressões vigentes.
3.
A linguagem, porém, é apenas uma das duas vertentes que estão na base do discurso – a totalidade da linguagem e o pensar geral de seu autor. Os termos da definição sugerem, particularmente, que a hermenêutica tem a ver com aquilo que a linguagem não consegue dizer, mas apenas indicar ou evocar. Como, pois, falar do outro, como compreender o outro (autor ou texto), que é único e diferente, se a linguagem é comum e universalmente padronizada? E, a rigor, cada texto é outro, diferente e único, assim como seu autor.
Enquanto as ciências constituem-se em torno do que é comum e universal, a hermenêutica ocupa-se daquilo que não se enquadra nesse padrão científico. Volta-se para individualidades ou circunstâncias históricas particulares. Trata de objetos não universais e, nesse sentido, não científicos, conforme ensinava Aristóteles: não há ciência do particular.
A hermenêutica, contudo, não deixa de sustentar uma universalidade. Não mais a universalidade do objeto, mas a de uma experiência hermenêutica, a experiência do estranho e do mal-entendido. Schleiermacher sustenta a universalidade da hermenêutica com base na "noção de que a experiência da estranheza [Fremdheit] e a possibilidade do mal-entendido são universais" (Gadamer, 2003, p. 248). Aquilo que, historicamente, devia ser superado, recebe agora uma transformação profunda. Na individualidade do outro, o estranho já está indissoluvelmente dado, num sentido novo e universal, e o mal-entendido não é apenas uma possibilidade, que pode dar-se ou não. Já está dado de antemão; é um pressuposto da individualidade e da diferenciação dos indivíduos, que emerge no momento da comunicação, ou diante do desafio da compreensão de um texto ou discurso. Todo esforço e empenho serão insuficientes ou incapazes de superar plenamente esse caráter de estranho do outro. Nenhuma interpretação ou compreensão poderá vencer a distância que o separa. Ele sempre permanecerá outro, diferente e distante.
O desafio de compreender o outro parece mesmo uma tarefa inglória. Logicamente, irrealizável. A facticidade da vida, contudo, permite ousar. A hermenêutica leva a sério o fato de nos comunicarmos, apesar das diferenças e dos mal-entendidos. Mesmo que o outro seja irrecuperável em sua outridade, ele não está separado de nós. Estamos em contato com ele e, de alguma forma, nos comunicamos.
Como lidar com isso? Como compreender e comunicar aquilo que, por ser único e diferente, é incomunicável? Precisamente aí está a tarefa da hermenêutica. Quando texto e autor deixam de falar, surge a hermenêutica com o desafio de superar a mudez: tornar inteligível o ininteligível e trazer à tona o oculto, pressupondo o sentido no sem-sentido. Sonhando em fazer falar o inefável, rompe-se então o silêncio – no dizer de Sartre – pela "hermenêutica do silêncio" (cf. Frank, 1985, pp. 318 a 323). É um modo de pensar que se vem estabelecendo desde Schleiermacher, superando a perspectiva em que uma razão a-histórica ou supra-histórica era a garantia da compreensão e o incompreensível, entendido como deficiência do entendimento. A realidade agora adquire profundidade, e a intenção hermenêutica transcende a perspectiva reducionista das ciências. Mais do que um sentido claramente definido, interessa a gênese, o processo de sua formação ou estabelecimento, no ato do discurso ou da elaboração.
Como alçar o pensamento a esse nível de compreensão? A resposta, evidentemente, não é fácil. Mas, em diversos momentos e em discussões temáticas diferentes, Schleiermacher esclarece sua posição sobre a questão e aponta para perspectivas de solução.
4.
Sem a ilusão de que um dia a comunicação seja plena ou total, ou que se chegue a uma compreensão definitiva, ele concebe a arte hermenêutica como um "aproximar-se gradativo" da verdade do texto (Kang, 1978, p. 20), atravessando diversos níveis, em "relações sempre superiores" (Schleiermacher, 1974, pp. 147 e 151). Considera, nesse sentido, o discurso como resultado da imaginação e de um ordenamento criativo de seu autor. É a perspectiva do discurso enquanto fator de transformação e de inovação. E isso mais uma vez pode ser verificado, a título de exemplo, nos discursos de Jesus, em Das Leben Jesu. Se a língua materna, pondera o autor, foi para Jesus uma conditio sine qua non para a formulação de sua mensagem, isso ainda não quer dizer que também tenha sido sua ratio per quam. Se tivesse sido assim, argumenta Schleiermacher, "Cristo nem teria sido necessário, e o conhecimento de Deus [por Ele transmitido] se teria difundido por si através da linguagem" (1832/1864, p. 13). Isso, obviamente, não foi o caso. É impensável que uma língua se transforme e desenvolva sem a atuação de alguém, e sem esse desenvolvimento, a rigor, não pode haver novidade. Para que Jesus pudesse ser significativo e deixar uma mensagem nova, Ele não apenas se serviu da língua da época, mas sua mensagem também foi uma verdadeira investida contra ela, provocando a "transformação semântica de sua visão de mundo" (Frank, 1985, p. 291).
5.
À semelhança do caráter singular do discurso, no momento de sua projeção e elaboração, requer-se igualmente uma perspectiva singular no momento de sua compreensão e interpretação. É esse o sentido da interpretação psicológica, mais especificamente, do conceito e da práxis da divinação. Nesse conceito encontra-se o que há de mais peculiar da hermenêutica de Schleiermacher, e o que também já recebeu as mais desencontradas interpretações.
Gadamer, por exemplo, identifica o termo com "sentimento", no sentido de uma misteriosa compreensão interior (1990, p. 193), fundada sobre uma identidade originária entre autor e intérprete. É uma explicação que esvazia o teorema da divinação, sustentando a tese de que Schleiermacher não levava tão a sério sua relativização especulativa da compreensão. "A barreira que permanece para a razão e o ato da compreensão", afirma Gadamer, "não é em todos os sentidos intransponível. Ela deve ser superada pelo sentimento, portanto, por uma compreensão direta misteriosa e congenial" (1990, p. 194). Com a identificação entre autor e leitor, a divinação anularia a distância entre eles, situando-se acima ou fora da História. É uma concepção que ignora o vínculo entre linguagem e pensamento, e também entende a própria "reconstrução objetiva da intenção de outrem" como um evento não linguístico (Frank, 1985, p. 315).
Não é isso que está contido na divinação de Schleiermacher. O termo esclarece-se adequadamente em seu contexto de origem, na hermenêutica do estilo, cuja compreensão necessita da divinação, "aquela atitude de consciência do intérprete que corresponde à da produtividade estilística do autor" (Frank, 1985, p. 315). Como o estilo é sempre singular e único, também o autor, enquanto sujeito de um estilo, não tem padrão ou regra pelos quais se possa guiar com segurança. Ele pensa e abre seu próprio caminho, da mesma forma que projeta e imagina o todo da obra. É a faculdade da imaginação que lhe permite elaborar projetos, pensar e projetar sua pesquisa, programar a publicação de um livro, enfim, imaginar previamente toda a sua construção, marcada pela peculiaridade de seu pensamento e de seu estilo.
O desafio da divinação é compreender esse aspecto singular e único, designado como estilo. Da mesma forma que na construção estilística de uma obra, também aqui não há padrão ou regra que possa garantir uma interpretação correta. O singular evade-se da padronização. Não há um caminho lógico que conduz ao outro, diferente ou único. Ainda e sempre permanece uma distância, e a divinação significa um salto da faculdade de imaginação pelo qual se procura vencer essa distância. Schleiermacher, contudo, não tem a ilusão de que seja possível anular totalmente essa distância. Trata-se de uma compreensão por aproximação, que ainda e sempre pode ser aprimorada. A hermenêutica é um processo ou uma busca interminável de compreensão, viabilizada pelo recurso da linguagem e pela faculdade da imaginação.
Tanto a criação da obra quanto sua compreensão e interpretação são produzidas pela imaginação, da qual ninguém pode prescindir (Scholtz, 1995, p. 116). Não se trata, porém, de uma imaginação gratuita ou adivinhação aleatória, e sim de um atinar com base nos dados disponíveis. Não há imaginação com base em nada, como também não existe um estilo sem a linguagem. Como a concepção da forma da obra, a estrutura do todo só é possível pela fantasia, assim a divinação, segundo Schleiermacher, é o esforço de refazer o projeto criador e imaginário do autor. É a tentativa de refazer a singularidade estilística de uma obra (interpretação técnica) e de seu autor (interpretação psicológica).
6.
Essa maneira de entender o processo de compreensão e interpretação vincula-se, em Schleiermacher, a uma concepção peculiar da linguagem e da racionalidade. Com a perspectiva hermenêutica de integrar individualidade e racionalidade ou história e racionalidade, a razão deixou de ser um conceito unívoco, estendendo-se para além de seu sentido lógico-semântico. O desafio da hermenêutica é o estabelecimento de uma racionalidade que não se reduza a enunciados lógicos. Como deverá caracterizar-se essa racionalidade, ou como apresentar a hermenêutica, nela elaborada "como uma ciência sui generis" (Schleiermacher, 1990, p. 25)? Heidegger esclarecerá, posteriormente, que se trata, em verdade, de duas racionalidades, respectivamente, logos apofântico e hermenêutico (Stein, 1996, p. 27). Mas, como Schleiermacher ainda não conta com a distinção heideggeriana, ele propõe a substituição do conceito de razão, já e sempre rotulado, e concebido com uma pretensão supratemporal. Indica como termo sucessor o conceito de linguagem. Como o próprio pensamento, argumenta o autor, assim também a dinâmica da linguagem comporta um elemento lógico-semântico e outro interpretativo, abrigando tanto o logos apofântico quanto o hermenêutico. Ela consiste na interação de duas funções, que se distinguem pela predominância de uma ou de outra e que não podem ser consideradas isoladamente, sob pena de resultarem em concepções abstratas (Schleiermacher, 1990, p. 25). Não existe uma estrutura como um aparato fixo, com base no qual se daria o uso particular da língua, como também não se trata de uma simples junção de vagas intuições de sentido. A linguagem é uma articulação entre o aspecto histórico-subjetivo e singular, de um lado, e o caráter sistemático-universal, de outro. É a teoria do esquema, emprestada de Kant, que permite a Schleiermacher explicar tanto a relação entre estrutura e mudança de linguagem quanto a relação entre emprego usual e metafórico da linguagem.
Os conceitos de uma língua permanecem semanticamente abertos, para as alterações demandadas por sua função orgânica. E "assim também o sistema de linguagem como um todo", afirma Frank, "precisa ser visto como um sistema instável, isto é, historicamente aberto..." (Schleiermacher, 1990, p. 38). Na explicação do esquema sustenta-se, até mesmo, que o universal enquanto tal não existe, e que a linguagem é um "universal singular" – expressão na qual Frank (1985) procura condensar o projeto hermenêutico de Schleiermacher. Ela apenas existe como sistema em virtude de acordos – em princípio, revogáveis – de seus falantes. Seu "sentido global é alterado, a qualquer momento, com cada ato de discurso, ao menos na medida em que essa inovação semântica conseguir penetrar no repertório gramatical" (Schleiermacher, 1990, p. 38), como sempre ocorre na comunicação linguística. Também Saussure descreve o fenômeno da transformação da linguagem, mediante o concurso de projetos individuais. Há, para ele, uma "atividade criadora" indeterminável, ou seja, uma "liberdade individual" dos falantes, que se sedimenta "na língua em criações diárias sem fim" (Saussure, citado em Frank, 1989, pp. 29-30 e 36). Essa liberdade, enquanto tal, seria obviamente inconcebível, se já a pudéssemos prever com base na língua.
7.
Outro tema que evidencia a peculiaridade do projeto hermenêutico de Schleiermacher está ligado à subjetividade, linguagem e subjetividade. Também esse conceito pode somar-se ao exercício especulativo de apresentar a hermenêutica desse filósofo, relacionando-a com a discussão sobre os "indícios formais".
Já afirmava no início que a hermenêutica é produto da modernidade, mas que, sobretudo, é também tendência ou movimento para sua superação. Ao mesmo tempo em que realiza o giro transcendental no mundo do sentido, coube-lhe a tarefa de pôr a transcendentalidade no contexto da linguagem. Ela surge acompanhando o "giro linguístico", ou sendo por ele permitida. O modo peculiar de conceber o sujeito e a linguagem será determinante para a concepção e a realização do projeto hermenêutico de Schleiermacher.
O autor, em primeiro lugar, rejeita o primado do sujeito e defende a linguagem como base de legitimação do pensamento. Sustenta que o sujeito não serve como ponto de partida filosófico, porque já e sempre aflora como relação, e não como uma unidade subsistente. O que, em seu entender, constitui a identidade do sujeito é a consciência de si; é esta que o identifica enquanto tal. Mas ela nunca é dada em estado puro. Somente emerge mediante uma consciência objetiva, consciência de algo – ao pensar ou querer algo –, sem, contudo, confundir-se com esta. A consciência de si é o que acompanha implicitamente toda consciência objetiva, de modo que ela mesma nunca poderá ser objetivamente tematizada. Ou seja, todo discurso sobre a consciência de si chega tarde em relação a seu ser, porque é o que já está sempre posto em toda tematização. Consciência de si é, por isso, também sempre consciência de dependência e consciência de seus limites. Tomar consciência de si é tomar consciência de suas relações, que são, ao mesmo tempo, suas condições de possibilidade e seus limites. É perceber sua unidade ou identidade interior e, ao mesmo tempo, reconhecer intimamente a mutilação dessa identidade, porque sempre dependente.
A hermenêutica, portanto, longe de confundir-se com a transcendentalidade, envereda pelo caminho alternativo da linguagem, e pode ser compreendida como uma versão da filosofia da linguagem. Paradigma da linguagem e crítica ao primado do sujeito são verso e reverso de uma mesma discussão. Para Schleiermacher, linguagem e sujeito são duas faces da mesma questão. Deve-se, porém, iniciar pela linguagem. Nela está o primado metodológico. A fragilidade do sujeito, sempre relativo e dependente, inviabilizando um discurso idealista, não permite outra alternativa. O sujeito já não é mais o lugar privilegiado, donde seria possível uma busca solitária da verdade. O que existe, isto sim, segundo Schleiermacher, é uma "comunidade de pensamento", intersubjetivamente constituída na busca do saber, a qual tem uma estrutura de linguagem, ou seja, a estrutura de um aparelho de comunicação, que tem tanto um caráter empírico-histórico quanto especulativo. Toda comunidade de pensamento codifica "ipso facto seu consenso dialético na gramática de uma 'comunidade linguística'" (Schleiermacher, 1990, p. 420). Ou seja, a linguagem é condição de possibilidade de toda ação e pensamento humanos. Mas, de outro lado, ela somente se constitui e se mantém mediante o concurso de projetos singulares de sentido. 8.
Considerações finais
Poderíamos ainda prosseguir com outros temas ou questões. Mas o que foi exposto já é suficiente para se ter uma noção de como na hermenêutica de Schleiermacher também se encontram aspectos ou elementos que poderiam ser designados "índices" ou "indícios formais". Por mais que ele estabeleça princípios e cânones metodológicos, para a interpretação psicológica e a interpretação gramatical, esses apenas servem de balizas, mas nunca dão segurança ou certeza à tarefa hermenêutica. Mais ainda, o desafio de compreender o outro parece uma busca inglória. Tanto o sentido da hermenêutica, de compreender o outro, quanto as orientações metodológicas para sua realização põem-nos a caminho para buscar o que indicam, mas nunca dão a certeza de uma interpretação ou compreensão correta.
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Recebido em 20/09/2011.
Aprovado em 06/11/2011.
1 Este trabalho recebeu o apoio da Unijuí e da FAPERGS
2 Percebendo, nos anos 80, que autores como Adorno e Heidegger já estavam sendo bem conhecidos e defendidos de modo competente no Brasil, passei os últimos 30 anos dando preferência à investigação daquele dinamarquês, cujas traduções para nosso idioma não podiam contentar a ninguém. De qualquer maneira, continuo convencido de que os leitores de Heidegger que só leem português podem hoje tirar algum proveito das leituras de obras de Kierkegaard, tais como O conceito de angústia, Migalhas filosóficas, Temor e tremor, A doença para a morte, As obras do amor, assim como tirariam proveito também se lessem em algum outro idioma, mesmo o castelhano, a Escola (ou prática) de cristianismo (de 1850). De minha parte, espero dar uma boa contribuição, nos próximos anos, com a tradução completa do Pós-escrito, talvez em dois volumes.
3 [Im 19. Jahrhundert hat S. Kierkegaard das Existenzproblem als existenzielles ausdrücklich ergriffen und eindringlich durchdacht. Die existentiale Problematik ist ihm aber so fremd, daß er in ontologischer Hinsicht ganz unter der Botmäßigkeit Hegels und der durch diesen gesehenen antiken Philosophie steht. Daher ist von seinen "erbaulichen" Schriften philosophisch mehr zu lernen als von den theoretischen – die Abhandlung über den Begriff der Angst ausgenommen.] – O começo da Nota não deixa de ser crítico (e talvez baseado num mal-entendido, compreensível ainda nos anos 20), mas no que toca à qualidade filosófica dos "discursos", a Nota é inequívoca.
4 Viertes Kapitel. Zeitlichkeit und Alltäglichkeit. § 68. Die Zeitlichkeit der Erschlossenheit überhaupt. a) Die Zeitlichkeit des Verstehens. [...] "Im Augenblick" kann nichts vorkommen, sondern als eigentliche Gegen-wart läβt er erst begegnen, was als Zuhandenes oder Vorhandenes "in einer Zeit" sein kann. (1) Note 1. S. Kierkegaard hat das existenzielle Phänomen des Augenblicks wohl am eindringlichsten gesehen, was nicht schon bedeutet, daβ ihm auch die existenziale Interpretation entsprechend gelungen ist. Er bleibt am vulgären Zeitbegriff haften und bestimmt den Augenblick mit Hilfe von Jetzt und Ewigkeit. Wenn K. Von „Zeitlichkeit" spricht, meint er das „In-der-Zeit-sein" des Menschen. Die Zeit als Innerzeitigkeit kennt nur das Jetzt, aber nie einen Augenblick. Wird dieser aber existenziell erfahren, dann ist eine ursprünglichere Zeitlichkeit, obzwar existenzial unausdrücklich, vorausgesetzt. Bezüglich des „Augenblicks" vgl. K. Jaspers, Psychologie der Weltanschauungen. 3. unveränderte Auflage 1925, S. 108 ff. und hierzu das „Referat Kierkegaard" S. 419-432.