Natureza humana
ISSN 1517-2430
Nat. hum. vol.14 no.2 São Paulo 2012
Artigos
O aborto provocado como uma possibilidade na existência da mulher: reflexões fenomenológico-existenciais
Abortion as a possibility on the existence of the woman: existential-phenomenological reflections
Melina Séfora Souza RebouçasI; Elza Maria do Socorro DutraII
Mestre e Doutoranda em Psicologia Clínica pela UFRN Professora de Psicologia Humanista-Existencial do Centro Universitário do Rio Grande do Norte - UNI-RN
e-mail: melina_sefora@yahoo.com.br
Professora Doutora do Programa de Pós-Graduaçao em Psicologia da UFRN
e-mail: elza_dutra@hotmail.com
Resumo
A pesquisa teve como objetivo compreender a experiência de cinco mulheres que provocaram aborto. A partir da hermenêutica fenomenológica, os resultados revelaram que a experiência do aborto é compreendida como uma escolha. O sentimento mais presente na experiência das mulheres foi a culpa, seguida do desamparo e da solidão. Foi revelado que o aborto ocorreu pelo desejo de dar continuidade a projetos de vida e exercer a maternidade somente num relacionamento estável. Quanto ao atendimento prestado pela equipe de saúde, revela-se a necessidade de uma reestruturação do funcionamento do SUS para uma maior assistência às mulheres. Essa experiência também fez as mulheres reverem os significados que tinham em relação ao aborto e aos seus projetos de vida.
Palabras-clave: Aborto Provocado, Mulher e Maternidade, Fenomenologia Hermenêutica, Pesquisa Fenomenológica.
Abstract
The research aimed to understand the experience of five women who had an abortion. From the hermeneutic phenomenology, results revealed that the experience of abortion is seen as a choice. The most common feeling experienced by these women was guilt, as well as helplessness and loneliness. It was revealed that abortion was chosen based on their desire to continue life projects and pursue motherhood only in a stable relationship. Regarding the care provided by the health professionals at the time of the abortion, the research revealed the need for some restructuring of SUS in order to better assist these women. This experience also brought these women to reconsider the meanings they had in regard to abortion and their life projects.
Keywords: Abortion, Women and Motherhood, Hermeneutic Phenomenology, Phenomenological Research.
1. Introdução
O aborto provocado é um tema bastante polêmico e estigmatizado, sendo alvo de muitas críticas e discussões principalmente no que se refere aos seus aspectos legais, bioéticos e religiosos. O presente estudo, embora considere tais aspectos, não tem o intuito de aprofundar essa discussão.
A proposta deste trabalho consiste em desenvolver reflexões acerca do aborto provocado, sob uma ótica distinta daquelas sob as quais comumente esse fenômeno é interpretado. Neste estudo, o aborto provocado é considerado uma prática real e frequente na vida de muitas mulheres, repercutindo, inevitavelmente, na sua dimensão existencial e psicossocial, de forma única e singular. Partindo de uma perspectiva fenomenológico-existencial, buscamos ouvir o que as mulheres autoras do aborto tinham a dizer a respeito de sua experiência, de como se sentiram, de como se encontravam as suas existências naquele momento e quais implicações essa escolha tem e teve para as suas vidas, considerando o contexto psicossocial, cultural e histórico em que vivem.
A perspectiva fenomenológico-existencial é uma reflexão sobre o modo humano de ser-no-mundo1, buscando compreender os significados que o homem atribui ao mundo e o sentido que um fenômeno tem para determinada pessoa. A fenomenologia pensa o homem em sua cotidianidade e historicidade e no eterno movimento de vir-a-ser, isto é, ele está em constante mudança e qualquer saber ao seu respeito somente pode ser relativo e provisório (Critelli, 1996).
Na maioria dos países em desenvolvimento, o aborto é considerado um grave problema de saúde pública, sendo uma das maiores causas de morte materna. A grande parte desses abortos é realizada de forma insegura, devido às legislações punitivas de alguns países, principalmente na América Latina (Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos, 2001). O Ministério da Saúde (2007b) aponta que no Brasil o aborto é considerado a 4º causa de morte materna, sendo responsável por 11,4% dos óbitos e por 17% das causas obstétricas diretas, com parcela significativa causada pelo abortamento provocado. Estima-se que ocorra anualmente, em média, um milhão de abortos provocados, segundo informações das internações hospitalares no Sistema Único de Saúde (SUS) (Ministério da Saúde, 2007a).
O Código Penal brasileiro, em seus artigos 124 e 126, considera crime o aborto praticado pela gestante, ou por terceiro com o seu consentimento, sendo previsto em lei, segundo o artigo 128, somente em casos de estupro ou risco de morte para a mulher2. O aborto provocado, por ocorrer na ilegalidade, acaba por tornar difícil a estimativa real do número de casos, havendo provavelmente uma incidência bem maior do que as pesquisas indicam.
No Brasil, como em todo o mundo, o aborto provocado, além da questão legal, é perpassado por fatores morais e religiosos, tornando a discussão do tema bastante delicada e complexa. Acima de tudo, ainda está arraigado em nossa cultura o papel da mulher como mãe. Essa visão é partilhada também por Pedrosa e Garcia (2000), que consideram que a sociedade atribui à mulher a maternidade como destino. Culturalmente, a maternidade é considerada inerente à mulher, é a sua condição, criando-se, assim, a ideia da mãe boa e perfeita, aquela que se sacrifica e ama os filhos instintiva e incondicionalmente. Segundo Trindade e Enumo (2002), culturalmente é como se a mulher já nascesse preparada para ser mãe; no entanto, alguns autores como Ariés (1981) e Badinter (1985) mostram que o cuidado materno é uma construção social advinda de mudanças históricas, políticas e econômicas. A mulher biologicamente nasce preparada para gerar e parir uma criança, mas não necessariamente para amá-la, cuidar dela e a proteger.
Nesse sentido, ir contra esse "destino", como é o caso da mulher que provoca o aborto, é bastante conflituoso. Ela se torna estigmatizada para a sociedade, sendo vista como uma criminosa, uma pecadora e uma pessoa fria e sem sentimentos. Somam-se também a isso o preconceito e a falta de preparo da própria equipe de saúde, a primeira a ter contato com a mulher que aborta.
Devido a esse contexto histórico-cultural, na maioria das vezes, as mulheres tomam a decisão e passam pelo processo de aborto sozinhas e desamparadas. Algumas pesquisas mostram que o aborto provocado é extremamente difícil e doloroso para a mulher, podendo trazer graves consequências físicas e psicológicas (Boemer & Mariutti, 2003; Gesteira, Barbosa e Endo, 2006; Lie, Robson & May, 2008; Nomura et al., 2011). Segundo Pedrosa e Garcia (2000), a decisão de realizar um aborto é vivenciada com muita ansiedade e medo, principalmente da reação da família e do parceiro, do julgamento das pessoas, das possíveis sequelas e até da morte.
O estudo justifica-se pelo fato de a maioria das pesquisas sobre o aborto ser advinda da área jurídica, devido aos aspectos legais em torno deste, e da área médica, principalmente da enfermagem, dando ênfase a aspectos médicos e dados epidemiológicos. Há, assim, uma carência de estudos que levem em consideração os aspectos psicossociais e existenciais envolvidos no tema (Costa, Hardy, Osis & Faúndes, 1995).
A presente pesquisa poderá fornecer subsídios para uma melhor capacitação dos profissionais de saúde na atenção prestada a essas mulheres (prevista pelo SUS na Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento) como também poderá suscitar uma maior discussão do papel da mulher na sociedade contemporânea. Além disso, o estudo favorecerá a discussão acerca da saúde da mulher no contexto da saúde pública, no sentido de pensar-se em melhores estratégias de planejamento familiar. Sobretudo, acrescentará ao campo da Psicologia, principalmente no que se refere à perspectiva fenomenológico-existencial.
A intenção deste estudo não é focalizar o aborto em si, como algo concreto e objetivado, mas lançar um olhar para a história de vida dessas mulheres, histórias essas singulares, e escutar, como diz Bonaventure (2000), "(...) o que a vivência do aborto tem a revelar em toda a sua pluralidade de aspectos (...)" (p. 11). Dessa forma, esta pesquisa pretendeu dar voz a essas mulheres para que elas pudessem expressar seus significados e sentidos sobre a vivência do aborto. Dar voz, nessa perspectiva, é deixar o ser expressar o seu discurso de forma autêntica, oferecer um espaço para que a pessoa possa efetivamente dizer da sua experiência, proporcionando, assim, um maior desvelamento do fenômeno em questão (Amatuzzi, 2001).
2. Método
2.1. Abordagem Teórico-Metodológica
Trata-se de uma pesquisa qualitativa de caráter fenomenológico-existencial, tendo em vista que este estudo buscou compreender a vivência das mulheres que provocaram o aborto. A Fenomenologia valoriza a experiência consciente e a intersubjetividade, sempre levando em consideração a intrínseca relação entre o homem e o mundo Enquanto método, preocupa-se com os fundamentos da significação presentes nessa relação, ou seja, com o sentido.
Este estudo utilizou como método de pesquisa a perspectiva fenomenológica hermenêutica de Heidegger (1927/1989), que busca realizar uma compreensão dos fenômenos, uma vez que considera a compreensão uma característica fundamental da existência humana. Como seres-no-mundo, já possuímos uma compreensão prévia dos fenômenos e é exatamente isso que nos permite compreendê-los. Conforme a visão de Ferreira (2009), "o fenômeno se mostra sempre a partir da nossa pré-compreensão que se instaura na nossa própria lida com o mundo e que é condição de possibilidade da compreensão do sentido" (p. 145).
O homem enquanto ser-aí, segundo Heidegger (1927/1989), é pura abertura, não existindo, portanto, uma interioridade/exterioridade. O ser-aí é um existente, é um ser lançado para fora, é um ser-para e por isso não pode ser delimitado ou estático. É um ser que se lança na realização de seu projeto junto aos entes que lhe vêm ao encontro no mundo. Nesse sentido, a hermenêutica heideggeriana parte da nossa compreensão prévia advinda das nossas relações com o mundo para realizar uma interpretação sobre os fenômenos; mas isso não significa que daí extraímos um conhecimento ou uma explicação no sentido epistemológico. Trazendo para a realidade de uma pesquisa, a hermenêutica heideggeriana busca compreender como uma pessoa se situa no mundo, como ela lida com algo naquele momento, isto é, a compreensão traduz o nosso próprio modo de ser.
A interpretação é uma elaboração/apropriação do que foi compreendido, pois, segundo Heidegger (1927/1989), o mundo já compreendido se interpreta, assim a interpretação é fundada existencialmente no compreender. É a partir dessa noção de compreensão e interpretação que podemos falar de sentido.
De acordo com Heidegger (1927/1989), sentido não é uma propriedade colada no ente e que se acha por trás dele, trata-se de um existencial do Dasein. Isto é, na sua condição de abertura, as coisas que lhe vêm ao encontro no mundo são compreendidas e nessa compreensão podem ser descobertas. Quando isso ocorre, temos o sentido, ressaltando que nem sempre isso é possível, pois há uma tendência natural ao encobrimento, uma vez que o Dasein está sempre se revelando e se ocultando. Destarte, o que sustenta a compreensibilidade de alguma coisa é o sentido.
Trazendo esse pensamento para o campo da pesquisa, podemos dizer que durante uma entrevista o pesquisador não busca uma resposta definitiva para o seu questionamento, mas uma aproximação do sentido da experiência do entrevistado, lembrando que esse sentido se deu a partir do próprio encontro ali estabelecido e, portanto, possui toda a estruturação prévia do pesquisador e do pesquisado.
A hermenêutica representa não somente um método mas também uma atitude que diz respeito ao nosso próprio modo de ser e que permite nos aproximarmos da nossa facticidade3 enquanto existentes, condição esquecida no cotidiano impessoal. Tal atitude exige do pesquisador não uma consciência dos seus valores, como propõe a redução fenomenológica, mas uma abertura (que, enquanto um Dasein, já o constitui) para nada além do que a sua própria disposição de ser afetado lhe permite. A partir daí, abre-se o horizonte da pré-compreensão, da compreensão, da interpretação e, enfim, do sentido (Ferreira, 2009).
2.2. Participantes
O presente estudo é um desdobramento de uma pesquisa mais ampla, intitulada "Depressão, aspectos emocionais e sociais na vivência do aborto: comparação entre duas capitais brasileiras" (Nomura et al., 2011), da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) em parceria com o Grupo de Pesquisa de Saúde da Mulher da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
A pesquisa aqui apresentada, como tratado anteriormente, constitui-se de um desdobramento do estudo mencionado e contou com a colaboração dos mesmos participantes mas com um enfoque na metodologia qualitativa, objetivando um maior aprofundamento e uma complementação à pesquisa que lhe deu origem, que é de cunho quantitativo.
As participantes da pesquisa foram mulheres que deram entrada com diagnóstico de abortamento em uma maternidade-escola da cidade de Natal e, dentre estas, aquelas que relataram ter provocado o aborto. Devido ao estigma que envolve o tema e a mobilização que este provoca, as mulheres do nosso estudo foram escolhidas de acordo com a disponibilidade em falar sobre a sua experiência, não sendo feita, portanto, qualquer restrição a uma faixa etária ou a um número específico de mulheres.
Dessa forma, chegamos ao total de cinco mulheres entrevistadas, sendo três advindas da pesquisa de Nomura et al. (2011), uma de outros retornos à maternidade e voutra de indicações profissionais. As entrevistas ocorreram em um local escolhido pelas mulheres. As colaboradoras encontravam-se na faixa etária de 21 a 43 anos. Somente duas eram casadas e três já tinham um filho, sendo uma dona de casa, uma vendedora, uma desempregada, uma funcionária pública e uma professora. Dentre as colaboradoras, quatro provocaram o aborto uma única vez e uma o provocou duas vezes.
2.3. Procedimentos
A pesquisa foi realizada por meio de entrevistas semiabertas, com uma pergunta disparadora sobre como foi para essa mulher realizar um aborto, deixando emergir seus sentidos e experiências. Os depoimentos foram gravados, transcritos e literalizados, sendo posteriormente analisados e interpretados com base nos sentidos que emergiram do discurso.
A partir da fala das entrevistadas e da situação hermenêutica que ali se estabeleceu, pudemos chegar às unidades de sentido. Isso é possível considerando que a mulher que provocou um aborto, ao relatar a sua experiência, disponibilizou ao pesquisador, segundo Garcia e Jorge (2006), "a interpretação que faz de seu horizonte experiencial, que é singular" (p. 767). Assim, tais unidades se referem aos sentidos que o entrevistado atribui à sua vivência, sendo que não se encontram prontas no discurso, tendo o próprio pesquisador de percebê-las com sua visão de mundo e abertura. Em outras palavras, o pesquisador encontra essas unidades baseado em sua visão prévia, isto é, a partir do recorte feito sobre a realidade pesquisada.
Ao longo da análise das entrevistas, foi possível visualizar nessas unidades de sentido temas que se repetem, cabendo ao pesquisador reunir essas unidades de acordo com os temas aos quais elas se relacionam. Dessa forma, a partir das convergências e divergências da vivência do que se interroga, pudemos chegar a um desvelamento do fenômeno em questão, no sentido de "ampliar a compreensão do aspecto da existência humana a que se lançou" (Bruns & Trindade, 2001, p. 80).
3. Resultados e Discussão
Diante de todo o panorama histórico e dos sentidos culturalmente construídos a respeito do aborto, da mulher e da maternidade, bem como do referencial teórico que norteia este trabalho, podemos agora nos debruçar sobre a fala das cinco mulheres que participaram da nossa pesquisa e ouvir o que elas têm a nos dizer sobre a experiência de provocar um aborto. Essas mulheres serão aqui referidas pelos primeiros nomes de grandes poetas e escritoras (Clarice, Nísia, Silvia, Virgínia e Simone), visando preservar as suas identidades. Foi possível chegar a quatro unidades de sentido que serão analisadas e discutidas a seguir.
3.1. Uma experiência de sofrimento e culpa
O homem enquanto ser-no-mundo está inserido em determinado contexto e vulnerável a determinadas condições, sendo esta a sua facticidade. As mulheres, ao provocarem um aborto, rompem com a sua facticidade, isto é, com valores, juízos e preconceitos que as constituíram. No entanto, não estar de acordo com esses valores, mesmo que seja num breve momento da vida, traz um grande sofrimento.
Os depoimentos, confirmando a revisão de literatura, mostraram que provocar um aborto é uma experiência que traz um grande sofrimento para a mulher. Pudemos identificar nas falas das participantes da pesquisa que provocar um aborto é muito doloroso e conflituoso, pelo fato de entrar em choque com valores morais e religiosos arraigados e, principalmente, por ir contra o que a sociedade coloca como sendo o principal papel da mulher, a maternidade.
Sendo assim, uma mulher que provoca um aborto não tem espaço, expressando esse desalojamento por meio dos mais diversos sentimentos, em sua maioria contraditórios, que vão desde arrependimento até alívio. Os relatos dessas mulheres demonstraram um mal-estar e uma profunda insatisfação, raiva e revolta por precisarem naquele momento abrir mão de um filho, chegando a apresentar um sentimento de falta do filho que não puderam ter, como ilustra a fala de Clarice:
(...) tinha hora que eu tinha raiva de mim mesma por ter tomado essa decisão, mas ao mesmo tempo eu... sabia que independente do que as pessoas fossem dizer da minha atitude, eu achei que fiz o certo. Não vou dizer pra você que não sofro, sofro! Às vezes quando eu olho pra um bebê eu fico imaginando como seria o meu filho. Às vezes fico imaginando o rostinho dele, como ele seria, isso às vezes dói, dói muito! (Clarice)
Esse mal-estar revela o sofrimento de não termos controle de algumas circunstâncias da vida. Nós projetamos, sonhamos, damos um sentido às nossas vidas, mas nunca temos certeza do que pode acontecer nesse caminho. Mesmo realizando o aborto, permanecia nessas mulheres o desejo de um dia virem a ser mães, mas a maternidade não veio num momento oportuno, fazendo com que elas tivessem que decidir por interromper algo que, no fundo, desejavam, conforme falou Silvia:
(...) eu sei que era um filho, entendeu? Eu queria tanto, mas... mexe muito comigo, porque era um filho, estava com 3 meses, estava grandinho, não grande... estava se formando, mas... (...) às vezes me dá vontade de chorar porque eu fiz uma coisa errada. (Silvia)
Foi possível compreender na fala dessas mulheres a existência de um grande sofrimento e conflito ao provocar um aborto, o que parece advir do fato de não terem superado as exigências do que a sociedade espera de uma mulher, bem como as suas próprias. O ser mãe é algo tão arraigado em nossa sociedade que qualquer coisa que possa negar a possibilidade da maternidade é vista como desviante ou anormal. A mulher é culturalmente preparada para a gravidez e o parto mas nunca para a possibilidade de um aborto. Hoje se concebe postergar a maternidade, exercê-la de outras formas (adoção, barriga de aluguel etc.), podendo a mulher, inclusive, ter outros papéis além desse, mas ela não pode rejeitar essa maternidade (Rebouças & Dutra, 2011).
Desse modo, instalou-se uma crise de valores entre o que essas mulheres queriam e acreditavam ser melhor para elas e o que a sociedade exigia delas, sendo essa experiência vivenciada, como vimos, pelos mais diferentes sentimentos, os quais são, em sua maioria, ambíguos e contraditórios. Dentre estes, a culpa foi o sentimento que se mostrou mais presente na experiência dessas mulheres.
Segundo Heidegger (1927/1989), a culpa/dívida é a forma cotidiana, ou seja, impessoal, de sentir o débito existencial. Assim, no cotidiano, ao sentir o débito como culpa/dívida, o homem foge, mas enquanto um ser de abertura sempre estará em débito com as suas possibilidades, na medida em que não poderá realizar todas elas. Dessa feita, a culpa enquanto débito é inerente ao homem, sendo impossível, como afirma Boss (1981), livrar-se dela. O máximo que pode acontecer é uma ressignificação desta. Isso é possível quando Heidegger diz que a culpa é um sentimento pesado, difícil de carregar e para retirar esse peso o Dasein precisa ter consciência do seu ser e estar emébito, isto é, precisa compreender que o ser e estar em débito com as suas possibilidades é uma condição da sua existência.
De acordo com essa perspectiva, pudemos observar nos depoimentos que a culpa, conforme aponta a literatura, era muito presente, mostrando-se como um sentimento muito pesado e difícil de lidar. Esse fato revela, portanto, que o aborto é comumente vivenciado de forma imprópria, sendo sentido como uma dívida com os valores morais e religiosos (Rebouças & Dutra, 2011).
Desse modo, os relatos revelaram que o débito existencial foi sentido como culpa/dívida, pois as mulheres acreditavam que esta é incutida de fora, sentindo que deviam "obediência" à sociedade e à religião. Nos relatos, algumas mulheres pareciam considerar que sua decisão fazia bem a si próprias, mas sua facticidade fazia com que elas sentissem que erraram, que estavam em falta com algo, advindo daí o peso da culpa. Essa facticidade, na qual o aborto não tem lugar, mostra-se inconcebível, já que o ser mulher se confunde com o ser mãe. No entanto, Heidegger (1927/1990) afirma que a culpa não é moral mas existencial, isto é, ela não tem uma causa exterior. Não se trata de uma falta cometida mas de um estar em falta originário (Rebouças & Dutra, 2011).
Ao sentir o débito existencial como culpa/dívida, as mulheres expressaram com convicção que irão ser castigadas, pois se sentem como "devedoras", que devem pagar de alguma forma pelo que fizeram, como ilustra as falas de Virgínia e Nísia:
(...) eu me sentia muito culpada, muito culpada, eu chorava muito. Eu lembro que eu tinha uma fantasia muito grande, que eu provavelmente eu iria desenvolver uma doença muito grave, no mínimo: "eu vou ter um câncer", era uma forma: "eu vou me punir de algum jeito pelo o que eu fiz". (Virgínia)
Eu sinto que vou ser castigada um pouco sabe, um pouco... porque na vida o que a gente faz de errado a gente... Eu considero que foi errado... e apesar de pedir a Deus, a gente tem que pagar por isso. Tudo que a gente faz aqui, a gente paga aqui. (Nísia)
Quando falamos de culpa, associamos imediatamente ao castigo, pois nos sentimos culpados quando transgredimos uma regra e sabemos que para toda transgressão existe uma punição. Essas regras são, em sua maioria, influenciadas pela forte tradição cristã da cultura brasileira. A Igreja Católica no Brasil, desde o período colonial, foi responsável por regrar os costumes, as tradições, inclusive a sexualidade e o matrimônio, incutindo nas pessoas quais os valores e comportamentos considerados aceitáveis para que se tornassem bons cristãos. Caso pecassem, receberiam a penitência ainda em vida (Rebouças & Dutra, 2011).
A falta como fundamento e condição do existir não é um mal moral que precisa ser reparado, pois se trata de uma "infelicidade" existencial, como diz Pasqua (1993): "O culpado é o ser, o seu crime é ek-sistir" (p. 139). Como podemos ver, a culpa está na própria ontologia do Dasein, não sendo exterior a esse.
Nesse sentido, podemos pensar que a forma de retirar o peso da culpa dessas mulheres não é o castigo, mas a compreensão da condição existencial do seu ser e estar em débito, isto é, o entendimento de que elas sempre estarão em falta, independentemente do que elas fizeram, façam ou deixem de fazer.
3.2. O aborto como uma escolha
Como vimos na revisão de literatura, são vários os fatores que levam uma mulher a decidir abortar, lembrando que tais fatores não diminuem o conflito existente nessa decisão, não havendo também uma relação simples e direta entre tais fatores e a realização de um aborto. Desse modo, decidir por um aborto não é somente consequência das suas circunstâncias de vida naquele momento, mas de todo o contexto histórico-cultural em que a mulher se constituiu, das relações que estabeleceu e, principalmente, do sentido que deu para a sua vida.
A decisão, sob esse olhar, implica escolhas, as quais são permeadas pela nossa disposição no mundo. De acordo com a perspectiva fenomenológica, somos livres para escolher os rumos da nossa existência. Estamos sempre diante de inúmeras possibilidades que nos chamam para serem realizadas, embora saibamos que essa liberdade e consequente escolha são delimitadas pela facticidade na qual nos encontramos, isto é, pelo nosso contexto histórico, que nos permite já estar implicados em algumas possibilidades e não em outras, ou descobrir novas.
Trazendo esse pensamento para a realidade do aborto, podemos dizer que essa é uma possibilidade que permeia a existência de uma mulher, podendo ser escolhida, ou não. Quando a possibilidade do aborto é escolhida, pode dar-se de modo próprio ou impróprio. No primeiro caso, poderíamos dizer que a mulher ouve o clamor da consciência4 e toma as rédeas da sua existência, assumindo o seu projeto; nesse caso, a responsabilidade pela escolha do aborto. No modo impróprio, a mulher foge do seu ser/estar em débito, isto é, não se responsabiliza por sua existência, não assumindo/compreendendo a escolha do aborto como sendo sua. Na verdade, esquece a sua escolha.
Nesse sentido, os depoimentos mostraram que o aborto se configurou como uma escolha na vida dessas mulheres, embora algumas a reconheçam e outras não, como observado nas falas de Silvia e Simone:
Foi uma escolha minha... porque na hora que eu vi, eu corri: "vou tomar o remédio, vou, vou! (...). Não tem condições nenhuma de ter outro agora". Mulher... escolha, eu não tinha pra onde correr, a única opção que eu tinha era essa, mais nenhuma, ou então teria que ter, mas eu não tinha como ter e foi quando eu corri para o remédio, fui tomar. (Silvia)
Decidi. Foi uma escolha. É covardia. Coisa de gente covarde. Não, não tem escolha... não sei o quê. Pra todo caminho que você entrar, tinha caminho de sair. Então, eu tinha totalmente que optar eu ter que passar muita dificuldade com o meu filho ou não ter e terminar meus estudos, então foi uma escolha minha não ter. (Simone)
Silvia, em seu discurso, diz ter havido uma escolha, mas, ao mesmo tempo, ela parece não sentir isso totalmente quando a única possibilidade que conseguiu enxergar naquele momento foi a do aborto, que, segundo ela, era a sua única opção. O relato de Silvia mostrou que a liberdade de escolha existe, mas ela tem dúvida ou parece não reconhecê-la. Lembramos Heidegger (1927/1990) quando diz que em nossa existência, e enquanto seres de abertura, estamos sempre escolhendo dentre as nossas possibilidades. No entanto, a escolha pode ser esquecida na impessoalidade, isto é, continuamos a escolher, mas não reconhecemos a escolha como sendo nossa, não assumimos a sua responsabilidade e acreditamos que ela é fruto das circunstâncias.
Simone pareceu ter mais convicção e clareza de que o aborto foi uma escolha. Ela demonstrou saber o que queria para a sua vida e as consequências que esse aborto teria, assumindo isso. O que aconteceu nesse depoimento, conforme nossa interpretação das ideias de Heidegger (1927/1990), é que Simone pareceu reconhecer a sua escolha e se responsabilizou por ela. Isso significa dizer que ela escutou o clamor da consciência e retomou o seu projeto. O Dasein só ouve o clamor da consciência quando este se dá conta de sua determinação temporal, isto é, da sua condição de finitude e age em prol da realização dos seus projetos.
As participantes também mostraram as suas principais motivações para a escolha do aborto, que vão desde questões financeiras até a responsabilidade de criar um filho sozinha, citando ainda peso para a família, projetos de vida etc. A escolha das participantes se dá, se tomarmos a ótica heideggeriana como referência, por meio da disposição afetiva ou do humor. As coisas ou pessoas que vêm ao nosso encontro nos afetam, abrindo-se, a partir disso, um horizonte de significados no qual fazemos nossas escolhas (Critelli, 1996). De uma forma geral, podemos dizer que a gravidez para essas mulheres afetou cada uma delas de uma maneira singular. Diante dessa afetação, que já envolve, enquanto seres-no-mundo, o contexto em que elas se encontram e suas histórias de vida, as mulheres acabaram por escolher o aborto.
Ao fazerem essa escolha, as mulheres deste estudo se perceberam sozinhas e desamparadas; primeiro, por se tratar de uma opção que somente cabe a elas e, segundo, por ser uma situação que carrega um estigma muito forte, fazendo com que as pessoas se afastem desse assunto. A experiência do aborto, por representar uma situação limite, acaba por mostrar a nossa vulnerabilidade diante do mundo e como estamos sozinhos. Sentimos o mundo em sua inospitalidade e percebemos que não existe um ponto seguro na vida. Enfim, caímos na angústia e vivemos uma experiência de estranhamento e desalojamento que nos revela a solidão e a liberdade em que nos encontramos. Dessa forma, ficou claro nos depoimentos a necessidade de apoio que essas mulheres tiveram naquele momento, conforme falaram Simone e Nísia:
Minha mãe sabia que eu estava grávida, é tanto que ela começou a dizer as coisas. E isso também foi um motivo pra eu fazer o aborto... também ajudou. Porque se ela tivesse chegado pra mim, e dissesse: "minha filha, se quiser ter, vamos ter, vamos ver o que vai fazer", eu acho que eu teria tido. Porque uma mão ajuda a outra, né? (Simone)
Se a gente tentasse, eu não teria feito, entendeu? Eu disse a ele que não faria, mas ele ficou dizendo que não dá certo, não dá certo. Pois pronto... foi quando eu me decidi (...) (Nísia)
As falas dessas mulheres parecem mostrar que a decisão de abortar foi motivada principalmente pela falta de apoio, muito mais afetivo do que financeiro, seja da família, seja do parceiro, para com a criação desse filho. Elas pareciam querer que essas pessoas estivessem do seu lado.
Sobre isso, Heidegger (1927/1990) afirma que nos relacionamos com os outros no modo do cuidado (Sorge), entendido de uma maneira ontológica. O cuidado não se refere somente a uma atitude de proteção e dedicação, isto é, não se reduz a um ato ou inclinação, ele precede todo comportamento e situação. O cuidado, em seu sentido ontológico, é o próprio ser-no-mundo, trata-se de ser/estar adiante e já no mundo. Esse cuidado se dá de dois modos, o da "ocupação" (Besorgen) e o da "preocupação" (Fursorge). O primeiro se refere ao cuidado com as coisas e objetos e o segundo revela o cuidado com os outros.
Iremos aqui nos referir ao cuidado no modo da "preocupação", que pode ocorrer de três formas: o da indiferença, o da substituição e o da anteposição. Quanto ao primeiro, trata-se da preocupação em seu modo cotidiano, quando nos relacionamos com o outro como se fosse um instrumento, isto é, fazemos uso dele enquanto tiver uma utilidade. No segundo, ocorre uma substituição do outro, pois se passa a assumir suas ocupações, tornando-o dependente, ou seja, se passa a tomar conta dele e a fazer tudo por ele. Essa seria uma forma de cuidar deficiente, pois não permite ao homem ser si próprio. Já o último modo não protege o homem, mas está junto dele e o liberta para que se volte para si mesmo. Esse seria o modo autêntico do cuidar, na verdade, seria o cuidado propriamente dito, em que desperta o homem para a possibilidade de poder ser si próprio.
Voltando para os depoimentos de Simone e Nísia, poderíamos dizer que seus familiares e/ou parceiros se relacionaram com elas no cuidado no modo da preocupação indiferente, tendo em vista que, quando elas engravidaram, a "utilidade" que tinham, seja enquanto filha, seja como namorada, desfez-se e essas pessoas, de alguma forma, afastaram-se. Nesse momento, as mulheres, em meio à angústia, viram-se desamparadas e sozinhas, tendo que tomar uma decisão muito difícil. A escolha, apesar de ter acontecido, ocorreu de modo impessoal, na medida em que elas parecem justificar o borto pela falta de apoio. Considerando o pensamento heideggeriano de que a escolha está permeada pelo nosso humor/afetação em relação às coisas e às pessoas que vêm ao nosso encontro no mundo, poderíamos dizer que, se essas relações estivessem permeadas pelo cuidado de anteposição, a escolha pelo aborto poderia refletir uma experiência mais própria da mulher, isto é, seria uma expressão mais genuína da experiência do poder ser-si-próprio da mulher.
3.3. Significados e projetos futuros após a experiência do aborto
Em nossa existência, o que nos move a viver é o sentido que damos à nossa vida. Esse sentido se revela por meio dos nossos sonhos e projetos. Estamos sempre nos projetando e traçando caminhos para a realização desses sonhos. Nessa unidade de sentido, as mulheres mostram quais são os seus projetos futuros após passarem pela experiência de realizar um aborto.
Os relatos, de uma forma geral, mostraram a valorização dessas mulheres pelos estudos e trabalho, colocando esse projeto como uma prioridade em suas vidas, para somente depois pensar num relacionamento amoroso e na maternidade. O desejo de ser mãe continuava a fazer parte dos seus projetos, mas elas disseram querer, em primeiro lugar, uma estabilidade afetiva e profissional. Na realidade, elas demonstraram um desejo de firmarem-se enquanto pessoa, independentemente da maternidade, pois, no fundo, sabiam que quando esta vem acaba por tomar conta de suas vidas. Apesar do discurso contemporâneo de uma conciliação entre a vida profissional e a doméstica, quando é chegada a hora da maternidade, as mulheres ainda priorizam os filhos e a família (Azevedo & Arrais, 2006; Barbosa & Rocha-Coutinho, 2007; Rocha-Coutinho, 2004). Podemos elucidar isso com a fala de Simone:
Quanto aos meus projetos futuros eu quero estruturar minha vida; sair da casa da minha mãe. Trabalhar... estudar... estudar... ter uma condição melhor pra poder pensar em ter filho. Pretendo ter outro filho, pretendo (...). (Simone)
Como falado anteriormente, segundo Heidegger (1927/1989), a vida é um projeto, isto é, o homem enquanto ser lançado no mundo possui uma pré-compreensão desse mundo, a partir do qual irá projetar-se em algumas possibilidades e não em outras. Nesse sentido, os relatos dessas mulheres revelaram como seus projetos estão atrelados aos valores e à cultura na qual estão inseridas. Os valores familiares ainda estão muito presentes nos seus discursos, sendo o próprio aborto também motivado naquele momento por não estarem num relacionamento estável.
O discurso das entrevistadas mostrou que a decisão de abortar era tão difícil que seria menos doloroso, e até mais aceitável socialmente, manter ou reatar seus relacionamentos, que naquele momento se mostravam instáveis, para levar a gravidez adiante e ter a criança. Mesmo sabendo que o relacionamento poderia não dar certo, parecia importante naquele momento ter o amparo do parceiro para ter esse filho. Sobre isso, Clarice falou:
Eu tava disposta a ter até um casamento assim, não um... um casamento falso mesmo só pra, não... não fazer meus pais passar tanta vergonha. (...) só a única coisa que eu quero é apenas um teto, um homem para o meu filho e para mim e só dois anos eu quero, dois anos é o máximo que eu quero... depois a gente se separa e fica tudo numa boa." (Clarice)
Essa fala de Clarice é bem característica da nossa cultura, principalmente a nordestina, especialmente pelo fato de ter um casamento para dar uma resposta à sociedade, mesmo que seja um casamento temporário e sem amor. Todavia, essa seria uma forma de preservar o nome da sua família, como ela mesma disse, pois não queria que seus pais passassem vergonha diante dos outros. Além disso, pesava também o fato do homem ser, além de provedor, aquele que dá segurança para a mulher, já que culturalmente o homem foi criado para ser independente; a mulher, não.
Como vimos, parece que o exercício da maternidade para essas mulheres só irá acontecer mediante um relacionamento afetivo estável. Isso também acontece pelo fato de essas mulheres não estarem dispostas a arcar com as implicações de serem mães solteiras, como disseram Clarice e Virgínia:
Ter um filho sem pai... sendo mãe solteira... por mais que eu faça o errado... mas não é essa vida que eu quero, meu futuro eu penso de outro jeito, penso de outra maneira, não quero, não quero que minha família já cresça desestruturada. (Clarice)
(...) e eu tinha o desejo de ter outro filho... eu não tinha o desejo de assumir outro filho sozinha.(Virgínia)
Ser mãe solteira, para essas mulheres, parecia representar naquele momento um investimento muito pesado, talvez pelo fato de os discursos contemporâneos exigirem um ideal de cuidado com os filhos. Desse modo, essas mulheres optaram por somente ter filho num contexto de uma relação estável, ou seja, numa família. É interessante ressaltar que todos os parceiros das mulheres entrevistadas disseram que assumiriam a paternidade, mas para elas isso não se mostrou suficiente.
Sobre esse aspecto, Maux e Dutra (2009) e Scavone (2008) afirmam que, mesmo com tantas mudanças no que se refere à realização da maternidade, é fato que esta ainda compromete consideravelmente a mulher, na medida em que a responsabilidade sobre os filhos recai muito mais sobre ela.
Além dessas implicações, vale salientar que a tradição de uma família nuclear na cultura brasileira e nordestina ainda é muito forte. A fala de Clarice reflete isso de forma bastante clara, quando ela diz que quer dar uma família para seu filho, parecendo ter a convicção (posição prévia) de que, se isso não acontecer, sua família será desestruturada. As mulheres, mesmo tendo uma independência financeira, não querem realizar essa maternidade sozinhas, querem compartilhar isso com um parceiro. Essas falas, como já comentado, parecem evidenciar um ideal de realização feminina que hoje passa pela realização profissional, pelo matrimônio e, por fim, pela maternidade.
Segundo Rocha-Coutinho (2004), a identidade feminina não mudou, ela só foi ampliada. Hoje a mulher não precisa necessariamente de um apoio financeiro do homem, mas parece que o apoio afetivo na hora de construir uma família ainda se faz necessário para ela. Em nossa cultura, a figura masculina ainda representa uma ideia de segurança e estabilidade para a mulher, principalmente na atualidade, em que as suas atribuições sociais aumentaram.
O aborto, como vimos, é um tema bastante estigmatizado e se encontra envolto pelos mais diversos tabus, valores e preconceitos, os quais faziam parte da vida das mulheres entrevistadas em seu imaginário, embora o aborto nunca houvesse sido cogitado enquanto uma possibilidade concreta. Nesse sentido, mostrou-se importante observar em seus relatos as implicações dessa experiência sobre os significados que tinham do aborto.
Clarice trouxe em sua fala a sua posição extremamente contrária ao aborto, mas a sua experiência parece ter mudado essa posição:
Eu era totalmente contra. Extremamente contra o aborto... mas eu era uma pessoa assim, que eu era contra muita coisa... muita coisa mesmo... e eu me vi no meu contra... eu me vi fazendo. Mas eu posso dizer, assim, que hoje eu não sou contra o aborto... eu não sou porque eu... eu tiro por mim, eu não sei a necessidade de tais pessoas (...). (Clarice)
As falas revelaram que se livrar de valores tão arraigados como os que envolvem a realização de um aborto, mesmo que elas o tenham praticado, ainda se mostra muito forte e difícil; no entanto, de alguma forma, essa experiência parece tê-las afetado. De fato, essas mulheres trouxeram as suas posições prévias construídas nas relações que estabeleceram no mundo, por estarem imersas numa trama de significados. Tudo isso contribuiu para constituir a forma como essas mulheres compreendiam a si mesmas e o mundo que as cerca.
De acordo com Heidegger (1927/1989), a facticidade em que nos encontramos constitui-nos e, em grande parte, define-nos, a partir do momento que nossas possibilidades e escolhas estão atreladas ao contexto em que nos encontramos. Todavia, esse filósofo afirma que o homem, enquanto ser-no-mundo, ao mesmo tempo que é transformado pelo mundo, também o transforma, sendo, portanto, capaz de ir além das possibilidades que a sua facticidade permite, criando novas.
O Dasein enquanto ser de abertura é capaz de transcender as contingências da sua facticidade e, partindo delas e da sua interação com elas, de reconstruí-las. Nesse sentido, o ser-aí, com a sua fluidez característica, pode, a partir de suas vivências no mundo, mudar o valor e o sentido que dá às coisas, assim como as mulheres desta pesquisa. A experiência do aborto parece de alguma forma ter modificado essas mulheres, as quais passaram a enxergar com mais clareza o que queriam para as suas vidas, suscitando uma maior motivação para a realização dos seus projetos e caminhando no sentido de um projeto de vida mais autêntico. No caso de Clarice, essa experiência trouxe um crescimento pessoal, como ela se referiu:
Então eu comecei a trabalhar mesmo... a me dedicar... eu passei a ser um pessoa, assim, mais responsável... (...). Então o meu comportamento mudou muito... digamos que da menina... é.... da menina metidinha, chatinha, se tornou uma mulher decidida. Foi uma evolução muito grande e muito rápida. (...). A experiência do aborto mudou minha vida, como eu falei pra você, hoje eu sou uma pessoa decidida.
3.4. Percepção do atendimento realizado pelos profissionais de saúde
A literatura aponta que a equipe de saúde, em sua maioria, não se encontra preparada, do ponto de vista ético e profissional, para receber uma mulher que provocou um aborto. Tecnicamente, o atendimento a essas mulheres é realizado, mas, no que se refere ao acolhimento, os estudos mostram que ainda impera o preconceito dos profissionais de saúde, o que faz com que essas mulheres sejam muitas vezes humilhadas ou recebam um atendimento diferenciado (Espírito-Santo & Vieira, 2007; Gesteira, Diniz e Oliveira, 2008; Motta, 2005). No entanto, os depoimentos das participantes da nossa pesquisa revelaram outra percepção a respeito desse atendimento, como ilustram as falas de Clarice, Simone e Nísia:
Eles disseram que era uma decisão minha... que eles não iriam me julgar... que só eu sabia o que eu estava passando... (...) de uma certa maneira... ela foi muito legal comigo, ela tipo assim... ela deixou de ser a médica pra ser a humana. (Clarice)
Já ouvi falar de maus-tratos... muita gente falou... mas eu não me senti não. A. T. [médica] é um amor de pessoa. (Simone)
O pessoal lá me atendeu bem... porém como é uma maternidade o pessoal ainda está aprendendo... tanto é que eu servi de cobaia... (...). Não sofri nenhum tipo de preconceito. (Nísia)
Os relatos indicam que elas não se sentiram discriminadas em relação ao aborto. As falas de Clarice e Simone revelam uma postura humana e acolhedora por parte da médica que lhes prestou atendimento. Já a fala de Nísia demonstra um mau atendimento, pelo fato de o local ser uma maternidade-escola, mas não revela ter sofrido preconceito por ter realizado um aborto. Tal percepção talvez se deva a uma nova postura dos profissionais, preconizada pelo projeto de humanização do SUS, que promove uma sistematização do acolhimento e atendimento aos pacientes, no sentido de enxergar o indivíduo como pessoa e não somente como doente, o que foi captado por Clarice neste trecho:
(...) não sei se pelo fato das leis mudarem tanto e que qualquer coisinha já é um processo, já é uma coisa. Os médicos hoje eles não falam... todos os que eu fui realmente nenhum falou nada só diziam: "é sua a decisão, não sou contra nem a favor!" A língua de todos pareciam que todos eram, tipo assim... obrigados a falar a mesma língua, em nenhum momento... nenhum falou nada, ao contrário (...). (Clarice)
O projeto de humanização e a própria norma técnica de atenção humanizada ao abortamento do SUS parecem promover um discurso comum entre os profissionais de saúde, no sentido de propiciar um maior acolhimento e orientação às mulheres em qualquer situação de abortamento, o que parece ser evidenciado no atendimento da maternidade-escola à qual Clarice se refere.
Apesar desse discurso, a realidade dos atendimentos no SUS mostra que esse acolhimento nem sempre é possível, devido à falta de infraestrutura mínima, como material, leitos, profissionais, entre outros recursos. Devido a essa situação, acaba ocorrendo uma postergação ou uma priorização dos atendimentos; assim, algumas mulheres que precisam passar pela curetagem são mandadas para casa, sendo-lhes pedido que retornem somente no outro dia, como mostra esta fala de Simone:
Eu filmei pra provar pra eles, como eu tava sangrando... porque geralmente a pessoa chega lá sangrando e eles dizem: "Aaah! É sangramento básico, então volta pra casa". (Simone)
Simone, por ser da área de saúde, parecia prever o que lhe aguardava na maternidade, então foi preparada para que não lhe mandassem embora. Ela precisou filmar o próprio aborto para conseguir ficar internada.
Talvez a priorização dos atendimentos não se deva necessariamente ao estigma sobre o aborto, mas a uma falha da própria infraestrutura de organização do SUS, que acaba por provocar esse tipo de prioridade. Estudos como o de Narchi (2010), o qual realizou entrevistas com profissionais de saúde, mostram que, segundo eles, a atenção humanizada é dificultada devido à falta de estrutura física adequada.
Essa falta de estrutura foi bem observada no período de realização das entrevistas da pesquisa de Nomura et al. (2011), a qual originou o presente artigo. Imperavam na maternidade a falta de leitos e de privacidade, a longa espera e a pouca orientação no que se refere ao estado de saúde dessas mulheres, bem como a não inclusão delas em programas de planejamento familiar. Isso também foi evidenciado em outros estudos, como o de Motta (2005), realizado em uma maternidade da cidade de Natal. Esses fatos não condizem com o previsto pela Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento do SUS5, a qual tem como objetivo um atendimento digno e de qualidade às mulheres em qualquer situação de abortamento.
Essa unidade de sentido nos leva a pensar que talvez haja, por parte da equipe de saúde, uma disponibilidade para um cuidado humanizado, que, no entanto, acaba por esbarrar em uma questão estrutural bem maior referente ao sistema público de saúde, como já mencionamos neste trabalho. O próprio lema do SUS, o de oferecer uma saúde de qualidade para todos, na prática, não acontece. A lógica do serviço – baseada na quantidade – deixa pouco espaço para que o acolhimento exista, tornando o atendimento mecanizado e tecnicista. Some-se a isso o fato de que é praticamente impossível realizar a atenção ao abortamento segundo os preceitos da norma técnica do SUS.
Nesse sentido, cabe pensarmos sobre em qual noção de cuidado as práticas de saúde se baseiam, pois, ao que parece, o saber técnico é considerado maior do que a própria pessoa que ali espera ser cuidada. O campo da saúde poderá promover a minimização do sofrimento dessa mulher se mudar de atitude em relação ao aborto. Essa questão perpassa a própria formação desses profissionais, que em nada favorece uma postura de acolhimento e reconhecimento do outro enquanto pessoa.
O cuidado que deveria perpassar as práticas de saúde, segundo Ayres (2004), é aquele que permita que o paciente busque em sua totalidade existencial os sentidos do que se passa com ele, não apenas para a sua saúde, mas também para o seu próprio projeto de vida. Para tanto, os profissionais de saúde precisam estar imbuídos de uma abertura para ouvir não somente o significado, mas também o sentido da queixa que traz uma pessoa àquele espaço. Essa atitude também é ressaltada pela própria Norma Técnica, ao tratar do acolhimento.
Diante disso, não podemos deixar de considerar que, apesar de as mulheres deste estudo não se referirem à discriminação ou a maus-tratos por parte da equipe de saúde em relação ao aborto, foi observado durante a coleta de dados desta pesquisa que a equipe apresentou um despreparo quanto ao acolhimento das situações de abortamento. Os profissionais demonstraram uma grande dificuldade em compreender as motivações as mulheres para realizar um aborto, como também o fato de elas porem em risco suas vidas. Diante dessas dificuldades, ficou evidente que esses profissionais não possuem um aprofundamento das implicações sociais, psicológicas e legais do aborto, nem mesmo um espaço para discussão a respeito desses aspectos, apesar de trabalharem cotidianamente com essa temática.
Os profissionais da saúde necessitam, portanto, de sensibilização e capacitação para melhor lidar com o abortamento, o que poderá dar-se por meio de um maior conhecimento sobre a história do aborto, seu impacto na saúde, sua legislação e suas implicações na vida de uma mulher, como também propõe a Norma Técnica:
Por envolver questões subjetivas de quem atende e de quem é atendida, o tema do abortamento pressupõe sensibilização da equipe de saúde, visando à mudança de postura, de forma continuada. Nesse sentido, podem ajudar: discussões coletivas, supervisões clínicas, troca de preocupações, confronto de atitudes e convicções implícitas no atendimento, reuniões e oficinas de sensibilização e capacitação sobre sexualidade e práticas reprodutivas. (Ministério da Saúde, 2005, p. 19)
Apesar disso, frisemos novamente que esse cuidado sob novas bases não poderá concretizar-se de forma ampliada se não ocorrerem mudanças estruturais no modo de funcionamento da saúde pública no Brasil, como também se não for oferecido um espaço tanto na formação quanto na prática dos profissionais de saúde, no qual estes possam problematizar e refletir sobre o seu fazer, sobre os dilemas éticos e dificuldades envolvidos nesse campo. Sem essas mudanças, corre-se o risco de não saírem do papel normas como essas ou inúmeras outras.
4. Considerações finais
De modo geral, a pesquisa apontou que a vivência do aborto está bastante atrelada aos papéis femininos construídos cultural e socialmente. Essa experiência não poderia ser diferente, tendo em vista que esses papéis também constituem as mulheres. Embora a forma como cada uma delas enfrentou o aborto possa ter sido semelhante, suas motivações e seus sentidos revelaram-se singulares.
A pesquisa revelou que o aborto é uma das muitas possibilidades que permeiam a existência de uma mulher, mesmo que histórica, cultural e legalmente seja considerado "errado" pela sociedade e pela própria mulher que o realiza. Como diz Critelli (1996), não pertencemos a nada e a coisa alguma de forma fixa, nós estamos, a partir da nossa afetação, sempre em mudança. Então o aborto, enquanto uma possibilidade real e fática na vida das mulheres, precisa ser encarado para que, ao invés da intolerância, haja uma compreensão e um espaço de acolhimento. Não propomos a aceitação do aborto, mas uma flexibilização dos valores e crenças da sociedade que muitas vezes, de tão rígidos, nos impedem de enxergar e compreender o sofrimento de uma mulher ao tomar essa decisão.
O que estamos sugerindo é uma mudança de atitude, uma abertura para o diferente, mesmo que não concordemos com a situação. Tal mudança em relação ao aborto poderá ajudar essas mulheres a minimizar o seu sofrimento e até a ressignificá-lo, assumindo de forma mais consciente e responsável a sua escolha. No campo da saúde, cabe uma maior problematização das políticas públicas de atenção ao abortamento, devendo os profissionais assumir uma atitude que é, acima de tudo, ética.
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1 Essa expressão indica a unidade e inseparabilidade entre homem e mundo e vice-versa, não sendo o mundo um simples receptáculo no qual o homem se encontra, mas a sua própria extensão (Heidegger, 1927/1989).
2 Decreto lei nº 2848/40.
3 A facticidade é o já estar sempre lançado no mundo, encontrando-se em determinado corpo e envolvido por determinadas condições (Critelli, 1996).
4Chamado da existência para a realização das suas possibilidades mais próprias.
5 Ver em: Ministério da Saúde. Norma técnica: atenção humanizada ao abortamento. Brasília, 2005. Disponível em: <http://www.aids.gov.br/data/Pages/LUMIS66E64764PTBRIE.htm>. Acesso em: 26 out.