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Natureza humana

 ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.17 no.1 São Paulo  2015

 

ARTIGOS

 

A época das imagens de homem1 Foucault leitor da Antropologia de Kant

 

The era of the pictures of man Kant's Anthropology: A study by Foucault

 

 

Suze Piza

Universidade Federal do ABC (UFABC)
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Michel Foucault defende a tese de que o homem é uma invenção recente e com morte anunciada. Neste artigo, apresentaremos a leitura que Foucault fez da Antropologia do ponto de vista pragmático, de Kant, sua Tese complementar, como fundamento para a tese de nascimento e morte do sujeito. A filosofia de Foucault será apresentada como um capítulo do kantismo, uma crítica da razão antropológica que tem raízes na leitura que Heidegger faz de Kant. Mais do que identificar influências nas produções dessas filosofias, interessa-nos fundamentar a complexa problemática antropológica que atravessa a filosofia contemporânea e também a psicanálise.

Palavras-chave: Foucault; Kant; Heidegger; morte do sujeito; antropologia.


ABSTRACT

Michel Foucault defends the thesis that man is a recent invention and with a foretold death. In this article, we will present a study that Foucault carried out on Kant's Anthropology from a Pragmatic Point of View, and his complementary thesis, as the basis of the thesis of the birth and death of the subject in modernity. Foucault's philosophy will be presented as a chapter of Kantianism, a critique of anthropological reason that is rooted in Heidegger's study on Kant. In addition to identifying what influenced the creation of these philosophies, we seek to understand the complex anthropological problems that overlap contemporary philosophy and psychoanalysis.

Keywords: Foucault; Kant; Heidegger; death of the subject; anthropology.


 

 

Alívio, no entanto, e profundo apaziguamento, o de pensar que o homem é só uma invenção recente, uma figura que não tem dois séculos, uma simples dobra de nosso saber, e que ele desaparecerá a partir do momento em que este encontre uma nova forma. Michel Foucault, As palavras e as coisas.

A tese de Foucault do desaparecimento do sujeito, apresentada em As palavras e as coisas, tem seu fundamento na leitura que o filósofo faz da Antropologia de Kant. Em 1961, Michel Foucault defende como tese complementar à sua tese principal, Histoire de la Folie à l'âge classique, uma introdução à Antropologia do ponto de vista pragmático, de Kant, bem como a tradução da obra para o francês.

A tese2, ainda pouco conhecida entre os estudiosos de Kant e de Foucault3, apresenta algumas questões que serão retomadas diversas vezes na filosofia contemporânea. Além de o conteúdo ser objeto privilegiado para pesquisas em filosofia, há especialmente questões de cunho metodológico no mínimo instigantes para aqueles que se interessam pelas filosofias desses autores e, sobretudo, para aqueles que se interessam pela produção do próprio pensamento filosófico.

A razão dessa afirmação é que, além de o texto de Foucault sobre a obra kantiana revelar uma série de pontos que será objeto de interesse de reflexão de toda a obra foucaultiana, ele ainda nos revela uma dada forma de se fazer filosofia: indica a maneira pela qual um filósofo pode usar o outro sem se subordinar ao conteúdo do pensamento desse outro; é um poder valer-se do outro sem reproduzi-lo ou abandoná-lo. Essa forma de fazer filosofia permite que se evidenciem procedimentos de produção filosófica.

Toda a Tese complementar de Foucault resulta em uma crítica às antropologias filosóficas contemporâneas e à própria instauração dessa temática antropológica no pensamento ocidental. Foucault indica Kant como o precursor da problemática sobre o homem ter aparecido e ter sido posto em termos antropológicos filosóficos. O posicionamento contra as antropologias mostra-nos um Foucault marcadamente influenciado por Nietzsche. Considerando tal influência, a crítica à antropologia passa a ser entendida por muitos estudiosos como uma crítica a Kant e ao que a filosofia kantiana inauguraria na modernidade vigente em nossos dias4.

Para sustentar sua crítica à supremacia antropológica do discurso ocidental, Foucault se refere a duas figuras da epistémê moderna: a analítica da finitude e a presença das ciências humanas. Ambas se formaram há cerca de dois séculos5, quando se começou a pensar o finito a partir do finito, e não mais do infinito6. Na evidenciação de que o homem é um objeto recente, portanto, está calcada a tese de desaparecimento desse mesmo homem, referência constante no discurso de Foucault. Indicando a todo o momento que objetos nascem ou surgem dentro de determinadas condições, parece óbvio a Foucault defender que, surgindo novas condições, outros objetos poderiam aparecer e os primeiros desaparecerem. É ao desaparecimento do sujeito moderno, tal como o concebeu a filosofia e os outros saberes científicos, que Foucault se refere. Um homem que é sujeito e objeto de conhecimento. Este apareceu sobre determinadas condições e diante de outras condições outros objetos surgirão.

Embora esteja clara a crítica à antropologia e à vigência desse discurso, o tema "homem" e, consequentemente, o campo antropológico e a noção de sujeito e de subjetividade acompanharão Foucault em todo o seu percurso filosófico. Na introdução ao texto de Binswanger, "Le Rêve et l'existence", Foucault afirma que o tema das pesquisas de uma antropologia é o "fato humano", entendendo por "fato" o conteúdo real de uma existência que se vive e se experimenta, se reconhece ou se perde em um mundo que é, ao mesmo tempo, a plenitude de seu projeto e o "elemento" de sua situação (Foucault, 2002). A antropologia não é filosofia nem psicologia, mas recusá-la por não ser nem uma nem outra seria ignorar o sentido originário do próprio projeto antropológico. Ele afirma:

Pareceu-nos valer a pena seguir, um instante, a marcha dessa reflexão, e pesquisar com ela se a realidade do homem não é acessível somente fora de uma distinção entre o psicológico e o filosófico; se o homem em suas formas de existência não seria o único meio de alcançar o homem [...]. Certamente, esse encontro [entre a ontologia e a antropologia] [e] o estatuto que afinal se deve conceder às condições ontológicas da existência causam problemas. Mas reservaremos a outros tempos abordá-los. (Foucault, 2002, p. 73)

Há um interesse de Foucault pelo texto de Binswanger e por sua tese que vai e vem das formas antropológicas às ontológicas7 e indica uma espécie de via real da antropologia em que se vai diretamente às condições reais da existência e a seus desenvolvimentos e conteúdos históricos. Tenta-se alcançar (e parece ser isso que interessa a Foucault) o ponto em que se articulam as formas e as condições da existência, ou seja, o homem. Binswanger atrai Foucault pelo conteúdo e pela postura de não criar um abismo a priori entre a ontologia e a antropologia. O interesse pelo projeto fica evidente na promessa de Foucault de explorar esse tema em outra obra na qual situaria a análise existencial no desenvolvimento da reflexão contemporânea sobre o homem, uma antropologia que se oporia a todo positivismo psicológico e se situaria em um contexto ontológico8.

A antropologia "constitui talvez a disposição fundamental que dirigiu o pensamento filosófico desde Kant até nós", assegura Michel Foucault (2007, p. 473). Isso se evidencia quando se exploram os capítulos IX e X de As palavras e as coisas. Está ali a conhecida tese de Foucault de que Kant acorda do sono dogmático, mas cai no sono antropológico, e que a instauração desse novo sono resultaria no nascimento das ciências humanas e, consequentemente, num dado tipo de homem.

Seguindo a argumentação de Foucault, Kant é um de três momentos que configuram o acontecimento-aparecimento do homem, três grandes formas que a analítica da finitude tomou, a saber: a dobra entre o empírico e o transcendental, o cogito e o impensado e o retrocesso e o retorno da origem. Desde o momento em que a representação perdeu o poder de determinar por si só o jogo da análise e da síntese, isto é, com o desaparecimento da epistémê clássica, a antropologia como analítica da finitude converteu-se nessa disposição fundamental. Apareceu, assim, essa forma de reflexão mista em que os conteúdos empíricos (do homem vivente, trabalhador e falante) são submissos em um discurso a um campo transcendental.

Como afirma Foucault em As palavras e as coisas:

A antropologia como analítica do homem teve indubitavelmente um papel constituinte no pensamento moderno, pois que em grande parte ainda não nos desprendemos dela. Ela se tornara necessária a partir do momento em que a representação perdera o poder de determinar, por si só e num movimento único, o jogo de suas sínteses e de suas análises. Era preciso que as sínteses empíricas fossem asseguradas em qualquer outro lugar que não na soberania do "Eu penso". Deviam ser requeridas onde precisamente essa soberania encontra seu limite, isto é, na finitude do homem – finitude que é tanto a da consciência quanto a do indivíduo que vive, fala, trabalha. Kant já formulara isso na Lógica quando acrescentara à sua trilogia tradicional uma última interrogação: as três questões críticas (que posso eu saber? que devo fazer? que me é permitido esperar?) acham-se então reportadas a uma quarta e postas, de certo modo, "à sua custa": Was ist der Mensch? (Foucault, 2007, p. 471)

As palavras e as coisas é uma obra em que Foucault se dedica a tematizar particularmente o homem, compreendido como uma estranha "figura do saber", assim como o tipo de conhecimento proporcionado por essa figura. Trata-se não mais de explicitar as condições de possibilidade desse ou daquele saber específico, mas, antes, de mapear a epistémê fundante do saber ocidental em sua forma moderna, de explicitar, por conseguinte, as condições de possibilidade da epistémê moderna.

Foucault analisa os sistemas de conhecimento, sendo que o primeiro deles é o predominante até o século XVI, em que tudo tem como princípio a semelhança, seja por contraste, seja por analogia, por contiguidade ou similitude, por simpatia ou antipatia. É como se não houvesse descontinuidade entre as palavras e as coisas, entre as palavras e o mundo: o conhecimento seria definido com base no princípio da semelhança, do semelhante ao que lhe é semelhante. A interpretação da palavra escrita é equivalente ao conhecimento do real. Ao interpretar os textos, interpretam-se as coisas; a verdade dos textos é a verdade das coisas, ao menos em termos similares, pois há um nexo entre o signo e a coisa. Nesse sistema de conhecimento, o homem é uma espécie de resumo, um espelho da natureza. Como diz Nunes (2008, p. 64): uma natureza terrestre, reflexo do celeste.

O segundo sistema de conhecimento aparece no século XVII, quando é instaurado o domínio da representação e não mais da semelhança. Aqui se torna manifesta a descontinuidade entre a linguagem e o real9, uma vez que

[...] as similitudes decepcionam, conduzem à visão e ao delírio; [...] as palavras erram ao acaso, sem conteúdo, sem semelhança para preenchê- las; não marcam mais as coisas; dormem entre as folhas dos livros, no meio da poeira. (Foucault, 2007, p. 65)

Na epistémê da Idade Clássica, a ordem era vigente. A partir de Descartes, Locke e Hume, os critérios de realidade passaram a ser outros. Seja como evidência do pensamento, seja como sensação, Foucault afirma que a representação passou a ser o traço da união entre as palavras e as coisas. Até o fim do século XVIII, a relação essencial entre as palavras e as coisas eram as representações, sob a forma de ideias simples ou complexas, de entidades mentais. Como os signos não se fundavam mais na ordem prévia das coisas, era necessário ordenar, inserindo as coisas em um quadro hierarquizado. É no cerne desse ordenamento que aparecerá a noção de representação: a palavra que tem significado em relação a uma ideia ou imagem que lhe é correspondente e se vincula ao mundo representado. Há outra positividade em vigência ali, e é isso que Foucault adverte. Uma positividade que expressa um saber classificatório que possibilitará o aparecimento de uma gramática geral (ciência da ordem no domínio das palavras), uma história natural (ciência da ordem no domínio dos seres) e uma análise das riquezas (ciência da ordem no domínio das necessidades). Em síntese, todo o real poderá ser representado.

Em fins do século XVIII, com a modernidade10, surge mais um solo epistemológico. A biologia, a linguística e a economia são ciências fundamentais nesse momento. Entre elas, surgirá as ciências humanas, disciplina de objeto ambíguo que tem contornos ora empíricos, ora transcendentais. As ciências humanas nascem mergulhadas em uma aporia. A realidade humana é incompatível com a regularidade das representações. A sociologia, a história e a psicologia são quase ciências e se apropriam dos conceitos das ciências naturais sem, contudo, ter um objeto equivalente. As ciências humanas, segundo Foucault, estarão num lugar confuso, uma vez que se utilizam, por um lado, da matemática e da física numa primeira dimensão; da linguística, da biologia e da economia numa segunda dimensão; e; ainda; participam em alto grau da reflexão filosófica, visto que o objeto dessas ciências, o homem, é um par empírico-transcendental: uma figura epistêmica que é, ao mesmo tempo, sujeito do conhecimento estruturalmente carregado de representações e que deve tomar a si mesmo como objeto do conhecimento, fazendo-se conhecido.

A reflexão filosófica que alimenta tal epistémê moderna teria sido inaugurada com Kant e, como diz Foucault:

Essa questão, como se viu, percorre o pensamento desde o começo do século XIX: é ela que opera, furtiva e previamente, a confusão entre o empírico e o transcendental, cuja distinção, porém, Kant mostrara. Por ela, constituiu-se uma reflexão de nível misto que caracteriza a filosofia moderna. A preocupação que ela tem com o homem e que reivindica não só nos seus discursos como ainda no seu páthos, o cuidado com que tenta defini-lo como ser vivo, indivíduo que trabalha ou sujeito falante, só para as boas almas assinalam o tempo de um reino humano que finalmente retorna; trata-se de fato – o que é mais prosaico e menos moral – de uma reduplicação empírico-crítica pela qual se tenta fazer o homem da natureza, da permuta ou do discurso como fundamento de sua própria finitude. (Foucault, 2007, p. 471)

A reflexão filosófica traz esse homem como ser vivo que trabalha e fala: um homem que é fundamento de sua própria finitude. Na epistémê moderna, desaparece o princípio da representação e esta, na virada do século XVIII para o XIX, não assegura mais as ordens possíveis das coisas. A ordem será substituída pela história, que será o modo de apresentação das empiricidades que possibilitará o conhecimento destas. Nesse solo, a vida, a produção e a linguagem serão postas em outras bases e, portanto, esse solo será fundamento para o surgimento do homem: esse é finito (histórico) e é requerido como objeto que vive, produz e fala.

O anúncio da morte próxima do homem, do desaparecimento desse "objeto" e do esgotamento desse conceito, está diretamente relacionado ao fato de que esse homem é sujeito e objeto do conhecimento. Isso o torna essa estranha figura compreendida como atividade de síntese, que reúne e organiza as coisas com nexos e organização própria. Será ao homem que se referirão as coisas. No entanto, esse mesmo homem é a condição de possibilidade de todo o existente. É como se se tentasse pensar o impensado, pois se tenta aproximar o homem de si mesmo e fazer com que se conheça. Foucault adverte que há aí uma aporia instransponível, pois essa figura é ambígua: é sujeito empírico e sujeito transcendental. Há ainda o fato de que as ciências biológicas e socioculturais o analisarão como objeto, e a filosofia o analisará, muitas vezes, como fundamento de todo e qualquer objeto.

Para Foucault, antes dessas condições de possibilidade, não era possível nascer o homem. Na filosofia, Kant é, sem dúvida, aquele que proporcionou o horizonte epistêmico próprio à modernidade, pois agora se trata de perguntar pelas condições de possibilidade das próprias representações que são fundamento de todo conhecimento possível – e tais condições se encontrarão no próprio sujeito. Kant trata de fixar com clareza as fronteiras entre essas duas formas de análise, a empírica e a transcendental11.

Essa distinção posta pelo filósofo será ignorada pelo pensamento que o sucede12, e, com isso, a filosofia que teve a função de livrar o pensamento do sono dogmático da metafísica adormecerá Kant em um novo sono: o sono antropológico. Segundo Foucault:

Nessa Dobra, a função transcendental vem cobrir, com sua rede imperiosa, o espaço inerte e sombrio da empiricidade; inversamente, os conteúdos empíricos se animam, se refazem, erguem-se e são logo subsumidos num discurso que leva longe sua presunção transcendental. E eis que nessa Dobra a filosofia adormeceu num sono novo; não mais o do dogmatismo, mas o a da antropologia. Todo conhecimento empírico, desde que concernente ao homem, vale como campo filosófico possível, em que se deve descobrir o fundamento do conhecimento, a definição de seus limites e, finalmente, a verdade de toda a verdade. A configuração antropológica da filosofia moderna consiste em desdobrar o dogmatismo, reparti-lo em dois níveis diferentes que se apoiam um no outro e se limitam um pelo outro: a análise pré-crítica do que é o homem em sua essência converte-se na analítica de tudo o que pode dar-se em geral à experiência do homem. (Foucault, 2007, pp. 471-472)

Dessas considerações, surge a afirmação contundente de Foucault de que o homem não existia até o fim do século XVIII. O leitor familiarizado com o pensamento de Foucault compreende que, quando ele afirma em As palavras e as coisas que o homem não existia até o fim do século XVIII e que provavelmente deixará de existir nos próximos séculos, ele está se referindo ao homem como objeto do conhecimento (das ciências humanas), para, na sequência, se tornar, em nossos dias, sujeito existencial. É importante observar que o homem que surgiu e é tomado como objeto pelas ciências humanas não foi objeto de uma ciência clássica do homem, mas de uma ciência da natureza: o ser humano foi classificado na enciclopédia e só depois considerado como objeto para as ciências humanas (Nunes, 2008, p. 67).

A morte do homem, anunciada por Foucault, dependeria do despertar do sono antropológico em que está o pensamento ocidental e, portanto, da concretização do projeto crítico ou de sua atualização:

Para despertar o pensamento de tal sono – tão profundo que ele o experimenta paradoxalmente como vigilância, de tal modo que confunde a circularidade de um dogmatismo que se desdobra para encontrar em si mesmo seu próprio apoio com a agilidade e a inquietude de um pensamento radicalmente filosófico – para chamá-lo às suas mais matinais possibilidades, não há outro meio senão destruir, até seus fundamentos, o "quadrilátero" antropológico. Sabe-se bem, em todo caso, que todos os esforços para pensar de novo investem precisamente contra ele: seja porque se trate de atravessar o campo antropológico e, apartando-se dele a partir do que ele enuncia, reencontrar uma ontologia purificada ou um pensamento radical do ser; seja ainda porque, colocando fora de circuito, além do psicologismo e do historicismo, todas as formas concretas do preconceito antropológico, se tente reintegrar os limites do pensamento e reatar assim com o projeto de uma crítica geral da razão13. (Foucault, 2007, p. 472, grifo nosso)

Foucault afirma:

Talvez se devesse ver o primeiro esforço desse desenraizamento da antropologia ao qual, sem dúvida, está votado o pensamento contemporâneo, na experiência de Nietzsche: através de uma crítica filológica, através de uma certa forma de biologismo, Nietzsche reencontrou o ponto onde o homem e Deus pertencem um ao outro, onde a morte do segundo é sinônimo do desaparecimento do primeiro, e onde a promessa do super-homem significa, primeiramente e antes de tudo, a iminência da morte do homem. Com isso Nietzsche, propondose esse futuro, ao mesmo tempo como termo e como tarefa, marca o limiar a partir do qual a filosofia contemporânea pode recomeçar a pensar; ele continuará sem dúvida, por muito tempo, a orientar seu curso. Se a descoberta do Retorno é, realmente, o fim da filosofia, então o fim do homem é retorno do começo da filosofia. Em nossos dias não se pode mais pensar senão o vazio do homem desaparecido. Pois esse vazio não escava uma carência; não prescreve uma lacuna a ser preenchida. Não é mais nem menos que o desdobrar de um espaço onde, enfim, é possível de novo pensar. A antropologia constitui talvez a disposição fundamental que comandou e conduziu o pensamento filosófico desde Kant até nós. Disposição essencial, pois que se faz parte de nossa história; mas em via de dissociar sob nossos olhos, pois começamos a nela reconhecer, a nela denunciar de um modo crítico, a um tempo, o esquecimento da abertura que a tornou possível e o obstáculo tenaz que se opõe obstinadamente a um pensamento por vir. A todos que pretendem ainda falar do homem, de seu reino e de sua liberação, a todos formulam ainda questões sobre o que é o homem em sua essência, a todos os que pretendem partir dele para ter acesso à verdade, a todos os que em contrapartida, reconduzem todo conhecimento às verdades do próprio homem, a todos os que não querem formalizar sem antropologizar, que não querem mitologizar sem desmistificar, que não querem pensar sem imediatamente pensar que é o homem quem pensa, a todas essas formas de reflexão canhestras e distorcidas, só se pode opor um riso filosófico – isto é, de certo modo, silencioso. (Foucault, 2007, pp. 472-473, grifo nosso)

Na dobra do empírico e do transcendental, a filosofia teria entrado no sono antropológico: todo conhecimento empírico que concerne ao homem vale como campo filosófico possível em que se poderia descobrir o fundamento do conhecimento, a definição de seus limites e a verdade. É nessa dobra que está a delimitação do terreno em que germinaram as ciências humanas. No ser do homem estaria o conhecimento do que faz possível o conhecimento. Por um lado, aquelas formas de análise que se dirigem ao corpo (estudos da percepção, dos mecanismos sensoriais, dos esquemas neuromotores) darão lugar a uma espécie de estética transcendental em que o conhecimento tem uma natureza. Por outro lado, se instaura uma espécie de dialética transcendental que enuncia condições históricas, sociais e econômicas do conhecimento. Essas análises não se pensam como mero conhecimento, mas supõem uma crítica. Nietzsche seria o primeiro esforço para desenraizar o pensamento da antropologia: despertar o pensamento de seu sono antropológico. Mas é apenas com uma crítica geral da razão antropológica, como antes se fez com a razão metafísica, que ocorrerá o novo despertar e que tal esforço seria efetivado.

O que poderíamos afirmar até aqui, segundo nossa própria rememoração das teses de Foucault em As palavras e as coisas? Poderíamos afirmar uma recusa clara da antropologia e de seus impactos na forma pela qual vivemos e nos concebemos. Há na obra de Foucault como um todo uma polêmica constante com o humanismo que, segundo ele, teria brotado do solo antropológico. Mas queremos chamar a atenção para o fato de que, em As palavras e as coisas e, especialmente, em A arqueologia do saber, há a premissa metodológica de desantropologizar a história, e essa proposta, apesar de ser contra Kant ou contra o kantismo de algum modo, é formalmente kantiana, pois o procedimento de Foucault de limpar todo o discurso de qualquer resquício antropológico é análogo ao projeto de uma crítica da razão quando Kant limpa todo o pensamento (nos limites do conhecimento) de toda a metafísica. A crítica é mantida por Foucault, entretanto, com outros objetivos.

A forma de realizar essa crítica também é similar, pois, se Kant introduz na Crítica da razão pura a categoria de fenômeno – que impossibilitará que se conceba o conhecimento além do fenomênico, impedindo na reflexão que se conceba um princípio para além do sujeito –, Foucault introduzirá a categoria da descontinuidade, impossibilitando que, a partir daí14, se veja, se conceba a história além do percebido, impedindo na reflexão que se conceba um princípio unificador para além da história. Afinal, a noção de uma história contínua é correlação indispensável da função fundadora de um sujeito.

O pensamento foucaultiano foi muitas vezes qualificado de antiantropológico, e a categoria de descontinuidade serve para reforçar essa qualificação – e não é difícil concordar com ela. Mas a pergunta que propomos é: ser antiantropológico insere Foucault em uma antikantismo? Certamente, não. Além do mais, como afirmamos anteriormente, esse é um pensamento antiantropológico em que o homem, o sujeito, é tema recorrente. Foucault trata do contemporâneo, e a contemporaneidade é atravessada por essa figura paradoxal recentemente inventada. O problema de Foucault não é antropológico, porém, o problema do sujeito, mais especificamente da forma-sujeito, é:

Tomar como fio condutor de todas essas análises [referindo-se às suas obras] a questão das relações entre o sujeito e a verdade15 implica certas escolhas de método. E, inicialmente, um ceticismo sistemático em relação a todos os universais antropológicos, o que não significa que todos eles sejam rejeitados de início, em bloco e de uma vez por todas, mas que nada dessa ordem deve ser admitido que não seja rigorosamente indispensável; tudo o que nos é proposto em nosso saber, como sendo de validade universal, quanto à natureza humana ou às categorias que se podem aplicar ao sujeito, exige ser experimentado e analisado [...]. A primeira regra do método para este tipo de trabalho é, portanto, esta: contornar tanto quanto possível, para interrogá-los em sua constituição histórica, os universais antropológicos16 (e, também, certamente, os de um humanismo que se defenderia os direitos, os privilégios e a natureza de um ser humano como verdade imediata e atemporal de um sujeito) (Foucault, 2010, p. 237, grifo nosso)

Como fica indicado, o antiantropologismo e a crítica a Kant não representarão uma não relação com a antropologia, muito menos uma não relação com Kant, ao contrário: percebemos no detalhe que a filosofia foucaultiana está inserida, sem a menor dúvida, na tradição kantiana, e a filosofia de Kant, como modelo da filosofia de Foucault. Kant faz uma crítica da razão pura, da razão prática, do juízo, e Foucault faz, dentre outras17, uma crítica da razão antropológica. Como não dizer que o princípio que permitirá essa crítica, a descontinuidade, é diametralmente oposto à noção de progresso para o melhor, tal como vemos em Kant em sua teoria da história? As fôrmas foucaultianas de fazer filosofia são kantianas, e é preciso colocar isso como questão.

 

1) A leitura de Foucault da Antropologia do ponto de vista pragmático, de Kant

A trajetória da questão Was ist de Mench? no campo da filosofia se completa na resposta que a recusa e a desarma: der Übermensch [o além-do-homem].

Michel Foucault, Gênese e estrutura da Antropologia de Kant.

A presença de Kant na filosofia de Foucault tem sua primeira sustentação teórica no trabalho que Foucault faz em sua Tese complementar de doutorado. Foucault apresenta seu trabalho filosófico pela primeira vez como uma análise histórica dos diferentes modos de subjetivação em uma história da loucura e em uma leitura da obra de Kant. Esse foi o ponto de partida de seu percurso filosófico. Dessa forma, fica evidente que o sujeito, eixo de seu caminho histórico-filosófico, foi apresentado desde o início. Como afirmamos anteriormente, isso não caracteriza a filosofia de Foucault como uma antropologia – nem no sentido de uma antropologia filosófica, nem de uma antropologia científica. Há, sim, um afastamento da antropologia, tal como era praticada no contexto intelectual em que se formou Foucault. Mas isso não significa um afastamento do tema "homem".

A introdução à Antropologia do ponto de vista pragmático, com sua tradução para o francês (Tese complementar) já é um trabalho arqueológico18 no texto de Kant, colocando a problemática antropológica já nos textos pré-críticos e demonstrando a pertença desse texto ao próprio projeto crítico de Kant. A intenção com esse movimento de escavação no texto é indicar que, apesar de a obra Antropologia do ponto de vista pragmático ter sido produzida em sua versão final em 1798, esse texto não é uma obra tardia, visto que o texto final é uma sedimentação de do percurso de Kant, aparecendo em seus cursos ao longo de três décadas e presente, portanto no período pré-crítico e crítico.

Observando o método estrutural19 em que essa obra foi produzida, Foucault defende sua relação com a fundação do projeto crítico e uma coerência entre a Crítica da razão pura e a Antropologia. A pergunta primeira proposta por Foucault, que motivará a arqueologia dessa obra, é: há uma continuidade da concepção antropológica que persistiria e mesmo orientaria de alguma maneira o projeto crítico?20 Ou, como segunda questão: a antropologia de Kant mudaria com a crítica? E, ainda: se a arqueologia fosse possível em sua completude, não poderia se inferir do texto o nascimento de um homo criticus, cuja estrutura seria diferente no essencial do homem que a precedeu? (Foucault, 2011, p. 17). Nas palavras de Foucault:

Isso significa que a Crítica, ao seu caráter próprio de "propedêutica" à filosofia, acrescentaria um papel constitutivo no nascimento e no devir das formas concretas da existência humana. Haveria certa verdade crítica do homem, filha da crítica das condições de verdade. (Foucault, 2011, pp. 17-18)

Vamos nos deter um pouco na forma como a tese de Foucault é desenvolvida e quais são seus pontos centrais para, assim, compreender melhor sua sustentação e a problemática apresentada, chegando ao ponto que queremos: indicar a centralidade dessa obra na compreensão da filosofia de Foucault e as possibilidades de compreensão do modo como se pode produzir o pensamento filosófico.

O objeto da Antropologia de Kant seria o homem residindo no mundo. Kant afirma que o objeto da Antropologia é a dimensão cosmopolita do Welt, no entanto, a maior parte de seu texto não trata do Welt, mas do Gemüt. Para lidar com essa constatação, Foucault formula três questões que vão articular basicamente sua reflexão e levarão à formulação de sua tese sobre Kant, o texto deste e a própria antropologia (Foucault, 2011, pp. 48-49):

1) Como um estudo do Gemüt permite o conhecimento do homem como cidadão do mundo?

2) Qual é a relação do conhecimento antropológico e da reflexão crítica?

3) Em que a antropologia filosófica (como investigação do Gemüt e suas faculdades) se distingue da psicologia racional ou empírica?

Iniciemos pela terceira questão, que aborda a diferença entre uma antropologia e uma psicologia e na qual aparece a noção de Gemüt, fundamental para a compreensão do campo antropológico na perspectiva kantiana. A antropologia pragmática não é o estudo da Seele, mas do Gemüt, que é vivificado por ideias, pelo Geist. É ele que abre ao Gemüt a liberdade do possível e, dessa forma, este não é apenas o que é, mas fundamentalmente o que ele faz de si mesmo (Foucault, 2011, pp. 45-55).

A Antropologia, tal como podemos lê-la, não dá lugar à psicologia alguma, qualquer que seja. Apresenta-se, explicitamente, até como recusa da psicologia em uma exploração do Gemüt que não pretende ser conhecimento da Seele [alma]. Em que consiste a diferença? [...].
É o próprio Gemüt que cabe interrogar. É ele ou não da ordem da psicologia? Ele não é Seele. Mas, por outro lado, é e não é Geist [espírito]. Ainda que discreta, a presença do Geist na Antropologia não é menos decisiva. Na verdade, sua definição é breve e não parece prometer muito: Geist ist das belebende Prinzip im Menschen [o espírito é o princípio vivificador no homem] [...].
Um pouco mais adiante Kant retoma todas estas indicações e as reúne em uma única e enigmática definição: "Man nennt das durch Ideen belebende Prinzip des Gemüts Geist" [denomina-se espírito o princípio que vivifica a mente por meio de ideias] [...]. Haveria então no Gemüt – em seu fluxo tal como é dado à experiência, ou em sua totalidade virtual – alguma coisa que o aparentasse à vida e que dependesse da presença do Geist? (Foucault, 2011, pp. 50, 52-53)

Nada indica claramente, para sabermos com precisão, o que é esse espírito vivificador. Contudo, o texto de Kant nos leva a crer que todo ser vivo não se espalha numa dispersão indiferente, mas tem um fluxo orientado, ou seja, alguma coisa nos seres é projetada, apesar de não os encerrar. É uma vivificação que se faz, como o movimento pelo qual o Geist dá figura da vida.

Poderíamos crer que o Gemüt, nesta dispersão temporal que nele se origina, caminha em direção a uma totalidade que se efetuaria no e pelo Geist. O Gemüt deveria a vida a esta longínqua, a esta inacessível, mas eficaz, presença. Mas, se assim fosse, o Geist seria definido, desde logo, como um princípio "regulador" e não como um princípio vivificante. Por outro lado, toda curva da Antropologia não se orientaria em direção ao tema do homem como habitante do mundo e residente, com seus deveres e direitos, nesta cidade cosmopolítica, mas em direção ao tema de um Geist que recobriria pouco a pouco o homem, e com ele o mundo, com uma imperiosa soberania espiritual. Não se pode, pois, dizer que é a ideia de um Geist que assegura a regulação da diversidade empírica do Gemüt e promete, sem trégua, à sua duração um possível acabamento. (Foucault, 2011, pp. 53-54)

A função do Geist seria fazer o homem viver no elemento do possível, e não organizar o Gemüt de modo a fazer dele um ser vivo, mas vivificá-lo, fazer nascer, na passividade do Gemüt, na sua determinação empírica, a energia das ideias. Assim, o Gemüt não é simplesmente o que ele é, mas o que ele faz de si mesmo. O Gemüt deve fazer o maior uso empírico possível da razão. Isso significa que só há antropologia na medida em que o Gemüt não se fixa na passividade e, sim, faz algo de si, é animado. A antropologia torna impossível uma psicologia empírica e um conhecimento do espírito no nível da natureza e também qualquer antropologia que não seja pragmática.

De tal modo, define-se o campo da antropologia e difere-se esse campo de qualquer outro a partir da clareza com que se define o conceito de pragmático que está diretamente vinculado ao conceito de autoposição do sujeito. Na leitura de Foucault, Kant e depois o próprio Foucault (a partir desse conceito) produzirão em suas teorias uma espécie de ontologia de si – uma ontologia de nós mesmos –, centrada no que o homem pode fazer de si – o que Foucault chamará posteriormente de práticas de subjetivação ou técnicas de si. A relevância ao conceito de autoposição (Selbstsetzung) se encontra clara na Opus postumum. Loparic afirma que esse conceito está presente em toda a obra de Kant e não apenas na Antropologia. Afirmamos aqui que ele está presente também em toda a obra de Foucault.

Citando Kant, Foucault afirma:

A partir daí acha-se definido o caráter "pragmático" da Antropologia: "Pragmatish", diziam os Collègentwürf, "ist die Erkenntniss von der sic hein allgemeiner Gebrauch in der Geselschaft machen lässt" [pragmático é o conhecimento se dele podemos fazer um uso geral na sociedade]. O pragmático, assim, não será senão o útil convertido em universal. No texto de 1798 ele se tornou um certo modo de ligação entre o Können (poder) e o Sollen (dever). Relação que a razão prática assegurava a priori no Imperativo, e que a reflexão antropológica garante no movimento concreto do exercício cotidiano: no Spielen (jogo). Esta noção de Spielen é singularmente importante: o homem é o jogo da natureza; mas um jogo que ele próprio joga; e se lhe acontece ser jogado, como nas ilusões dos sentidos, é porque ele próprio jogouse como vítima desse jogo, ao passo que compete ser dono do jogo, retomá-lo por sua conta no artifício de uma intenção. O jogo torna-se então um "künstlicher Spiel [jogo artificial]"21 e a aparência com que é jogado recebe sua justificação moral. A Antropologia desenvolve-se, pois segundo essa dimensão do exercício humano que vai da ambiguidade do Spiel (jogo = joguete) à indecisão do Kunst (arte = artifício) [...]. Sendo o mundo sua própria escola, a reflexão antropológica terá como sentido situar o homem neste elemento formador. Ela será, portanto, indissociavelmente: a análise da maneira como o homem adquire o mundo (seu uso, não seu conhecimento), isto é, da maneira como ele pode nele instalar-se e entrar no jogo – Mitspielen [jogar junto] –; e síntese das prescrições e regras que o mundo impõe ao homem, mediante as quais o forma e o coloca em estado de dominar o jogo – das Spiel vestehen (compreender o jogo). (Foucault, 2011, pp. 46-47)

Feita a definição dos conceitos, a questão da diferenciação do campo antropológico para o campo psicológico deixa de ser uma dificuldade. O campo da antropologia é o homem se fazendo a si, é o campo da liberdade como ação de criar o possível; também não há dificuldades quanto ao objeto dessa antropologia: o homem residindo no mundo, como cidadão do mundo. Diferentemente da psicologia, os elementos do possível e da liberdade estão vinculados com a natureza, constituindo dessa forma um conhecimento de outra ordem. O Geist, na leitura de Foucault, é um elemento estruturante do pensamento kantiano, "um fato originário único e soberano – a necessidade de crítica e possibilidade da Antropologia" (Foucault, 2011, pp. 52-53).

Quanto à segunda questão em que se pergunta sobre as relações entre a Antropologia e a Crítica, podemos indicar que esse ponto é de fundamental importância na leitura de Foucault, e também de suma importância para defendermos nossa tese em relação ao vínculo permanente de toda a filosofia foucaultiana com Kant. Tratando dessa questão, Foucault percebe que o Geist parece comum à reflexão crítica e antropológica e, partir desse elemento é que, para Foucault, a Antropologia de Kant aparecerá como o negativo da primeira Crítica – isso é percebido em uma comparação estrutural (Foucault, 2011, p. 58)22.

A comparação não é fácil de ser estabelecida, e cremos que só compreendendo a sutileza dessa comparação será possível compreender a própria filosofia de Foucault. A pergunta a qual o filósofo se coloca é: que relações autorizam entre essas duas formas de reflexão [a Antropologia e a Crítica] esse elemento radical que parece lhes ser comum (Foucault, 2011, p. 57)? A resposta à questão é complexa:

Na verdade, a diferença de nível entre Crítica e Antropologia é tanta que, de início, desencoraja a tarefa de estabelecer uma comparação estrutural entre uma e outra. Reunião de observações empíricas, a Antropologia não tem "contato" com uma reflexão sobre as condições da experiência. E, contudo, esta essencial diferença não é da ordem da não relação. Uma espécie de analogia cruzada deixa entrever na Antropologia como que o negativo da Crítica. (Foucault, 2011, p. 58, grifo nosso)

Foucault defende, por meio de uma analogia cruzada, que a Antropologia é uma espécie de imagem invertida da Crítica; nela, o eu não é objeto, mas forma da síntese. Já na Antropologia, o eu não é considerado em sua função sintética "sem, entretanto, reencontrar um simples estatuto de objeto". O eu aparece e se fixa bruscamente em uma figura.

Na Antropologia, o dado não aparece como pura dispersão, mas de alguma maneira organizado, sintetizado previamente fora da visibilidade da consciência. Na Crítica, o dado está do lado da passividade, esta claramente contraposta à espontaneidade do sujeito que sintetiza. A relação entre o dado e o a priori assume na Antropologia uma estrutura inversa da que era apreendida na Crítica.

A estrutura é inversa quanto à dispersão originária do dado. Segundo a perspectiva antropológica, o dado, com efeito, jamais é oferecido de acordo com uma multiplicidade inerte, indicando de maneira absoluta uma passividade originária e reclamando, sob diversas formas, a atividade sintética da consciência. A dispersão do dado já está sempre reduzida na Antropologia, secretamente dominada por toda uma variedade de sínteses operadas fora do labor visível da consciência: é a síntese inconsciente dos elementos da percepção e das representações obscuras [...]. Assim, aquilo que a Crítica acolhia como a superfície infinitamente tênue de um múltiplo que nada tem em comum consigo mesmo senão o fato de ser originariamente dado aclara-se na Antropologia com uma profundidade inesperada: já agrupado e organizado, tendo recebido as figuras provisórias ou sólidas da síntese. Aquilo que para o conhecimento é puro dado não se oferece como tal na existência concreta. Para uma antropologia, a passividade absolutamente originária não está jamais aí. (Foucault, 2011, pp. 59-60)

A despeito de a distinção das faculdades ser a mesma, na Antropologia, o que é privilegiado é sua fraqueza, a patologia, e não o que tem de positivo. Nos Collègentwürf, a divisão da obra se dava como Elementarlehre e Methodenlehre, como na Crítica. Já no texto de 1798, apesar de continuar com duas divisões, elas levam os títulos de Didática e Característica, o que marca a inversão em relação a todos os fenômenos.

Ao modelo crítico

[...] que por longo tempo havia se imposto sucede uma articulação que o repete como que no negativo: a teoria dos elementos torna-se prescrição em relação ao todo dos fenômenos possíveis (o que propriamente falando, era o fim da Methodenlehre) e, inversamente, a teoria do método torna-se análise regressiva em direção ao núcleo primitivo dos poderes (o que era o sentido da Elementarlehre). Reprodução em espelho. São igualmente próximas e longínquas a região em que se define o a priori do conhecimento e aquela em que se precisam os a priori da existência. O que se enuncia na ordem das condições aparece, na forma do originário, como mesmo e outro. (Foucault, 2011, p. 64, grifo nosso)

Esse é um dos pontos essenciais que queremos problematizar. O que Foucault estabelece como relação entre o a priori do conhecimento e o que ele chama nesse momento de a priori da existência (relação essa estabelecida na comparação entre a Antropologia e a Crítica) é que se tornará basilar na relação entre sua própria filosofia e a filosofia kantiana. O que fascina Foucault nesse texto de Kant e sua relação estrutural com a Crítica não seria justamente a identificação da estrutura do filosofar kantiano nesse momento de construir um espelho? Uma reprodução especular? E não seria justamente esse o procedimento utilizado pelo próprio Foucault quando faz, em muitos momentos, uma reprodução especular da filosofia de Kant? Sobre a criação de uma categoria central em sua própria filosofia: o a priori histórico não tem sua gênese explicitada justamente no resultado do trabalho de Kant quando realiza uma reprodução especular?

Foucault apresenta em muitas de suas obras a explicitação de um a priori que não é formal, uma espécie de a priori da existência, um já-aí não cronológico, como aponta o filósofo:

O a priori, na ordem do conhecimento, torna-se, na ordem da existência concreta, um originário que não é cronologicamente primeiro, mas que, desde que apareceu na sucessão das figuras da síntese, se revela como já-aí; em contrapartida, o que é dado puro na ordem do conhecimento aclara-se, na reflexão sobre a existência concreta, com surdas luzes que lhe conferem a profundeza do já operado23. (Foucault, 2011, p. 60)

A filosofia de Foucault se apresentará em muitos momentos explicitando esses a priori da existência não numa perspectiva idealista, mas numa espécie peculiar de materialismo. Foucault repetirá em outras bases o procedimento kantiano. Produzirá o anverso do idealismo transcendental, algo como um materialismo transcendental. Contudo, não é o momento de nos determos nesse ponto. A explicitação da introdução à Antropologia de Kant, Tese complementar, se faz necessária nesse momento para fundamentar nossa argumentação.

A empresa de estabelecer relações entre a Crítica e a Antropologia faz Foucault se remeter à natureza da pergunta "o que é o homem?". A questão incomoda profundamente Foucault, aparecendo constantemente em sua produção filosófica. Em Kant, é sabido que qualquer que seja a concepção de homem na Crítica, ela não é empírica, uma vez que não é a esse campo e sim ao estabelecimento da possibilidade da experiência que a obra se refere. No entanto, para Foucault, é importante pensar sobre qual é o lugar da pergunta pelo homem na Antropologia: seria ela empírica ou não?

Se considerarmos uma das passagens da "Doutrina transcendental do método" na Crítica da razão pura, em que, numa perspectiva arquitetônica, é feita a contraposição entre a física e a psicologia racional de um lado e, de outro, a física e a psicologia empírica, Kant afirma que a psicologia empírica deve ser banida da metafísica e colocada ao lado da física empírica, pelo menos provisoriamente, "até que se possa estabelecer morada própria numa antropologia pormenorizada" (Kant, 1994, parágrafo 850 da edição A e 878 da edição B). A sentença nos possibilita definir com clareza onde está a antropologia nessa arquitetônica – no lado empírico – e disso se pode inferir que a pergunta "o que é o homem?", portanto, seria uma pergunta posta em uma perspectiva empírica da consideração do homem.

Todavia, a pergunta "o que é o homem?" está posta em outros contextos da obra kantiana, que não o antropológico, e vale perguntar, por exemplo, a que perspectiva estamos nos referindo quando são postas na Lógica as questões 1) o que posso conhecer?, 2) o que posso fazer? e 3) o que me é permitido esperar?, seguidas da última questão "o que é o homem?" – e remetendo a ela? Retomando o texto da Lógica, Foucault lembra as bases da questão sobre o homem inquirindo inclusive se não há uma ruptura no pensamento kantiano pela forma como as três questões remetem à quarta: as fontes do saber humano, a extensão do uso possível e útil de todo saber e, finalmente, os limites da razão. Considerar o mundo como fonte de saber, como domínio de todos os predicados e limite da experiência possível: é isso o que está sendo feito aqui. As três noções – fonte, extensão e limite24 – recobrem, em certo sentido, a trilogia interna à primeira Crítica, a saber: sensibilidade, entendimento e razão. Segundo sua leitura:

Conhecemos as três interrogações fundamentais enumeradas na Metodologia transcendental: "que posso saber?", questão especulativa a que a Crítica deu uma resposta "com a qual razão deve se contentar"; "que devo fazer?", questão que é prática; e "que me é permitido esperar?", interrogação ao mesmo tempo teórica e prática. Ora, essa tríplice questão que se sobrepõe e, até certo ponto, comanda a organização do pensamento crítico encontra-se no começo da Lógica, mas afetada por uma modificação decisiva. Uma quarta questão aparece, "o que é o homem?", que não dá sequência às três primeiras senão para retomá-las em uma referência que envolve todas elas: pois todas devem reportar-se a esta, assim como devem ser remetidas à antropologia, à metafísica, à moral e à religião.

Esse brusco movimento que faz bascular as três interrogações em direção ao tema antropológico não denunciam uma ruptura de pensamento? O Philosophieren [filosofar] parece poder desenvolver-se exaustivamente no nível de um conhecimento do homem; o amplo estatuto empírico que a primeira Crítica designava à Antropologia é, de fato mesmo, recusado – já que esta não é mais o último degrau empírico de um conhecimento filosoficamente organizado, mas o ponto onde vem culminar, numa interrogação das próprias interrogações, a reflexão filosófica. (Foucault, 2011, pp. 65-66)

As três questões retomam e encerram, em uma palavra, o trabalho de cada crítica: razão pura, razão prática e faculdade de julgar. Elas repetem as três questões que, segundo Kant, animam todo o Philosophieren. Elas dão, enfim, um tríplice conteúdo à interrogação sobre o homem, ou seja, a quarta questão se relaciona às outras três. Retomando, assim, cada uma das tripartições, elas fazem atingir, por sua própria repetição, o nível fundamental, e substituem essas divisões sistemáticas a organização dos correlatos transcendentais.

O que Foucault indicará em sua Gênese e estrutura da Antropologia de Kant, Tese complementar, é que o homem é obscuramente o objeto de todas as questões. O homem é a unidade concreta e ativa na qual e pela qual Deus e o mundo encontram sua unidade (Foucault, 2011, p. 68). Entretanto, isso aparece apenas na Opus postumum. A questão sobre o homem não pode ser ignorada e ela não é autônoma, pois na própria definição de homem da Antropologia o conceito de mundo é inerente: homem como habitante do mundo. O sentido da quarta questão, se especificado, é igual ao sentido das três questões anteriores. A antropologia, portanto, retoma as questões que se reportam a ela. Segundo Foucault:

O conteúdo da quarta questão, uma vez especificado, não é, pois, fundamentalmente diferente do sentido que tinham as três primeiras; e a referência destas à última não significa nem que elas desapareçam nela nem que remetam a uma nova interrogação que as ultrapassa: mas muito simplesmente que a questão antropológica coloca, retomando-as, as questões que se reportam a ela. Estamos aqui no nível do fundamento estrutural da repetição antropológico-crítica. A Antropologia nada disse de diferente daquilo que é dito na Crítica; e basta percorrer o texto de 1798 para constatar que ele recobre exatamente o domínio da empresa crítica. (Foucault, 2011, p. 73)

É com base nessa interpretação que surgirá a afirmação de que a Antropologia só repete a Crítica no plano popular25. A Antropologia afirma de si mesma que é sistemática e popular. É sistemática porque forma um todo coerente e empresta sua coerência ao todo do pensamento crítico. É popular porque tem um estilo particular de evidenciar a multiplicidade do diverso, do singular, isto é, assenta-se sobre um conhecimento do mundo e do homem e do homem no mundo. A Antropologia repete o projeto crítico. Para Foucault, os três livros da Didática repetem as três Críticas, e a Característica repete os textos sobre filosofia da história e política. É uma repetição, porém negativa, e por isso mesmo originária, verdadeiramente temporal. Foucault afirma:

O originário não é realmente primitivo, é o verdadeiramente temporal. Quer dizer que está lá onde, no tempo, a verdade e a liberdade se pertencem26. Haveria uma falsa antropologia – e a conhecemos demasiado bem: é aquela que tentaria deslocar em direção a um começo, em direção a um arcaísmo de fato ou de direito as estruturas a priori. A Antropologia de Kant nos dá outra lição: repetir o a priori da Crítica no originário, isto é, em uma dimensão verdadeiramente temporal. (Foucault, 2011, p. 82)27

Na repetição se evidencia um enraizamento sistemático e metodológico. Enraizamento este que será apropriado por Foucault na produção de sua filosofia. Foucault aprendeu a lição com Kant e vai repeti-la novamente e negativamente numa dispersão temporal que jamais acaba e jamais começou, uma vez que não é cronologia. Com sua filosofia, continuará a tarefa de Kant de restituição do verdadeiro sentido do originário e, portanto, em si próprio, o sentido de originário como verdadeiramente temporal.

Concluindo, falta aqui o tratamento da primeira questão que sustenta a tese de Foucault sobre a Antropologia de Kant28: como um estudo do Gemüt permite o conhecimento do homem como cidadão do mundo?

Como já ficou indicado, o plano da experiência antropológica seria mais ético29 do que psicológico. Daí a importância da conversação: o convívio é o grupo social de referência. O convívio e a conversação permitem que as liberdades se encontrem e se universalizem. O homem da Antropologia é o cidadão do mundo, mas não na medida em que faz parte de um grupo social ou de tal instituição, mas pura e simplesmente porque age, convive e fala. É na troca da linguagem que, ao mesmo tempo, o homem atinge e realiza o universal concreto. Sua residência no mundo é originariamente na linguagem30 ou, como afirma Foucault, é na linguagem que o homem desdobra sua verdade antropológica:

A verdade que a Antropologia traz à luz não é, pois, uma verdade anterior à linguagem e que esta estaria encarregada de transmitir. É uma verdade mais interior e mais complexa porque está no próprio movimento da troca porque a troca realiza a verdade universal do homem. Assim como antes o originário podia ser definido como o próprio temporal, pode-se agora dizer que o originário não reside em uma significação prévia e secreta, mas no mais manifesto trajeto da troca. É ali que a linguagem assume, completa e reencontra sua realidade, é ali igualmente que o homem desdobra sua verdade antropológica. (Foucault, 2011, pp. 91-92)

A resposta à questão proposta se resume, dessa forma, na seguinte formulação: visto que a antropologia é pragmática e seu caráter popular repousa em uma linguagem dada e em uma expressão articulada, ela se dirige para a formação da universalidade. É assim que a análise do Gemüt, no sentido interno, torna-se prescrição cosmopolita na forma da universalidade humana, e é aqui que está também a gênese de uma das teses mais defendidas por Foucault: a vinculação do discurso à antropologia na epistémê moderna.

A passagem a seguir serve para responder a questão proposta e, sobretudo, para explicitar exatamente onde nasce a teoria do próprio Foucault acerca do discurso e da linguagem, a saber, na Antropologia do ponto de vista pragmático de Kant:

A Antropologia é, portanto, "sistematicamente projetada" por uma referência à Crítica que passa pelo tempo; tem, por outro lado, valor popular porque sua reflexão se situa no interior de uma linguagem dada que ela torna transparente sem reformar, e cujas particularidades mesmas são o lugar de nascimento legítimo das significações universais. Em uma perspectiva antropológica, a verdade configura-se, pois, através da dispersão temporal das sínteses e no movimento da linguagem e da troca; ali ela não encontra sua forma primitiva – nem os momentos a priori de sua constituição, nem o puro choque do dado; encontra, em um tempo já decorrido, em uma linguagem já falada, no interior de um fluxo temporal e de um sistema linguístico jamais dado em seu ponto zero, alguma coisa que é como que sua forma originária: o universal nascendo em meio à experiência no movimento verdadeiramente temporal e do realmente trocado. É por isso que a análise do Gemüt, na forma do sentido interno, torna-se prescrição cosmopolítica, na forma da universalidade humana. (Foucault, 2011, p. 92, grifo nosso)

Segundo Foucault, a Antropologia repete a Crítica da razão pura no plano empírico. A Antropologia é, pois, por essência, a investigação de um campo em que o prático e o teórico se atravessam e se recobrem inteiramente. Foucault encontra no tratamento dessa questão sua tese acerca do a priori histórico: algo constituidor por excelência, proveniente do movimento verdadeiramente temporal e do realmente trocado e, certamente, sempre vinculado à necessidade de tematizar a verdade.

Aberta pela Antropologia, mas bem logo, e por esta mesma abertura, liberada dela, a filosofia transcendental poderá então desenvolver em seu próprio nível o problema que a insistência da Antropologia forçouse a desvelar: o pertencimento entre a verdade e a liberdade. É precisamente esta relação que está em questão na grande tripartição, incessantemente repetida no Opus postumum: Deus, mundo e o homem [...]. Isto indica bem que o pertencimento entre a verdade e a liberdade se faz na forma mesma da finitude, e nos recoloca assim na raiz mesma da Crítica. (Foucault, 2011, pp. 93-94)

Apesar disso, segundo Foucault, há uma ambiguidade basilar na antropologia kantiana, presente na questão do conhecimento empírico da finitude, que está entre o conjunto empírico e a reflexão proveniente da empresa crítica. A antropologia kantiana depende da Crítica e também das questões postas no século XVIII. Estas modificam a concepção de homem do tipo cartesiano. A dimensão física do homem é vista como natureza, mas não é mecânica, e, com Kant, tem-se uma nova articulação de natureza e liberdade permitida pela crítica. Mesmo assim, a ambiguidade da antropologia permanece por pelo menos algum tempo31.

A antropologia será não somente ciência do homem, e ciência e horizonte de todas as ciências do homem, mas ciência daquilo que funda e limita para o homem seu conhecimento. É aí que se oculta a ambiguidade desta Menschen-Kenntniss (conhecimento do homem) pela qual caracterizamos a antropologia: ela é conhecimento do homem em um movimento que o objetiva no nível de seu ser natural e no conteúdo de suas determinações animais; mas é conhecimento do conhecimento do homem em um movimento que interroga o sujeito sobre si mesmo, sobre seus limites e sobre aquilo que ele autoriza no saber que dele se tem. (Foucault, 2011, p. 104)

Com a questão posta sobre se pode haver um conhecimento empírico da finitude, a Antropologia coloca pela primeira vez de maneira contundente a possibilidade de um conhecimento da finitude que permita pensar a finitude em si mesma. Faz-se presente na Antropologia, por conseguinte, a interrogação crítica. Mesmo com essa presença marcante, não podemos nos esquecer da lição kantiana de que a empiricidade não se funda nela mesma: ela só é possível como repetição negativa. Ela é o seu analogon empírico e exterior e deveria ter sido compreendida como tal (Foucault, 2011, p. 106).

Foucault afirma que, desde Kant, sofreremos uma espécie de ilusão antropológica em substituição à ilusão transcendental. Tal ilusão aparece na medida em que a filosofia contemporânea vai se comprometer com a antropologia ao querer fazer a antropologia ser a própria crítica: idêntica e não análoga, sem, contudo, o peso do a priori32. A filosofia contemporânea não aprendeu a lição kantiana e quis fazer com que a antropologia passasse a ser o fundamento e as condições de possibilidade de todas as ciências humanas.

Pretendeu-se fazer dela (o que não passa de uma outra modalidade do esquecimento da crítica) o campo de positividade onde todas as ciências humanas encontram seu fundamento e sua possibilidade, quando de fato ela só pode falar a linguagem do limite e da negatividade: não deve ter como sentido senão transmitir vigor crítico à fundação transcendental da precedência da finitude. (Foucault, 2011, p. 108)

Foucault responsabiliza (mas não culpabiliza) a filosofia de Kant como o ponto de partida para que se estabelecesse um dos fundamentos basilares para as ciências humanas. Uma rede de contrassensos e ilusões em que a antropologia (como ciência) e a filosofia contemporânea se comprometeram mutuamente. Tentou-se fazer valer da antropologia como se ela fosse crítica, uma antropologia que estaria liberada do a priori. Naturalmente, para o filósofo, há nisso um erro histórico que resultará numa dada concepção de homem, no nascimento de uma estranha figura do saber, dentre tantas outras consequências.

De um ponto de vista estrutural, a ilusão antropológica é o simetricamente anverso e a imagem no espelho da ilusão transcendental. Está sinalizada a partir da instauração dessa nova ilusão a necessidade de uma verdadeira crítica. A saída para esse impasse estaria em Nietzsche com o além-do-homem (Foucault, 2011, pp. 109-111)33.

Mas, não só. A filosofia de Foucault vai cumprir essa meta e, mesmo afirmando que tivemos de Nietzsche o basta à proliferação da interrogação sobre o homem – o que poderia justificar dizer que é de Nietzsche que parte para sua interrogação antropológica –, não é apenas em Nietzsche que Foucault vai se apoiar para desenvolver seu pensamento. É a retomada constante do início ao fim do pensamento de Kant que marca essa filosofia. Este fez uma crítica da razão pura, e Foucault, a partir da Tese complementar, fará uma crítica da razão antropológica.

 

2) Outra reprodução especular da Crítica da razão pura: Foucault e a crítica da razão antropológica

O fim da metafísica (pensar o finito em relação ao infinito) é somente a face negativa de um acontecimento muito mais complexo. Michel Foucault, As palavras e as coisas.

Foucault finaliza a Gênese e estrutura da Antropologia de Kant, Tese complementar, com uma reflexão bastante contundente sobre o impacto das antropologias para a produção do pensamento filosófico dos séculos XIX e XX e a necessidade da recusa delas, tanto das antropologias filosóficas quanto das filosofias que tomam como ponto de partida certa reflexão antropológica sobre o homem. Foucault faz nova denúncia a outra "ilusão": a ilusão antropológica. Nova, pois, no século XVIII, Kant teria feito o mesmo denunciado a ilusão transcendental.

Com sua denúncia, caberá ao filósofo – tal como coube a Kant – realizar um novo empreendimento crítico, prosseguindo com o projeto kantiano. Segundo Michel Foucault:

Aqui e lá está em jogo uma "ilusão" que, desde Kant, é própria à Filosofia Ocidental. Ela contrabalança, em sua forma antropológica, a ilusão transcendental que a metafísica pré-kantiana encobria. É por simetria e em referência a ela enquanto um fio condutor que se pode compreender em que consiste esta ilusão antropológica. Com efeito, uma deriva historicamente da outra, ou antes, foi por um deslocamento de sentido na crítica kantiana da ilusão transcendental que a ilusão antropológica pôde nascer. O caráter necessário da aparência transcendental foi cada vez mais frequentemente interpretado não como uma estrutura da verdade, do fenômeno e da experiência, mas como um dos estigmas concretos da finitude. (Foucault, 2011, p. 109, grifo nosso)

A ilusão antropológica, segundo Foucault, vai aparecer como um pressuposto para a verdade, aquilo que dá base para que a verdade esteja sempre aí. A ilusão passa a ser o retraimento da verdade. A ilusão antropológica é como que uma imagem no espelho da ilusão transcendental. Será preciso retomar o projeto de Kant para dar conta dela, assim como Kant fez com a ilusão transcendental.

No anverso do projeto crítico de Kant está outro projeto crítico. Foucault continua o projeto kantiano quando produz A arqueologia do saber e faz a crítica com o intuito de livrar o pensamento de todo e qualquer enunciado vazio (antropológico) por meio do exame do que Foucault denomina arquivo, ou seja, a existência acumulada de discursos. Foucault quer:

[...] designar um a priori que não seria condição de validade para juízos, mas condição de realidade para enunciados. Não se trata de reencontrar o que poderia tornar legítima uma assertiva, mas isolar as condições de emergência dos enunciados, a lei de coexistência com os outros, a forma específica de seu modo de ser, os princípios segundo os quais subsistem, se transformam e desaparecem [...] a razão do uso desse termo um pouco impróprio é que esse a priori deve dar conta dos enunciados em sua dispersão, em todas as falhas abertas por sua não coerência, em sua superposição e substituição recíproca, em sua simultaneidade que não pode ser unificada e em sua sucessão que não é dedutível... (Foucault, 2004, p. 144)

Trata-se de um processo evidentemente crítico (de desantropologização) e ele fica mais claro com a compreensão do conceito de arquivo. O arquivo seria inicialmente a lei do que pode ou não pode ser dito, o sistema próprio que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares. Como afirma Foucault:

O arquivo não é o que protege, apesar de sua fuga imediata, o acontecimento do enunciado e conserva para as memórias futuras, seu estado civil de foragido; é o que, na própria raiz do enunciadoacontecimento e no corpo em que se dá, define, desde o início, o sistema de sua enunciabilidade. O arquivo não é, tampouco, o que recolhe a poeira dos enunciados que novamente se tornaram inertes e permite o milagre eventual de sua ressurreição; é o que define o modo de atualidade do enunciado-coisa: é o sistema de seu funcionamento. Longe de ser o que unifica tudo o que foi dito no grande murmúrio confuso de um discurso, longe de ser apenas o que nos assegura a existência no meio do discurso mantido, é o que diferencia os discursos em sua existência múltipla e os especifica em sua duração própria. (Foucault, 2004, p. 147)

A análise do arquivo, tal como explicitada em A arqueologia do saber, permite adentrar numa região privilegiada: ao mesmo tempo próxima de nós e diferente de nossa atualidade; é aquilo que fora de nós nos delimita, o tempo que cerca nosso presente. Os discursos não são nossos, fazem parte do que é exterior da nossa linguagem. Ao dar vida aos enunciados, Foucault retira o foco do sujeito.

A feitura da crítica dessa nova razão que está mergulhada em uma nova ilusão será uma arqueologia, e não mais surpreende diante da quantidade de relações que podem se estabelecer entre essas filosofias de Kant e Foucault que Kant também use o termo "arqueologia" quando se refere à história do que torna necessária uma forma de pensamento34.

Sem dúvida, o termo é kantiano em vários aspectos. A arqueologia não se ocupa dos conhecimentos descritos segundo seu progresso em direção a uma objetividade, mas da epistémê, em que os conhecimentos são abordados sem se referir ao seu valor racional ou à sua objetividade. A arqueologia, inicialmente do saber35, é uma "história" das condições históricas de possibilidade do saber.

Segundo Foucault, deve haver uma espécie de região (entre os códigos fundamentais de uma cultura), uma ordem, uma região intermediária

[...] anterior às palavras, às percepções e aos gestos incumbidos então de traduzi-la com maior ou menor exatidão ou sucesso (razão pela qual essa experiência da ordem, sem seu ser maciço e primeiro desempenha sempre um papel crítico), mais sólida, mais arcaica, menos duvidosa, sempre mais "verdadeira" que as teorias que lhes tentam dar uma forma explícita, uma explicação exaustiva ou fundamento filosófico. (Foucault, 2007, p. XVII)

Trata-se, como podemos observar na citação anterior, de uma espécie de experiência desnuda da ordem e seus modos de ser. A arqueologia se propõe a investigar exatamente essa experiência desnuda da ordem. A época a que A arqueologia do saber se dedica a pensar não é a mesma época de As palavras e as coisas. Aqui, o homem não tem mais seus rastros buscados, trata-se de um legítimo processo de desantropologização. O documento, o arquivo, tem relevância isolada na medida em que os documentos não são signos de outra coisa e a arqueologia os descreve como práticas. A arqueologia não é psicologia nem sociologia, pois não está ordenada para achar ali a expressão de uma individualidade ou de uma sociedade a fim de encontrar a instância do sujeito criador. Não é história também, não no sentido de uma ciência histórica. O que se descreve na arqueologia são as práticas discursivas que atravessam um dado campo. É uma reescritura dos discursos em sua exterioridade e na qual não se pretende saber quem disse, mas o dito.

Foucault afirma em A arqueologia do saber, no item "O a priori histórico e o arquivo":

A positividade de um discurso – como o da história natural, da economia política ou da medicina clínica – caracteriza-lhe a unidade através do tempo e muito além das obras individuais, dos livros ou dos textos. Essa unidade certamente não permite decidir quem dizia a verdade, quem raciocinava rigorosamente, quem se adaptava melhor a seus próprios postulados: Lineu ou Buffon, Quesnay ou Turgot, Broussais ou Bichat; ela não permite, tampouco, dizer qual dessas obras estava mais próxima de uma meta inicial ou última, qual delas formularia mais radicalmente o projeto geral de uma ciência. (Foucault, 2004, p. 143)

A obra se propõe a fazer uma crítica da razão antropológica e da razão humanista, e ela se faz necessária considerando os equívocos cometidos pelos historiadores, principalmente do século XIX, que, protegendo a soberania do sujeito, acabam por criar o constructo de uma história global que reduziria todas as formas de sociedade a uma única, num dado sistema de valores coerentes com um tipo específico de noção de civilização. O projeto de uma crítica antropológica torna-se possível quando Nietzsche denuncia que o fundamento originário, cujo telos da humanidade é a racionalidade, é uma farsa. A descentralização operada por Nietzsche é reiterada quando a psicanálise, a linguística e a etnologia descentram o sujeito. Mas quem faz isso à maneira kantiana é apenas Foucault.

Segundo Foucault:

[...] em relação às leis de seu desejo, às formas de sua linguagem, às regras de sua ação ou aos jogos de seus discursos míticos ou fabulosos, quando ficou claro que o próprio homem, interrogado sobre o que era, não podia explicar sua sexualidade e seu inconsciente, as formas sistemáticas de sua língua ou a regularidade de suas ficções... (Foucault, 2004, p. 15)

No auge da crítica foucaultiana aparece o tema da continuidade da história, que é, antes de tudo, um tema enraizado na antropologia. Ele considera que há um uso ideológico da história em que se tenta restituir ao homem tudo o que nos últimos séculos lhe escapa. Mas essa não é uma restituição de direito. O exame que aqui será realizado por Foucault é uma medição das mutações que se operam e acontecem em geral no campo da história e a posição de questionamento dos métodos e limites, empresa que pretende desfazer as últimas sujeições antropológicas e as condições de possibilidade de seu surgimento: o campo em que aparecem as questões do ser humano, da consciência e do sujeito.

A proposta de Foucault é definir um método histórico que seja livre do tema antropológico, isento de qualquer antropologismo (Foucault, 2004, p. 18). O filósofo sabe que os perigos que tenta evitar fazem parte da própria natureza da tarefa a que se propõe. Se Kant faz uma crítica à razão pura com uma racionalidade com disposição metafísica, Foucault faz uma crítica que a cada instante denuncia a natureza dos perigos que tenta evitar. É a razão antropológica que faz a crítica à antropologia.

Foucault pretende dispensar o sujeito falante e livrar o discurso de qualquer referência antropológica. Ao descrever o discurso, não o relaciona a uma subjetividade, e a intenção não era afirmar qualquer tipo de discurso universal, ao contrário, era a de mostrar o discurso em outro âmbito, em uma tese que não nega a história, contudo, a mantém em suspenso como a categoria geral e vazia da mudança, a fim de fazer aparecer transformações de níveis diferentes. Há uma recusa de um modelo uniforme de temporalização para descrever os discursos e suas consequências diversas. É dessa forma que se delineia a crítica da razão antropológica empreendida por Foucault.

Algo curioso se instala na conclusão da obra A arqueologia do saber: Foucault traz a visão crítica contundente de seus pares sobre seu pensamento, visão essa certamente pertinente a um intelectual que está aberto ao diálogo. Na leitura avaliativa (e lúcida) do pensamento foucaultiano, seus "oponentes" afirmam que sua filosofia cuidou de abandonar todos os discursos que eram atribuídos a uma consciência, ou sujeitados a ela, e resgatar algo perdido: a interrogação fundamental, a saber, perguntar pelas condições de possibilidade dessa razão que estabelece uma série de "verdades" e as coloca dentro dos limites transcendentais.

Num dado momento do texto, Foucault afirma sobre a interpretação que foi feita sobre seu pensamento que esta indicaria que:

[...] a razão que estabelece todas essas "verdades" novas, temo-la sob grande vigilância: nem ela, nem seu passado, nem o que a torna possível, nem o que a faz nossa, escapa à delimitação transcendental. Será a ela, agora – e estamos firmemente decididos a jamais renunciar a isso –, que colocaremos a questão da origem, da constituição inicial, do horizonte teleológico, da continuidade temporal. Será este pensamento, que hoje se efetiva como nosso, que manteremos na dominância histórico-transcendental. (Foucault, 2004, p. 227, grifo nosso)

Foucault responde a essa interpretação que o coloca como um filósofo que mantém a razão sob vigilância e os discursos em uma delimitação transcendental conservando o pensamento numa dominância histórico-transcendental: "ora, obstinei-me em avançar. Não que esteja certo da vitória (...). Mas, porque achei que no momento, era o essencial: libertar a história do pensamento de sua sujeição transcendental" (Foucault, 2004, p. 227)36.

No detalhe, percebemos o que se passa. Como se tratava de desantropologizar o pensamento, o que Foucault fez (metodologicamente) foi o mesmo que Kant quando este quis livrar o pensamento de toda a metafísica. O que Foucault cria nesse momento é uma espécie de materialismo transcendental, um tipo de filosofia que critica o idealismo e a sujeição ao transcendental, sendo que, na verdade, o alvo é o sujeito transcendental (universal). Foucault usa a crítica kantiana contra Kant quando afirma que a crítica que realiza pretende libertar a história do pensamento de sua sujeição transcendental e fazer uma análise histórica que permita não evidenciar um sujeito ou uma constituição transcendental subjetiva, mas que seja despojada do narcisismo antropológico (Foucault, 2004, p. 227). Fazer com a antropologia o que Kant fez com a arrogante metafísica e suas pretensões foi uma grande empreitada de Foucault.

No prefácio à primeira edição da Crítica da razão pura, Kant fala do poder dos dogmáticos e dessa pretensão que precisava ser revista. Ele afirma que o dever da filosofia era dissipar a ilusão proveniente de um mal-entendido, mesmo com risco de destruir uma quimera tão amada e enaltecida. A quimera kantiana é a metafísica, e a quimera foucaultiana é a antropologia. A crise que Kant via em seu tempo em razão das pretensões da metafísica Foucault a vê em seu tempo em relação ao pensamento antropológico que consagra todas as interrogações à questão do ser do homem (Foucault, 2004, p. 229). A tarefa será a mesma com objetos diferentes. Ler Foucault como um leitor da Antropologia de Kant nos faz ver parte da caixa de ferramentas desse filósofo e a estrutura formal dessa filosofia crítica.

 

Referências

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Foucault, M. (2002). Ditos e escritos I. Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

Foucault, M. (2004). A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

Foucault, M. (2006a). Ditos e escritos III. Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

Foucault, M. (2006b). Ditos e escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

Foucault, M. (2007). As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Foucault, M. (2010). Ditos e escritos V. Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

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Kant, I. (2009). Antropologia do ponto de vista pragmático. São Paulo: Iluminuras.         [ Links ]

Heidegger, M. (2006) L´epoque des "conceptions du monde"in : Chemins qui ne mènent

nulle parte. Traduit de l´allemand par Wolfgang Broknmeier. Paris : Gallimar, Nouvelle éditon,.

Heidegger, M. (1986). Kant y el problema de la metafísica. (G. I. Roth, Trad.). Cidade do México: Fondo de Cultura Económica.         [ Links ]

Nunes, B. (2008). Arqueologia da arqueologia. In B. Nunes, O dorso do tigre, São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

Senellart, M. (1995). A crítica da razão governamental em Michel Foucault. Tempo Social, 7(1-2), 1-13.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência

Suze Piza
E-mail: suzepiza@gmail.com

 

 

1 O título faz referência análoga ao texto A época das imagens de mundo, de Martin Heidegger, e está na base da discussão que trazemos neste artigo.
2 Ela será referida ao longo deste texto como Tese complementar.
3 A tradução do texto para o português foi publicada em 2011, e o texto em francês foi publicado apenas em 2008. Antes de 1989, o texto sequer havia sido citado. A primeira citação ocorre na obra de Dider Eribon e, na sequência, em biografias de Foucault escritas por Macey e Miller. Só a partir daí há interesse acadêmico nesse texto e estudos que o contemplem. Cerca de 30 anos se passaram para que o texto entrasse realmente no mundo acadêmico. Uma das teses que defenderemos é a de que, sem ele, não seria possível compreender Foucault.
4 Crítica aqui usada no sentido de uma resposta ou até mesmo de um exame com o intuito de indicar pontos de vista divergentes ou, ainda, como um comentário negativo a Kant.
5 Com Kant, no século XVIII, formou-se a analítica da finitude e, no século XIX, formaram-se as ciências humanas.
6 Sobre a possibilidade do homem como objeto específico do saber, bem como da ciência que lhe é correlata: as ciências humanas dependem da tematização das empiricidades em que o homem aparecerá agora como finito, histórico e ser requerido a partir de aí como objeto de conhecimento, como ser vivo, produtivo e falante.
7 Problema posto por Heidegger em Kant y el problema de la metafísica (1986).
8 Ontologia da existência, fundamental ou histórica.
9 Foucault verá na obra literária Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, o limiar da epistémê renascentista, em que o delírio advém de uma busca incessante por uma similitude em uma época em que há um rompimento entre a linguagem e as coisas.
10 Adotamos aqui a definição de modernidade no contexto em que se evidencia uma epistémê distinta da renascentista e da clássica, segundo a perspectiva de Foucault.
11 Isso não ocorre com os pós-kantianos nem com as ciências humanas. Foucault vê Kant como alguém que tinha clareza quanto a isso, e não necessariamente quem o seguiu o tem.
12 Ou então não teríamos o homem como centro de todas as coisas. A tese do sujeito transcendental não levaria a isso.
13 Defendemos que Foucault se responsabilizará por essa tarefa.
14 Para aqueles que considerarem esse princípio.
15 Esse ponto ainda será retomado, quando tratarmos da analogia da teoria de Foucault com a semântica transcendental de Kant – teoria da significação, da referência e da verdade.
16 Assim como Kant fez com os universais metafísicos.
17 Como afirma Senellart, Foucault faz uma crítica da razão governamental, uma crítica da razão política.
18 A descrição arqueológica dos enunciados se propõe a multiplicar, na análise, as instâncias da diferença, da multiplicidade e da descontinuidade. Não se trata, para ela, de recorrer a um sujeito único (a consciência, a razão, a humanidade) como suporte de uma história contínua na qual o passado encontra no presente sua verdade e na qual esse, em forma de promessa, antecipa um futuro mais pleno. Antes, ao contrário, a descrição arqueológica dos enunciados se propõe multiplicar as rupturas, evitar as visadas retrospectivas e renunciar a pleitora do sentido ou a tirania do significante. Nesse sentido, a arqueologia rompe com a solidariedade constitutiva entre antropologia e filosofia da história.
19 O olhar de Foucault não é só para o conteúdo da obra.
20 A mesma pergunta poderia ser feita hoje examinando, no século XXI, as teses de Foucault e seu projeto.
21 O termo poderia ser traduzido como "jogo artístico", o que indicaria em Kant uma espécie de vida como obra de arte.
22 A comparação estrutural e, portanto, formal, é fundamental em nossa reflexão. A tese de Foucault de que a Antropologia é o negativo da Crítica parece de suma importância para ele.
23 Essa noção e toda a exploração de Foucault sobre o originário não ser o primeiro (cronologicamente) indica claramente o nascimento da genealogia.
24 Novamente, aqui, vale um adendo sobre método: identificar fonte, extensão e limite é um procedimento crítico adotado por Kant, percebido por Foucault e adotado por este.
25 O conceito popular na Lógica remete à própria definição de antropologia. Para tornar-se popular, um conhecimento deve repousar em um conhecimento dos conceitos, dos gostos e das inclinações dos homens (prefácio de Antropologia).
26 Esse é um caminho privilegiado para ver a proveniência do conceito de genealogia em Foucault.
27 A noção de dispersão, central na crítica à razão antropológica que será tarefa foucaultiana, pode ter sido forjada aqui. A leitura que Foucault faz de Kant possibilita que ele mesmo proceda com a repetição no temporal ao longo de sua produção filosófica. Cada filosofia que "repete" kant cria filosofia. É o caso de Heidegger em Kant e o problema na metafísica: é na negação do originário metafísico e a adoção do originário como verdadeiramente temporal que nasce a genealogia. Esse ponto ainda será retomado.
28 Como mencionamos, Foucault propõe três questões para tratar da Antropologia de Kant: 1) de que modo um estudo do Gemüt permite um conhecimento do homem enquanto cidadão do mundo?; 2) se é verdade que a antropologia, por seu lado, analisa o Gemüt, cujas faculdades fundamentais e irredutíveis comandam a organização das três críticas, qual é então a relação do conhecimento antropológico com a reflexão crítica?; e 3) em que a investigação do Gemüt e de suas faculdades se distingue de uma psicologia, quer racional, quer empírica?
29 Considerando o éthos como o lugar em que se criam hábitos.
30 Tese apresentada por Ricardo Terra em seu artigo Foucault leitor de Kant: da antropologia à ontologia do presente.
31 No final do texto da Tese complementar e em As palavras e as coisas Foucault indica que Kant elimina a ambiguidade quando distingue com clareza o plano empírico do transcendental. Podemos entender, portanto, que, quando Foucault diz "desde Kant", ele não se refere ao próprio pensamento do filósofo, mas ao que se vai fazer posteriormente com ele, o que enfraqueceria as críticas que são feitas por Foucault a Kant.
32 Isso justificaria, por si só, porque Foucault mantém o a priori (histórico): esse conceito garante o procedimento crítico e faz com que não tomemos os fenômenos por coisas em si mesmas.
33 A inversão, como procedimento, será usada por Foucault em muitos momentos.
34 Foucault afirma que o terreno kantiano é o terreno da arqueologia, e não o de Freud, como muitos afirmam e que retirou o termo de Kant (Foucault, 2006a, p. 323).
35 Por saber as delimitações das relações entre, Foucault entende: 1) aquilo do que se pode falar em uma prática discursiva (domínio de objetos); 2) o espaço em que o sujeito pode situar-se para falar dos objetos (posições subjetivas); 3) o campo de coordenação e subordinação dos enunciados, em que os conceitos aparecem, são definidos, aplicam-se e transformam-se; 4) as possibilidades de utilização e de apropriação dos discursos. O conjunto assim formado a partir do sistema de positividade e manifesto na unidade de uma formação discursiva é o que se poderia chamar de um saber. O saber não é uma soma de conhecimentos, porque desses se deve poder dizer sempre se são verdadeiros ou falsos, exatos ou não, aproximados ou definidos, contraditórios ou coerentes. Nenhuma dessas distinções é pertinente para descrever o saber que o conjunto de elementos (objetos, tipos de formulação, conceitos e escolhas teóricas) formado a partir de uma única e mesma positividade, no campo de uma formação discursiva unitária (Foucault, 2004, pp. 203- 206).
36 A pretensão era a de eliminar o sujeito transcendental, e não parece ser a de eliminar o campo transcendental.

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