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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.17 no.2 São Paulo  2015

 

ARTIGOS

 

Narrativas maternas: um estudo transcultural com mulheres brasileiras e francesas

 

Maternal narratives: a transcultural study with Brazilian and French women

 

 

Irma Helena Ferreira Benate BomfimI,II,*; Valéria BarbieriI,**

I Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (FFCLRP – USP)
IICentro Universitário de Franca (Uni-Facef)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo teve por objetivo conhecer a experiência de mulheres brasileiras e francesas mães de meninas com idade entre três semanas e 11 meses. A perspectiva epistemológica foi a qualitativa e a estratégia metodológica foi a das narrativas psicanalíticas, interpretadas segundo o referencial winnicottiano. Foi utilizado como mediador da comunicação com as mães o Teste de Apercepção Temática Infantil. Os relatos das mulheres brasileiras giraram em torno do processo de simbiose e diferenciação entre a díade mãe-bebê, dos recursos empregados para seu manejo e da tarefa da maternidade centralizada na mulher, sendo o pai um colaborador. Os relatos das francesas compartilharam a mesma temática, mas com maior valorização do resgate da própria autonomia e da do bebê. Além disso, em comparação com as mães brasileiras, a tarefa da educação da filha foi mais compartilhada por ambos os genitores franceses.

Palavras-chave: maternidade; família; pesquisa qualitativa; métodos projetivos; psicanálise.


ABSTRACT

This study aimed to know the experience of Brazilian and French mothers of female babies aging from three weeks old to eleven-month old. The epistemological perspective was the qualitative and the methodological strategy was the psychoanalytical narratives interpreted according to Winnicott's theory. The Children's Apperception Test was employed as a mediator of communication with mothers. Brazilian women's narratives emphasized the symbiosis and the differentiation process between the mother and the baby and the resources used to handle it as well as educational role being focused on the woman – the father being only someone who helps them. French mothers' narratives were about the same theme, but giving more importance to rescuing its own autonomy and the baby's. Compared to Brazilian mothers, the responsibility to educate their daughter were more often shared between both French parents.

Keywords: motherhood; family; qualitative research; projective methods; psychoanalysis.


 

 

1) Introdução

O tema da maternidade remete a uma experiência milenar que se transforma ao longo da história em função de modificações sociais e culturais contínuas que se encarnam em cada ser humano no contexto em que vive. Por conta disso, adentrar em suas nuances é uma tarefa exaustiva, delicada e intensa, mas essencial, já que é na vinculação com o filho que se atualizam as potencialidades da mulher como mãe, o que constitui o nicho da formação do self dos bebês.

Nesse contexto, este trabalho visa contribuir para a compreensão dos primórdios do desenvolvimento da identidade pessoal e cultural do indivíduo por meio do estudo da experiência da maternidade segundo o referencial winnicottiano. Nesses termos, o propósito é o de abranger, em duas culturas, as semelhanças e diferenças dessa experiência logo no início da vida do bebê, debatendo se, desde essa época, essas culturas lançariam bases similares ou diversas para o processo de constituição do self infantil segundo a pertinência cultural do indivíduo.

1.1) A natureza histórica e cultural da experiência materna

A qualidade da vida familiar, particularmente da função materna, é um elemento central para a compreensão do desenvolvimento emocional infantil, constituindo-se em objeto de muitas investigações. A relação entre a mulher e o seu bebê sofre influências da aceitação da identidade dela como mãe por seus próprios pais e pelo pai da criança, das condições socioeconômicas e da cultura. Todos esses fatores darão a tônica de como a vivência materna se desenvolverá. Se, de acordo com Winnicott (1963a/1983), a constituição do self da criança depende da existência de um ambiente suficientemente bom que atenda a suas necessidades e que, no início da vida, se constitui principalmente na pessoa da mãe ou de quem a substitua, o modo como a mulher vive a experiência da maternidade é capital para a formação da personalidade do bebê (Zimerman, 1999).

Freud (1896/1996; 1916-1917/1996) já designava três aspectos inerentes à formação da personalidade pela expressão séries complementares: a hereditariedade, o momento do nascimento e a vida infantil, implicando, neste último caso, as experiências da criança junto à família. Soifer (1992) debateu essa divisão proposta por Freud argumentando que as experiências infantis são o fator fundamental para o desenvolvimento do ser humano, pois os dois outros aspectos podem ser abrandados ou intensificados de acordo com o cuidado e manejo que a criança tiver de seu ambiente. Barbieri (2015) acrescenta que, como as funções paterna e materna variam culturalmente, é essencial considerar o contexto histórico e sociocultural no qual a família constrói suas relações, para então compreender o processo de constituição da subjetividade do indivíduo.

Assim, a relação mãe-criança se configura de várias maneiras, considerando o tempo e o espaço em que está inserida, como pode ser destacado nos estudos de Ariès (1973/1981). Segundo ele, somente a partir do final do século XVII a afeição entre os membros da família deixou de ser vista como algo sem grande importância para se tornar necessária. Com isso, as crianças saíram do anonimato e ganharam um lugar, cuidados e manejos próprios e, para ser possível cuidar delas, as famílias diminuíram o número de filhos. Isso resultou, entre outras consequências, na redução do tamanho das casas, o que permitiu uma maior proximidade física e afetiva da família. Nesses termos, para compreender a criança dos séculos XIX, XX e XXI, bem como suas relações familiares, é necessário visitar essas dimensões históricas, que sinalizaram uma ênfase em alguns modelos, e também a transformação destes nas estruturas familiares contemporâneas.

Além da história, o diálogo da psicologia e da psicanálise com a antropologia e a sociologia aparece não apenas como particularmente fecundo, mas fundamentalmente necessário para a compreensão do amadurecimento emocional humano. Esse intercâmbio permitiria conhecer as diferentes realidades e formas em que o desenvolvimento ocorre e os significados que apresenta (Barbieri, 2015). Nesse vértice, Rogoff (2005) afirma que a compreensão de uma determinada conduta em uma cultura somente é possível quando se ultrapassa o nível do comportamento manifesto e se considera as significações que estão nela imbuídas. Diante disso, os métodos qualitativos são particularmente indicados para esse tipo de investigação.

Nesse sentido, sustentamos que a teoria e o método psicanalítico, por se proporem a conhecer as dimensões conscientes e inconscientes da conduta humana, o seu significado, são particularmente apropriados para a realização de estudos transculturais sobre o desenvolvimento emocional humano. De acordo com esse objetivo, o método psicanalítico seria particularmente profícuo, dado o seu caráter predominantemente indutivo e o abandono da pretensão experimental de estabelecer leis gerais do comportamento humano:

A psicanálise não é uma ciência que tem a possibilidade de fazer afirmações universais, ela tem a possibilidade de indicar princípios que nos auxiliam a compreender o singular... É uma ciência que precisa estar aberta do ponto de vista clínico e do ponto de vista conceitual. (Safra, 2004, p. 34)

Dessa forma, e seguindo Aiello-Vaisberg (2004), Politzer (1928/1975) e Bleger (1963/1984), a psicanálise é compreendida aqui como portadora de uma "vocação eminentemente heurística e metodológica (...) enquanto método sui generis de pesquisa do fenômeno humano" (Safra, 2004, p. 10). É característico desse método a valorização do encontro entre pesquisador e pesquisado, ou analista e paciente, para a compreensão da experiência emocional deste último. Nessa perspectiva, o pesquisador deve estar próximo e inserido na situação em que nasce o acontecer humano.

1.2) Contribuições de Winnicott: fundamentos teóricos

As contribuições de Winnicott foram profícuas e muito enriqueceram a compreensão psicanalítica sobre os alicerces do amadurecimento emocional primitivo (Winnicott, 1958a/2000), particularmente no que concerne ao desenvolvimento do self, merecendo destaque especial as conceituações relativas aos objetos e fenômenos transicionais. A originalidade e a genialidade desse autor o conduziram a um distanciamento parcial das concepções freudianas, galgando um campo próprio de reflexão que incluiu, entre outros aspectos, a substituição da centralidade do paradigma edipiano na constituição emocional do indivíduo pelo paradigma do brincar, pelas maneiras diferenciadas de manejar a transferência e pela revisão do valor do mecanismo de regressão (Loparic,1996; Barbieri, 2012; 2015).

No conjunto de sua teoria do desenvolvimento emocional humano, Winnicott (1958a/2000) destaca que o bebê, no início de sua vida, não é uma unidade em si mesmo. A unidade que existe refere-se a uma organização entre indivíduo e meio ambiente; sendo assim, o alicerce da saúde mental é estabelecido na infância, por meio dos cuidados providos à criança por seu cuidador, na maioria das vezes, a mãe. Winnicott (1971a/1975) descreveu o desenvolvimento emocional primitivo em termos da jornada da dependência à independência e propôs três estágios: dependência absoluta, dependência relativa e autonomia relativa.

Nos primeiros meses de vida, Winnicott (1971a/1975; 1958a/2000) constatou que o ser humano encontra-se em um estado de dependência total de seu meio, representado pela mãe ou um substituto. Com isso, na mente do bebê, ele e o meio são uma coisa só. Essa experiência de união é possível pela perfeita sincronia e adaptação da mãe às necessidades da criança, fundamentais para o desenrolar do processo de maturação. "Para a mãe, a criança é um ser humano total desde o início, e isto a torna capaz de tolerar a sua falta de integração e o seu tênue sentimento de viver-dentro-do-corpo" (Winnicott, 1958a/2000, p. 238).

Nesse atendimento às necessidades do bebê, a mãe precisa desempenhar três funções principais: a apresentação do objeto, o holding e o handling.

A apresentação do objeto se caracteriza pela aquisição de uma capacidade de estabelecer relações estimulantes com as pessoas ou coisas. Essa capacidade é fruto da interação que o bebê tem com a mãe desde os primórdios da relação, a partir da primeira oferta do seio, que pode ou não ter uma representação emocional. Essa experiência, associada ao desenvolvimento da tensão pulsional, possibilita ao bebê paulatinamente começar a esperar alguma coisa – a mãe ou a boca –, espera esta que, mais tarde, se estenderá para o objeto. Sendo assim, "o ser humano vai construindo a capacidade de experimentar emoções e sentimentos de amor, sem que eles representem uma ameaça potencial, ou seja, uma fonte de angústia insuportável" (Nasio et al., 1995, p. 185).

Desde a primeira refeição, o aleitamento, a mãe apresenta o seio ou a mamadeira no momento em que o bebê está pronto para imaginá-lo e, portanto, encontrá-lo. Ao oferecer o seio mais ou menos no momento certo, ela dá ao bebê a ilusão de que ele mesmo criou o objeto do qual sente confusamente a necessidade. Ao lhe dar "a ilusão dessa criação, a mãe permite que o bebê tenha uma experiência de onipotência, isto é, que o objeto adquira existência real no momento em que é esperado" (Nasio et al., 1995, p. 185).

A função de holding representa a sustentação, que compreende a proteção que a mãe oferece ao bebê diante dos perigos físicos que levam em conta sua sensibilidade originada nos órgão dos sentidos frente a quedas e a sua ignorância da realidade externa. O holding deve levar em consideração a sensibilidade epidérmica da criança – tato, temperatura, sensibilidade auditiva, sensibilidade visual, sensibilidade às quedas –, assim como o fato de que a criança desconhece a existência de tudo o que não seja ela própria. Ele inclui toda a rotina de cuidados ao longo do dia e da noite e compreende, em especial, o fato físico de sustentar a criança nos braços, o que constitui uma forma de amar. Winnicott (1971a/1975) e Nasio et al. (1995) destacam que, no início, o fato de a mãe colocar o bebê em contato com uma realidade simples e repetitiva vai possibilitando que ele encontre referências simples e estáveis, que são fundamentais para o processo de integração no espaço e no tempo.

O holding exercido pela mãe é o fator que decide a passagem do estado de nãointegração, que caracteriza o recém-nascido, para a integração posterior. A mãe funciona como um ego auxiliar, e o vínculo entre ela e o bebê assentará as bases para o desenvolvimento saudável das capacidades inatas do indivíduo.

A terceira função consiste no handling, ou seja, na manipulação do bebê enquanto ele é cuidado. Essa vivência é fundamental para o bem-estar físico da criança, bem como para a construção da integração entre a experiência de ter um corpo com sua vida psíquica. Winnicott (1958a/2000) denominou esse processo de personalização, ou seja, designa a capacidade de a criança poder "habitar seu próprio corpo", o que implica abdicar da ilusão de que seu corpo e o de sua mãe são um só. A dedicação materna, tanto do ponto de vista físico como do psicológico, funciona como uma espécie de membrana protetora que viabiliza o isolamento primário, fundamental para que se articule um espaço psíquico (Santos, 1999, p. 606).

A mãe que se identifica e se adapta perfeitamente às necessidades do bebê durante os primeiros meses de vida é denominada por Winnicott (1971a/1975) de mãe suficientemente boa. Ela oferece condutas que confortam, que gratificam o bebê, mas que também o impulsionam ao desenvolvimento, mesmo que isso implique em frustrações eventuais. Essas experiências com a mãe são vitais para a construção e manutenção da saúde psíquica do bebê, pois, por meio delas, ele pode experimentar tanto sua corporeidade como o sentimento de continuidade da vida. Segundo Winnicott, quando isso acontece, é sinal do surgimento do verdadeiro self e, concomitantemente, dos recursos para avançar rumo à dependência relativa, na qual a criança toma consciência de sua sujeição e tolera melhor as falhas da adaptação materna; consequentemente, ela consegue tirar proveito delas para se desenvolver, atingindo assim as bases para a conquista paulatina de maior autonomia.

Na primeira etapa do amadurecimento emocional do bebê, a mulher desenvolve uma condição que Winnicott (1971a/1975) chamou de "Preocupação Materna Primária". Nessa situação, ela fica em um estado de sensibilidade aumentada que a capacita a se adaptar às necessidades iniciais de seu filho e excluir temporariamente outros interesses, constituindo uma unidade com ele e auxiliando-o a se integrar. Essa condição está relacionada à devoção ao filho, e a mãe que consegue atingi-la é capaz de fornecer ao bebê a ilusão de que existe uma realidade externa que corresponde à própria capacidade que ele tem de criar. Esse estado estabelecerá a base da saúde mental ou a falta dela no bebê.

Nesse contexto, em alguns momentos Winnicott (1965a/1993) sugere que a preocupação materna primária é uma extensão, uma continuidade das vivências da gestação, e, assim, a mulher estaria biologicamente preparada para exercer a função materna. Porém, ele indica que os fatores de integração da família têm como base a condição emocional de seus membros, as relações estabelecidas com a sociedade e o seu desejo de fundar e compor uma família. Nesse sentido, "a força desse grupo advém do fato de ser um ponto de encontro de forças que se originam do relacionamento do pai e da mãe que derivam dos fatores inatos ligados ao crescimento de cada criança" (Winnicott, 1965a/1993, p. 72), mas também depende das características da sociedade em que a família vive, extrapolando assim um substrato meramente biológico para a compreensão do vínculo entre mãe e bebê. Dessa forma, Winnicott amplia o conceito de mãe suficientemente boa ao dizer que esse papel não se refere necessariamente à mãe do bebê, mas que existem homens que exercem tal função e são, às vezes, mais maternais que suas esposas. Aiello-Vaisberg e Granato (2006) fazem eco a essa posição e acrescentam que o amor materno não tem um caráter de mera identificação primária, ou seja, não é estritamente uma herança parental, o que permite compreender a afirmação de Winnicott de que a questão da preparação materna não depende unicamente de uma constituição biológica. Desse modo, entra em jogo não a maternidade biológica, mas a função materna que pode ser exercida por pessoas diferentes e de formas diversas.

Winnicott sugere ainda que a capacidade para a maternagem também estaria vinculada aos processos de regressão do cuidador rumo a suas próprias experiências de dependência absoluta e recebimento de cuidados, que lhe permitiriam compreender as necessidades da criança, como também sinalizou Almeida (2009).

Nesse contexto dos relacionamentos entre pais e filhos, o self da criança é constituído a partir de um amálgama entre as características individuais dos pais e os valores e as práticas sociais e culturais, com os dois últimos se entremeando nas primeiras e dando significado à experiência da parentalidade.

Dessa maneira, sendo a mãe a principal cuidadora da criança na maioria das sociedades, compreender o modo como ela experimenta a própria maternidade em um determinado contexto sociocultural permitiria conhecer as especificidades do desenvolvimento do self da criança em seus aspectos individuais e culturais, bem como reconhecer e identificar o que seria comum a todos os seres humanos por meio do estudo dessa experiência em contextos diversos, independentemente de sua pertinência cultural. Esse conhecimento é particularmente relevante na sociedade contemporânea, em que as trocas culturais são cada vez mais frequentes, contribuindo para identificar, nos limites de nosso tema de estudo, o que nos une como seres humanos e o que nos diferencia, munindo-nos de recursos para enfrentar futuros incertos e variados (Barbieri, 2015).

 

2) Objetivos

Partindo do pressuposto de que o amadurecimento emocional infantil ocorre em estreita conexão com as experiências da mãe e que estas são transpassadas pelos valores e as práticas da sociedade em que ela vive, este trabalho tem como objetivo conhecer qualitativamente a experiência materna de oito mulheres brasileiras e oito francesas em relação a seus bebês com idade entre 3 semanas e 11 meses, por meio de narrativas produzidas a partir de cartões de um instrumento projetivo de avaliação da personalidade.

 

3) Método

A presente pesquisa foi desenvolvida segundo a perspectiva epistemológica qualitativa, configurando uma investigação psicanalítica.

Bogdan e Biklen (1997) descrevem as características principais da pesquisa qualitativa. A primeira delas é que essa investigação tem o ambiente natural como fonte direta dos dados e o pesquisador como instrumento chave; ela é uma pesquisa descritiva e tem impregnados os significados que o ambiente outorga ao fenômeno; além disso, o pesquisador está mais preocupado com o processo do que com os resultados ou o produto e tende a analisar seus dados indutivamente. Dessa maneira, o pesquisador deve ser flexível e criativo, na medida em que tem a possibilidade de reformular o seu roteiro e a forma de conduzi-lo, adaptando-se às circunstâncias que se apresentam e ao contexto no qual está inserido. Para Turato (2000; 2003), o pesquisador é movido por suas angústias e ansiedades pessoais, tendo uma posição existencialista, e identifica-se com o outro para compreender a questão humana. É nessa interação que o conhecimento surge.

Nesse tipo de pesquisa, o contexto e as singularidades do caso estudado são importantes; são eles que configuram a pesquisa clínico-qualitativa (Turato, 2000; 2003). Esse tipo de pesquisa emprega um conjunto de instrumentos e procedimentos científicos adequados para descrever e interpretar os sentidos e significados dados aos fenômenos e às experiências relacionados à vida da pessoa. Nesse âmbito da pesquisa clínicoqualitativa, a estratégia metodológica eleita foi a das narrativas psicanalíticas, também conhecidas como narrativas interativas. Essas narrativas, segundo Aiello-Vaisberg e Granato (2006; 2004), são utilizadas desde Freud (1916-1917/1996), e elas têm o intuito de "aceder os sentidos afetivo-emocionais subjacentes às condutas humanas, conforme o recorte metodológico proposto por uma psicologia que estuda o homem inserido em seu drama" (Aiello-Vaisberg & Granato, 2011, p. 495). Para a composição dessas narrativas, foi utilizado o Teste de Apercepção Temática Infantil, forma animal (CAT-A), de Bellak e Bellak (1981), como mediador da comunicação, estratégia que vem se mostrando bastante exitosa e profícua para o acesso ao acontecer clínico.

Como esta investigação tem o propósito de estudar qualitativamente o sentido da experiência materna por meio dos relatos das mães brasileiras e francesas, ela também ganha a abrangência do método de estudo de caso coletivo (Trivinus, 1987). Nesse enfoque, objetiva-se aproximar tanto o que é comum quanto o que é particular no que concerne à experiência materna das mulheres desses dois grupos culturais, abrangendo o contexto em que vivem e as nuances de seus relatos individuais. Enfim, trata-se de um método que permite identificar semelhanças e diferenças dentro de cada grupo e entre os grupos, de acordo com os propósitos de um estudo transcultural conforme buscamos desenvolver.

3.1) Participantes

Participaram dessa pesquisa dezesseis mães, sendo oito brasileiras e oito francesas, com bebês do sexo feminino com idade entre 3 semanas e 11 meses. Com exceção do sexo do bebê, não foram estabelecidos outros critérios de seleção das participantes, de modo a deixar campo aberto para a expressão da maior diversidade possível da experiência. Esse critério se estabeleceu a partir de um recorte de um grande campo de estudos sobre a parentalidade, desenvolvido pelo grupo de pesquisa dos autores em questão.

É importante ressaltar que não houve nenhum intuito de que esse grupo de participantes fosse representativo da população de mães brasileiras ou francesas como um todo, mantendo, desse modo, o caráter exploratório do estudo.

A indicação das participantes foi feita por pessoas que coordenavam instituições brasileiras e francesas envolvidas no cuidado de crianças pequenas e que tinham acesso aos dados de contato das mães, bem como à informação sobre a idade dos bebês.

As características gerais das mães brasileiras são apresentadas na Tabela 1, a seguir. É importante salientar que os nomes utilizados são fictícios, sendo o primeiro referente às mães e o segundo, aos bebês.

 

 

A partir da tabela, pode-se observar que as mães brasileiras apresentaram idade entre 27 e 40 anos, todas alcançaram o grau de instrução superior (completo ou incompleto) e seus bebês tinham idade igual ou superior a 7 meses. Elas ainda apresentaram família constituída intacta, ou seja, ambos os pais coabitavam na mesma casa e eram casados ou vivam em união estável (Alarcão, 2006).

As características gerais das mães francesas são apresentadas na Tabela 2, a seguir.

 

 

As mães francesas apresentaram idade entre 27 e 41 anos, sendo que cinco delas concluíram o ensino superior, duas tinham o ensino superior incompleto e uma tinha formação compatível com o ensino profissionalizante. Quanto ao estado civil, duas eram solteiras, duas viviam em união estável, duas eram casadas e duas eram divorciadas. A idade dos bebês variou entre 3 semanas e 11 meses.

3.2) Local de coleta dos dados

A coleta dos dados foi realizada em quatro instituições: duas creches no Brasil e uma creche e um ambulatório de puericultura na França.

As participantes brasileiras eram usuárias dos serviços de creches vinculadas a duas universidades públicas que atendiam filhos de professores, funcionários e estudantes de nível socioeconômico médio e médio alto do interior do estado de São Paulo.

As entrevistas com as mães francesas deveriam também ser realizadas em uma creche. Contudo, como essa instituição não possuía o número suficiente de bebês do sexo feminino com a idade estipulada na pesquisa, foi necessário encontrar outro local que viabilizasse o acesso às mães francesas que faltavam para completar o número de participantes indicado no projeto. Com isso, foram realizadas três entrevistas na creche e cinco em um ambulatório de puericultura. A creche atendia funcionários de algumas instituições públicas de Paris. Já o ambulatório era localizado em uma região residencial de uma cidade de porte médio na região central da França.

3.3) Instrumento

O instrumento utilizado nesta pesquisa como mediador da comunicação foi o Teste de Apercepção Temática Infantil (Bellak & Bellak, 1981), forma animal (CAT-A). Em sua versão original, o CAT é um método projetivo utilizado para investigar a personalidade infantil, estudando as diferenças individuais nos psicodinamismos das crianças a partir da elaboração de histórias após a visualização de estímulos padronizados. O CAT-A, em sua totalidade, é composto por uma coleção de dez cartões com cenas de animais antropomórficos que retratam situações da vida familiar, apresentando a relação entre a criança e o seu meio familiar.

Entretanto, nesta pesquisa, o CAT-A foi utilizado com adultos, no caso, as mães, partindo-se do princípio de que elas se identificariam com o animal adulto representado no cartão, pressuposto este que foi confirmado por Barbieri (2015).

Além disso, o CAT-A não foi utilizado integralmente: apenas os cartões 1, 4, 5, 9 e 10 foram usados na pesquisa. Tais cartões foram escolhidos por ilustrarem situações típicas do relacionamento mãe-bebê e dos cuidados maternos, a saber: o cartão 1, relacionado à alimentação, apresenta a cena de uma galinha ao fundo e, na frente, três pintinhos sentados em torno de uma mesa; o cartão 4, relacionado ao manejo da simbiose e rivalidade entre irmãos, traz a cena de uma mamãe canguru com um filhote em sua bolsa, segurando uma cesta de piquenique e, logo atrás, o segundo filhote, já maiorzinho, andando de triciclo; o cartão 5, relacionado à vida conjugal com o novo bebê, retrata a cena de um quarto com uma cama de casal com alguém coberto deitado e dois ursinhos dormindo em um berço que está colocado ao lado da cama, próximo aos pés; o cartão 9, relacionado ao sono, apresenta a cena de um coelhinho sentado em um berço olhando em direção à porta do quarto; e, por fim, o cartão 10, relacionado ao asseio, traz a cena de um cão sentado no banheiro com seu filhote no colo e debruçado ao lado de um vaso sanitário.

A utilização da versão animal foi escolhida por proporcionar um maior distanciamento entre a participante e a cena – algo facilitador dos processos projetivos – e, principalmente, por preservar um caráter lúdico que possibilitasse a apreensão do material na área de transicionalidade (Winnicott, 1971a/1975; Aiello-Vaisberg & Granato, 2006). Vale dizer que o uso do CAT-A em mulheres adultas para investigação da experiência materna já foi proposto por Barbieri (2015), procedimento esse que se mostrou bastante profícuo com mulheres de origem brasileira, francesa e provenientes da região do Magrebe.

3.4) Procedimento de coleta dos dados

Após a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo12, e o consentimento dos responsáveis pelas instituições envolvidas, foi iniciada a coleta dos dados. As mães foram contatadas individualmente e informadas sobre os objetivos e passos da pesquisa. Aquelas que concordaram em participar do estudo assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Esse termo foi confeccionado em duas versões, em português e em francês, a fim de serem utilizados nos respectivos países.

No contato com as mães, foi realizado inicialmente um breve rapport no qual elas foram estimuladas a falar um pouco sobre si mesmas. Após estarem à vontade, foi realizado o convite para que relatassem suas experiências maternas com suas filhas com base nos cartões do CAT-A e por meio da seguinte solicitação: "Vou lhe mostrar alguns cartões e gostaria que você, olhando-os, me contasse como é ser mãe da [nome da criança] nessas situações".

As entrevistas foram gravadas em MP3, pois todas as mães consentiram com a utilização desse recurso. Toda a coleta foi realizada pela mesma pesquisadora e em duas etapas, a primeira com as mães brasileiras e a segunda com as mães francesas. As entrevistas duraram em média sessenta minutos.

3.5) Procedimentos de análise dos dados

Tratando-se o projeto de uma investigação clínico-qualitativa (Turato, 2000), os dados foram analisados de forma descritivo-interpretativa, e a maneira de apresentação desses conteúdos foi baseada na estratégia das narrativas psicanalíticas.

No presente trabalho, a narrativa foi uma forma de descrever os conteúdos das entrevistas realizadas. Assim, após cada entrevista, foi feita uma narrativa do encontro contendo, além das informações relatadas pelas mães, também as impressões e sensações da entrevistadora, de modo a esclarecer as características vinculares e, particularmente, a natureza da relação transferencial e contratransferencial que se estabeleceu. Foi realizada, em seguida, a análise e a interpretação de cada narrativa construída por meio de sua leitura flutuante e, posteriormente, do recurso à teoria. Após a realização das interpretações de todas as narrativas, foi feita uma síntese de cada grupo cultural, enfatizando as características do vínculo mãe-bebê conforme expressas nas diferentes situações investigadas pelo CAT-A. Finalmente, foi debatida e realizada uma síntese comparativa da experiência materna entre os dois grupos culturais, considerando o sentido dessa experiência para ambos e destacando suas semelhanças, diferenças e peculiaridades. Essa síntese comparativa final é apresentada a seguir.

 

4) Apresentação e discussão dos resultados

4.1) Síntese interpretativa das narrativas das mães brasileiras e francesas

Todas as mulheres dos grupos brasileiro e francês mostraram muito interesse em refletir sobre sua experiência materna, buscar conhecimentos relativos à maternidade e discutir e trocar informações com familiares e profissionais que se ocupam desse assunto. Em relação às condições que as mulheres dispuseram para se consagrarem à maternidade, com exceção de Violette, que não trabalhava fora de casa, mas tinha uma família em condições de arcar com o sustento financeiro da díade, todas as mães exerciam uma atividade profissional remunerada, o que possibilitou que desfrutassem da licença maternidade – de seis meses no Brasil e, na França, de dez semanas após nascimento, podendo se estender a até três anos com garantia de manutenção do emprego, mas sem remuneração13. Assim, durante um período mais ou menos breve, elas puderam se dedicar integralmente aos cuidados das filhas de modo relativamente mais tranquilo e devotado.

No que concerne à gestação e à experiência do nascimento, todas as mães dos dois grupos mostraram ter sido capazes de alcançar a integração psicossomática própria do período de gravidez por meio dos cuidados consigo mesmas e do holding que receberam das pessoas de seu entorno (Winnicott, 1958a/2000). Quanto a isso, a mãe brasileira Amarílis comentou: "Bom, eu fui trocar a primeira fralda dela quando ela tinha um mês. Porque, até então, minha mãe ficava comigo, minha sogra e minha cunhada também. Eu não me lembro de ter trocado fralda dela quando ela tinha menos de um mês, ela era muito pequenininha, dava medo". A mãe francesa Clivie também ponderou em relação a essa questão: "Ah, porque sua mãe como companhia é realmente um alívio, porque ela já deu à luz a crianças. Bem, nós somos quatro filhos. Eu sou a última filha. Portanto, é verdade que era realmente reconfortante ter a mão de minha mãe por perto".

Algumas mães, como Clivie e Violette, fizeram referências positivas ao período gestacional, destacando seu prazer e as expectativas frente ao crescimento intrauterino de suas filhas; contudo, elas também revelaram um temor em relação ao parto. Já Sálvia, Vivace, Aubriette, Orchidée e Iberis relataram ansiedades, dilemas e sofrimentos ocorridos em diferentes momentos da gestação com relação às mudanças físicas, às dores, ao peso, às crenças, ao medo e às preconcepções frustradas diante da gravidez e do parto, como ilustra Orchidée: "Durante a gravidez... Eu não gosto da gravidez. Francamente, eu amo a criança quando ela está aqui, eu posso tocá-la, enquanto que, na barriga, não... Eu não gosto das contrações, porque eu não gosto de ver meu corpo [se] deformar... Sinto-me mal, eu não gosto. A fadiga... A gente perde energia. Eu me sinto mal em tudo, dores nas costas, dor... Então, eu não gosto de contrações. Para mim é difícil, mas bom".

Tais pontos de vista e atitudes, todavia, não evidenciam necessariamente uma gravidez problemática, pois são experiências próprias da transição física e mental por que passa toda mulher grávida (Soifer, 1980; Langer, 1981).

Os dois grupos revelaram experiências prazerosas e frustrantes junto a seus bebês, experiências essas que levaram a uma concepção cada vez mais realista e menos idealizada da maternidade, incluindo um sentimento de sobrecarga, próprio da transição física e mental por que passa toda mulher que tem ou vai ter filho (Soifer, 1980). Assim, elas puderam vivenciar a fusão com suas filhas já intrauterinamente, com uma crescente identificação e um desinvestimento dos próprios anseios, característicos do estado de "preocupação materna primária". Quanto a esse ponto, Violette disse: "Pensar na separação é ir contra o coração". Já Orchidée refletiu: "Meus sentimentos... É bastante difícil, pois como eu estou sozinha agora com ela, eu tenho que cuidar de tudo. É um sentimento muito forte, é verdade que é muito fusional".

Contudo, houve uma distinção entre os dois grupos em relação ao parto. Nesse âmbito, as mulheres brasileiras demonstraram sentir-se mais seguras com a presença e a participação dos médicos no momento do nascimento. Verificou-se, assim, que o parto com o auxílio médico foi o mais frequente nesse grupo. Alfazema relatou: "Conversei com minha médica sobre o parto: havia um feriado próximo à data estipulada e a médica me 'tranquilizou', dizendo que, no feriado, às vezes era um pouco mais difícil achar o pediatra, o anestesista, mas que eu não precisava ficar preocupada. Mas, como eu sentia a pressão da família e vi no ultrassom que estava tudo bem, resolvi fazer a cesárea". Já Rosa disse: "Tinha sido tudo bem e foi uma cesariana por opção. Eu entrei em trabalho de parto, mas fiquei pensando como iria fazer com meu filho mais velho, pois não poderia ir para o hospital de supetão", ou seja, sem uma organização prévia.

Já as mulheres francesas valorizaram mais o parto natural e algumas delas fizeram referência ao parto em casa e aos cursos de preparação para ele, como argumenta Salvia: "O curso é uma maneira de se preparar para o parto através do contato pele a pele, do olhar para si mesmo e estabelecer confiança. Finalmente, desta forma, a gente se preparou para o nascimento". Já Clivie relatou: "Fui para o campo, para minha família". Ela justifica essa escolha devido ao fato de possuir um apartamento pequeno que não tinha nenhum espaço e que não estava muito bem. Por isso, preferiu retornar para o campo: "E, na verdade, eu tive o parto no campo". Já Violette falou sobre sua alegria em relação ao parto natural: "Bah, na verdade, realmente precisamos que tudo aconteça perfeitamente para deixar nascer por uma maneira natural. Se o bebê está virado, é preciso nascer por uma cesariana e isso é algo muito sério, porque eu realmente queria colocá-la no mundo naturalmente e dar à luz a minha filha por meios naturais. Eu realmente não queria uma cesariana, é um pouco, uh, para mim, é uma intervenção, uh, radical, e eu tenho medo de uma intervenção e ao mesmo tempo eu também estava em vias de viver este momento mágico, entre aspas, uh, ter um parto... No final eu consegui ter um parto normal e fiquei muito contente, tudo correu bem... E ter podido viver isso, e ter sido capaz de compartilhar esse momento com ela, eu pensei muito no final, porque eu estava realmente em vias de fazer uma cesariana".

As mães francesas pareciam acreditar que tais práticas eram mais condizentes com uma boa recuperação física após o nascimento do bebê e um melhor relacionamento com eles. Após o nascimento de suas filhas, elas também valorizaram mais o contato com a natureza e reiteraram a importância de passeios que promovessem o que consideravam ser uma desintoxicação urbana, como destacou Clivie: "Aqui, quando eu estou aqui, me sinto bloqueada. Eu não gosto. E, uh, e Bellis, estranhamente, quando estamos no campo e, logo em seguida, quando a porta está aberta, ela fica o tempo todo olhando para fora, o tempo todo, o tempo todo. Portanto, isso me incomoda porque acho que aqui talvez ela se sinta um pouco presa como eu. Ela deve sentir essas coisas também. Ela pode se sentir um pouco mal quando eu estou em Paris, pode ser, não sei". Desse modo, para elas, a maternidade possibilitava o resgate de uma vida mais simples e natural, numa busca de valores essenciais e fundamentais. É importante destacar que as cidades nas quais foi realizado este estudo proporcionam um ritmo de vida agitado.

Algumas mães dos dois grupos se referiram em seus relatos ao sofrimento durante a gravidez e o nascimento das filhas. Entretanto, nenhum desses casos pareceu configurar uma condição preocupante grave, sendo que as descrições das mães brasileiras e francesas revelaram que elas e seus bebês foram capazes de superar as adversidades e realizar uma transição suficientemente boa até uma etapa de maior equilíbrio e tranquilidade, como relatou a mãe francesa Salvia: "Então, foi ótimo (pausa), muito rápido (pausa), rapidamente (pausa), aprendemos muito, tivemos bons resultados, hoje eu estou encantada (breve pausa), muito feliz de ter uma filha e ela é a coisa mais bela do mundo que eu poderia fazer. Eu digo, eu percebo que é muita felicidade (pausa), muita satisfação (pausa), é uma espécie de realização ter um filho e eu não [me] dava conta [disso] antes... Há tanta coisa para trocar, há tanto amor (pausa), é impressionante o que essa experiência pode trazer (breve pausa), é impressionante, como eu vou dizer (pausa), é verdadeiramente uma autorrealização ser mãe na verdade. Se eu não tivesse perdido o outro bebê, eu não saberia, mas foi uma pena perdê-lo. Porém, por outro lado, isso é (pausa) tão surpreendente que, antes, eu estava especialmente distante das crianças (pausa), mas, agora (pausa), é uma verdadeira descoberta para mim ter um bebê (pausa)".

É particularmente relevante destacar que, durante os momentos de angústia e de alívio surgidos nos relatos das mães, nos casos em que o bebê também estava presente na entrevista, ele mudava de atitude e parecia acompanhar o discurso da genitora, dormindo ou acordando, balbuciando, ficando inquieto ou tranquilizando-se. Jasmim estava mais acordadinha no momento da entrevista e ficava balbuciando quando sua mãe Begônia dizia algo; quando Salvia disse, ao visualizar o cartão 1 do CAT-A, que ele a fazia pensar na filha, que ela não comia ainda na mesa como no desenho, Aster começou a balbuciar e dar gritinhos cada vez mais altos. Quando Salvia deu atenção para a filha, ela se acalmou e depois a mãe continuou seu relato. Essa interação da dupla evidenciada no momento da entrevista denota a unidade mãe-bebê, presente desde os momentos iniciais, como argumenta Winnicott (1965a/1993).

Sobre a experiência da amamentação, as narrativas das mães de ambos os grupos em sua grande maioria evidenciaram que elas foram capazes de estabelecer uma conexão amorosa suficiente com a filha, o que permitiu vivenciar um sentimento de unicidade com os bebês, principalmente ao conseguirem amamentar. Com exceção de Iberis, que fazia uso de medicação, todas as mães brasileiras e francesas amamentaram durante algum tempo. Seguidamente ao parto, a experiência da amamentação também contribuiu para que essas mães conseguissem romper com as idealizações sobre essa experiência com suas filhas. Gérbera contou: "Azaleia teve dificuldades de pegar o seio no primeiro dia e a descida do leite também foi um pouco complicada, mas foi muito gostoso também. Só fiquei triste por não ter conseguido amamentá-la por muito tempo, pois ela começou a rejeitar o peito". Essa desidealização, contudo, não foi impeditiva do estabelecimento da vinculação necessária à instauração do processo de ilusão/desilusão no relacionamento da díade, o que possibilitou às mães recuperarem, de alguma maneira, a indiferenciação física da gravidez que havia sido perdida no parto.

Da parte das mães brasileiras, Camélia foi a que demonstrou maior sofrimento. Ela apresentou uma dificuldade importante de adaptação inicial ao seu bebê: "Sim, foi muito difícil. Foi uma experiência traumatizante". Nesse momento, Camélia parou de falar por um curto período e depois continuou: "[Eu] imaginava que amamentar fosse algo bem prático: a mãe tem o bebê, desce o leite e o bebê pega. Porém, com ela não foi assim. Liz era muito sonolenta, não chorava e não pegava o peito. As enfermeiras na maternidade orientavam como proceder para ter uma boa pega, mas, mesmo assim, tinha dificuldades. Exaltada, contou: "Já fiquei quarenta minutos tentando dar o peito e minha filha não pegava". Camélia ponderou que esses momentos foram muito frustrantes e preocupantes também. Contudo, sua persistência e o desejo de conectar-se com sua filha permitiram-lhe alcançar um grande prazer ao amamentar.

Embora importante, a conexão física do aleitamento materno não foi essencial para o estabelecimento do vínculo estreito entre mãe e bebê, como demonstrou Vivace, mãe pertencente ao grupo francês, que conseguiu amamentar durante um mês, mas a angústia que experimentou nessa época a levou a introduzir a mamadeira mais cedo, experiência que a tranquilizou, permitindo-lhe estabelecer a fusão e o holding necessário para o bom desenvolvimento da filha: "É engraçado isso, na verdade, para mim, a amamentação era incompatível com a mãe que eu queria ser. Eu queria ser uma mãe jovem, bem, eu tenho 34 anos, mas... Uma mãe moderna e dinâmica, e de fato quando tentei amamentar, eu disse: 'É bom para ela e eu vou tentar'. Recusei-me a ordenhar o leite, porque parecia uma vaca ao retirar o leite... Amamentar assim é como uma vaca, e eu penso que é antifeminino. E na verdade, como eu sou uma mulher, eu digo o que eu quero e a feminilidade de uma mulher para mim é muito importante. O lado sexy, mesmo sendo mãe, é algo que valorizo, os lados feminino e maternal são importantes para mim e, na verdade, quando eu vi minha filha e o que era bom para ela, eu me surpreendi de ter conseguido amamentar durante um mês. Na verdade, eu tinha um monte de princípios e ideias preconcebidas, preconceitos, e depois que Brassia nasceu, tudo mudou".

Como destaca Winnicott (1963a/1983), vale ressaltar que o importante é que se dê a nutrição fisiológica e afetiva e, sendo assim, a entrada precoce da mamadeira não é necessariamente prejudicial ao bebê. Mesmo assim, Orchidée, que tinha sentimentos ambivalentes face à amamentação – vista por ela como algo sofrido e às vezes cansativo –, resolveu ultrapassá-los e esperar a filha sinalizar o término do aleitamento em vez de tomar a iniciativa por ela própria. Portanto, o modo como as mães conduziram o início, o transcorrer da amamentação e o desmame mostrou o quanto amamentar era algo importante e valioso para os dois grupos, porém, não isento de dores e sofrimentos.

Principalmente no caso das mães primíparas, pelo desconhecimento prévio da realidade do manejo do aleitamento, houve uma idealização intensa dessa experiência nos dois grupos, como Vivace sinalizou anteriormente. No caso de Orchidée, que já possuía outros filhos, não havia essa idealização: "É uma experiência que depende do tempo e da fadiga também... Eu não parei de amamentar porque meus outros dois filhos, eu amamentei, minha filha mais velha... Foi até 18 meses".

A despeito das dificuldades surgidas nessa etapa, todas as mães demonstraram que a qualidade da interação e as fantasias em torno desses momentos iniciais compunham a devoção necessária que elas dirigiam a seus bebês: elas agiram de modo especial, indicando que estavam identificadas com eles. A devoção foi claramente identificada em todas as mães: mais intensamente naquelas cujos bebês eram mais novos, sinalizando o estado simbiótico da díade; e de uma forma mais branda nas mães dos bebês mais velhos. A única exceção foi Violette, que, mesmo identificada com seu bebê de 3 semanas, já vislumbrava a retomada de sua autonomia: "Eu me sinto bem, eu não sei se eu vou amamentar por muito tempo, porque é muito contraditório, pois eu preciso procurar trabalho, mas para mim é um momento muito agradável". Em outro trecho da entrevista, ela complementa: "(...) é preciso que logo mais eu busque um trabalho (...), eu acho que nós esperamos muito de uma mãe, que ela consiga ao mesmo tempo administrar a sua vida pessoal e profissional depois da chegada das crianças... As crianças em casa, e o trabalho fora".

As narrativas mostraram que, de modo geral, as mães brasileiras e francesas estavam sendo capazes de se adaptar, atender as necessidades de seus bebês e de transpor as dificuldades encontradas no início da relação da díade, quando elas existiram. Com isso, elas conseguiam oferecer a seus bebês um ambiente capaz de acolher seus movimentos espontâneos correspondentes a essa etapa da vida. Nesse ponto, as mães relataram com prazer suas lembranças dos momentos do banho das filhas, das pequenas massagens, do contato pele a pele durante a alimentação e da interação de um modo geral. Alfazema comentou de seu prazer: "Eu gosto de dar banho, de trocar, sempre gostei de fazer tudo isso". Salvia relatou sobre o contato corporal: "[Após o banho] eu a envolvo em uma toalha quente e depois a coloco no trocador sobre a cômoda e depois coloco a fralda e faço uma pequena massagem, para que ela tenha um pouco de consciência de seu corpo (...). Faz bem tocar os bebês". Já Violette destacou a interação: "Na hora de trocar a fralda, a gente conversa muito com ela: 'Olha a gente vai trocar a fralda, que legal!'. Então, a gente sempre conversa e interage com ela, de uma forma ou de outra, sempre interagindo".

Esse modo de interação corpo a corpo promovia o terreno para existência de um relacionamento entre mãe e bebê, com o ego da primeira sustentando o ego nascente da segunda (Winnicott, 1958a/2000).

Iberis foi a mãe que demonstrou um controle mais metódico da interação corporal com sua filhinha, evidenciando a maneira como ela conseguia controlar sua ansiedade, que era evitando imprevistos no relacionamento com a filha: ela deixava tudo pronto previamente, pois assim conseguia usufruir momentos com seu bebê sem uma grande interferência de angústias próprias da relação ou de seus problemas pessoais, como o processo de divórcio que vivenciava: "Eu acho que eu me sinto bem, é verdade que tenho de calcular, por exemplo, quantas mamadeiras ela mama no dia. Eu não faço uma de cada vez, eu preparo o pó e a quantidade de água certa e deixo tudo pronto, na hora que ela vai mamar é só girar o botão e assim evita que eu corra para preparar a mamadeira. Eu sempre faço assim e, francamente, quando ela dorme, eu realmente me sinto muito bem, porque evita de ter que correr para a cozinha para preparar uma mamadeira. Eu digo não, não gosto disso, então deixo tudo pronto".

Se nos dois grupos o entorno do bebê estava garantido em termos de qualidade, o da maioria das mães entrevistadas também estava. Todas as mães estiveram acompanhadas em sua jornada rumo à maternidade e receberam a colaboração de alguém: pais, marido, médico, enfermeiras, amiga, filhos mais velhos e até mesmo do excompanheiro. Porém, a qualidade dessa interação com a família de origem foi distinta entre os dois grupos. As mães brasileiras, com exceção de Gérbera, fizeram uma boa referência a essa participação. Embora tenha havido relatos de intrusões e interferências das famílias de origem em sua relação com o bebê, a maior parte delas retratou quão importante e bem vista era a participação de uma pessoa em suas vidas para poderem se devotar integralmente a suas filhas. Todas as mães brasileiras tiveram alguém em quem confiavam para colaborar nos cuidados com o bebê e oferecer-lhes o holding necessário para mergulharem na maternidade. Essa pessoa cuidadora de cada mãe na maior parte das vezes era a própria genitora, que tinha a função de esclarecer dúvidas e auxiliar na dinâmica familiar e doméstica e no holding e handling do bebê.

Já as mães francesas retrataram uma indisponibilidade maior para incluir outros familiares no cuidado do bebê, evidenciando que essa função era mais restrita a elas e ao pai de sua filha. Foram estas as palavras de Violette em relação aos seus pais: "Eles vieram, mas já foram e eu realmente não pedi ajuda na verdade; por isso eles aproveitaram a criança. Eles a pegaram em seus braços e eu não pedi ajuda para cuidar dela e mudar tudo... E mais, eles estavam lá para vê-la, mas eu não sinto que eles não vieram para me ajudar (...) Finalmente nossa nova vida (pausa). E já encontrar o nosso ritmo junto com o pai e não necessariamente ter os conselhos".

Quatro mães francesas ressaltaram a necessidade da presença de alguém para ajudá-las: Clivie, que se mudou durante o resguardo para a casa de seus pais no campo; Vivace, que contava com seu pai; Orchidée, que se lembrou da amiga que a ajudou após o nascimento da filha; e Iberis, que era assistida por seus filhos mais velhos. Aubriette estava sozinha com suas três crianças e fez referência à mãe, que falecera alguns meses antes de sua filha nascer. Essa situação revela que, embora as mães francesas, como as brasileiras, resgatassem espontaneamente suas experiências pessoais como filhas e em família (Soifer, 1980), a participação direta da família de origem não era algo muito recorrente nem valorizado por elas como uma ajuda para o fornecimento de holding e handling aos bebês.

Quanto aos pais dos bebês especificamente, a participação de cada um deles foi considerada pelas mães como de muito valor nos dois grupos; todavia, houve uma distinção quanto à definição sobre a quem pertencia a responsabilidade do cuidado da filha. As mães brasileiras eram todas casadas e desfrutavam da presença constante dos pais dos bebês na vida da díade. Elas relataram que, em muitos momentos, os maridos realizavam a maternagem do bebê, considerando, assim, que a função paterna incluía poder substituí-las eventualmente nos cuidados e na supervisão da filha, além de promover a proteção da díade, como preconiza Winnicott (1958a/2000). Porém, como aparece claramente na perspectiva de Alfazema, Margarida e Camélia, para elas, os maridos estavam "colaborando" em uma função que era delas, situação que, em muitos momentos, lhes provocava ciúme, mas também sentimento de sobrecarga quando eles não faziam isso. Desse modo, elas queriam e não queriam o marido por perto, configurando uma ambivalência à participação dele na vida da díade, como revela Begônia: "Ele faz tudo o que eu faço, até me ajuda a cuidar de Jasmim". Margarida enfatizou: "Às vezes meu marido vinha e trazia as crianças para a creche, mas isso se deu depois de muita conversa, não foi espontâneo da parte dele". Ela tentava estimar uma razão para tal comportamento: "(...) não sabia se era porque homem era mais sossegado ou se era a mulher que fazia tudo e eles acabavam deixando as responsabilidades para elas". Sobre as tomadas de decisões em relação à filha, disse Alfazema: "A decisão é minha, pois eu deito Patchuli lá no quarto sozinha, assisto televisão com meu marido e depois eu me levanto e vou dormir com minha filha". Ela contou ainda que seu marido concordava tranquilamente com essa situação e dizia que, se isso a deixava mais tranquila, ele aceitava sua conduta.

As mães francesas também valorizaram a participação dos pais no cuidado da filha, mas retrataram que essa participação era mais espontânea e ativa, como ilustra Violette: "Bem, um dos primeiros fatos que foram bons, na verdade, foram as primeiras horas após o nascimento: estávamos todos os três [ela, o pai e a bebê] no quarto, ela dormia em seu bercinho, e nós ao lado, observando-a (risos). Após sua chegada ao quarto, nós pudemos estar nós três, nós fomos os primeiros a pegá-la e fazer os primeiros contatos. Essas são as primeiras lembranças e depois disso... Agora, no cotidiano, quando damos o banho, todos os três, a pequenina está começando a nos olhar... São outras experiências que guardaremos... Os primeiros momentos ficaram únicos, depois, a cada dia há novidades, novas pequenas experiências que seguem o desenvolvimento da criança".

Contudo, é importante considerar que, no grupo de francesas havia quatro mães (Salvia, Vivace, Lavande e Violette) que moravam com os pais de suas filhas e quatro mães (Orchidée, Aubriette, Clivie e Iberis) que moravam somente com a filha ou com ela e os filhos mais velhos. Dessa forma, os pais que estavam presentes eram incluídos no núcleo familiar, sabiam lidar sozinhos com os bebês e eram encorajados pelas esposas a exercerem sua paternidade. Clivie, mesmo separada do pai de sua filha, encorajava a integração dele com o bebê: "[...] quando ela estava na minha barriga, ele tocava minha barriga. Eu me pus um pouco de lado e eu o deixava com a criança para que ele descobrisse Bellis". Nesses casos, alguns relatos das mães sugeriram que eles experimentavam ciúme diante da reticência delas de partilhar todas as decisões sobre a criança, como relatou Vivace: "Quando ela vai dormir com a gente, o que não é bom é que vai ser três na cama, ela ocupa um lugar enorme e tudo gira em torno dela. Na verdade, quando você tem um filho e que o casal é um casal, é difícil... (pausa). Porque uma criança em um quarto, para mim, põe fim em todas as relações sexuais, não é mais um casal, é verdade... É difícil e foi preciso colocá-la em seu quarto".

Já as mães que estavam sozinhas na condução do manejo e da educação das filhas expressaram a falta que sentiam de alguém para exercer a paternidade e ajudá-las. Essas mulheres demonstraram tristeza, raiva e ressentimento pela recusa dos pais de assumir e conviver com as filhas, e também culpa por não oferecerem um pai para seus bebês. Esse fato ficou bem evidente na fala de Orchidée: "Então, é difícil no cotidiano [...]. É difícil de qualquer maneira, porque todas as noites em que eu acordo, eu não estou com o pai, e quando ela está doente sou eu quem cuida, isso é evidente, caso contrário, é, bom [...]. Eu não queria... Como eu estou sozinha com ela, sou eu quem a olho todo o tempo [...]. Na verdade, quando há pai em casa... É diferente... Ele está lá para proteger a família... Então, eu sei que eles estão protegidos com ele, mas ela não está".

De modo geral, os pais presentes na casa proveram a ambiência necessária para as mães poderem se devotar aos cuidados de seus bebês, bem como estavam disponíveis para ajudá-las a sustentar o vínculo com a filha em bases mais simbólicas, à medida que a unidade mãe-bebê se tornava mais diferenciada, algo também verificado por Barbieri (2015). Com isso, essas mulheres tinham condições mais favoráveis para iniciar o resgate gradual de sua autonomia e promoverem a da filha. As mães que não dispunham dessa presença dos pais do bebê contavam com os recursos que possuíam, e esse apoio era exercido por outras pessoas da família de origem (Clivie), pelos próprios filhos (Iberis e Aubriette) ou por uma amiga (Orchidée).

Ter alguém para partilhar a maternagem mostrou-se um ponto importante tanto para o grupo francês quanto para o brasileiro, pois essa tarefa exigia de cada mãe uma entrega em todos os níveis: de sentimentos, de tempo e de disponibilidade física, financeira e social. Sendo assim, elas mostraram que, quando podem contar com a colaboração de alguém, têm condições de administrar melhor tanto os desejos oriundos da relação mãe-bebê como os incompatíveis com esse vínculo e suas possibilidades de satisfação. Em consequência, as mães que tinham a presença de alguém lhes oferecendo apoio constantemente sentiam-se melhor, eram capazes de expressar seus sentimentos de maneira mais fluida e podiam experimentar pouco a pouco os movimentos de fusão/diferenciação de suas filhas (Winnicott, 1958a/2000).

Embora encantadas com o relacionamento de cuidado e dependência, todas as mães vislumbraram o resgate da própria autonomia; contudo, esta estava condicionada ao bom desenvolvimento e à certeza do bem-estar do bebê quando distante delas. As mães francesas, nesse aspecto, fizeram um discurso em relação à valorização da própria autonomia de uma maneira um pouco mais livre e desembaraçada, como demonstrou Allamande: "Eu tento, agora eu tento cuidar de mim, eu sei que ser mãe é outra coisa, mas para o casal é preciso ficar charmosa, mesmo se você estiver em casa. Neste momento, eu ainda não trabalho e, finalmente, eu acordo de manhã, eu vou cuidar da minha filha (breve pausa), por isso (pausa), é verdade que há dias em que eu não uso maquiagem e me visto sem tentar fazer esforços para me cuidar, mas eu sei que tenho que me esforçar".

Já a maioria das mães brasileiras (Orquídea, Rosa, Gérbera, Alfazema e Margarida) exibia um discurso um pouco mais culposo, como se a realização pessoal concorresse com um relacionamento intenso com a filha, como relatou Rosa: "Os meus filhos não me dão trabalho, mas sou eu que lhes dou trabalho, pois eu fico muito atordoada".

Nesse contexto, foi curioso notar que as duas mães mais jovens participantes dessa pesquisa, cada uma de um grupo cultural, fizeram referência à própria autonomia como algo essencial para o seu bem-estar. Amarílis (27 anos) relatou que já não se sentia satisfeita com a dedicação exclusiva ao bebê e à vida doméstica e só se sentiu melhor quando voltou a trabalhar. Violette (27 anos), por sua vez, já se preocupava com a volta ao trabalho quando a filha ainda tinha 3 semanas. Nos dois casos, as mães parecem ter sentido a densidade da função materna e certo medo de serem engolfadas por ela e obrigadas a renunciar à sua identidade pessoal anterior. Embora essa valorização da autonomia por Amarílis fosse compatível com o fato de ter um bebê "mais velho" (11 meses), no caso de Violette, isso era mais surpreendente, pois seu bebê estava com apenas 3 semanas, ainda numa condição de total dependência dela.

Para algumas mães brasileiras e francesas que haviam passado por experiências de maior sofrimento antes e após o nascimento da filha, como Rosa (depressão), Orquídea (icterícia da filha e assalto em sua residência), Aubriette (divórcio e sentimento solidão), Orchidée (divórcio e problemas de saúde) e Iberis (abandono do marido e relato de tristeza frente à separação), a ideia em si da autonomia das filhas ainda era algo difícil de ser assimilado. Os eventos externos dolorosos e intensos que elas viveram parecem tê-las deixado mais vulneráveis e inseguras para investir na autonomia dos bebês. Mesmo assim, elas não negavam que as necessidades de independência deles iriam surgir em um futuro próximo, como ilustra Amarílis: "Acho que é, assim, uma sensação de alívio quando vai ficando mais independente, mas tem uma sensação de perda também. Ela precisava mais de mim e agora, não. A gente impulsiona, mas ao mesmo tempo a gente fica com aquela saudade. Mas acho que é isso mesmo".

Os sentimentos das mães em relação ao sexo biológico de suas filhas também receberam atenção especial nos relatos. O fato de o bebê ser uma menina pareceu ocasionar muito prazer para as mães. Quando elas abordavam essa questão, relatavam sentir alegria por essa condição: deixaram transparecer um tom de maior delicadeza na fala e detalharam os cuidados com o corpo e com a aparência de suas filhas (cabelo e vestimentas). As mães que já tinham filhos do sexo masculino assinalaram a distinção entre o manejo de meninas e meninos, como revelou Lavande: "É perfeito. Existem coisas de meninos e de meninas. Um menino e uma bonequinha... É perfeito. Ele brinca como quer; já Clematis, ela se parece comigo, quero dizer, os olhos claros (sorri)... Sou eu... Tudo está indo bem, ela tem um bom temperamento até o momento, ela é muito pequena, mas eu confio que ela terá um bom caráter (...)". A única mãe que fez referência a um grande receio que sentia antes do nascimento da filha pelo fato de ser uma menina foi Vivace. Essa mãe francesa temeu reviver a rivalidade que experimentara com sua genitora durante a adolescência; contudo, diante da realidade do contato com a filha, esse sentimento foi amenizado e Vivace já encontrava vantagens no fato de a filha ser do sexo feminino – elas seriam mais próximas uma da outra quando a menina fosse adulta.

Em síntese, as narrativas revelaram que a maternidade para os grupos de mulheres brasileiras e francesas estava sendo uma experiência transformadora. As mães brasileiras não ignoraram o trabalho e a dedicação que a maternidade exige, mas mostraram que havia, como contrapartida, a afetividade e os grandes aprendizados que colaboraram para enriquecê-las e realizá-las como mães. Elas vivenciaram a preocupação materna primária mostrando-se sensíveis às necessidades de seus bebês e desejosas de atendê-los. Houve superação das dificuldades encontradas no caminho da maternidade e ultrapassagem dos próprios limites. Pouco a pouco elas estavam conseguindo integrar essa experiência no próprio repertório de vida, sempre contando com o apoio externo e harmonizando sua identidade como mãe à sua identidade pessoal.

As mães francesas, diante da imensidão de sentimentos que a maternidade suscitava, expressaram em seus relatos atitudes e reações que revelaram a importância que atribuíam ao resgate da vida conjugal, social e profissional e à independência própria e de seus bebês, parecendo ser essa a meta da maternidade. Mesmo assim, todas elas evidenciaram suas fragilidades – quando indicaram que não sabiam tudo e que estavam cansadas, temerosas e sobrecarregadas –, o que também as colocava em contato com seus limites e dificuldades. Isso, contudo, não as impedia de promover e proporcionar uma maternidade compatível com as necessidades de suas filhas, viver um período de indiferenciação com elas e ingressar no estado de preocupação materna primária. Deste modo, apresentaram intensa devoção no nível de cuidado materno, frustrando os bebês de acordo com o nível de tolerância deles.

As mães brasileiras, seguindo o ritmo agitado que caracteriza a vida contemporânea (Birman, 2012), queixaram-se da dificuldade de conciliar seus anseios pessoais, a sexualidade, a realização profissional, a maternidade, o trabalho, o lazer e o esporte. A harmonização de todas essas facetas da vida exigia-lhes um grande esforço e, frente a isso, pareciam viver de maneira um tanto culposa. Com as mães francesas não foi diferente: além dessas queixas, elas se referiram também a uma preocupação com questões de ordem social e política, tais como a importância da descendência francesa da filha, as exigências de perfeição que a sociedade francesa possuía em relação à mulher, a falta de delicadeza e o desrespeito das pessoas para com as grávidas e as mães, o aumento do custo de vida ao se ter um filho, o intenso ritmo de vida, os preconceitos raciais, o medo do futuro incerto da criança diante de tantas guerras e conflitos religiosos e a influência da descendência dos pais nas escolhas e nos valores que ensinam às filhas.

Quanto a isso, relatou Salvia: "Com os tempos de hoje na França, as crianças estão cada vez mais difíceis; é preciso ter personalidade para ter um lugar, lugar, lugar. Então, eu espero que ela tenha personalidade para construir o seu lugar (pausa), e ser, sobretudo, feliz. Eu espero que seja muito sociável, que seja forte para viver neste mundo que é difícil, e este é meu maior medo hoje. Será que ela vai ser feliz? (pausa) Ela será forte? (pausa) Será que o mundo não terá guerra? (pausa) E as coisas serão assim? (pausa) É isso, eu tenho medo hoje em dia". Já Violette apontou: "Está indo bem. Do ponto de vista da cultura, eu sou francesa, meus parentes são franceses e meu companheiro também, de modo que temos uma cultura verdadeiramente francesa (risos). Ao fim, estamos sempre juntos. Ah, nós vivemos alguns anos no Canadá, em Québec, na parte francesa, então eu me senti... Então é uma experiência muito, muito francesa (risos)".

Todos esses aspectos revelam que a constituição da maternidade não é algo isolado que acontece na vida de uma mulher, mas algo que está em constante interrelação com o contexto sociocultural em que ela vive, conforme também observou Roudinesco (2003). Desse modo, essas mulheres são ativas e batalhadoras dentro de seus grupos socioculturais, usufruindo das vantagens que ele oferece, sofrendo com suas mazelas e, ao mesmo tempo, construindo esse contexto por meio do cuidado e da educação de seus filhos e filhas.

 

5) Considerações finais

Considerando o objetivo deste estudo de compreender a experiência da maternidade em uma perspectiva transcultural, nossa escolha metodológica de utilização do CAT-A como mediador da comunicação para a composição das narrativas das mães se mostrou bastante profícua. A composição teórico-metodológica da investigação permitiu uma aproximação do olhar das mulheres entrevistadas sobre o modo como vivenciam e pensam a maternidade, abrindo portas para novos estudos com estratégias semelhantes. Os cartões utilizados do CAT-A suscitaram informações sobre a gestação, o parto, a amamentação e o desmame, o holding e o handling, a importância do entorno da mulher nesse momento de sua vida, as reações emocionais das mães, o papel do marido ou companheiro, dentre outros conteúdos vinculados à maternidade.

As informações obtidas na análise das narrativas permitiram afirmar que tanto as mães brasileiras como as francesas vivenciaram o "estado de preocupação materna primária", com as facilidades, dificuldades, vicissitudes e particularidades de cada grupo cultural, o que possibilitou que criassem um ambiente novo e adaptado aos seus bebês (Winnicott, 1958a/2000). Desse modo, essas mães, além de oferecerem holding e handling para suas filhas, estavam realizando a apresentação do objeto para elas, estimulando-as e proporcionando-lhes a experiência da ilusão necessária para se desenvolverem. Por meio do cumprimento dessas três funções (holding, handling e apresentação do objeto), elas ofereciam a seus bebês referências simples e estáveis do mundo externo, permitindo-lhes desfrutar de um bem-estar físico que colaborava para a integração e personalização deles. Desse modo, as mães estavam proporcionando experiências suficientemente boas que favoreciam a transição evolutiva de seus bebês da etapa de dependência absoluta para a de dependência relativa (Winnicott, 1958a/2000; 1963a/1983;1960a/1970).

Assim, as narrativas revelaram que as mães brasileiras e francesas ofereciam a suas filhas uma experiência cuja qualidade era capaz de proporcionar um terreno fértil para o amadurecimento tanto de seus próprios selfs como também o de seus bebês, de modo que se sentissem integrados e bem consigo mesmos. Nesse contexto e de encontro com as peculiaridades de seu grupo cultural, que envolvem seus valores, o clima, a educação, o conhecimento, a formação profissional e o significado do que é ter um filho, essas mulheres vêm conseguindo promover a humanização crescente de suas crianças. As francesas, de um modo geral, promoveram e valorizaram a independência do bebê desde muito cedo, ratificando a necessidade do resgate de sua vida profissional, social e amorosa, num discurso muito mais livre e compartilhado com o pai. A participação ativa da família de origem do casal não foi muito estimada pelas mães francesas, mas foi vista como necessária pelas mães brasileiras. Estas conceberam a educação de suas filhas como uma tarefa centralizada na mulher, sendo o pai um mero colaborador; além disso, a promoção da própria independência, bem como a do bebê, foi mencionada em um discurso mais culposo.

Conhecer essas mães em suas particularidades mostrou quão sofisticada, complexa e intensa é a experiência da maternidade para uma mulher. Essa experiência requer, além do desejo pelo bebê, uma preparação física e emocional para viver de uma forma mais prazerosa e menos angustiante o nascimento e a educação de um filho. Diante dessa complexidade, é fundamental a produção de conhecimentos e a promoção de ações que colaborem para a sustentação e o auxílio que a mulher necessita, independentemente da cultura a que ela pertence, já que garantir seu bem-estar físico e mental é também assegurar o da criança.

 

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Endereço para correspondência
Irma Helena Ferreira Benate Bomfim
E-mail: irma@benate.com.br

Valéria Barbieri
E-mail: valeriabarbieri@uol.com.br e valeriab@ffclrp.usp.br

 

 

* Professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (FFCLRP – USP), e do Centro Universitário de Franca (Uni-Facef)
** Professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (FFCLRP – USP)
12 Processo CEP-FFCLRP nº 540/2010-2010.12141.59.2.
13 A menor duração da licença-maternidade na França leva a um ingresso mais precoce dos bebês nas creches, o que explica o fato de os bebês das mulheres francesas da amostra serem mais jovens do que os brasileiros.

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