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Natureza humana
versão impressa ISSN 1517-2430
Nat. hum. vol.17 no.2 São Paulo 2015
ARTIGOS
A "carne" (chair) como referência ontológica da "mãe suficientemente boa": aproximando Merleau-Ponty e Winnicott
The "flesh" (chair) as ontological reference for "good enough mother": in order to approach Merleau-Ponty and Winnicott
Alfredo Naffah*
Pontifícia Universidade Católica, São Paulo
RESUMO
O artigo pretende desenvolver o argumento de que a noção de carne (chair, em francês) – que constitui o conceito mor da ontologia selvagem de Maurice Merleau-Ponty – pode funcionar como uma referência ontológica para a noção winnicottiana de mãe suficientemente boa. Para tanto, numa primeira parte descreve-se a noção de carne; em seguida, a noção de mãe suficientemente boa para, por fim, articular os dois níveis de teorização: o ontológico e o ôntico, numa relação em que um nível referenda o outro, discriminando, nesse mesmo processo, o espelho materno winnicottiano do lacaniano (já que este último implica, necessariamente, uma alienação do bebê no desejo da mãe).
Palavras-chave: ontologia selvagem; carne; mãe suficientemente boa; referência ontológica.
ABSTRACT
This article intends to develop the argument that the notion of flesh (chair, in French) – which constitutes the principal concept of Merleau-Ponty's savage ontology – can work as an ontological reference for Winnicott's notion of good enough mother. For this purpose, it describes the notion of flesh; then, the notion of good enough mother, to finally articulate both levels of theorization: the ontological and the ontic ones, in a relation of mutual reference. At the same time, it discriminates Winnicott's conception of maternal mirror from Lacan's one (since this one implies, necessarily, an alienation of the baby in the mother's desire).
Keywords: savage ontology; flesh; good enough mother; ontological reference.
1) Considerações iniciais
Em um artigo anterior, quando abordava a relação do bebê recém-nascido com a mãe, teci as seguintes considerações:
Seria, entretanto, impreciso apoiarmos-nos na noção filosófica de intersubjetividade para designar esse tipo de relação mãe-bebê, tão peculiar é único. Especialmente porque, nos primeiros tempos, o bebê efetivamente não pode designar uma subjetividade constituída, no sentido forte do termo. Trata-se de uma relação em que ambos os sujeitos estão descentrados de si, a mãe estando presente aí fundamentalmente como um corpo/seio identificado ao bebê; este último emergindo como um corpo evanescente e amorfo identificado, por sua vez, a esse corpo/seio materno. Sugerem dois planos mutuamente imbricados e que passam um no interior do outro, sob a forma de um quiasma reversível.
Talvez, nesse sentido, a noção que melhor exprima esse estado de coisas seja aquela que Merleau-Ponty chamou de chair no seu livro inacabado Le visible et l'invisible (Merleau-Ponty, 1964) e que nós, de língua portuguesa, imperfeitamente14 traduzimos por carne. Veja-se, por exemplo, quão evocativas são essas palavras de Marilena Chauí, quando procura descrever essa noção merleau-pontyana:
A reversibilidade e a transitividade das cores, superfícies e movimentos – carne das coisas –, dos nossos sentidos entre si – carne do nosso corpo –, deles e das coisas como ressonância e reverberação sem começo e sem fim é o desvendamento do sensível como "o meio onde há o Ser sem que careça de ser posto". É isto a experiência sensível. O narcisismo fundamental do corpo em sinergia que se propaga entre os corpos numa reflexão intercorporal inacabada ou encarnação permanente na comunidade de Narcisos é a experiência da intercorporeidade como existência originária do eu e do outro (Chauí, 1981, p. 276).
Este, entretanto, é um assunto bastante complexo que exigiria um outro percurso reflexivo. Deixo-o, pois, aqui, apenas a título evocativo para futuras incursões no tema. (Naffah Neto, 2012a, pp. 53-54)
Ora, é precisamente essa a incursão que pretendo realizar aqui, aproximando a teoria psicanalítica de Winnicott daquilo que, na obra madura de Merleau-Ponty, se esboça nos termos de uma "ontologia selvagem". Ao realizar essa aproximação, entretanto, gostaria de deixar claro que ela não é sugerida por Winnicott – que, de fato, nunca se preocupou com questões filosóficas dessa ordem – nem tampouco por Merleau-Ponty. Outros intérpretes, no entanto, já tentaram realizar essa articulação entre os dois pensadores de maneira proveitosa15.
Também cabe considerar que essa aproximação, ainda que possível e esclarecedora – conforme tentarei mostrar ao longo deste trabalho –, não tem caráter absoluto nem impede quaisquer outras aproximações filosóficas que porventura se queira realizar a partir da obra winnicottiana.
Uma última observação importante é que essa busca de uma referência filosófica para um conceito psicanalítico – muito embora amplie e ancore seu sentido em bases mais claras – ocorre sempre em paralelo à sua justificação clínica. Ou seja, a experiência clínica é fundamental na formulação e sustentação do conceito teórico. Justamente no caso do conceito de mãe suficientemente boa, sua necessidade teórica decorre da experiência clínica de pacientes que, por terem tido um ambiente suficientemente acolhedor e respeitoso, tiveram um desenvolvimento emocional saudável (ou, no pior dos casos, neurótico), diferentemente de outros que, por terem sofrido falhas de um ambiente invasivo e descuidado, apresentam patologias de tipo borderline ou psicótico. Assim, o conceito é clinicamente necessário para diferenciar dois tipos de processo de amadurecimento: um saudável/neurótico de outro borderline/psicótico.
É também verdade, porém, que a experiência clínica não ocorre no vazio e é, também, informada pela perspectiva teórica em questão (numa relação dialética, sem síntese final), o que pode gerar controvérsias e discussões sem fim entre experiências clínicas diversas16. Nesses casos, a referência ontológica – mesmo que não seja capaz de resolver as querelas em questão, por não ser absoluta –, pelo menos tem o mérito de revelar em que agenciamentos filosóficos o conceito é empregado.
Isso dito, passo, pois, à tarefa proposta.
2) A ontologia selvagem de Merleau-Ponty e a noção de carne
Seria absolutamente impossível e fugiria totalmente dos objetivos desse estudo descrever e problematizar a ontologia selvagem de Merleau-Ponty no seu todo, inclusive porque ela permaneceu em grande parte em estado embrionário devido à morte do filósofo antes de desenvolvê-la integralmente. Seu livro O visível e o invisível (Merleau-Ponty, 1964/1984), que estava sendo escrito quando faleceu, em 1961, continha apenas uma primeira parte junto a um conjunto de notas a serem desenvolvidas posteriormente e que, em razão da morte, permaneceram apenas como notas. Meu objetivo aqui, pois, é apenas situar e definir a noção de carne no seio de sua obra.
Podemos dizer que, após um longo percurso na fenomenologia – no qual descentrou a noção de consciência e a substituiu pela noção de corpo perceptivo em obras como A estrutura do comportamento (Merleau-Ponty, 1942/1975) e Fenomenologia da percepção (Merleau-Ponty, 1945/1996) –, Merleau-Ponty passa a traçar, em linhas gerais, o projeto de uma ontologia selvagem na qual a noção de corpo cedeu o lugar de conceito mor a uma noção mais originária: a de carne (chair). Ele nos diz:
Ainda uma vez: a carne de que falamos não é a matéria. Consiste no enovelamento do visível sobre o corpo vidente, do tangível sobre o corpo tangente, atestado sobretudo quando o corpo se vê, se toca vendo e tocando as coisas, de forma que, simultaneamente, como tangível, desce entre elas, como tangente, domina-as todas, extraindo de si próprio essa relação, por deiscência ou fissão de sua massa. Essa concentração dos visíveis em torno de um deles, ou esta explosão da massa do corpo em direção às coisas, que faz com que uma vibração de minha pele venha a ser o liso ou o rugoso, que eu seja olhos, os movimentos e os contornos das próprias coisas, esta relação mágica, este pacto entre elas e mim, pelo qual lhes empresto meu corpo a fim de que possam inscrever e dar-me, à semelhança delas, esta prega, esta cavidade central do visível que é minha visão, estas duas filas especulares do vidente e do visível, do palpador e do palpado, formam um sistema perfeitamente ligado no qual me baseio, definem uma visão em geral e um estilo constante de visibilidade de que não poderia desfazer-me [...]. A carne (a do mundo e a minha) não é contingência, caos, mas textura que regressa a si e convém a si mesma. (MerleauPonty, 1964/1984, pp. 141 -142)
Vemos, pois, a partir daí, que a noção de carne não se identifica com qualquer forma de matéria, mas designa, antes de tudo, uma participação ontológica, originária, do eu e do mundo, num mesmo sistema reversível: ver-ser visto, tocar-ser tocado – uma espécie de pacto primordial pelo qual o eu empresta seu corpo ao mundo para que ele possa nele inscrever suas marcas distintivas, de forma que a vibração da pele possa vir a ser o próprio movimento e contorno das coisas, numa superfície de contato primordial na qual o eu e o mundo se abraçam, sem se dissolverem um no outro.
Numa das notas, ele nos diz: "Assim, o corpo é posto de pé diante do mundo e o mundo de pé diante dele, e há entre ambos uma relação de abraço. E entre esses dois seres não há fronteira, mas superfície de contato" (Merleau-Ponty, 1964/1984, p. 242). Ora, é esse pacto originário que permite que a existência de outro "eu" não constitua, aí, nenhum problema, como o era, por exemplo, na fenomenologia das consciências de Sartre17. Merleau-Ponty nos diz, numa das notas:
Não existe o Para Si e o Para Outrem. Eles são o outro lado um do outro. Eis por que se incorporam ao outro: projeção-introjeção – Existe essa linha, essa superfície fronteira a alguma distância de mim, onde se realiza a mudança eu-outrem outrem-eu18 [...]. O único "local" onde o negativo pode existir verdadeiramente é a dobra, a aplicação um ao outro do interior e do exterior, o ponto de virada – quiasma eu – o mundo, eu – outrem, quiasma meu corpo – as coisas, realizado pelo desdobramento do meu corpo em fora e dentro, – e o desdobramento das coisas (seu fora e seu dentro). (Merleau-Ponty, 1964/1984, p. 237)
Explicitando ainda mais a ideia de quiasma, ele nos diz:
O quiasma, a reversibilidade, é a ideia de que toda percepção é forrada por uma contrapercepção [...], é ato de duas faces, não mais se sabe quem fala e quem escuta. Circularidade falar-escutar, ver-ser visto, perceber-ser percebido (é ela que faz com que nos pareça que a percepção se realiza nas próprias coisas), – Atividade = passividade. (Merleau-Ponty, 1964/1984, p. 238)
Para explicitar melhor esse ponto de vista, num outro texto, intitulado O olho e o espírito, Merleau-Ponty cita o artista plástico André Marchand, que diz:
Numa floresta, repetidas vezes, senti que não era eu que olhava a floresta. Em certos dias, senti que eram as árvores que olhavam para mim, que me falavam... Eu estava lá, escutando... Creio que o pintor deve ser transpassado pelo universo, e não querer transpassá-lo... Aguardo ser interiormente submergido, sepultado. Pinto, talvez, para ressurgir. (Merleau-Ponty, 1963/1975, p. 282)
Trata-se, pois, de uma intercorporeidade originária – conforme sugere Marilena Chauí (Chauí, 1981, p. 276) – na qual a carne do nosso corpo se propaga ao interior da carne do mundo, e esta, por sua vez, reverbera no interior da nossa carne, sem se perderem de si próprias, ou seja, continuando a compor e a designar, respectivamente, nós mesmos e o mundo, como direito e avesso de um mesmo tecido.
3) A mãe suficientemente boa e sua relação com o bebê em Winnicott
Segundo Winnicott, o bebê, quando ainda está se formando no interior do útero materno, advém em dado momento de uma solidão essencial para um estado de ser ou, em outros termos, emerge como ser de um estado de não-ser (Winnicott, 1988, pp. 131 - 132). Isso significa estar-no-mundo, embora o mundo do bebê intrauterino seja eminentemente biológico – o que não impede, no entanto, que ele já tenha características humanas: o bebê ouve as batidas cardíacas da mãe e sofre os vieses de suas mudanças de humor, de seus destemperos emocionais etc. Podemos dizer que é somente a partir do momento em que nasce que o mundo humano, compartilhado, pode, gradativamente, lhe ser apresentado. A responsável por essa apresentação é, em primeiro lugar, a mãe ou seu substituto.
Sabemos que, para Winnicott, o recém-nascido não sofre os efeitos destrutivos da pulsão de morte que o levariam às múltiplas cisões protetoras que caracterizam o bebê kleiniano19. Os medos e as agonias que assolam o bebê winnicottiano têm mais a ver com seu estado de extrema desproteção e imaturidade. Sendo totalmente dependente dos cuidados daqueles que o cercam, sua sobrevivência e sua saúde psicossomática estão inexoravelmente ligadas às possibilidades maiores ou menores de um ambiente acolhedor e capaz de lhe dar sustentação.
Sua identidade, por sua vez, é totalmente evanescente, conforme já tentei descrever anteriormente:
Tudo se dá num nível extremamente primitivo, já que o bebê vive de forma dispersa no tempo e no espaço, sem qualquer integração permanente, portanto totalmente fundido ao ambiente que o cerca. Nesse período, suas integrações são sempre momentâneas e geralmente associadas aos estados excitados, quando, por exemplo, no ato de mamar, torna-se o próprio seio e o próprio leite que engole, confundindo-se com o objeto (o que Winnicott chamou de identificação primária). Ou, quando recebe do olhar materno uma imagem que o unifica. Mas essas aglutinações momentâneas logo se perdem; quando a mamada foi suficientemente satisfatória a ponto de consumir toda a energia instintiva envolvida no ato, o bebê entra novamente num estado relaxado e volta a viver em dispersão. Há uma frase de Winnicott que nos dá uma descrição da existência do bebê nesse primeiro período, numa linguagem lindamente poética: "Há longos períodos de tempo na vida normal de um bebê em que ele não se importa de ser vários pedaços ou um único ser, ou se vive no rosto da mãe ou em seu próprio corpo, contanto que, de tempos em tempos, junte seus pedaços e sinta algo" (Winnicott, 1945d/1992, p. 150). Esta descrição nos dá a ideia do que realmente importa nesse período, ou seja, que independentemente da dispersão, dos muitos pedaços (ou lugares) nos quais possa existir, o bebê possa, de tempos em tempos, juntar esses vários pedaços e sentir algo. Ou seja, que esses vários momentos ou pedaços de existência possam, de quando em quando, se integrar e produzir sentimentos no bebê. Mas isso somente pode acontecer porque os cuidados maternos são capazes de reunir, durante intervalos de tempo, esse conjunto desconexo de experiências infantis numa totalidade integrada. Grosso modo, são o colo e os olhos da mãe que, nesse período, dão unidade às experiências infantis. (Naffah Neto, 2012b, pp. 65-66)
Assim, pois, pode-se dizer que o bebê nesse período ganha suas várias identidades provisórias das diferentes partes do corpo da mãe (objetos parciais), que o acolhem e lhe dão forma: quando mama é o seio; quando é acalantado assume a forma do colo e dos braços da mãe; quando ela o fita, é dos olhos dela que vem a imagem especular unificadora; e quando relaxa e dorme, espalha-se no ambiente, numa vivência oceânica.
Nessa perspectiva, é possível dizer que o bebê vive, em grande parte do tempo, num estado de identificação primária com a mãe, isto é, totalmente descentrado de si. Isso ocorre porque, já nesse período, o único centro que existe é um centro virtual a partir do qual poderá se desenvolver um self integrado com o passar do tempo e ao longo do seu processo de amadurecimento20. A mãe suficientemente boa é aquela – mãe biológica ou substituto – que zela pelo recém-nascido, garantindo-lhe proteção e cuidados suficientes para que não se rompa a sua continuidade-de-ser, ou seja, que ele não tenha de descobrir a existência do ambiente externo prematuramente, tendo de reagir a ele. Ela não é, de forma alguma, perfeita ou absoluta; é falha, como qualquer ser humano, mas suas falhas não atingem um limiar suficiente para produzir patologias, seja por intrusão ambiental, seja por falta de cuidados.
Winnicott entende que a mãe é preparada psiquicamente para esses cuidados por meio de um processo denominado preocupação materna primária. Isso se manifesta desde quando engravida até alguns meses após o nascimento do bebê. Esse processo designa, segundo Winnicott, uma espécie de doença benigna – provisória e necessária – pela qual a mulher regride e entra num estado de retraimento semelhante a uma esquizoidia, identificando-se profundamente às necessidades do bebê e deixando-se tomar por elas. Winnicott nos diz que, se a mãe puder entrar nesse estado de preocupação materna primária, as tarefas ligadas ao cuidado do bebê serão também desejadas por ela, deixando se ser apenas uma mera obrigação social.
Amparada por suas lembranças e por um sentimento genuíno de ter sido cuidada por sua mãe, ela pode fazer uso deles para poder ser uma mãe suficientemente boa21. Entretanto, em vez disso, pode resistir ao processo de regressão por não querer abandonar os afazeres do mundo de fora, como a profissão, por exemplo. Nessa direção, com o incremento da mão de obra feminina no mercado de trabalho, muitas mulheres têm se recusado ao cuidado dos filhos pequenos, relegando-os cada vez mais às babás e aos berçários, expondo-os, dessa forma, a falhas ambientais com uma frequência muito maior. Não seria esse um dos motivos para o aumento das patologias de tipo borderline na clínica contemporânea? É difícil fazer essa afirmação com segurança, mas esse não deixa de ser um problema interessante para futuras pesquisas.
De qualquer forma, podemos dizer que a mãe suficientemente boa do recémnascido encontra-se descentrada de si própria e identificada às necessidades do seu filho, existindo durante esse período em função das necessidades do pequeno rebento. Isso tudo sem se perder de si própria: por mais regredida e identificada ao filho que esteja, há sempre um lado do seu self que permanece adulto, garantindo e sustentando o lugar de mãe. Para isso, necessita do amparo amoroso e material do companheiro, pai de seu filho, para que lhe garanta proteção e a possibilidade de se desincumbir de outras tarefas que não sejam o bem-estar de si própria e do bebê.
Tive contato com um exemplo vivo desse descentramento e dessa identificação às necessidades do filho recentemente, por meio de uma amiga próxima, também psicanalista. Ela me contou que, quando nasceu seu primeiro filho, muitas vezes ao tomar banho e esfregar os braços ficava confusa sobre qual braço estava esfregando, se o seu ou o do seu bebê (mesmo conhecendo muito bem os braços do seu bebê, já que o banhava todos os dias). Em seguida, pensava no conceito de mãe suficientemente boa e dizia para si mesma: "Está tudo bem; é assim mesmo". Quando nasceu seu segundo filho, em uma época muito fria do ano, ele tinha dificuldade de manter o calor do próprio corpo, necessitando passar muito tempo colado ao corpo materno, como numa espécie de bolsa canguru. Quando ele estava longe do corpo da mãe, muitas vezes ela sentia frio (embora a temperatura continuasse normal), como se sentisse frio por seu bebê, no lugar dele.
4) O nível ôntico e o nível ontológico referendando-se mutuamente
No nível ôntico temos, pois, um bebê descentrado de si mesmo, uma vez que se encontra identificado às partes do corpo da mãe (objetos parciais), mas que não perde contato com o seu ser próprio devido aos cuidados maternos.
Dado o seu estado de extrema desproteção e imaturidade, que se exprime por uma nãointegração espaçotemporal e uma identidade evanescente e provisória, é muito fácil para um recém-nascido perder-se de si mesmo. Quando a mãe não é suficientemente boa – e não respeita as características próprias do bebê, como ritmo e tempo das mamadas, de sono etc. –, o bebê é obrigado a formar um falso self patológico, mimetizando partes do ambiente a fim de seduzi-lo com a intenção de atender a suas necessidades; consequentemente, perde-se de si próprio. Seu self verdadeiro permanece, então, escondido, protegido, mas posto fora de circuito, sendo substituído nas relações com o ambiente pelo falso self. Ocorre, então, uma cisão entre os dois selves, para que a proteção ao self verdadeiro seja garantida.
No desenvolvimento saudável, entretanto, o paradoxo é justamente esse: embora descentrado de si mesmo e identificado ao corpo materno, o bebê permanece referido a si próprio como se o objeto seio fosse uma criação sua e pertencesse à sua área de onipotência. No caso da mãe, temos algo semelhante: ela encontra-se descentrada de si própria, já que está profundamente regredida e identificada às necessidades do bebê, mas, ao mesmo tempo, não perde contato com o seu lado adulto, que permanece em cena. Essa relação mãe-recém-nascido aparece, então, como dois planos mutuamente imbricados, espraiando-se um no interior do outro sob a forma de um quiasma reversível.
Poderíamos, contudo, nos perguntar: em se tratando de uma relação tão assimétrica, podese falar de reversibilidade? A resposta, a meu ver, é que, no nível da experiência sensível, sim: a sensibilidade do bebê espraia-se no ser da mãe sem se perder de si própria, ao mesmo tempo em que a sensibilidade da mãe esparrama-se rumo ao ser do bebê mantendo, ao mesmo tempo, sua identidade. E isso não afeta a assimetria da relação, já que um dos entes envolvidos é maduro e o outro, profundamente imaturo. Por isso, nunca é demais repetir: essa dinâmica é garantida pela mãe suficientemente boa. Isso é o que temos no plano ôntico.
No plano ontológico, temos a possibilidade de que essa dinâmica possa acontecer – no nível ôntico – devido à textura da carne, textura essa que, nas palavras de Merleau-Ponty, "regressa a si e convém a si mesma" (Merleau-Ponty, 1964/1984, p. 142). Podemos dizer que a carne realiza esse regresso a si desdobrando-se num dentro e num fora e retornando a si mesma como um reflexo especular: "encarnação permanente na comunidade de Narcisos", como diz Marilena Chauí (Chauí, 1981, p. 276).
A título comparativo, é possível lembrarmo-nos do quanto essa relação especular mãe-filho é considerada como alienante por certa psicanálise francesa de origem póslacaniana, para a qual a mãe seria absolutamente incompetente no intuito de devolver ao filho uma imagem capaz de refleti-lo – já que o alienaria no desejo dela – e o quanto isso difere do espelho materno winnicottiano quando ele é suficientemente bom (Winnicott, 1967c/1991)22.
Pois bem, eu diria que a ontologia merleau-pontyana referenda a ideia de um olhar materno capaz de sintonia, apto a apreender a singularidade do bebê e de refleti-la – e não a ideia contrária, a de um reflexo necessariamente alienante –, já que a noção de carne vem assegurar que o Para-Si e o Para-Outrem são o outro lado um do outro (MerleauPonty, 1964/1984, p. 237), o lugar em que a carne faz seu ponto de virada e retorna a si mesma na comunidade de Narcisos.
Traduzindo isso num nível ôntico, podemos dizer que, por participar da mesma condição humana de seu filho e também ter tido uma mãe de quem também dependeu, a mãe conhece por princípio a importância fundamental para qualquer ser humano de ser amado, reconhecido e respeitado em sua singularidade, especialmente se for desprotegido e frágil como um bebê. Além disso, como indivíduo adulto e amadurecido – se for saudável –, essa mãe também é capaz de sofrer o processo de regressão que a gravidez lhe propicia, renunciando provisoriamente aos afazeres do mundo adulto para se identificar às necessidades do filho recém-parido, podendo funcionar, então, como seu ego-auxiliar. Em razão dessas condições, o olhar materno pode, sim, refletir uma imagem do seu bebê que seja suficientemente boa, ou seja, à qual o bebê possa se identificar sem, necessariamente, se alienar no desejo materno23.
Uma mãe com o olhar necessariamente alienante, pois que aprisionaria o bebê em seu desejo, somente pode ser concebida num universo solipsista em que o Para Si não se desdobra em nenhuma forma de mundo de Para Outrem, ou seja, permanece como uma mônada, isolado. Seria como preconizar que cada ser humano somente é capaz de "olhar para o próprio umbigo", encarcerado para sempre no próprio desejo. Merleau-Ponty e Winnicott não pensavam assim.
Concluindo: a noção de carne funciona perfeitamente como uma referência ontológica para o conceito de mãe suficientemente boa na relação com seu bebê durante os períodos de dependência absoluta e relativa (incluído aí o estágio do concern). Isso permite que, graças aos cuidados maternos, o mundo humano possa ser gradativamente apresentado ao pequeno rebento e que seu self possa ir se constituindo e se integrando de forma saudável, sem qualquer processo de alienação. A alienação pode, sem dúvida, acontecer, mas aí já envolve a constituição de um falso self patológico produzido por graves falhas ambientais.
Também é necessário frisar que, se a ontologia merleau-pontyana referenda a psicanálise winnicottiana – pelo menos nessa parte da teoria –, ela também é referendada por ela, já que Merleau-Ponty nunca propôs que a relação entre a filosofia e as ciências fosse uma relação hierárquica, em que aquela normatizaria estas – como pensa Heidegger, por exemplo. Assim, pode-se dizer que a relação é de mutualidade: se a ontologia selvagem converge com a psicanálise winnicottiana em suas postulações – mesmo que os níveis ontológico e ôntico permaneçam distintos um do outro –, ela, por sua vez, também tira proveito dessa convergência, que referenda seu percurso e suas afirmações. Filosofia e psicanálise, uma de pé diante da outra, como num abraço.
Referências
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Endereço para correspondência
Alfredo Naffah
E-mail: naffahneto@gmail.com
* Professor da PUC-SP no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica
14 Na ocasião, usei o advérbio "imperfeitamente" para sinalizar que, em português, possuímos um único substantivo para designar duas modalidades diferentes: a carne viva, pulsante, e a carne morta, do açougue, enquanto a língua francesa possui dois substantivos diferentes para distingui-las: chair e viande, o mesmo acontecendo com a língua inglesa (flesh e meat).
15 Estou me referindo aqui, em primeiro lugar, ao texto de Benilton Bezerra Jr., "Winnicott e MerleauPonty: o continuum da experiência subjetiva" (Bezerra Jr., 2007). Contudo, como só vim a descobrir a existência desse texto após escrever este artigo – quando um supervisando chamou-me a atenção sobre ele –, não o cito ao longo dos argumentos aqui desenvolvidos. O mesmo aconteceu com a dissertação de mestrado Merleau-Ponty e Winnicott – intersubjetividade e psicanálise infantil (Dors, 2015), também não citada aqui.
16 Por exemplo, a perspectiva lacaniana – conforme veremos ao longo desse texto – possui um ângulo de visão clínico que acaba por desqualificar a noção de mãe suficientemente boa, por ela estar ancorada em certos pressupostos filosóficos totalmente distintos dos winnicottianos.
17 É somente no âmbito de uma filosofia da consciência – na qual esta constitui a si própria (Cogito, ergo sum: Descartes), formando, a partir daí, o mundo natural – que o outro aparece como um "usurpador indesejável" e que sua existência se põe como problema. "A afirmação de uma consciência alheia diante da minha no mesmo instante faria de minha experiência um espetáculo privado, já que ela não seria mais coextensiva ao ser. O cogito de outrem destitui meu próprio cogito de qualquer valor e me faz perder a segurança que eu tinha, na solidão, de ter acesso ao único ser para mim concebível, ao ser tal como ele é visado e constituído por mim" (Merleau-Ponty, 1945/1996, p. 473). Para não ter o seu próprio cogito destituído, inicia-se, então, uma luta entre as consciências: "Com o cogito começa a luta das consciências das quais cada uma, como diz Hegel, persegue a morte da outra" (Merleau-Ponty, 1945/1996, p. 476). Ora, a fenomenologia sartriana é uma fenomenologia da consciência, com tudo o que ela implica. Faz todo o sentido, então, a famosa frase de Sartre (que aparece em sua peça de teatro Entre quatro paredes), tão propagada e difundida: "O inferno são os outros" (Sartre, s/d, p. 23). Poder-se-ia, contudo, sempre argumentar: é somente para a consciência, fechada na sua onipotência constituinte (e na sua liberdade irredutível), que os outros são um inferno. No âmbito da carne, as coisas não se mostram assim.
18 Esse tipo de pontuação no qual, muitas vezes, um travessão substitui o ponto final, segue rigorosamente a versão original. A única alteração feita nas citações aqui foi colocar numa mesma linha termos que, às vezes, apareciam em linhas diferentes, diagramados como numa poesia concreta. Afinal, é preciso considerar que se tratava de um conjunto de notas que seria posteriormente transformado em texto.
19 Winnicott não trabalhava com a noção de pulsão de morte, pois não via utilidade nela para a psicanálise (para uma incursão maior nesse tema, ver Winnicott, 1988, pp. 131-134 e Naffah Neto, 2014, pp. 84-86). Também cabe ressaltar que, quando partimos do pressuposto de que o bebê recém-nascido é atravessado pelas conjunções e disjunções entre a pulsão de vida e a pulsão de morte – como aparece em Melanie Klein –, somos quase que automaticamente levados a pensar como ela, ou seja, que o bebê não tem como enfrentar essa luta e esses perigos internos a não ser por meio de múltiplas cisões do ego e do objeto, produzindo o que ela definiu como posição esquizoparanoide. Para Winnicott, todavia, as coisas não acontecem assim.
20 Por centro virtual, quero significar um tipo de demarcação psíquica que é pura virtualidade, ou seja, que somente tem uma existência potencial, realizando-se, de fato, quando o self do bebê vem a se integrar e constituir uma espécie de "centro" da personalidade. Porém, temos de considerar que, num certo nível, mesmo esse centro é posto em cheque pelo inconsciente recalcado que questiona, sem dúvida, a soberania do indivíduo. Por isso, Lacan dirá que o sujeito humano é descentrado e, sempre, dividido. Winnicott nunca assumirá uma posição radical como essa, embora, como todo descendente de Freud, aceite a existência do inconsciente recalcado e afirme que toda a experiência infantil dos primeiros tempos acontece num nível inconsciente (mas, aí, não por obra do recalque, mas devido à imaturidade do bebê, para quem a consciência não existe ainda como instância constituída).
21 Vale lembrar que, nos primeiros períodos de vida do bebê, a memória infantil – ainda que presente sob a forma de marcas corporais (nesse sentido, ver Naffah Neto, 2014, nota 6) – não se constitui propriamente sob a forma de lembranças evocáveis, o que só vem a acontecer quando psique e corpo se alocam um no outro (processo de personalização). Entretanto, ainda que não existam lembranças evocáveis dos primeiros tempos, existe um sentimento genuíno de ter sido bem cuidado pela mãe quando isso de fato aconteceu.
22 Lacan foi o primeiro a formular a alienação da criança em sua imagem especular como formadora da função do eu (Lacan, 1949/1998), mas, nesse período, é o objeto espelho propriamente dito que parece estar em questão, e não o olhar da mãe. Somente mais adiante Lacan iria considerar a importância da presença de outro humano no investimento libidinal do bebê e, consequentemente, nessa constituição egoica. Desde então, porém, o espelho é visto como metáfora do olhar materno.
23 É preciso considerar que, para Winnicott, no desenvolvimento saudável o self verdadeiro acaba por se desdobrar num falso self não patológico ao qual permanece integrado e que designa, simplesmente, a faceta social do self, uma espécie de sacrifício de uma parte da espontaneidade própria em prol da existência social. Não creio que poderíamos chamar isso de alienação sem forçar o sentido do termo.