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Natureza humana

 ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.17 no.2 São Paulo  2015

 

ARTIGOS

 

Do ato de ver ao olhar que se mostra: observações psicanalíticas e filosóficas da obra de arte

 

From the act of seeing to the look which shows: psychoanalytic and philosophical observations from the work of art

 

 

Amauri Carboni Bitencourt*

Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste estudo pretendemos explorar a esquize do olho e do olhar na pintura a partir da leitura lacaniana de O visível e o invisível, de Merleau-Ponty. Se, de um lado, o ato de ver apreende os objetos do mundo cultural e os ultrapassa, de outro, há o olhar como aquilo que se mostra ao observador, desorganizando seu campo perceptivo. Esse olhar de fora, que nos percebe e nos arrebata, é concebido por Lacan como o registro do Real e descrito por Merleau-Ponty como o "olhar estrangeiro". Qual outrem, esse "olhar estrangeiro" vem surpreender o pintor (e o espectador), brotando do fundo do horizonte invisível, inesgotável, e inscreve-se continuamente, produzindo desejos e incitando o artista a elaborar novas criações. Nesse sentido, este trabalho tem por objetivo investigar a leitura que Lacan fez de Merleau-Ponty no Seminário XI acerca do olhar como estranhamento a partir de O visível e o invisível, bem como suas implicações na "visibilidade anônima" que habita a obra de arte.

Palavras-chave: esquize; olhar estrangeiro; horizonte invisível; criação; visibilidade anônima.


ABSTRACT

In this research we intend to analyze the eye squize and the looking in the painting from the Lacanian reading of the Visible and the invisible, by Merleau-Ponty. On one hand, the seeing act apprehends the objects from the cultural world and overtakes it; on the other hand, there's the view from what has been shown to the observer, disarranging his perceptual field. This uninvolved vision, this look that perceives and enchants us is conceived by Lacan as the Royal Registry and described by Merleau-Ponty as a "Foreigner eye". This "Foreigner eye" come to surprise the painter (and the spectator), sprouting from the invisible horizon background, being inexhaustible, inscribing itself continuously, and producing wishes and inciting the artist to pursuit new creations. In this regard, this paper is aimed to investigate Lacan's reading from Merleau-Ponty in XI Seminar, the looking as strangeness from the text Visible and the Invisible, and the implications in the "unnamed visibility" that inhabits the work of art.

Keywords: squize; foreigner eye; invisible horizon; creation; visibility unnamed.


 

 

I

No seminário em que se dedica a discutir os quatro conceitos fundamentais da psicanálise – o inconsciente, a repetição, a transferência e a pulsão –, Jacques Lacan interrompe a primeira sessão para tratar da esquize entre o olho e o olhar. Afirma que, como livre perseguidor do caminho da verdade, o faz por vias que lhe pareçam melhores, como um tecelão que usa sua "agulha curva através da tapeçaria" (Lacan, 2008, p. 74). Desse modo, não precisa seguir um caminho delineado a priori, mas um que vai se construindo à medida em que ele vai prosseguindo. Trata-se de um estilo que se aventura por terras desconhecidas e inaugurais. Ademais, não poderíamos falar de progresso e descobertas se lidássemos apenas com saberes já conhecidos e cristalizados. Viveríamos em círculos tautológicos. Nesse contexto, Lacan admite que não é por mero acaso que o livro O visível e o invisível lhe chega às mãos. Ao retomar esse texto, editado por Claude Lefort em 1964, alguns anos após a morte de Merleau-Ponty, Lacan comenta:

Esse O visível e o invisível pode nos indicar o momento de chegada da tradição filosófica – essa tradição que começa em Platão com a promoção da ideia, da qual podemos dizer que, por um ponto de partida tomado num mundo estético, ela se determina por um fio dado ao ser como soberano bem, atingindo assim uma beleza que é também seu limite. E não é por nada que Maurice Merleau-Ponty reconhece no olho o seu reitor. (Lacan, 2008, p. 75)

Lacan prossegue: "Nessa obra, ao mesmo tempo terminal e inauguradora, vocês descobrirão uma lembrança e um passo à frente na via do que tinha primeiro formulado na Fenomenologia da percepção" (Lacan, 2008, p. 75). Dessa forma, observamos que o psicanalista afirma que Merleau-Ponty em sua obra inacabada O visível e o invisível faz uma recapitulação dos assuntos abordados anteriormente e, mais do que isso, dá um passo adiante: reformula o conceito de olhar. É forçando os limites da própria fenomenologia, proposta no livro de Merleau-Ponty sobre a percepção, que Lacan falará de um olhar que se mostra.

Trata-se, pois, "de discernir, pelas vias do caminho que ele nos indica" da "preexistência de um olhar – eu só vejo de um ponto, mas em minha existência sou olhado de toda parte" (Lacan, 2008, pp. 75-76). Lacan acredita que Merleau-Ponty chegou a um ponto original na filosofia: a reviravolta ontológica ao mostrar a reversibilidade do olhar. Mesmo fazendo um elogio à obra de seu amigo filósofo, Lacan (2008, p. 76) traça seu objetivo:

Mas não é entre o invisível e o visível que nós temos que passar. A esquize que nos interessa não é a distância que se prende ao fato de haver formas impostas pelo mundo e para as quais a intencionalidade da experiência fenomenológica nos dirige, donde os limites que encontramos na experiência do visível. O olhar só se nos apresenta na forma de uma estranha contingência simbólica do que encontramos no horizonte e como ponto de chegada de nossa experiência, isto é, a falta constitutiva da angústia da "castração". (Lacan, 2008, p. 76)

Em seguida, toca no cerne da questão: "O olho e o olhar, esta é para nós a esquize na qual se manifesta a pulsão ao nível do campo escópico" (Lacan, 2008, p. 76). A esquize apontada por Lacan e explicada por meio do quadro de Holbein – o qual abordaremos na sequência de nossa investigação – funciona como mancha ou como algo estranho que vem habitar a reversibilidade do olhar. É como se, entre ver e ser visto, alguma coisa arrebatasse o espectador, provocando-lhe uma falta e causando-lhe desejos.

O psicanalista afirma, então, que Merleau-Ponty designara o ponto de onde nasce a visão como sendo a reversibilidade do olhar. Ou seja, entre o visível e o invisível, designado como carne do mundo26, Merleau-Ponty restabeleceria o ponto original da visão. Müller-Granzotto comenta sobre isso: "em momento algum, com a noção de carne como ser de indivisão, Merleau-Ponty propõe um ponto original da visão, como se toda vidência estivesse aí assegurada enquanto identidade" (Müller-Granzotto, 2012, p. 32)27. Tratemos, pois, de investigar a questão dessa esquize entre o olho e o olhar, mais precisamente por meio do conceito de olhar proposto pelo psicanalista.

 

II

O que seria então o olhar para Lacan? Afirma ele: "em nossa relação às coisas, tal como constituída pela via da visão e ordenada nas figuras da representação, algo escorrega, passa, se transmite, de piso para piso, para ser sempre nisso em certo grau eludido – é isso que se chama o olhar" (Lacan, 2008, p. 76).

Lacan desloca o olhar que antes estava ao lado do sujeito para o lado do objeto. Assim, o olhar se revela à nossa visão. Mais do que percebemos, somos atravessados por um olhar que se mostra. Em nossa habitual interação com o mundo das coisas, algo sempre escapa ao nosso entendimento. O vidente sabe, de alguma forma, que o olho não dá conta de tudo o que percebe e, mais do que isso, ele próprio é um vidente-visível.

Ao deslocar o olhar do sujeito para o objeto, Lacan não quer dizer que ele seja uma propriedade das coisas, "mas é antes algo invisível, algo que não pode ser visto, mas que no entanto vem do mundo das coisas, algo que na linguagem de Lacan, vem do Outro, precedendo minha visão e solicitando-a a seguir, 'que me [a mim e a minha visão] impõe'" (Shepherdson, 2007, pp. 115-116). Dessa forma, somos passivos em relação ao olhar: "O olhar é algo a que eu estou assujeitado" (Shepherdson, 2007, p. 116). É nesse sentido que Lacan falará do olhar como objeto a.

Ao tratar da função escópica, o psicanalista francês traz à tona uma pintura de Hans Holbein: a obra Os embaixadores, mais do que representar uma cena do século XVI, retrata um objeto estranho que se impõe obliquamente na parte inferior da tela, atravessando-a, como se esse detalhe tivesse sido pintado posteriormente. Em certo sentido, parece até não fazer parte dela. O quadro é construído à maneira clássica: "os dois personagens estão hirtos, duros dentro de seus ornamentos de ostentação. Entre eles, toda uma série de objetos que figuram, na pintura da época, os símbolos da vanitas28" (Lacan, 2008, p. 87). No período em que a obra foi elaborada – ela data de 1533 –, a Europa passava por uma grande turbulência. O rei Henrique VIII apaixonara-se por Ana Bolena, que não era sua esposa, e casara-se com ela sem a permissão do papa Clemente VII. Na época, o divórcio era algo proibido pela igreja Católica. O papa então enviou secretamente como embaixador o bispo Georges de Selve, postado à direita na tela, a fim de que ele averiguasse a situação em Londres. À esquerda, está Jean de Dinteville, enviado de Francisco I, então rei da França, para que o mantivesse informado. "A composição é como que um universo de relações harmoniosas, cores soberbas, figuras humanas imponentes e agudeza psicológica"; também há "efeitos trompe l'œil desconcertantes, objetividade de natureza morta e referências simbólicas encobertas" (Wolf, 2005, p. 71). De fato, Holbein pensou nos pequenos detalhes do duplo retrato: a idade de Georges de Selve, 24 anos, está escrita no livro que segura o braço do embaixador, e a de Jean de Dinteville, 29 anos, foi impressa no punhal em que sua mão repousa. Na estante, há um livro de aritmética aberto numa página de divisão: provavelmente fazendo referência à divisão pela qual a Europa passava. O alaúde foi representado com uma corda partida, mostrando a fragilidade da situação. O hinário luterano está aberto e permite ver que os dois hinos impressos são cantados tanto pela igreja Alemã29 quanto pela Católica. Outros objetos que aparecem mostram aspectos religiosos e científicos da época.

Somente ao prestarmos mais atenção na obra é que vemos o rasgo obscuro que perpassa o plano inferior do quadro e rompe sua plasticidade. Holbein parece querer mostrar uma estranha mancha voadora que estraga a composição renascentista. O que ele queria dizer por intermédio desse objeto pintado no quadro? Aqui, o pintor fez uso da técnica da anamorfose30: ao olharmos de viés para o quadro, veremos uma caveira31 aterrorizante32. Essa distorção enorme na pintura prefigura algo mais do que a lembrança da morte. Holbein poderia estar questionando a realidade: se olharmos o quadro de frente, a caveira parecerá distorcida, tal qual uma mancha, porém, se o observarmos obliquamente – em diagonal, postando-nos lateralmente à obra –, o que parecerá distorcido será o restante da imagem, e a caveira parecerá visível. Dessa forma, o que é a realidade? Depende do ponto de vista por meio do qual olhamos? O que a mancha representa?

Mesmo que para alguns estudiosos a mancha postada no chão do quadro seja a lembrança da morte e, para outros, uma espécie de brincadeira com a assinatura33 do pintor, a obra produziu algumas significações ao longo dos séculos. Sobre esse detalhe, assinala Lacan: "Holbein nos torna aqui visível algo que não é outra coisa senão o sujeito como nadificado – nadificado numa forma que é, falando propriamente, a encarnação imajada do menos-fi [(-φ)] da castração34, a qual centra para nós toda a organização dos desejos através do quadro das pulsões fundamentais"35 (Lacan, 2008, p. 88). Nesse sentido, ele faz uma reflexão acerca de como nossos desejos se organizam a partir do olhar – pulsão escópica – e que a obra Os embaixadores nos faz ver.

Holbein nos instala num solo inseguro que nos abala, nos descentraliza, inserindonos num "lugar" onde precisamos nos reelaborar e nos atualizar constantemente. A estranheza nos incomoda. Ela mostra nossas faltas. Repudiamos todos os corpos estranhos que nos atacam e que poluem a paisagem em nosso campo visual. Nossa educação artística, imposta a partir do Renascimento, distorceu todos os nossos conceitos e experiências e, assim, passamos a rejeitar tudo o que não é belo e bem organizado. Aquilo que é estranho nos faz entrar em contato com nossas frustrações, nosso dilemas, nossas angústias. Queremos, ao contrário, o olhar angelical, amoroso e fraterno. Tememos o desagradável, o triste, o trágico. Isso nos atemoriza. Eles estão presentes em expressivas quantidades em nossa vida e deles queremos nos afastar. O que Lacan nos mostra com o quadro de Holbein, todavia, é que em nossa vida não há apenas o belo e o agradável, mas também o que nos causa estranheza e repulsa. Os embaixadores evidencia nossa relação com o desejo enigmático presente como nadificação, como algo que se esvai, que escapa de nossa visão ao tentarmos capturar toda a imagem do quadro, refletindo nossas faltas, nosso próprio nada.

Sobre a obra, o psicanalista afirma: "Esse quadro não é nada mais do que é todo quadro, uma armadilha de olhar. Em qualquer quadro que seja, é precisamente ao procurar o olhar em cada um de seus pontos que vocês o verão desaparecer" (Lacan, 2008, p. 91). Assim, o que pertence ao olhar escapa do empreendimento daquilo que a visão ordinária vê. Essa "vitória" do olhar sobre o olho – pois ver é função do olho e o olhar é tido como objeto da função escópica – "tem uma estrutura de reviravolta, além de ser considerado como um olhar fendido, rasurado e manchado em razão da esquize, da fenda entre o olho e o olhar", ele "como objeto a em lugar do Outro, que é ponto da falta, da angústia e do estranhamento" (Guimarães, 2001, p. 105, grifo nosso). Dessa forma, o olhar deixa de ser uma mera atitude, um ponto de vista, uma maneira de ler a imagem, para ser um elemento, algo estranho, e que é objeto da pulsão escópica. Assim, entre o sujeito e a imagem há o olhar, o quiasma, o que não se deixa capturar.

 

III

O artista moderno trabalha nos labirintos, no subsolo do mundo visível e social. É operando com restos, rastros e vestígios que ele deixa obras inacabadas, permitindo, na contemporaneidade, mostrar o avesso do mundo. O avesso é o outro lado, o invisível, o enigmático, a profundidade. É por trabalhar nesse avesso que o olho pode existir "em estado selvagem", como afirmou André Breton (1999) em Surrealismo e pintura. Desse modo, a arte, mais do que representar os objetos do mundo visual, permite criar obras tal qual um demiurgo, afinal, "um bom quadro, fiel e idêntico ao sonho que o engendrou, deve ser produzido como um mundo" (Baudelaire, 2004, p. 121). A arte permite perceber aquilo que a visão profana não consegue ver, pois há coisas que nos escorregam, nos escapam36. Esse olhar é o que funciona como rachadura, mancha, pontos na imagem que nos incomodam e perturbam nossa visão, turvando-a. Diante de uma obra, somos invadidos por um olhar que mostra nossas "faltas", nossas brechas, nossos dilemas. Somos acostumados a crer em um mundo em que as coisas se apresentam de frente e rigorosamente ordenadas, como se houvesse a possibilidade de um "lugar" o qual sobrevoaríamos e do qual dominaríamos todos os aspectos, como se, de alguma forma, pudéssemos por exemplo olhar todas as faces de um cubo, o que não conseguimos, pois algumas faces são subtraídas momentaneamente do nosso campo visual. No momento em que alguma coisa nos faz sair de nossa situação acomodada e cristalizada, ficamos desnorteados.

A esquize da qual fala Lacan37 está presente em obras do pintor El Greco, como em Laocoonte, na qual aparece um corpo de mulher possuindo duas cabeças. Esse detalhe é destoante do restante do quadro, pois as outras figuras são possuidoras de uma única cabeça, dois braços e duas pernas. Talvez o segundo corpo tenha sido escondido pelo pintor atrás do outro, mas, mesmo assim, aparece estranhamente ao olhar do espectador. Somos levados num primeiro momento a olhar um ser disforme.

De certa forma, também percebemos a esquize nas imagens construídas pelos surrealistas. Ao pintar objetos, fazem-no sempre a partir do mundo vidente-visível; entretanto, vão além do que os olhos veem: pintam "sonhos". "Os sonhos de Goya equivalem às suas observações", disse o pintor surrealista André Masson (1999, p. 444). Tanto a pintura dos surrealistas quanto a afirmação de Masson levam-nos a entender que a pintura, mesmo a feita a partir da imaginação, é uma expressão do mundo natural. Tudo aquilo que vai na contramão do mundo natural, nós rejeitamos. No entanto, o que mexe com nossas faltas e nossos desejos também nos aprisiona. Sentimo-nos atraídos por situações que nos fazem entrar em contato com o que nos falta. A esquize não está na forma ou no conteúdo, mas no que ultrapassa os limites do visível, no que se esconde, difere, se insinua no avesso. Não sendo forma ou conteúdo apenas, o mictório de Duchamp38, por exemplo, não é a esquize. Afinal, "a arte não é o mictório, é o gesto que o coloca num museu" (Coli, 1988, p. 118). O gesto de colocar algo que consideramos sujo nos perturba, nos faz pensar, possui significações estranhas, embaraça nossa concepção de arte e enleia nossa visão racional39. Afinal de contas, considerar um mictório como "fonte" contraria nossas convenções e convicções do que seja limpo, saudável e aceitável: inverter sua função causará nojo e, assim, o repelimos. Isso faz lembrar toda a questão da adoração de Glauco Mattoso40 pelo pé. Para ele, o chulé e todas as "impurezas" advindas desse membro corporal não são esquize: só o serão para aqueles aos quais esse tipo de situação cause mancha, estranhamento e repulsa.

 

IV

Numa obra de arte, devemos olhar aquilo que está por detrás da própria imagem41, ou seja, ir além dela. Por vários momentos42, Merleau-Ponty fala do enigma da visão43, em que o olho vê muito mais do que o que conseguimos expressar em palavras ou qualquer outra forma de expressão44. Ele percebe o invisível que se anuncia na visibilidade. De toda sorte, o olhar, tal como objeto a, simboliza uma falta. Sobre isso, assinala Lacan:

Na medida em que o olhar, enquanto objeto a, pode vir a simbolizar a falta central expressa no fenômeno da castração, e que ele é objeto a reduzido, por sua natureza, a uma função puntiforme, evanescente – ele deixa o sujeito na ignorância do que há para além da aparência – essa ignorância tão característica de todo o progresso do pensamento nessa via constituída pela pesquisa filosófica. (Lacan, 2008, p. 80)

Tal como pulsão escópica, o objeto a não assegura a possibilidade da visão, mas perturba o ato de ver. Assim, entre o olho e o olhar, ou entre o olho e a pulsão escópica, algo atravessa essa relação, fazendo com que a reversibilidade do olhar não seja feita de modo organizado e límpido. Ao deslocar o olhar para o lado do objeto, e permitir não confundi-lo com o olho que vê uma imagem, pois ver é função do olho, Lacan faz da imagem que nos olha um meio de nos capturar, mostrando, assim, nossas faltas e impossibilidades. Esse olhar que nos apanha advém qual "outrem".

Segundo Lacan, de "todos os objetos nos quais o sujeito pode reconhecer a dependência em que está no registro do desejo, o olhar se especifica como inapreensível" (Lacan, 2008, p. 86). Sendo inapreensível, dizemos também que é desconhecido. À medida em que se torna familiar ao nosso mundo, deixa de ser esquize e provocar desejo. Assim, a pintura, qual outrem, "desorganiza o campo da percepção. É que o sujeito em causa não é o da consciência reflexiva, mas o do desejo" (Lacan, 2008, p. 91).

Lacan recorre à pintura de Holbein porque ela "reflete nosso próprio nada na figura do crânio de caveira. Utilização, portanto, da dimensão geometral da visão para cativar o sujeito, relação evidente ao desejo que, no entanto, resta enigmático" (Lacan, 2008, pp. 94-95). A esquize do olho e do olhar aparece como uma mancha que surgiu dentro de um horizonte invisível que o pintor fez brotar no quadro e que suscita nosso estranhamento. "Essa esquize constitui a dimensão característica da descoberta e da experiência analítica, que nos faz apreender o real, em sua incidência dialética, como originalmente mal-vindo. É por isso, precisamente, que o real é, no sujeito, o maior cúmplice da pulsão (...)" (Lacan, 2008, p. 73).

De alguma forma, somos arrebatados pela mancha, que nos induz a fazer algo: se somos artistas, propomo-nos a criar. É a partir daquilo que Lacan chama de real, como algo que não se deixar apreender ou capturar, que criamos.

 

V

Lacan afirma: "não sou simplesmente esse ser puntiforme que se refere ao ponto geometral desde onde é apreendida a perspectiva. Sem dúvida, no fundo do meu olho, o quadro se pinta" (Lacan, 2008, p. 98). Eis que o psicanalista adverte para o fato de que não somos o sujeito tal como a tradição fez pensar: o ponto de onde todos os objetos em perspectiva fazem encontro. Entre nós e a imagem há uma rede de relações tão fortemente engendrada que é possível afirmar que o quadro se pinta em nosso olho, e o fato de se pintar em nosso olho demarca que também estamos no quadro. Assim, "eu, se sou alguma coisa no quadro, é também sob essa forma de anteparo, que ainda há pouco chamei de mancha" (Lacan, 2008, p. 98). Essa inversão proposta por Lacan nos impede de crer que haveria a possibilidade de um observador absoluto ao contrário, inserindo-nos no mundo, no quadro, nessa reversibilidade de não sabermos ao certo quem vê e quem é visto. Mais do que isso: para além de uma reversibilidade do visível, o psicanalista mostra que há um estranhamento, uma falta, uma fissura que o olhar faz ver e que, de alguma forma, "se especifica como inapreensível" (Lacan, 2008, p. 87).

Além de não se deixar apreender – tal como um visível que Cézanne45 tentava expressar em obra –, o olhar se mostra como algo que surpreende. É por isso que Cézanne deixa vários espaços em branco nas pinturas do período da maturidade46, pois, de fato, não conseguia expressar tudo o que via e também percebia na natureza. Esses pontos não pintados na tela fazem nascer no espectador um estranhamento, promovendo um incômodo surgido a partir do encontro inquietante do pintor com a natureza. A estranheza, portanto, não lhe é de todo exterior: ela habita o mundo e a expressão.

A pintura de Cézanne permite perceber a esquize do olhar, cuja experiência deságua em toda a arte moderna. Essa esquize do olho e do olhar, em que se manifesta a pulsão escópica que Lacan também chama de objeto pequeno a47, é causa do desejo, é algo que escapa do domínio da reflexão. Cézanne, por exemplo, só em partes conseguia projetar no quadro o fundo de visibilidade que percebia na natureza. O que não conseguia expressar, esse resto, na linguagem de Lacan funciona como falta. Que falta é essa? Olhando o processo expressivo de Cézanne, é a falta de um objeto ideal que a preencheria. Nessa perspectiva, a montanha Sainte-Victoire deveria aparecer, para ele, por completo: ela não poderia mostrar um invisível. Como isso não pode ser realizado de fato e integralmente, esse resto de que não dá conta, mas que aparece, torna-se o substrato para que a vontade de pintar (pulsão) nunca tenha fim e constitua-se como um processo contínuo: ao preencher determinada lacuna (falha, falta) com um objeto (pintura), formase outra lacuna e outro desejo é instaurado.

Nesse sentido, "ao buscar na visibilidade das árvores [ou de outros objetos] o invisível que depois o espectador poderá habitar, o pintor é surpreendido por um vidente, o qual do fundo dessa invisibilidade buscada emerge para fazer do artista seu objeto" (Müller-Granzotto, 2012, p. 26). Essa reversibilidade que nunca é realizada entre o visível e o invisível abre poros no coração do visível e é impressa pelo pintor a cada nova investida na tela, porém, essa busca por expressar plenamente se torna uma tentativa frustrante e inacabada. Como não pode dar conta de todo esse enigma que perpassa sua visão, seu desejo nunca será saciado. Esse rastro, essa sobra que o pintor "deixa escapar", que está à margem de sua pintura e que o faz gastar seu tempo em novas imersões criativas é chamado por Merleau-Ponty de "outrem".

 

VI

A tradição filosófica consolidou o princípio cartesiano de um dualismo entre a alma e o corpo, de modo que os objetos são separados entre si como se entre eles não houvesse qualquer relação. Assim, fomos levados a pensar em outrem como algo separado de nós, como se entre eu e ele não existisse correspondência alguma: um ato meu não influi na vida dele. A certeza de que outrem faz parte do meu mundo está no fato de eu não ser transparente para mim mesmo, de não ser autoevidente, mas, ao contrário, perceber-me melhor a partir de outrem. Também acontece algo semelhante com a obra de arte: ela só encontra significação quando há a participação do espectador na retomada da própria obra. Uma pintura, muitas vezes, fala mais de mim mesmo, de meus gestos fragmentados e de minha voz silenciosa – gestos interrompidos por alguma ação corporal, voz silenciada pela ausência de palavras para expressar fatos que ficariam melhor se encobertos na penumbra silenciosa, já que, do contrário, tornar-se-iam frases soltas e desconectas. Nesse sentido, percebo que há em outrem um solo no qual minhas ações encontram pousada e também dilatações cujos ecos refletem melhor minhas falas.

Não posso reduzir outrem a seus pensamentos, suas falas ou seus comportamentos. A maneira como pensa, fala e se comporta dizem um pouco de como ele é, mas não o alcançam na totalidade. Afinal, porém, quem é outrem? Nas palavras de Merleau-Ponty, outrem48 é uma "encarnação inacabada sempre em curso – para além do corpo objetivo como o sentido do quadro está para além da tela" (Merleau-Ponty, 2003, p. 196).

Em tal contexto, esclarece-nos o filósofo:

[...] é justamente meu corpo que percebe o corpo de outrem, e ele encontra ali como que um prolongamento miraculoso de suas próprias intenções, uma maneira familiar de tratar o mundo; doravante como as partes de um corpo em conjunto formam um sistema, o corpo de outrem e o meu são um único todo, o verso e o reverso de um único fenômeno, e a existência anônima da qual meu corpo é a cada momento o rastro que habita doravante estes dois corpos ao mesmo tempo. (MerleauPonty, 1996, p. 474)

O corpo de outrem e o meu, sendo abertos e imbricando-se mutuamente, participam do mesmo mundo: são feitos da mesma textura. É nesse sentido que os sentimentos de outrem ultrapassam a fronteira de seu corpo físico, invadem meu espaço e atingem a porosidade de meu ser, produzindo eco na minha existência. Se por acaso algum ente querido e familiar seu é subtraído da vida, também experimento sua dor do luto. Ou, se um amigo meu está sentindo cólera porque sofreu algum dano causado por alguém, posso vivenciar, em partes, sua cólera. Afinal, "o luto de outrem e sua cólera nunca têm exatamente o mesmo sentido para ele e para mim. Para ele, trata-se de situações vividas, para mim, de situações apresentadas" (Merleau-Ponty, 1996, p. 477). Ademais, "se posso, por um movimento de amizade, participar desse luto ou dessa cólera, eles continuam a ser o luto e a cólera de meu amigo" (Merleau-Ponty, 1996, p. 477). Ele viveu a dor da perda ou do dano, e eu, por perceber que ele está passando por conflitos, participo dessa experiência de maneira mais branda e suave.

Pelo fato de meu amigo ser meu amigo, e eu ser eu, posso participar de seu luto ou de sua cólera, mas não posso vivê-las tal qual ele as vive. Não há como essas vivências me atingirem da mesma forma que atingem a ele. "Por mais que nossas consciências, através de nossas situações próprias, construam uma situação comum na qual elas se comuniquem, é a partir do fundo de sua subjetividade que cada um projeta este mundo 'único'" (Merleau-Ponty, 1996, pp. 477-478). A subjetividade49 apontada por MerleauPonty não é aquela que concebemos como uma representação minha ou de outrem, tampouco aquilo que vivemos em primeira ou terceira pessoa: é um "fundo habitual da coexistência" (Müller-Granzotto, 2008, p. 141) que mantenho com outrem e com o mundo.

 

VII

Ao falar da reversibilidade entre mim e outrem ou entre o vidente e o visível, Merleau-Ponty afirma haver uma "estranha aderência" de um sobre o outro, como uma intersubjetividade, de tal forma que um não tem existência sem o outro. Mais do que isso:

[...] na obra póstuma O visível e o invisível, Merleau-Ponty descreveu nos termos de uma diferença entre o olho e o olhar: mais além da visibilidade do mundo, no seio daquilo que emerge como horizonte de invisibilidade, um olhar vem me surpreender, denunciando minha passividade a uma vidência estranha. (Müller-Granzotto, 2012, p. 19)

Eis aqui um ponto importante: ao ler o texto "Uma libra de carne", de Charles Shepherdson, Marcos José Müller-Granzotto (2012) ressalta que, apesar de ter produzido um "excelente estudo" da leitura lacaniana de O visível e o invisível, mais especificamente no que diz respeito à "relevância de certas reflexões de Maurice Merleau-Ponty", Shepherdson não atentou para algumas aproximações entre os dois pensadores franceses. Se em "Uma libra de carne" o autor afirma que Lacan se distancia de Merleau-Ponty na questão do estranhamento e da esquize, Müller-Granzotto, por sua vez, rediscute esses termos em relação ao olhar.

Ao retomar a noção merleau-pontyana de ser de indivisão – ou carne –, MüllerGranzotto afirma que esse todo indiviso faz com que eu seja "sensível com o mundo e com os outros, mas também um estranho50, porquanto, onde estou situado, não posso sentir-me sentindo, assim como não posso sentir aquilo que os semelhantes sentem de mim" (Müller-Granzotto, 2012, p. 28). Só posso sentir algo parecido, pois fazemos parte da mesma carne do mundo, mas não posso sentir o que ele sente. Assim, há uma ambiguidade no seio do ser de indivisão: familiaridade e estranhamento. De fato, não conseguimos coincidir com outrem, tampouco radicalizarmos ao ponto de afirmar que não participamos de seu mundo.

Müller-Granzotto indica ainda não haver na filosofia da carne de Merleau-Ponty um ponto original da visão51, ou seja, a "figura de um estrato onde tudo o mais é derivado" (Müller-Granzotto, 2012, p. 29). Não podemos então afirmar que existe em MerleauPonty um vidente universal: a carne possui também uma "visibilidade anônima"52. "A carne de que se trata (e sua visibilidade anônima) não corresponde a uma qualidade positiva que eu poderia ver aplicada em todas as partes qual geometral, uma vez que se trata de algo anônimo" (Müller-Granzotto, 2012, p. 30). Essa visibilidade anônima não é uma coisa objetiva: a percebemos como um invisível que se insinua por entre os traços que fazem o contorno nas pinturas de Cézanne, não é um objeto firme e determinado, mas algo poroso que permite ir além, permite nossa transposição (enjambement). Vale lembrar que eu jamais atinjo esse horizonte de visibilidade anônima: tal como uma ausênciapresença, ele mostra minha ambiguidade e a de outrem, tornando-nos partícipes de um mundo visível e invisível ao mesmo tempo. É por isso que posso habitar a obra de arte da mesma forma que ela pode participar do meu mundo: qual outrem, ela me mostra coisas que eu não poderia ver sozinho.

 

VIII

Fazendo-nos ver além do visível e do invisível, a obra de arte surge como um ser que abre poros em nosso corpo e modifica nossos pensamentos e ações, a ponto de termos de reelaborar e atualizar nossos dados de forma diferente da de outros objetos do mundo cultural. Em síntese: é uma esquize que faz com que saiamos do nosso mundo cristalizado e acomodado pelo pensamento reflexivo e analítico. A partir disso, movemo-nos na pintura como movimentamo-nos no mundo: não se muda de mundo, entretanto, a vida percebida à maneira dos pintores acaba sendo mais intensa e profunda. Talvez seja por isso que muitos pintores testemunharam que a criação artística exige do autor uma dedicação tão integral quanto a de um sacerdócio. Ao mover meu mundo para além de uma significação pura, a obra de arte me mostra familiaridade e estranhamento. Esse olhar de fora, que me olha, percebe e arrebata e que "não necessariamente implica a destruição da cultura" é descrito por Lacan como sendo registro do Real "ou o olhar estrangeiro descrito por Merleau-Ponty" (Müller-Granzotto, 2012, p. 26). Esse olhar que não germina do corpo do pintor, mas que a ele vem surpreender e brota do fundo do horizonte invisível – tal como André Marchand relatou sobre sua experiência criativa: não era ele que olhava as árvores, mas elas é que olhavam para ele –, é inesgotável e inscreve-se53 continuamente, produzindo desejos e incitando o artista a elaborar novas artes. Qual outrem, o olhar estrangeiro não se deixa apreender, escorrega e descentra nosso sensível, aparecendo como equívocos em nossa vida, como pequenas deformações coerentes na pintura, como uma ausência a ser preenchida.

Na linguagem de Lacan, essas marcas que perpassam o universo pictural é da ordem do simbólico, enquanto o Real é aquilo que não damos conta de explicar e tampouco se deixa apreender. Este aparece como um estranho: "não é algo a ser buscado, como se devêssemos rasgar as cortinas da realidade simbólico-imaginária para flagrá-lo" (Müller-Granzotto, 2012, p. 25). Tal como objeto a, o Real pulsional, "o olhar estranho do 'vidente que não sou eu' vem denunciar – apresenta-se por si mesmo, como uma visita inesperada que não precisou ser chamada" (Müller-Granzotto, 2012, p. 25). Dessa forma, a caveira perfilada da pintura de Holbein quebra a harmonia do quadro: a princípio ela não deveria estar ali, mas aparece como mancha para poluir minha visão positivista que almeja por uma representação espacial clássica e linearmente estruturada. Essa "visita inesperada", tal como uma esquize, um estranhamento que a pintura faz ver, apresenta-se como um olhar "de fora" pelo qual sou arrebatado, mostrando, assim, a dupla falta do sujeito54 do desejo: ao visível instituído pelo pintor e à outrem, tal como um estranho que não se deixa apreender (da ordem do Real).

 

Referências

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Endereço para correspondência
Amauri Carboni Bitencourt
E-mail: artesamauri@hotmail.com

 

 

* Doutor em filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
26 Em sua descrição sobre a questão da carnalidade, afirma Merleau-Ponty: "é preciso pensar a carne, não a partir das substâncias, corpo e espírito, pois seria então a união dos contraditórios, mas, dizíamos, como elemento, emblema concreto de uma maneira de ser geral" (Merleau-Ponty, 2003, p. 143). A carne é o Ser de indivisão, não pensado como algo maciço, sólido e fechado, mas um Ser de porosidade, esburacado, que contém o dentro e o fora, o direito e o avesso, zonas claras e opacas: "Minha carne e a do mundo comportam", esclarece o filósofo francês, "portanto, zonas claras, focos de luzes em torno dos quais giram suas zonas opacas; a visibilidade primeira, a dos quale e das coisas não subsiste sem uma visibilidade segunda, a das linhas de força e das dimensões, a carne maciça sem uma carne sutil, o corpo momentâneo, sem um corpo glorioso" (Merleau-Ponty, 2003, p. 144). A noção essencial que Merleau-Ponty pretende fazer para a filosofia é a de carne como "sensível no duplo sentido daquilo que sentimos e daquilo que sente" (Merleau-Ponty, 2003, p. 234). A minha própria carne, por sua vez, "é um dos sensíveis no qual se faz uma inscrição de todos os outros, sensível pivô do qual participam todos os demais, sensível-chave, sensível dimensional" (Merleau-Ponty, 2003, p. 234). A minha carne, ou o meu corpo, "é, no mais alto grau, aquilo que qualquer coisa é: um isto dimensional" (Merleau-Ponty, 2003, p. 234). Um "isto" que não se consegue definir ou mensurar de fato, cujo entrelaçamento com a carne do mundo e com a carne de outrem acontece por generalidade e mútua imbricação (empiètement). Ademais, "meu corpo não é somente um percebido entre os percebidos, mede-os a todos, Nullpunkt [ponto nulo] de todas as dimensões do mundo" (Merleau-Ponty, 2003, p. 225).
27 Para um aprofundamento no assunto, recomendamos a leitura do artigo de Marcos José MüllerGranzotto, "Esquize e pulsão: o olhar segundo Merleau-Ponty", presente na obra Merleau-Ponty em João Pessoa (João Pessoa: UFPB, 2012).
28 "Vanitas (latim: 'vaidade'): pintura alegórica, frequentemente representando um crânio, na qual os objetos representados destinam-se, no todo ou em parte, a fazer lembrar a efemeridade ('vaidade') da vida humana" (Beckett, 2002, p. 390).
29 Com o hinário luterano, percebemos que a igreja Católica já havia tido uma divisão: luteranos e católicos.
30 Anamorfose é uma "pintura ou desenho executados de modo a produzir uma imagem distorcida do objeto representado, o qual, porém, quando visto de certo ângulo ou refletido num espelho curvo, revela-se na sua verdadeira proporção; tal técnica tem o objetivo de enganar ou divertir. Os primeiros exemplos de anamorfose figuram nos cadernos de Leonardo da Vinci, e o termo aparece pela primeira vez no século XVII" (Chilvers, 2001, p. 18).
31 O que torna esse detalhe interessante e enigmático na obra de Holbein é que não há registros de pintura de caveiras em outros quadros do pintor.
32 "Na contemplação está portanto em jogo, mais do que o belo ou alguma satisfação pulsional, a apresentação de algo que abala, provoca, perturba. À maneia do quadro de Hans Holbein Os embaixadores, de 1533, que Lacan apresenta em seu seminário 11: os dois personagens estão devidamente paramentados, acompanhados dos mais sublimes símbolos da arte e da ciência de seu tempo, e diante deles surge um estranho objeto alongado de aspecto fálico. Distancie-se um pouco da obra, saia da posição em que ela certamente lhe cativou e faça como se estivesse indo embora, dê então uma última olhadela, de viés, recomenda Lacan – você verá então este objeto vago se transformar em uma horrenda caveira. É graças à técnica da anamorfose, ou seja, do uso invertido das leis da perspectiva, que tal fenômeno é possível" (Rivera, 2005, pp. 44-45).
33 "Alguns autores interpretaram este tema como uma assinatura enigmática: Hohles Gebein ou Holbein" (Wolf, 2005, p. 73). "hohles Gebein", em alemão, significa "osso vazio". No caso, a caveira é, de fato, um osso vazio.
34 Para um melhor esclarecimento desse trecho lacaniano, Antonio Quinet afirma: "O olhar como objeto a surge através da anamorfose da caveira como manifestação de seu poder de aniquilamento do sujeito, que fica medusado diante dela e remetido à sua própria castração, figurada por sua mortalidade. A caveira é o olhar do quadro olhando para o espectador. Este, de observador, torna-se visto. É o quadro quem o olha" (Quinet, 2002, p. 149).
35 "(...) Lacan nos surpreende com uma inusitada aproximação, entre as análises merleau-pontyanas sobre o olhar (em sua diferença em relação ao olho) e as diferentes formas de pulsão tal como Freud as havia descrito nos três ensaios sobre a sexualidade (1905d), precisamente, pulsões oral, anal e fálica, agregando a essa lista outras duas formas, a saber, a pulsão da voz e a pulsão escópica, esta última, por sua vez, justamente ilustrada a partir das descrições merleau-pontyanas" (Müller-Granzotto, 2012, p. 25).
36 "Assim, todos os mestres avançam até o recinto reservado do Inconhecível. Alguns deles batem lamentavelmente ali a cabeça; outros cuja imaginação é mais ridente, creem ouvir por trás do muro os cantos de melodiosos pássaros que povoam o pomar secreto" (Rodin, 2015, p. 46).
37 Voltamos aqui à esquize apontada por Lacan, que, como já dito anteriormente, funciona como algo estranho que vem habitar a reversibilidade do olhar. É como se entre ver e ser visto alguma coisa arrebatasse o espectador, provocando-lhe uma falta e causando-lhe desejos. Tanto as obras dos surrealistas como o gesto de Duchamp provocam no espectador uma incomodação, um descentramento, uma falta. Falta que este tenta preencher de alguma forma. A esquize não está na obra de arte, está no que ela faz ver, no que ela permite ver quando "agarra" o espectador, tirando-o do seu mundo acomodado e cristalizado.
38 "Duchamp estabelece uma convenção que nos permite, como espectadores, fazer coisas com as pinturas que não poderiam ter sido feitas antes" (Nehamas, 1995, p. 350).
39 "Pois o urinol também diria o que, segundo Lacan em seu Seminário 11, o pintor falaria ao contemplador: 'Queres olhar? Pois bem, então veja isso!' Esse algo que é aí dado ao olho comporta um abandono do olhar como um guerreiro deporia suas armas. Entre os projetos de Duchamp, em suas notas, está o de 'fazer alguma coisa que os olhos não possam suportar'" (Rivera, 2005, p. 50).
40 Não nos cabe aqui aprofundar o assunto sobre os gostos de Glauco Mattoso, mas mostrar que, para grande parte da sociedade, o apreço por pés é uma esquize, pois desnuda nossas faltas e convenções e até mesmo nossos desejos profundos e escondidos. Se há interesse sobre o tema, recomendamos a leitura da tese de doutorado de Maria Aparecida Leite Holthausen da Silva (2009), O des-curso cínico: a poética de Glauco Mattoso (Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil).
41 Ao olharmos por detrás da imagem, não devemos ultrapassá-la. Como aspecto corporal e entrelaçado com a obra na reversibilidade entre ver e ser visto, o próprio olhar se apresenta como um enigma, algo que pede ao espectador uma interação, um movimento corporal, uma imbricação. Nesse sentido, Merleau-Ponty afirma que mais do que o olhar analítico e pacífico clássico, o olhar do espectador deve estar envolvido numa trama cujos fios contêm elementos da obra e dele mesmo. A arte moderna, assim, não precisa de um olhar passional, mas de alguém que esteja disposto a entrelaçar-se com a obra num lance que engloba mais do que uma reflexão do olhar: uma reflexão do próprio ato expressivo. Dessa forma, a obra de arte faz ver o invisível do visível.
42 Especialmente nas obras O olho e o espírito e O visível e o invisível.
43 Para um melhor esclarecimento desse item, cf. o segundo capítulo da tese de doutorado de Amauri Carboni Bitencourt (2014), Olhar e passividade na pintura segundo Merleau-Ponty (Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil).
44 "Ver precede as palavras. A criança olha e reconhece, antes mesmo de poder falar" (Berger, 1999, p. 9).
45 Para uma melhor compreensão dos conceitos merleau-pontyanos que são trabalhados na prática por Cézanne, recomendamos o texto "A dúvida de Cézanne", presente no livro O olho e o espírito, de MerleauPonty.
46 Podemos observar esses espaços não pintados, por exemplo, nas inúmeras aquarelas que Cézanne produziu. Os trabalhos em aquarela permitem observar esse feito; porém, Cézanne deixou várias obras inacabadas, como se não fosse possível terminá-las. Na arte moderna e contemporânea, tanto os traços quanto os espaços em branco deixados pelo pintor são constitutivos da própria obra, tendo importância semelhante à da cor.
47 "O caráter parcial dos primeiros objetos de satisfação [seios, voz, olhar, excrementos etc.] também estaria ligado à estrutura originariamente polimórfica da pulsão, ou seja, ao fato de que as moções pulsionais apresentam-se inicialmente sob a forma de pulsões parciais cujo alvo consiste na satisfação do prazer específico de cada órgão. Pensemos no bebê que ainda não tem à sua disposição uma imagem unificada do corpo próprio. Neste caso, cada zona erógena tem tendência em seguir sua própria economia de gozo. A esses objetos parciais, Lacan dará o nome de objeto 'a'" (Safatle, 2009, p. 65).
48 Merleau-Ponty nos diz que outrem é "um segundo eu mesmo e o sei em primeiro lugar porque este corpo vivo tem a mesma estrutura que o meu" (Merleau-Ponty, 1996, p. 474). Se consigo perceber outrem, se meu corpo alcança o corpo de outrem, ele o faz através das funções sensoriais. De fato, meus olhos percebem o corpo de outrem e minhas mãos sentem o toque reversível quando, por uma espécie de quiasma, sinto fazer parte do mesmo mundo carnal que ele.
49 A noção de subjetividade é tratada, sobretudo, nos primeiros textos de Merleau-Ponty "não como ego ou coincidência comigo mesmo, mas como atitude existencial a partir de um fundo habitual de coexistência com o outro e com o mundo" (Müller-Granzotto, 2008, pp. 138-139). Em seus últimos textos, essa noção é ampliada para uma "intersubjetividade". Nesse sentido, "se se parte do visível e da visão, do sensível e do sentir, tem-se da 'subjetividade' uma ideia inteiramente nova: não existem mais 'sínteses', há um contato com o ser através das modulações ou relevos" (Merleau-Ponty, 2003, p. 241). Assim, eu e o outrem participamos de uma mesma "carne", somos feitos da mesma substância e habitamos solos comuns, a tal ponto de não sabermos distinguir o realmente que seja somente meu ou o que seja exclusivamente de outrem.
50 "Ao mesmo tempo que participo do mundo visível em que está meu semelhante, sou dotado de uma invisibilidade que me impede de ser coincidência comigo mesmo e com o mundo. Não obstante minha generalidade sensível, subsiste uma impossibilidade de fato, uma alteridade radical, que é a forma como esse filósofo fala do estranho: invisibilidade de mim e do próximo como videntes, invisibilidade do mundo como origem" (Müller-Granzotto, 2008, p. 348).
51 "[e]m momento algum, com a noção de carne como ser de indivisão, Merleau-Ponty propõe um ponto original da visão, como se toda vidência estivesse aí assegurada enquanto identidade. Trata-se apenas de mostrar como, na extremidade de meu corpo, se pode haver alguém assim como outro vidente, é porque a visibilidade do próximo também é a minha, a do meu corpo; assim como a invisibilidade, ela acomete também a mim, que não posso ver-me vendo" (Müller-Granzotto, 2012, p. 32).
52 "Não se coloca aqui o problema do alter ego porquanto não sou eu que vejo, nem é ele que vê, ambos somos habitados por uma visibilidade anônima, visão geral, em virtude dessa propriedade primordial que pertence à carne de, estando aqui e agora, irradiar por toda a parte e para sempre, de, sendo indivíduo, também ser dimensão e universal" (Merleau-Ponty, 2003, p. 138).
53 Inscrever-se, aqui, não tem o mesmo sentido de elaboração linear e instituída: é entendido como algo que se apresenta como ausente e que descentra o espectador.
54 "Do ponto de vista do sujeito (que surge como efeito de uma dupla falta, simbólica e também real), o desejo – desencadeado pelo objeto que falta, que é o "objeto a" – é sempre um desejo da falta. E isso significa que já não pode haver relação, amor, pois há sempre ao menos uma falta em jogo" (MüllerGranzotto, 2012, p. 34).

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