Natureza humana
ISSN 1517-2430
Nat. hum. vol.19 no.2 São Paulo dez. 2017
DOSSIÊ
A vida humana e seu modo de realidade: corporalidade em comunidade
The human life and its mode of reality: corporality and community
Daniel Pansarelli*,I; Bruno Reikdal Lima**,II
IUniversidade Federal do ABC (UFABC)
IIFundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP)
RESUMO
O artigo aborda a concepção de vida humana a partir da obra madura de Enrique Dussel. Parte da leitura da história evolutiva procedida pelo autor, perpassando pelos diálogos por ele construídos com a biologia e a neurociência; estabelece a noção de modo de realidade desenvolvida pelo filósofo, momento em que confere à corporalidade a concretude e a carnalidade efetivas; e conclui identificando a relação entre ser humano e comunidade como constitutiva, imprescindível à própria vida.
Palavras-chave: Enrique Dussel; corporalidade; modo de realidade; comunidade; ética da vida.
ABSTRACT
The article deals with the conception of human life from the mature work of Enrique Dussel. Starts from the reading of the evolutionary history developed by the author, through his dialogues with biology and neuroscience; establishes the notion of a mode of reality constructed by the philosopher, stage in which it confers to corporality the effective concreteness and flhesly; and and concludes by identifying the relationship between human and community as constitutive, indispensable to life itself.
Keywords: Enrique Dussel; corporeality; mode of reality; community; ethics of life.
Introdução
Ao voltarmos os olhos para autores tradicionais em nossos estudos de filosofia, encontramos relação direta entre a base antropológica – o modo como se compreende o que é o ser humano – e as produções teóricas posteriores. Seja Aristóteles caracterizando "os homens" no início da Política, seja Hobbes tratando "do homem" na primeira parte do Leviatã, ou ainda Locke discutindo o estatuto de Adão em seus Tratados, pode-se perceber que "toda antropologia exige uma política […], porque significa uma opção que se quer realizar, por sua vez, a despeito ou de encontro a outras opções científicas que transmitem outras visões de mundo" (Silva, 2001, p. 91).
O que se deve notar é que a cisão entre corpo e alma ou as reduções idealistas, e também as fisicalistas, de compreensão do humano não são uma hipótese para o trabalho filosófico, mas um pressuposto (Dussel, 1975, p. 3), constituído pelos conteúdos, materiais e condições disponíveis para determinadas comunidades humanas em suas produções e dinâmicas culturais. O problema que se levanta diz respeito aos desdobramentos éticos e políticos da manutenção acrítica de concepções antropológicas tradicionais e cindidas. Ou seja: deve-se levar em conta as condições, produções e conteúdos atualmente disponíveis para a constituição crítica de uma base material antropológica.
Desde as primeiras produções sobre a possibilidade de uma filosofia da libertação, "é apreciada na obra de Dussel uma antropologia filosófica bem estruturada" (González, 2015, p. 168). O filósofo argentino-mexicano tem em mente o desenvolvimento de uma "antropologia que funda uma ética e uma política" (Dussel, 1975, p. 17). Lançando mão do diálogo interdisciplinar com as ciências físicas e biológicas, com as pesquisas em neurociência e no constante retorno crítico à tradição filosófica, Dussel desenvolve a categoria corporalidade, no esforço de trabalhar a vida humana e seu modo de realidade de maneira integral, unitária, de sujeitos intersubjetivos que procuram produzir, reproduzir e desenvolver a vida humana em comunidade.
Para tal, como veremos na primeira parte do presente artigo, Dussel traz em sua base antropológica o humano como espécie emergente, vivente e participante do processo evolutivo da vida. Espécie esta que, em seu processo de resistir, subsistir, adaptar, produzir e reproduzir a vida, sempre em comunidade, desenvolve seu modo de realidade, que o distingue qualitativamente dos demais seres viventes – como veremos no segundo tópico. Na terceira e última parte, apresentaremos a corporalidade como categoria que procura trabalhar a vida humana de maneira integral, unitária, como conteúdo material para a ética e para a política. Veremos, junto a Dussel, uma base material antropológica na qual o humano, emergente no processo evolutivo da vida, com seu modo de realidade qualitativamente distinto dos demais seres viventes, como espécie, gregário, procura produzir, reproduzir e desenvolver a vida, sempre em comunidade.
História evolutiva e emergência da vida humana
Iniciaremos este texto apresentando, ainda que de forma sucinta, a proposta antropológica de Enrique Dussel, que se configura como base e conteúdo material para quaisquer construções teóricas que se possa realizar. O humano aparecerá como ser vivo necessitante que emerge nos processos evolutivos da vida. Assim, tomemos como ponto de partida a seguinte citação:
Na realidade o homem está lançado no meio do cosmos, como totalidade de coisas reais, ao mesmo tempo emerge biológica ou zoologicamente como ruptura antropológica; como homem, "constitui" – em sentido husserliano – o cosmos como "natureza" […]. Quer dizer, o homem não é primeiramente "compreensor do ser como mundo", senão, ainda antes, "construtor do cosmos como natureza, como cultura". O homem não habita o mundo a partir de um ato compreensor, senão que antes se situa frente à natureza como transformador para sua subsistência. A primeira necessidade do homem, repetimos, não é conhecer teoricamente, mas comer realmente. (Dussel, 1984, p. 27)
Há vida. Dussel inicia todos os capítulos da Ética de la liberación com a expressão: "Esta é uma ética da vida" (1998, p. 169). No primeiro capítulo, em especial, comenta: "Esta é uma ética da vida […]. Por isso, desejamos, desde já, advertir ao leitor sobre o sentido de uma ética de conteúdo ou material" (Dussel, 1998, p. 93). Desse modo, introduzindo-nos ao tema, fica indicado pelo filósofo argentino-mexicano que é preciso, primeiro, estruturar o campo que permite entender porque esta é uma "ética da vida" e apresentar o sentido de a tomarmos como uma "ética de conteúdo ou material" – ou seja, a conexão entre "vida" e "conteúdo/material".
Na citação acima, encontramos alguns apontamentos: o homem1 está lançado no cosmos, enquanto emerge biologicamente constituindo a natureza – como matéria de trabalho para seu sustento. Esse homem não tem como característica o ato de compreender o mundo; mas a atividade de construir e transformar para a subsistência. Afirmar que a necessidade primeira do homem não é "conhecer teoricamente, mas comer realmente" é chave para explicitarmos, mais à frente, a categoria de corporalidade, de tomarmos como base o corpo de uma pessoa, da gente viva, no esforço de superarmos os reducionismos e o dualismo antropológico.
A estrutura antropológica de Dussel pressupõe uma história evolutiva: "Há mais ou menos três bilhões de anos aparece em nosso planeta, sem, todavia, se conhecer bem nem as condições nem as causas reais, um fenômeno antientrópico das maiores consequências. Aparece a vida" (Dussel, 1984, p. 17). Logo, devemos tomar a vida como "a priori material e real" (Dussel, 1984, p. 15).
Dussel desenvolve um sistema complexo, lançando mão do horizonte pré- filosófico, pré-ético, a experiência viva e comum a partir da qual a filosofia é produzida – assim como indicado anteriormente. Interdisciplinarmente, em diálogo com as ciências físicas e biológicas, constrói um quadro evolutivo no qual o homem aparece como vivente inserido em um processo histórico contingente, randômico. É o esforço para se arquitetar a dimensão que possibilita trabalharmos a vida como conteúdo material da ética e da política, o "pré-filosófico" – abrindo margem para processos auto-organizados e autorregulados como a priori2.
Nesse quadro, Dussel propõe que entendamos cosmos como "a totalidade das coisas reais; átomos, moléculas, macromoléculas, corpos físicos, astros […], uma só estrutura substantiva, um só sistema fechado de notas constitucionais" (1984, p. 16). É no cosmos que surge o fenômeno antientrópico da vida. Portanto, cosmos não é o mesmo que vida. Vida quer dizer:
Um processo cuja complexidade é imensamente maior que as maiores macromoléculas da ordem físico-cósmica. "Um organismo se compõe de uns sete mil quatrilhões (7 x 1027) de átomos distribuídos em aproximadamente dez bilhões (1013) de células. Tal conglomerado de células e átomos possuem certas propriedades assombrosas: integram um conjunto vivo que sente alegrias e tristezas, pode distinguir entre a beleza e a feiura e diferenciar o bem do mal". Cada organismo vivo possui uma substantividade própria, independente: se situa frente ao cosmos como diferente (no caso dos viventes, vegetais, animais) e distinto (no caso do homem). (Dussel, 1984, p. 17)
Há vida. É o a priori, a condição de possibilidade de todo vivente — e de toda experiência vivente. Nesse sentido, Lax, trabalhando a conexão entre ética e política a partir da ética da vida, comenta:
[…] estamos considerando a vida como o fundamento que acompanha a todas as ações da experiência humana: as condições vitais que tornam possível nos reconhecermos a nós mesmos, relacionarmo-nos com os demais e interagir com o meio ambiente, estão sempre implícitas em toda experiência, pressupostas. (Lax, 2012, p. 173)
Do mesmo modo, ao afirmarmos que essa é uma ética da vida, consideramos a série de interações, acontecimentos e processos anteriores ao homem e que não estão regulados por ele. O fenômeno antientrópico e complexo que surge no cosmos é pressuposto, seu fundamento e sua condição de possibilidade. É no meio dessa história evolutiva – em meio ao cosmos e como participante na emergência da vida – que constituiremos a antropologia como conteúdo material. Estruturar esse princípio e explicitar o processo é necessário, pois, como comenta Lax: "as éticas tradicionais estão alicerçadas em uma cosmovisão na qual o primeiro dado, a existência da vida, não é um problema relevante" (2012, p. 12) – diferente de uma ética da vida, que toma esse a priori como questão.
A vida "emerge na totalidade física como uma 'nova realidade': como um âmbito da realidade diferente, distinto. Com a vida surgem seres com auto-movimentação, autoformação, auto-diferenciação, auto-limitação" (Dussel, 1984, p. 17). Com essas propriedades de vivente, Dussel comenta que:
[…] todo vivente, separado de seu meio desde sua origem por algum tipo de membrana – por mais precária que seja –, constitui ipso factum uma "interioridade" orgânica e produz um "meio" exterior […]. A interioridade do organismo vive, persiste, subsiste, resiste ante ao meio exterior. (Dussel, 1984, p. 17)
O que caracteriza um organismo vivo que emerge no cosmos como vivente, participante de um processo evolutivo auto-organizado e autorregulado, é a resistência: a persistência frente ao meio externo, a luta pela vida, a reprodução como sobrevivência:
[…] a resistência, como a explosão evolutiva, é o fruto de sua capacidade de permanência, de reprodução […], mas ao mesmo tempo de adaptação. Se a reprodução é a capacidade de sobrevivência ad intra (subsistência do organismo vivo em sua constituição orgânico-real), a capacidade de resistência, de alimentação, de adaptação, é capacidade de sobrevivência ad extra (subsistência do organismo vivo em relação a seu meio). Neste último aspecto, o de adaptação, não só do mesmo organismo vivo, senão da modificação do cosmos como "meio", estrutura a abertura ou capacidade proto-poiética: o primeiro antecedente no ser vivo, antes que no ser humano, será propriamente a capacidade produtiva, poiética3, fabricativa. (Dussel, 1984, p. 18)
O que está posto é que na história evolutiva – a dimensão na qual biologicamente e, ao mesmo tempo, em uma ruptura antropológica, o homem emergirá – a primeira experiência de vivente enquanto vivente é a necessidade de persistência, resistência, subsistência4. Em sentido específico: a reprodução e a adaptação. É a necessidade de produzir meios para a sobrevivência. Essa "nova realidade" que é a vida, diferente do cosmos, necessita produzir e transformar o meio para sua manutenção. É a condição de vivente carente, necessitante. Nas palavras de Dussel (1984, p. 18): "A vida instaura no cosmos uma nova lógica".
O humano, como vivente, também tem como primeira necessidade a produção de meios para a sobrevivência. É a condição humana enquanto viva, como participante e emergente na história evolutiva da vida. Os viventes vão se complexificando no processo adaptativo contingencial, auto-organizado e autorregulado da vida. Em uma série de experiências aleatórias, interações, esforços para produção de meios e reprodução, cada indivíduo a partir de seu grupo vai se especificando, constituindo novos modos de realidade. Essa condição possibilita a emergência do humano, enquanto vivente produtivo que busca reproduzir para desenvolver e subsistir.
Assim, quando Dussel retoma Marx em sua arquitetura teórica – tanto na ética quanto na política –, a condição fundamental do homem será a necessidade de trabalho. O homem é trabalho vivo:
A filosofia ocidental, moderno-europeia, nos acostumou a pensar o homem, essencialmente, desde sua inteligência teórica […]. A reflexão ou autoconsciência é um ato teórico. Ao contrário, e é o que queremos descrever, a abertura primeira do homem é prática e por isso poiética [produtiva]. Por sua real constituição de mamífero, a relação primeira é, então, de filho-mãe, homem-homem, mas se torna real na medida em que sua relação com a natureza produz o instrumento que constitui esta mesma relação como permanente, reproduzível, histórica. (Dussel, 1984, p. 26)
Aqui entendemos com maior clareza a expressão-chave a que nos referimos: a necessidade primeira do homem não é "conhecer teoricamente, mas comer realmente". Nosso esforço por superar reducionismos e a antropologia metafísica, constituindo o conteúdo material a partir do qual a política será desenvolvida, encontra seu primeiro momento: o homem como vivente, não causa sui, participante de um fenômeno antientrópico complexo chamado "vida". Começamos a estruturar uma antropologia que não remonta ao dualismo corpo-alma e/ou à dependência de uma alma ou mente como princípio de planejamento ou ordenação da vida.
Nesse quadro, é preciso salientar que não foi necessário para a ocorrência da história evolutiva nenhum elemento racional ou "mental", ordenador ou coordenador dos acontecimentos. É uma história contingencial de processos auto-organizados e autorregulados da vida. É desses processos, das interações entre viventes e experiências aleatórias e acidentais, que nascerá – como sendo a "astúcia da vida" (Dussel, 1998, p. 94) – o que chamamos de racionalidade.
É na complexificação do humano, na formação de sua corporalidade, dentro do quadro de auto-organização e autorregulação da vida, que surgirá como recurso específico o exercício racional, como uma adaptação da espécie:
A posição ereta do primata superior permitiu ao Australopithecus, que culminará com a espécie homo, acelerar o processo evolutivo. Em primeiro lugar se desenvolvem as regiões cerebrais da capacidade fonética, fruto epigenético da aprendizagem memorativa, que permite acrescentar e recordar um léxico com significado […] originado filogeneticamente pela espécie homo (que foi desenvolvendo o córtex cerebral pela evolução), a fim de nomear e comunicar um mundo perceptivo global que sem a língua não permitia um manejo dos "objetos" de maneira distinta ou analítica […], a vida humana inclui sempre, também, como uma de suas dimensões para a sobrevivência, a razão como sua "astúcia". (Dussel, 1998, pp. 98 e 106).
Tendo situado o lugar a partir do qual será desenvolvida a antropologia dusseliana, tomando elementos do horizonte pré-filosófico e pré-ético, chegamos à condição do homem indicada como necessitante, como trabalho vivo – "um ego laboro imensamente mais valioso, cotidiano, antropologicamente unitário e corporal que o ego cogito" (Dussel, 1984, p. 156). Um ser vivente que emerge no processo evolutivo da vida como espécie, sempre em interações com o meio e relações comunitárias – intersubjetivas –, que tem o que chamamos de racionalidade como um recurso adaptativo próprio e complexo. Como veremos a seguir, essas condições caracterizam o que Dussel compreenderá como a vida humana e seu modo de realidade.
Vida humana como modo de realidade
Imerso e participante dos processos evolutivos da vida, em sua contingência e aleatoriedade, como fenômeno antientrópico complexo, a priori e condição de possibilidade para o desenvolvimento de espécies, o vivente humano emerge com adaptações e características próprias, constituídas em um longo processo de mutação e especiação. Junto a Dussel, estruturaremos essas condições para constituirmos a base material antropológica, ponto de partida para quaisquer construções teóricas posteriores. Assim:
Efetuaremos uma rápida incursão propedêutica num tema de extrema atualidade e que, paradoxalmente, não tem despertado entre os filósofos a atenção que merece. Trata-se dos estudos científicos da biologia neurológico-cerebral, que nos permitiram, sem cair em certas ingenuidades do darwinismo ético, recuperar a dimensão da corporalidade tão deixada de lado pelas morais formais, e para enquadrar mais estritamente as pretensões nem sempre válidas das éticas materiais. (Dussel, 2007, p. 121)
A construção do conteúdo material para a ética e para a política no diálogo interdisciplinar com as ciências biológicas e suas contribuições – que temos realizado junto ao filósofo da libertação –, não deve ser entendida como recuo a um materialismo ingênuo. Encontramos em Dussel alternativas para a superação de reducionismos. Não se trata da produção de uma filosofia ingenuamente naturalista, materialista, irracionalista, racionalista ou vitalista. A filosofia da libertação, por sua vez, exige a determinação de categorias e conceitos que permitam articular a concretude radical do humano, estruturando um conteúdo material complexo: a afirmação da corporalidade – do corpo da pessoa, da gente viva.
Tendo o cosmos como a anterioridade física em que a vida aparece; a vida como o fenômeno antientrópico complexo a priori e condição de possibilidade para o desenvolvimento evolutivo que culmina na emergência do humano, concomitantemente a uma série de outras espécies – e em continuidade com estas –, a vida humana será determinada como modo de realidade. Esse movimento nos permite compreender a superação do dualismo antropológico enquanto é constituída a noção de corporalidade. Nesse sentido, estamos seguindo o "programa" antecipado por Dussel na Filosofía de la liberación:
O realismo e o materialismo ingênuo (como o de Engels) afirmam que o cosmos é o primeiro e eliminam a noção de natureza, tal como nós a explicaremos. O idealismo (como o de Sartre) afirma o mundo e a consciência como o primeiro e confunde o cosmos real com a natureza mundana. Por sua parte, a filosofia da libertação, para além do realismo crítico ou o pensar heideggeriano (um idealismo ontológico), supera a contradição falsa do realismo-idealismo, afirmando a anterioridade real do cosmos (ordo realitatis), a aprioridade existencial do mundo (ordo cognoscenili) e a interpretação econômica da natureza (ordo operandi). (Dussel, 1996, p. 130)
No tópico anterior, vimos a precedência física do cosmos e a vida como condição de possibilidade para os seres viventes. O humano, como vivente, encontra-se na condição de necessitante e participante de uma história evolutiva estruturada em processos autoorganizados e autorregulados. Encontra-se, assim, no constante movimento de adaptação e esforço para sobrevivência: disposição e utilização de meios – mediações – que possibilitem a reprodução e desenvolvimento da vida.
Rumamos, agora, para a compreensão das características específicas desenvolvidas e adquiridas no e pelo humano em seu esforço contingente de reprodução e desenvolvimento da vida5. É nesse espaço que Dussel lança mão do diálogo com a neurobiologia (como expressado na primeira citação deste tópico), a partir do qual explicaremos a "aprioridade existencial do mundo" e a "interpretação econômica da natureza".
Em Filosofía de la cultura y la liberación, referindo-se a uma tese de Max Scheler, que indica o que seria a "ruptura antropológica" em sua filosofia, Dussel expõe que a distinção que há entre os outros animais e os seres humanos (o salto qualitativo) é a capacidade de constituir um "mundo" separado, que não se confunde consigo mesmo. O humano "não está dado simplesmente como algo dentro de um meio, senão que pode se evadir do meio e constituir um mundo" (Dussel, 2006, p. 142). Constituir um mundo sem se confundir com ele é característica do modo de realidade da vida humana6:
[…] o animal é seu meio, ou se encontra confundido com ele […], se trata do meio físico, ante o qual o animal possui certa "subjetividade", de certo modo; está como ligado, como perdido em seu meio […]. Se pode dizer que o animal e seu meio são uma identidade de resposta às mesmas incitações. Enquanto que no homem há outra dimensão inexistente no reino animal […]. E isto se compreende rapidamente com a simples reflexão do que é um instrumento. Os animais podem usar coisas […]. Mas o que não podem fazer é […] inventar ou construir um "instrumento". Quer dizer, não somente usar esta coisa, senão projetar nesta coisa, ou seja, produzir um projeto que não estava dado. De tal modo que o homem ao ver "algo" não o vê simplesmente como é agora, senão que tem um projeto, por sua vez, que sabe objetivar na coisa o que, todavia, não é… (Dussel, 2006, p. 142)
A capacidade de constituir um mundo, de arquitetar um projeto factível, possível, é manifestação do salto qualitativo da espécie humana no processo evolutivo, contingente, auto-organizado e autorregulado da vida. Com essa notação, começamos a explicitar a "aprioridade existencial do mundo".
A experiência de constituição de um mundo não depende de uma substância separada, uma ação mental ou "racional" a priori (no sentido da dependência de uma "alma hipotética" que aqui criticamos), pois, senão, retomaríamos uma antropologia cindida, dualista, de "corpo-alma"7. Nesse sentido, Ivanilde Oliveira e Alder Dias comentam que "Dussel, contrapondo-se ao cognitivismo teórico […] compreende a racionalidade como uma dimensão da vida humana, que lhe permite viver mais e melhor" (Dias e Oliveira, 2012, p. 97).
Em Dussel, as habilidades específicas são adquiridas-desenvolvidas no processo contingente da evolução da vida. Como o filósofo argentino-mexicano explica, deve-se:
[…] dar importância aos processos auto-organizados ou autorregulados da vida, já que um certo "consciencialismo" moderno exagerado e unilateral faz perder o sentido da corporalidade orgânica da existência ética. A consciência não precisa intervir sempre, mas é determinante na intervenção "crítica", corretiva dos efeitos perversos não intencionais. Por isso efetuaremos uma rápida incursão propedêutica num tema de extrema atualidade […]. Se trata dos estudos empíricos da biologia cerebral que nos permitirão, sem cair em reducionismos ou no naturalismo ou darwinismo ético, recuperar a dimensão da corporalidade, com processos orgânicos altamente autorreferenciais, tão deixada de lado pelas morais formais. (Dussel, 1998, p. 93)
No primeiro capítulo da Ética de la liberación, tratando do momento material da ética, Dussel dedica o primeiro tópico ao tema do sistema cognitivo e afetivo-avaliativo cerebral humano: "o cérebro, momento interno da corporalidade humana, é um sistema de reconhecimento por seleção (selective recognition system) que procede com base em grupos neuronais interconectados" (Dussel, 1998, p. 94).
A habilidade de não apenas ver "algo", mas projetar, constituir um mundo, encontra sua base material na complexidade do funcionamento do cérebro humano – tendo em vista sua história evolutiva e suas conexões com outros órgãos, movimentos e acontecimentos contingentes que a possibilitam:
[…] da mesma maneira que o sistema imunológico ou o processo evolutivo das espécies, o sistema nervoso cerebral atua por seleção, a partir de um critério universal de dar permanência, reproduzir, desenvolver, fazer crescer a vida do sujeito humano – e isto desde o nível vegetativo até o cultural ou ético mais heroico ou sublime. (Dussel, 1998 p. 94)
O que está posto é que "o cérebro é o órgão diretamente responsável pelo 'continuar vivendo', como reprodução e desenvolvimento da vida humana, do organismo, da corporalidade comunitária e histórica do sujeito" (Dussel, 1998, p. 95).
De todo modo, para evitar equívocos e interpretações apressadas, é importante ressaltar a advertência a respeito da "diferença sempre existente, ainda que a longo prazo, entre o 'fato' neurológico e o 'fato' reflexivo da subjetividade, embora o segundo seja 'portado' materialmente pelo primeiro" (Dussel, 1998, p. 94). Isso significa que, em Dussel, é elevada e considerada a distinção qualitativa da vida humana e seu modo e realidade. Todavia, não a partir de uma cisão ontológica, caindo em dualismos.
O cérebro é a base material que possibilita a subjetividade humana (operante na dependência de outros órgãos vitais e na interação com o meio e relação com outros indivíduos), e esta, por sua vez, é uma experiência específica que carrega consigo uma história genética, comunitária e evolutiva, própria da espécie humana. Assim, referindose a Humberto Maturana, Dussel apresenta três graus de unidades orgânicas da vida que estão subsumidas nas atividades da corporalidade humana:
a) A unidade de primeiro grau se dá na célula viva […], as células vivas de nossa corporalidade, que são produto de fraturas reprodutivas de células sempre vivas, são parte de um continuum que está vivo desde a origem da vida na terra […]. Somos um momento da vida autopoiética […]. O metabolismo de dinâmica interna da célula reage diante do entorno por mitocôndrias ou membranas […] inaugurando um processo de ontogenia. b) A unidade de segundo grau se dá nos organismos metacelulares (pluricelulares, desde um cogumelo até os mamíferos). A ontogenia metacelular é um processo de filogênese celular. A evolução consiste em perturbações que se conservam autopoieticamente por adaptação. O aparecimento do sistema nervoso permite, por sua vez, "expandir o domínio de possíveis condutas ao dotar o organismo de uma estrutura tremendamente versátil e plástica" […]. c) A unidade de terceiro grau se cumpre nos fenômenos sociais (desde uma colmeia de abelhas até os primatas superiores) […]. A unidade de terceiro grau, que inclui comportamentos ontogênicos e filogênicos de maior complexidade, é o "domínio linguístico entre organismos participantes". (Dussel, 1998, p. 94)
A partir de uma leitura filosófica tradicional, poder-se-ia, por exemplo, considerar a unidade de vida de primeiro grau como "corpórea" (ou "experiência objetiva") em oposição ao "mental" (ou "experiência subjetiva"), possibilitado pelo aparecimento do sistema nervoso na unidade de segundo grau, e até pelos fenômenos sociais da de terceiro. Entretanto, os organismos viventes são constituídos na interação e, quando necessário, na interdependência dos três graus. A corporalidade humana atende e assimila as características desses três graus de unidade em sua complexidade. Nessa questão, Dussel aponta:
Pode-se, agora, considerar novamente a proposta de Kant. Falando do "fundamento determinante" (Bestimmungsgrund) do arbítrio, nega que este possa ser afetivo ou empírico. Por outro lado, Kant reduz toda a afetividade ao 'prazer' (Lust) […]. Quer dizer, o sistema avaliativoafetivo cerebral não teria nenhuma "necessidade objetiva" para Kant. Mas tem, por sua vez, na descrição neurobiológica atual […]. Do ponto de vista cerebral, ambos os sistemas têm a mesma necessidade objetiva: respondem, em primeiro lugar, às exigências da vida humana (necessidade objetiva primeira); em segundo lugar, articulam-se com o nível linguístico-cultural e histórico; e, em terceiro lugar, como veremos, respondem às exigências superiores e culturais universais de uma ética crítica (integradas ao sistema límbico, ou base do cérebro, junto ao lóbulo frontal do córtex). O dualismo e o formalismo kantiano (como o cartesiano e de outros tantos sistemas éticos modernos puramente formais) causaram muito dano à ética. A negação do "corpo" em favor de uma "alma" descorporalizada (desde os gregos até as éticas modernas) nos fala de uma tradição bem determinada. (Dussel, 1998, p. 102)
O que torna o vivente humano "um humano" não é uma essência ou substância de outra ordem, mas o modo de realidade que se estrutura no percurso evolutivo, em processos autorregulados da vida, com experiências, cargas históricas, de construções comunitárias e culturais. Trata-se de sua corporalidade – da pessoa que come realmente, que dispende e repõe energias vitais, que respira, trabalha, caminha, canta, fala, sorri, chora, que sofre com efeitos de cansaço, com a ingestão de algum microrganismo parasita, que participa de um culto religioso ou de uma festa familiar, que procura inserirse em grupos heterogêneos ou identitários, interagir socialmente ou mesmo agradar o parceiro ou a parceira sexual. Trata-se da gente viva que se esforça para produzir, reproduzir e desenvolver a vida em comunidade.
Assim, comentando o diálogo com a neurobiologia e indicando a posição de Dussel, quando lança mão desse conteúdo conceitual, Alejandro Lax explica que:
Autores como Antonio Damasio, Gerald Edelman e Humberto Maturana estudam o processo autorregulado do sistema nervoso em suas funções mais primitivas: a percepção de estímulos e a seleção daquilo que de algum modo funciona como mediação para produzir e reproduzir a vida do organismo. Trata-se de uma função originária do cérebro que se conserva em seus estados mais complexos de funcionamento: afecção e valoração de estímulos, categorização conceitual das percepções, formação do sistema linguístico e autoconsciência. Em todas estas funções neuronais encontramos uma constante que nunca varia: a busca daquelas mediações e daqueles modos de realidade que permitem a simultânea conservação do organismo e seu crescimento. Trata-se de uma função pré-consciente e pré-linguística que está presente em qualquer ser humano, independentemente da cultura a que pertence, independentemente do tempo histórico em que vive. (Dussel, 2012, p. 219)
O cérebro humano, momento interior da corporalidade, o órgão da pessoa que possibilita o modo de realidade da vida humana, tem uma história genética, constitutiva. Esse órgão não realiza suas funções isoladamente, mas é dependente e está em continuidade com toda a carga evolutiva própria da espécie humana (que traz consigo adaptações dos três graus de unidade anteriormente apresentados):
O mais importante […] é que este processo passa por um "caminho" que inclui não só a região talâmico-cortical (de recente formação na evolução das espécies e própria do homo por seu desenvolvimento cerebral descomunal), senão, antes, o sistema límbico e a base do cérebro (o mais antigo, e já existente, por exemplo, nos insetos ou répteis). (Dussel, 1998, p. 95)
A existência de um sistema nervoso complexo e de fenômenos sociais não é exclusividade da espécie humana. O que constituirá o ser humano enquanto humano não é uma de suas características exclusivamente – junto ao filósofo latino-americano, estamos fugindo de reducionismos. A especialidade humana dependerá de uma compreensão complexa das interações intencionais e não intencionais de todas as adaptações surgidas no processo evolutivo da vida em continuidade, e do modo como estas são utilizadas para a produção, reprodução e desenvolvimento da vida – processo que culmina na capacidade de constituir um "mundo".
Tendo em vista tamanha complexidade, Dussel destaca que o cérebro – subsumindo e sendo constituído na interação das unidades de vida – trabalha primordialmente como um sistema seletivo de reconhecimento. Esse sistema funciona a partir de mapas neuronais interconectados em um processo de categorização: discerne se aquilo que se apresenta permite ou impede a manutenção, reprodução e desenvolvimento da vida. O procedimento de seleção, resumindo abruptamente um processo de extrema complexidade, se articula no critério universal de permanência ou de persistência:
Como o leitor pode imaginar isto é uma simplificação completa de um processo imensamente maior (trilhões de vezes mais complexo). De qualquer maneira, tudo isto é parte das funções cumpridas pelo cérebro – como funções da corporalidade ética das quais estamos nos ocupando. (Dussel, 1998, p. 95)
A articulação do sistema cognitivo e afetivo-avaliativo cerebral humano com as situações às quais o vivente deve responder – suas interações com a natureza e relações comunitárias – vão especializando o organismo vivo. Dussel afirma que "o fundamento dos sistemas de valor nos animais de uma determinada espécie foi fixado pela seleção natural" (1998, p. 98). O modo como o vivente humano vive e atua, lançando mão das adaptações específicas que lhe permitem criar um projeto e utilizar meios para a produção, reprodução e desenvolvimento da vida, é seu modo de realidade:
Não se trata de uma ordem divina nem de umas exigências instrumentais, tampouco de um acordo livre de coação entre indivíduos. Muito pelo contrário, a conservação da vida autorregulada pelo cérebro é a condição de possibilidade de qualquer outro tipo de ação. É um mandato imanente ao mesmo sistema nervoso humano, que é material, sensível, autorregulado já em suas funções vegetativas. O sistema nervoso é assim, está autorregulado e auto-organizado assim, conforme umas condições biológicas presentes em todos os animais: perceber estímulos para selecionar mediações que permitam continuar vivendo. Por isso a vida não é um valor, senão a condição de possibilidade que põe os meios e os valores para continuar vivendo. (Lax, 2012, p. 219)
Nesse diálogo com as ciências biológicas, portanto, Dussel propõe que o cérebro, com sua complexidade e funcionamento peculiar, é um dos pilares que sustentam o modo de realidade próprio do ser humano – tendo a vida como a priori e condição de possibilidade. São os atributos especiais do cérebro humano – surgidos nas interações acidentais do processo evolutivo – que possibilitam a distinção qualitativa delicada que há entre a espécie humana e os demais viventes – o que foi chamado de "ruptura antropológica". No entanto, não se deve compreender desse movimento o retorno a uma separação essencial ou substancial entre o vivente humano e os demais. O que buscamos explicar é que essa distinção qualitativa se nos apresenta como modo de realidade.
Corporalidade: conteúdo material
Em suas características físicas e biológicas, o ser humano é constituído da mesma matéria que os demais viventes. Seu modo de realidade é que o caracteriza e distingue. O percurso pela história evolutiva em diálogo constante com as ciências biológicas se torna momento necessário e propedêutico, pois, como sustenta o filósofo argentino-mexicano, a proposta de libertação "necessita de uma compreensão unitária do ser humano" (Dussel, 1998, p. 103).
Essa compreensão unitária do ser humano está contida no que temos desenvolvido com Dussel como corporalidade: o conteúdo material da ética e da política; nosso fundamento antropológico. Contudo, do mesmo modo que procuramos superar o dualismo, não devemos nos equivocar tomando posição junto a um monismo ingenuamente materialista, como já indicamos. Sobre esse cuidado na explicitação da corporalidade, Dussel adverte:
[…] é-se necessário escapar de falsas alternativas, já que não é aceitável nem o monismo ingenuamente materialista, nem o dualismo. A afirmação unitária da corporalidade, que nega o dualismo, pode igualmente não afirmar o materialismo behaviorista ou fisicalista. A solução deve ser distinta das tradicionais, já que o cérebro se situa num estrato sui generis da realidade. Maurice Merleau-Ponty escrevia: "Seria melhor, neste caso, dizer que o fundamento corporal foi subsumido num nível superior da vida e que o corpo foi transformado em corpo humano". (Dussel, 1998, p. 103)
A citação de Merleau-Ponty é seguida pela indicação do trabalho de Xavier Zubiri, que, em seu pensamento complexo, desenvolve a categoria de "intelecção-senciente", superando o dualismo corpo-alma. Em um resumo abrupto de sua proposta refinada, podemos dizer que Zubiri demonstra que a apreensão da realidade depende de um processo de intelecção que sente ou de uma sensação que intelege8. Trabalhando a constituição do real e a própria relação na e com a realidade, Zubiri mostra que a estrutura humana não é cindida – entre um "sentir" e um "inteligir" –, mas única. Nas palavras de Dussel, o que se pretende demonstrar no processo de sustentação da corporalidade, em todo esse diálogo, é que:
[…] a postura da Modernidade, desde Descartes, Kant e Hegel, da afirmação do sujeito cognitivo (ego cogito) em sua múltipla e cada vez mais ontológica auto-fundamentação […] poderia ser julgada como um racionalismo radical, no qual, desde a fundamentação de um (não vários) princípio, se deduz toda ação humana, cotidiana, ética, política ou estética. Tudo parte do conceito que se tem do "real" e da "realidade". Se tomamos o caminho do realismo crítico de um X. Zubiri, a questão é radicalmente posta de outra maneira. Em primeiro lugar, não se distingue entre conhecimento dos sentidos (do corpo) e conhecimento racional (da alma), senão que, mais adequadamente, desde o ponto da percepção (lembra a M. Merleau-Ponty) e da neurobiologia, há uma "inteligência senciente" ou um "sentido inteligente". Superamos já um dualismo desnecessário. (Dussel, 2001, p. 160)
O ser humano é, assim, um ser vivo – possuidor de vida e que participa da vida: um vivente. As experiências e capacidades da espécie humana, seus órgãos, sua história evolutiva, suas produções, seu modo de realidade qualitativamente distinto dos demais animais, dão conteúdo à corporalidade. Como delineamos anteriormente, sem a cisão dualista ou reducionista na constituição do humano, tanto aquilo que é considerado como uma experiência "meramente material" (corporal) quanto o que é "superior" (mental e cultural) são trabalhados como conteúdo material da vida humana:
As funções mais complexas do cérebro humano (as emoções secundárias, a felicidade, a categorização conceitual, a competência linguística e autoconsciência, que permitem a autonomia, a liberdade e a responsabilidade do sujeito ético-cultural e histórico) subsumem as meras funções físico-vitais dos cérebros menos desenvolvidos dos animais pré-humanos. (Dussel, 1998, p. 103)
A corporalidade, portanto, não se resume às estruturas físicas e biológicas e seu funcionamento, mas deve ser compreendida na complexidade humana e seu modo de realidade. Como apresentado, o cérebro é "momento interior da corporalidade". Esta é constituída pela carga genética, evolutiva, histórica, cultural e comunitária do sujeito humano – com suas interações com o meio e relações com sua comunidade. São as características e facetas em interação e continuidade que formam o humano; de maneira complexa, concreta e material.
Desse modo, no pensamento dusseliano, as produções culturais advindas da capacidade de "constituir um mundo" – adaptação própria da espécie, característica do modo de realidade da vida humana – são subsumidas na corporalidade. Na contínua experiência humana, é a passagem delicada do nível físico-biológico ao histórico-cultural – níveis que darão conteúdo material para a ética e para a política. Como já assinalado, a corporalidade – a carne da pessoa humana – apresentada por Dussel traz consigo uma carga genética, evolutiva, histórica, cultural e comunitária:
Tudo isto está relacionado ao fim conjunto da corporalidade em seus diversos níveis, em referência à permanência, reprodução ou desenvolvimento da vida do sujeito humano. Se a isto acrescêssemos as "avaliações" culturais (as de um egípcio diferentes das de um grego, de um asteca, das de um espanhol ou europeu moderno, etc.) teríamos um novo "sentir avaliativo geral reflexo" (da consciência moral ou ética) que "monitora" (subsume) toda a existência, não só no nível visceral da corporalidade, senão no nível histórico-cultural da mesma corporalidade num estado autoconsciente e linguístico, como ator social de valores culturais (incorporado cerebralmente nas áreas mais desenvolvidas e recentes dos lóbulos corticais linguísticos, perfeitamente articulados com o sistema límbico e a base do cérebro, produzindo uma unidade complexa das diversas ordens avaliativoafetivas). (Dussel, 1998, p. 102)
Logo, não há uma diferença substancial ou essencial entre o nível físico-biológico e o histórico-cultural. Há a distinção qualitativa, que é experienciada como modo de realidade da vida humana, percebida pela capacidade de constituir um "mundo", de projetar e criar instrumentos que, por sua vez, redirecionam a experiência do vivente em sua história genética, evolutiva e cultural. É o esforço para se estruturar uma compreensão unitária do ser humano. Como nos explica Dussel:
O mundo que nos rodeia será, primeiramente, um "mundo humano" […]. O homem constitui assim um mundo intencional, que sempre é um mundo cultural, já que da possibilidade de constituir um mundo mais que animal surge, de fato, o mundo dos instrumentos. Antes que Australopitecus ou Sinanthropus, o homem já começou a se rodear de "instrumentos" ou meios com os quais trabalha – uma simples pedra deformada para servir de utensílio, ainda muito bruto no paleolítico […]. Quer dizer, entre uma pedra não polida e os maiores macrosistemas instrumentais há só uma diferença de grau, porque são frutos do poder prático do espírito humano – seja em seu estanho inicial ou altamente evoluído. O mundo dos instrumentos nos fala já, como seu fundamento, do mundo objetivo intencional de projetos e valores que fundam a constituição dos instrumentos e que, por sua vez, determinam certas atitudes existenciais frente aos mesmos instrumentos. Tanto o mundo objetivo intencional ou de valores, quanto as atitudes e a objetivação instrumental, se dão num sistema. A cultura é a totalidade desses três momentos. (1973, pp. 73-74)
Desse modo, afirmar que a cultura é constitutiva e constituinte do conteúdo material, do fundamento antropológico na filosofia de Dussel, significa atestar o fato de que o humano sempre faz parte de uma cultura, logo, de uma comunidade. A corporalidade, portanto, é constituída na e com a comunidade, sempre. O modo de realidade da vida humana não se desenvolve em uma fixação solipsista, mas é fruto de um processo histórico e evolutivo de uma espécie. O vivente humano, portanto, é comunitário e trabalha sempre em comunidade.
Aqui, seguindo o programa antecipado pelo filósofo latino-americano na Filosofía de la liberación, tocamos na "interpretação econômica da natureza":
O implementar um mundo é uma nota constitutiva real do homem. Incluir nesse mundo as coisas cósmicas-físico-viventes é o que aconteceu desde que o homem é homem, no momento mesmo de sua aparição. Por isso a natureza é tão antiga quanto o homem. Sua primeira circunspecção do cosmos constituiu em natureza a parte compreendida do cosmos […]. A natureza como paisagem, como lugar onde conseguir vestimenta, o que comer, onde habitar, como horizonte, todavia sem fronteiras: a natureza agreste, selvagem, caótica… É a natureza erótica onde o homem fará sua casa: ecológica, então (tanto ecologia quanto economia derivam do grego e significam casa: oikia). Origina-se, assim, a dialética homem-cosmos, o surgimento da natureza como habitat. (Dussel, 1996, pp. 135-136)
Em nosso percurso, percebemos que a anterioridade real do cosmos indicava que a vida emerge no cosmos e é condição de possibilidade para o acontecimento da vida humana. A aprioridade existencial do mundo nos auxiliou na compreensão do modo de realidade da vida humana – capacidade de constituir um mundo que, agora, tomamos como sempre sendo mundo cultural. Já a interpretação econômica da natureza nos apresenta à atividade prático-poiética humana de trabalhar para produzir, reproduzir e desenvolver a vida, tomando a natureza como sua matéria-prima.
Todavia, em Dussel, tendo a vida como a priori e condição de possibilidade para a emergência do humano, não partimos de um indivíduo isolado que trabalha no mundo com a natureza projetando instrumentos e produzindo cultura. Mas é fundamentado no processo evolutivo – da história de uma espécie – que é possível o modo de realidade humana, o desenvolvimento desses viventes com suas singularidades, sempre em grupo, como espécie. O trabalho humano, portanto, é sempre já em comunidade:
Desde que o homem é homem, recorre ou produz a partir da natureza o necessário para cumprir suas necessidades (poiética), mas sempre em grupo, em família, clã, tribo, sociedade (prática) […], a humanidade durante centenas de milênios, cada indivíduo cumpria todas as funções do grupo: caçar, coletar, pescar, fazer um ninho ou reconfigurar o lugar do habitat. Produtos simples, comunidade primária […]. O homem produzia e reproduzia a vida do grupo […]. Pouco a pouco, era um grupo que intercambiava com outro […]. Os intercâmbios humanos (a partir e como consolidação de sistemas produtivos e práticos) foram lentamente crescendo com os milênios, foram se sistematizando, reproduzindo, destruindo-se às vezes ou impondo sua dominação ou hegemonia a outros. A totalidade prático-produtiva garante, assim, a sobrevivência […]. As maneiras distintas de relacionar seus termos, o distinto conteúdo da relação mesma, foi gerando na história diversas maneiras ou modos de totalidades prático-produtivas […], uns alcançaram a agricultura, outros o pastoreio, outros melhoraram as técnicas de caça e as transformações nos métodos de guerra. (Dussel, 1996, p. 168)
O humano não nasce só: é parte de uma espécie, sempre em uma comunidade, em um povo, com história, divisão de trabalho, relações próprias. Na natureza já constituída para o humano como matéria-prima de trabalho, de relação prático-produtiva – relações que vão se complexificando e distinguindo em cada lugar e momento, dentro de uma história evolutiva, sob efeitos intencionais e não intencionais. O modo de realidade da vida humana, portanto, é já sempre cultural: projeta instrumentos em relações práticopoiéticas com e a partir de uma comunidade de viventes humanos. Assim, Dussel afirma:
Dizemos que não há necessidades primárias ou biológicas e secundárias ou culturais, porque as necessidades humanas são sempre biológicoculturais. Não há nenhuma necessidade que se cumpra de uma maneira natural (pré-cultural), como nenhuma cultural que não seja ao mesmo tempo biológico-natural (1996, p. 155).
É nesse sentido que a cultura e a comunidade são constituintes da corporalidade enquanto conteúdo material para a ética e para a política:
A corporalidade de cada ser humano é um momento da comunidade humana. A comunidade humana constitui em cada nível uma referência necessária e co-implicante. Minha própria corporalidade nasceu dentro da espécie humana, dentro de um povo, uma família; minha mãe me pariu. Isto indica todo o problema genético, a referência ecológica terrestre, a história biológica de uma espécie. Mas, ademais, minha subjetividade está constituída intersubjetivamente, desde o ponto de vista linguístico, cultural (valores), social (instituições), histórico (tradições), etc. (Dussel, 2001, p. 324)
Dussel escreve que o vivente humano não nasce de algo, mas de alguém. Desde a relação mãe-filho, a relação entre amantes, irmão-irmão, enfim, toda experiência interpessoal ou comunitária já se mostra constituinte da corporalidade. O vivente humano aprende a interagir com o meio, falar, ordenar o mundo, significar, trabalhar, etc., sempre e já dentro um grupo, participando, produzindo e mantendo cultura — desenvolvimento conectado ao modo de realidade da vida humana. Nesse sentido, clareando a questão, escreve:
O homem nasce do útero materno e é recebido nos braços de uma cultura […]. A imediatidade mãe-filho também sempre se vivencia com a relação cultura-povo. O nascimento se produz sempre dentro de uma totalidade simbólica que amamenta igualmente o recém-chegado nos signos de sua história. É numa família, num grupo social, numa sociedade, numa época histórica que o homem nasce e cresce, e dentro da qual implementará seu mundo de sentido. Antes que o mundo, então, já estava […] o êthos do povo. (Dussel, 1996, p. 32)
Assim, temos o desenho do fundamento antropológico – base material para a ética e política da libertação. A corporalidade, tendo como conteúdo as formações biológicas, o modo de realidade próprio da vida humana e as experiências histórico-culturais em comunidade articulados e em continuidade, apresenta-nos uma alternativa que supera reducionismos e o dualismo tradicional. No mesmo sentido, não se está tratando de uma experiência como referência primeira a um "eu", mas como condição de possibilidade desse "eu", há a comunidade humana anterior, que emerge no processo evolutivo da vida:
No nível da mera "corporalidade" se encontra intersubjetivamente a comunidade humana; comunidade de vida dos seres humanos corporais, enquanto produzem, reproduzem e desenvolvem sua própria vida num tipo de relação social fundamental, material, de conteúdo. Entre os primatas superiores é o grupo de machos dominantes, com fêmeas e prole infantil. No ser humano, por sua capacidade intelectivoafetiva, formam-se comunidades de vida de muito maior extensão, organização, complexidade. É a última referência material da intersubjetividade. (Dussel, 2001, p. 327)
A capacidade de projeção e desenvolvimento de instrumentos, na e pela comunidade de vida dos seres humanos, produz cultura. É conectado, constituído e sendo constituído por esse tipo de relação social, fundamental, material, de conteúdo, que o vivente trabalha para produzir, reproduzir e desenvolver a vida. A história evolutiva e as experiências histórico-culturais também estão em continuidade, constituem, portanto, a corporalidade humana:
O homem, desde sua origem, não existe só, senão que aparece sempre e já como emergido em uma "intersubjetividade". O mundo do homem não é e nem pode ser solipsista, sempre é intersubjetivo, interpessoal. A língua é o maior dos exemplos, igualmente os gestos e, por fim, todas as instituições humanas. O pensamento do homem é dialogante – ainda que não seja mais que consigo mesmo, supõe sempre o mundo cultural dentro do qual se pensa –, necessita de um "eu" e um "tu", que sempre se estabelece dentro do horizonte de um "nós". (Dussel, 1973, p. 74)
Encontramos, desse modo, no desenvolvimento da filosofia de Dussel, a complexificação cultural incluída no processo evolutivo randômico que produz efeitos intencionais e não intencionais. Diversas eticidades se constituem em diferentes culturas – que, como já citado, consolidam diferentes valores ou "avaliações culturais": sejam de um egípcio, um grego, um asteca, um espanhol ou um europeu moderno etc. (Dussel, 1998, p. 104). Como expõe na Filosofía de la liberación: "Não é o mesmo nascer no Polo Norte ou em Chiapas que em New York" (Dussel, 1996, p. 14).
Levando a sério a realidade ou dureza da vida humana, tendo a vida cotidiana do sujeito humano constantemente exposta, é que Dussel estipula a corporalidade como fundamento material para a ética e para a política. O "material", aqui, tem determinação específica e precisa. Não tratamos de um materialismo ingênuo, mas de conteúdo consistente.
Em sua leitura de Marx, o filósofo argentino-mexicano encontra uma diferença entre material no sentido de matéria física, bruta, astronômica ou cosmológica, e material no sentido de "conteúdo" – enquanto matéria de trabalho do vivente humano. Nesse exercício, Dussel comenta na Tese 10 de sua Ética de la liberación que:
Em alemão, Material (com 'a') significa "material", como "conteúdo" (Inhalt) oposto a "formal"; enquanto materiell (com "e") significa "material", de matéria física, oposto, por exemplo, a "mental" ou "espiritual". O "materialismo" de Marx, obviamente, é Material (com "a"; já que a sua problemática é a de uma ética de conteúdo, e não do "materialismo dialético" da natureza [de Engels ou do estalinismo posterior] a que ele nunca chamou assim e nem dedicou nenhuma página significativa). (Dussel, 1998, p. 634)
Ao vermos subsumidas na categoria de corporalidade tanto a constituição físicobiológica quanto as produções culturais frutos da ruptura antropológica (da distinção qualitativa do modo de realidade humana), entendemos o sentido preciso de material: não em uma distinção entre um "materialismo fisicalista" e um "idealismo", mas na determinação do conteúdo complexo. A corporalidade – o fundamento antropológico da ética e da política – é material por ser "de conteúdo". Não é um desenvolvimento meramente formal e muito menos ingenuamente "fisicalista". Encontramos em Dussel uma sistematização alternativa às doutrinas ou escolas filosóficas tradicionais.
Considerações finais
Tendo a vida como a priori e levando em conta o processo evolutivo da vida, no qual o humano emerge, Dussel pode notar que "por sua real constituição de mamífero, a relação primeira é, então, de filho-mãe, homem-homem" (1996, 26). Também, observase que os sujeitos intersubjetivos humanos vão se constituindo, lançando mão dos recursos e meios disponíveis, tendo seu modo de realidade desenvolvido nas interações com o meio e nas relações com os outros. Na filosofia dusseliana, portanto, toda essa complexidade física, histórica, cultural, relacional, comunitária, subjetiva e intersubjetiva é subsumida pela categoria da corporalidade.
Como base antropológica material, enquanto conteúdo, a corporalidade passa a ser fundamento, pressuposto, ponto de partida complexo para o desenvolvimento de toda teoria posterior. A não recepção acrítica de pressupostos antropológicos tradicionais com a produção de conteúdo próprio, lançando mão dos recursos, conhecimentos científicos atuais disponíveis, torna possíveis novas implicações éticas e políticas. Junto a Dussel, levando em conta a história evolutiva do desenvolvimento da vida e da história cultural qualitativamente distinta do vivente humano, não se parte de indivíduos isolados, mas de uma espécie, de uma comunidade.
Desta feita, diferentemente de um "estado de natureza", o conteúdo vivo a priori implica uma comunidade já humana, que emerge no processo evolutivo auto-organizado e autorregulado, acidental, randômico, sempre engajada na produção, reprodução e manutenção da vida. O vivente humano como constituinte e participante de uma espécie produz cultura, imerso, desde sempre, em uma comunidade: "Não era o 'estado de natureza' de Hobbes (porque não havia nem indivíduos solitários, nem extrema liberdade; havia comunidades com mínima espontaneidade na peremptória 'necessidade' de reproduzir a vida imediata, a cada dia)" (Dussel, 1983, p. 18).
A constituição da base material antropológica, apresentando a vida humana com seu modo de realidade e toda sua complexidade, de viventes, sujeitos intersubjetivos em sua corporalidade, integral, unitária, permite a construção e desenvolvimento de uma ética e uma política que têm em seu fundamento a vida comunitária, de comunidades humanas e suas produções. Torna possível uma produção alternativa ou ainda alterativa às filosofias tradicionais, que por vezes são tomadas de maneira insuspeita, sem a devida crítica em nossos estudos e produções em filosofia.
Referências
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Endereço para correspondência
Daniel Pansarelli
E-mail: daniel.pansarelli@ufabc.edu.br
Bruno Reikdal Lima
E-mail: bruno@reikdal.net
* Filósofo, doutor em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP). Professor na graduação e orientador na pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal do ABC (UFABC), atualmente exercendo também a função de pró- reitor de extensão e cultura.
** Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do ABC (UFABC). Graduado em Filosofia pelo Centro Universitário São Camilo (CUSC) e pós-graduando em Ciência Política pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP).
1 Advertimos que "expressões como 'homem' ou 'humano' implicam, salvo quando expresso em contrário, a espécie humana, respeitadas e valorizadas as características particularmente femininas" (Pansarelli, 2013, p. 30).
2 Construindo um processo histórico que supera a necessidade de um "arquiteto" ou "demiurgo" que a planeje e realize tudo – conectado à separação de substância "corpórea" e substância "mental"; à metafísica alma-corpo –, Dussel está de acordo com a contingência apresentada por Darwin na Origem das espécies: "Seja o que for que controle a tendência natural do aumento em número de cada espécie, é algo obscuro […]. Não sabemos exatamente o que as controla nem mesmo numa única instância […]. Muitos casos estão registrados mostrando quão complexo e inesperado são os controles e as relações entre seres orgânicos, os quais têm que lutar reunidos no mesmo campo" (Darwin, 1859, pp. 929-977, tradução nossa). O pai da teoria da evolução indica, nesse sentido, que séries de determinações e circunstâncias ambientais aleatórias – como clima, quantidade de alimento disponível, migrações de outras espécies etc. – interferem e contribuem para a adaptação de cada espécie. O que está posta é a possibilidade de processos acidentais, auto-organizativos e autorregulados: sem a necessidade de uma intenção ou racionalidade anterior que projete, organize ou controle a vida. É conteúdo "pré-filosófico", "pré-teórico", "pré-ético" e "pré- ontológico" também porque não depende de uma explicação ou racionalização para acontecer: é a priori às adaptações evolutivas que possibilitaram o acaso da ruptura antropológica – a emergência da humanidade e suas especificações e especialidades na vida e no cosmos.
3 Dussel, retomando Aristóteles, estabelece uma diferença entre o prático e o poiético: "devemos esclarecer que prático e prática vem do grego (: práxis), e indica a relação homem-homem; em especial a relação política, ou as relações sociais de produção. Enquanto que poiésis e poiético vem de outra palavra grega (: fazer, produzir, fabricar), e indica a relação homem-natureza, em especial a relação tecnológica, ou todo o âmbito de suas forças produtivas, a divisão do trabalho, o processo de trabalho, etc." (Dussel, 1984, p. 13). Nota nossa.
4 Assim como na questão da contingência como guia da seleção natural e do desenvolvimento da vida, também encontramos em Dussel conexão com a "luta pela existência" de Darwin. A esse respeito, o biólogo inglês escreve: "Devo colocar que utilizei a expressão 'Luta por Existência' [Struggle for Existence] num sentido amplo e metafórico, incluindo a dependência de um vivente [being] a outro, e incluindo (o que é mais importante) não somente a vida do indivíduo, mas o sucesso em deixar descendência" (Darwin, 1859, p. 872, tradução nossa).
5 A interação entre ser vivo e meio é constante e dinâmica, sem a necessidade de um controle nem a garantia de previsibilidade do resultado de choques e perturbações, dos acontecimentos interdependentes dos processos auto-organizados e autorregulados da vida. Desta feita, as mutações não são de um agente vivo, consciente e com todo o controle de suas potencialidades, nem com a necessidade de um design inteligente que reja as interações. É exatamente na imprevisibilidade que ser vivo e meio se transformam e são transformados. Como mostram Maturana e Varela: "Organismos e meio variam de modo independente; os organismos variam em cada etapa reprodutiva e o meio segundo uma dinâmica diferente. Do encontro dessas duas variações surgirão a estabilização e a diversificação fenotípicas, como resultado do mesmo processo de conservação da adaptação e da autopoiese, a depender dos momentos desse encontro" (Maturana e Varela, 2001, p. 125).
6 A constituição de um mundo "exterior" como qualidade especial da vida humana, em Dussel, é carregada da influência que a fenomenologia tem em seu pensamento de libertação. O posicionamento de Dussel em relação a Heidegger, Lévinas, Ricœur e outros expoentes da filosofia europeia não tem como consequência o abandono teórico, mas a assimilação crítica de seus conteúdos.
7 A influência da fenomenologia de Heidegger continua presente, de certo modo, mesmo na filosofia madura de Dussel – agora amplamente criticada a partir do pensamento de libertação, a partir da América Latina. Enquanto discute sobre o conteúdo material da corporalidade a partir de explicações da neurobiologia, afirma: "Por sua vez, Heidegger, ao que pode se acusar de muitas coisas, não caiu no dualismo, ainda que não tenha analisado suficientemente o 'anterior' e 'posterior' do mundo (como o mostrará Lévinas). O 'ser-no-mundo' do 'Ser-aí' – o ser humano ontológico – se abre a este mundo como 'compreensão' (Verstehen), ato que não se pode confundir nem com a razão pura de Kant, nem com a razão dialética de Hegel. É um 'modo' de captar a totalidade das experiências da vida humana em seu conjunto: 'meu mundo', 'nosso mundo'. A partir da totalidade das 'experiências' do cérebro como capacidade cognitiva, pode-se categorizar o que se apresenta à consideração atual" (Dussel, 1998, p. 103). Em nota a esse comentário, Dussel adverte para o fato de que Heidegger tocou no assunto e possibilitou a entrada no tema do salto qualitativo humano a partir da corporalidade que supera dualismos, mas, de todo modo, não era suficiente: "por isso pôde nos servir de ponto de partida a ser superado […]. A 'compreensão do ser' sendo um momento cognitivo, era, contudo, prático (um 'pro-jeto' [Entwurf], um telos, 'ser' diante da inteligência e 'poder-ser' para a vontade ou faculdade apetitiva). A ciência do cérebro nos confirma nesta via unitária da corporalidade ética" (Dussel, 1998, p. 103).
8 O desenvolvimento complexo da filosofia de Zubiri procura superar o dualismo "corpo-alma", suas derivações e reduções. Em um de seus textos, procurando resumir parte de seu trabalho e o que entende por "inteligência-senciente", Zubiri escreve: "[…] apreender realidade é o formalmente próprio da intelecção. Portanto, apreensão impressiva de realidade é formalmente intelecção senciente. […] como momento determinante do processo humano […]. A intelecção determina os afetos ou modificações tônicas. Falo de 'afetos' para distingui-los das afeções próprias de qualquer impressão. A modificação dos afetos animais pela impressão da realidade é o que constitui o sentimento. Sentimento é afeto do real. Não é algo meramente 'subjetivo' como se costuma dizer. Todo e qualquer sentimento apresenta a realidade enquanto tonificante como realidade. O sentimento é em si mesmo um modo de versão para a realidade. Por sua vez, a resposta é determinação na realidade: é a volição. Quando as tendências sencientes nos revelam a realidade como determinação, determinante e determinada, então a resposta é vontade […]. Assim como a intelecção é formalmente intelecção senciente, o sentimento é sentimento afetante, e a volição é vontade tendente […]. Intelecção é, assim, o determinante das estruturas especificamente humanas. Bem entendido, trata-se da intelecção enquanto nos instala sencientemente no real. Não se trata, pois, do que comumente se costuma chamar de intelectualismo […]. Aqui se trata de inteligência senciente. E o que esta inteligência faz não são conceitos, mas apreensão do sentido como real" (Zubiri, 2011, pp. 205-207).