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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.20 no.1 São Paulo jan./jun. 2018

 

DOSSIÊ

 

Morte, narcisismo e invisibilidade nos quadros limítrofes: um estudo clínico

 

Death, narcissism and invisibility in borderline states: a clinical study

 

 

Josiane C. Bocchi*; Érico Bruno Viana Campos**

Universidade Estadual Paulista – Faculdade de Ciências de Bauru

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O conceito de pulsão de morte é um dos mais polêmicos e complexos da metapsicologia freudiana, com variados desdobramentos nas tradições psicanalíticas. Embora de formas distintas, tanto a tradição inglesa quanto a francesa insistem em uma perspectiva mais traumática e positiva dos efeitos disruptivos da pulsão de morte. No entanto, a clínica contemporânea aponta para configurações subjetivas em que o vínculo com os objetos e a realidade caracterizam-se mais pelo trabalho do negativo, em que o desinvestimento objetal e narcísico são a tônica. Ilustra-se essa posição com o relato de um caso clínico de quadro limítrofe marcado pela escopofilia mortífera, depressividade e automutilação, em que se destacam a implicação do corpo e a oscilação entre o eu e o ideal do eu. Conclui-se que a noção de um narcisismo negativo constitui um operador importante para a compreensão dos desdobramentos da pulsão de morte na dinâmica da subjetividade contemporânea.

Palavras-chave: psicanálise; clínica contemporânea; pulsão de morte; narcisismo negativo.


ABSTRACT

The death drive concept is one of the most polemic and complex of Freudian metapsychology, with a variety of developments in psychoanalytic traditions. Although in different ways, both English and French tradition insist on a more traumatic and positive outlook of the disruptive effects of death drive. However, the contemporary clinic points to subjective configurations in which the bond with objects and reality are characterized more by the work of the negative, in which object and narcissistic disinvestment are the tonic. This position is illustrated by the report of a clinical case of a borderline marked by deadly scopophilia, depressivity and self-mutilation, in which the implication of the body and the oscillation between the ego and the ideal of ego stand out. It is concluded that the notion of negative narcissism constitutes an important operator for understanding the unfolding of the death instinct in the dynamics of contemporary subjectivity.

Keywords: psychoanalysis; contemporary clinic; death drive; negative narcissism.


 

 

1. Introdução

O campo de discussões acerca da pulsão de morte ainda é um dos mais polêmicos e polissêmicos na teoria e na clínica, com variados desdobramentos nas tradições psicanalíticas pós-freudianas. A proposição do conceito de pulsão de morte no âmbito da virada dos anos 1920 emerge como um novo elemento da teoria, e sua caracterização no último momento da obra freudiana envolve três vertentes de problematização que se articulam entre si – a compulsão à repetição, a destrutividade e a irrepresentabilidade – sem encontrar uma síntese definitiva e deixando um campo aberto para desdobramentos e interpretações (Figueiredo, 1999; 2003; Campos, 2006; 2014). As grandes tradições pós-freudianas valorizam de forma diferenciada esse legado. Considerando essas vertentes à luz da esquematização de Mezan (2014) sobre os paradigmas em psicanálise, podemos afirmar que o paradigma pulsional tende a desconsiderar o constructo da pulsão de morte, enquanto o paradigma objetal valoriza a sua dimensão destrutiva e sádica e o paradigma subjetal valoriza a dimensão irrepresentável. Embora de formas distintas, tanto a tradição inglesa quanto a francesa insistem em uma perspectiva mais traumática e positiva dos efeitos disruptivos da pulsão de morte.

Neste artigo, trata-se de delimitar algumas consequências da teorização da pulsão de morte para o campo da psicopatologia psicanalítica contemporânea. Nesse campo, o que interessa não é propriamente a clínica das neuroses, mas sim a clínica das configurações narcísicas, em que estão em jogo a constituição do eu, a representação de si e a centralidade de um tipo de angústia, que não a de castração, mas angústia de perda. No plano geral, essas configurações têm recebido diversas denominações: clínica do vazio ou patologias do vazio; numa leitura mais norte-americana, são chamados borderlines ou personalidades narcísicas. Na literatura psicanalítica francesa, também são chamados estados limítrofes ou arranjos limítrofes (Bergeret et al., 2006). Essas denominações apontam para organizações subjetivas em que o vínculo com os objetos e a realidade caracterizam-se mais pelo trabalho do negativo, em que o desinvestimento objetal e narcísico constitui a dinâmica central e, muitas vezes, anterior à oposição amor e ódio. Assim, mais do que a violência da repetição ou dissociação, surge o esvaziamento e mortificação psíquica, com efeitos expressivos no corpo, nas relações amorosas e no trabalho. Nesse sentido, destaca-se a contribuição de André Green (1988a; 1988b) a essa problemática, por meio da formulação das noções de narcisismo de vida, narcisismo de morte e de sua concepção de um trabalho do negativo, como expressão própria da dinâmica tanática.

Este ensaio visa contribuir para o debate a partir da caracterização dessa problemática privilegiando a perspectiva do narcisismo negativo e propondo um encaminhamento para clínica contemporânea por meio das reflexões sobre um relato de caso clínico em que essas questões podem ser encontradas de forma significativa, tendo sido decisivas para a condução da escuta analítica e para o próprio desfecho do tratamento. Vamos delimitar mais especificamente as consequências da teorização da pulsão de morte como tendência à descarga absoluta – o Nirvana que se opõe ao princípio do prazer e ao regime das representações psíquicas –, discutindo sua extensão ao campo da psicopatologia. Os dados clínicos aqui aportados visam ilustrar o trabalho de desligamento da pulsão de morte em sua dimensão negativa da excitação e da destruição da trama de representações – e mais propriamente da sua não constituição, promovendo a irrepresentabilidade e o esvaziamento, por meio de ataques ao espaço de objetos e instâncias psíquicas. O caso traz sintomas de escopofilia mortífera, depressividade e automutilação, com destaque para o olhar e a implicação do corpo. Sua dinâmica permite pensar em uma problemática de fundo que concerne à luta defensiva contra angústias de perda de si e do objeto, com oscilações na distância entre o eu e o ideal do eu, expressadas por extremos de idealização e de esvaziamento, desvelando um conflito que se dá mais no âmbito da luta entre vida, morte e sobrevivência – e não nos referimos apenas à sobrevivência do eu, mas do próprio organismo – do que do conflito e das vicissitudes do sentido do desejo.

 

2. Desdobramentos no campo da pulsão de morte

Se partirmos da hipótese de que a pulsão de morte emerge como um elemento estranho na metapsicologia freudiana – e não por acaso Freud escreve "O estranho" (1919/1996) no mesmo período em que "Além do princípio de prazer" (1920/1996) –, também há que se considerar que o estranho inconsciente que retorna não constitui uma alteridade externa. A questão que se coloca é a natureza desta irrupção: "todas essas considerações preparam-nos para a descoberta de que o que quer que nos lembre esta íntima 'compulsão à repetição' é percebido como estranho" (Freud, 1919/1996, p. 298). Campos (2006) sugere que a hipótese da compulsão à repetição emerge como estranheza dentro da trama de argumentos de "O estranho", de forma que esse texto não se ocuparia só da experiência estética, mas da tentativa de elaboração do impacto da pulsão de morte nos alicerces da metapsicologia. Mesmo que esta fosse previsível como uma exigência do pensamento freudiano, orientado por "uma finalidade essencialmente mortuária", Monzani (1989, p. 220) vai buscar em M. Schneider a ideia de que essa tendência esteja na raiz do pensamento freudiano, fazendo com "todo circuito do desejo seja um caminho para a calmaria, o estado de não-excitação que é a satisfação" (Monzani, 1989, p. 221).

A tendência à evacuação de toda excitabilidade coloca em questão uma dimensão negativa da excitação, seja pela destruição ou mesmo a não constituição da trama da cadeia associativa (pensamentos, imagens, fantasias), promovendo um campo de irrepresentabilidade, com esvaziamento do eu, dos objetos e do espaço dos vínculos. Essas noções têm uma interface privilegiada com a clínica, indicando a dimensão do Nirvana propriamente como o limite da tendência à descarga absoluta. É importante salientar que a caracterização da pulsão de morte no último momento da obra freudiana envolve três vertentes que se articulam entre si: 1) o princípio do nirvana, implicando descarga total da pulsão; 2) o afeto de ódio e as fantasias sádicas, implicando destrutividade; 3) a dinâmica da compulsão à repetição, implicando repetição autônoma (Figueiredo, 1999; 2003; Campos, 2014). A principal polarização é entre uma tendência traumática da pura pulsão de morte que demanda ligação e representação, que é a dimensão propriamente compulsiva, e a expressão fusionada de pulsão de morte e pulsão de vida em libido destrutiva, redundando em fantasias sádicas e masoquistas com diferentes dinâmicas intrapsíquicas. Mas, para além dessa insistência que se expressa de forma positiva como trauma ou como fantasia, também aparece uma dimensão propriamente refratária e silenciosa da pulsão de morte, que é propriamente irrepresentável e, portanto, negativa. Essas três vertentes são indicadas de forma diferenciada na obra de Freud e configuram um verdadeiro campo de conceituação da pulsão de morte.

As grandes tradições pós-freudianas valorizam de forma diferenciada esse legado. Partindo da categorização de Mezan (2014) sobre os paradigmas do campo psicanalítico, podemos afirmar que o paradigma pulsional tende a desconsiderar o constructo da pulsão de morte. A psicanálise ortodoxa do annafreudismo e da psicologia do ego tendeu a desconsiderar a segunda teoria das pulsões por conta do caráter antifuncional do conceito de pulsão de morte, que contrariava o princípio biológico básico da sobrevivência da vida. Nessa perspectiva, as fantasias sádicas continuariam a serem entendidas no âmbito da erotização da tendência agressiva dos impulsos de autoconservação. Seriam, portanto, qualidades afetivas sempre secundárias aos impulsos eróticos. O paradigma objetal, por sua vez, consiste na escola das relações de objeto no contexto da psicanálise inglesa, tanto em sua vertente kleiniana como na do grupo intermediário. Nessa perspectiva, em especial por conta da posição kleiniana, valoriza-se a dimensão destrutiva e sádica das fantasias. Isso se baseia na ideia da fantasia como expressão das pulsões, que seriam de duas qualidades distintas, levando ao equacionamento entre pulsão de vida e amor, por um lado, e pulsão de morte e ódio, por outro. Dentro desse esquema, o destino das fantasias de ódio seria considerado a problemática primária ao desenvolvimento, trazendo essa dinâmica para o primeiro plano da teorização. Contudo, essa perspectiva viria valorizar a dimensão positiva dessa dinâmica, com o jogo das identificações projetiva e introjetiva, as cisões, os ataques ao vínculo, a inveja etc. Já o paradigma subjetal, representado pela escola francesa de psicanálise, a partir do modelo lacaniano do sujeito do inconsciente como efeito do discurso do Outro, valoriza a dimensão irrepresentável, através do conceito de compulsão à repetição. Aqui, o real da pulsão consistiria em uma repetição compulsiva para além da simbolização, criando uma demanda de sentido que seria vivida como traumática e disruptiva. Nessa acepção também se destaca uma vertente criativa que a noção Bindung comporta: a ligação do excesso que não encontra inscrição psíquica é a forma primeira de manejo da pulsão, sem a qual não há investimento em representações imagéticas ou em fantasia.

Dessa forma, tanto a tradição inglesa quanto a francesa, mesmo que de maneira distinta, insistem em uma perspectiva mais traumática e positiva dos efeitos dissociativos da pulsão de morte. Assim, as exigências pulsionais irrompem, impelindo à satisfação e produzem exigência de trabalho para o aparelho, mas predominantemente dentro de uma acepção mais positiva e disruptiva, ou seja, ao se apresentar a dimensão pulsional, impõe-se uma espécie de funcionamento demoníaco. As figuras clínicas que traduzem essa dinâmica psíquica correspondiam às formulações freudianas sobre as neuroses traumáticas, as neuroses de destino e os criminosos pelo êxito, além da reação terapêutica negativa. Esse tipo de funcionamento foi posteriormente aprofundado no registro das psicoses tanto por kleinianos quanto por lacanianos, mas sempre insistindo no caráter da permanência de uma forma de simbolização arcaica e concreta, nas equações simbólicas ou no registro imaginário. De todo modo, o que se perdia era a dimensão propriamente irrepresentável. No entanto, a clínica contemporânea aponta para configurações subjetivas em que o vínculo objetal e com a realidade externa caracterizam-se mais pelo trabalho do negativo, em que o desinvestimento é a tônica. A negatividade se coloca, seja através da dificuldade ou impossibilidade de representar o objeto na sua ausência, seja através da sua não inscrição psíquica. Tal fato é diferente da constatação da falta do objeto, esta que se encontra no registro da simbolização e, portanto, pode ser compensada fantasisticamente, como ocorre nas neuroses. Diante da ausência concreta do outro, o eu se vê ameaçado de desintegração e tem como defesa a deformação no nível de cisões, dividindo-se para não se estilhaçar, ou em um nível mais radical de desinvestimento: uma regressão narcísica maciça que leva a um movimento de mortificação psíquica e de recrudescimento da expressão pulsional pela via do corpo, dando vazão a fenômenos diversos que operam como uma borda entre eu e o outro, como a imitação, a identificação em espelho e ainda a automutilação que, como no caso relatado a seguir, implicava uma busca por cicatrizes, um modo de se fazer objeto do olhar do outro. Nesse contexto, emerge a contribuição mais significativa de André Green, do ponto de vista dos fenômenos de ruptura, desligamento e limites entre o psíquico e o não psíquico.

 

3. O trabalho do negativo e os arranjos limítrofes

O pensamento de André Green é marcado por uma crítica inicial à hegemonia do significante, portanto à primazia da linguagem e à compreensão semiótica das origens do inconsciente e da pulsão. Green opera um resgate da teoria dos afetos na metapsicologia e na clínica, propondo o que ele chama discurso vivo (Green, 1982). Por meio desse caminho, vem a formular a proposição de narcisismo negativo ou narcisismo de morte, como complemento à teoria freudiana do narcisismo. Importante ressaltar que sua concepção não se opõe ao conceito freudiano, mas o ressitua e o ressignifica à luz do segundo dualismo pulsional, vindo sanar uma lacuna que o autor considera crítica na psicanálise.

Isso porque a teoria do narcisismo não encontra uma sistematização conclusiva em Freud. Apesar da caracterização do narcisismo como um estágio diferenciado da libido em relação ao autoerotismo, marcado pela centralização dos investimentos no ego (Freud, 1914/1996), o fato é que no segundo dualismo a noção de narcisismo se apaga (Laplanche e Pontalis, 1991). A proposição do narcisismo primário absoluto, como um estágio anterior ao autoerotismo, implica uma acepção problemática, o estado anobjetal originário, e não recobriria o papel da pulsão de morte na constituição do ego. Contudo, a inclinação anobjetal que flerta com a segunda tópica não é sinônimo de uma ausência de objeto de fato; ela

[…] se desvanece na medida em que Freud pode apenas estar supondo um estado de não objeto, no sentido de objeto amoroso e não da pulsão. Até porque é necessário à teoria freudiana da libido que o narcisismo seja anterior à escolha do objeto sexual. (Perez, Bocca e Bocchi, 2015, p. 121)

Essa discussão, na segunda tópica, se apresenta no plano do sadismo entre o superego e o ego, na identificação melancólica e na economia do trauma e nos efeitos disruptivos de defesas psicóticas, como cisão, dissociação e recusa.

Partindo de uma matriz clínica pautada nos chamados casos-limite ou borderlines e da descrição de dinâmicas narcisistas como o complexo da "mãe morta", a psicose branca e o gênero neutro, caracterizadas por angústias de perda do objeto, identificações "adesivas", esvaziamento da dimensão simbólica, sintomas no plano somático e atuações, o autor desenvolve uma ampla reorientação da teoria psicanalítica para o que chama de trabalho do negativo (Green, 1994). A constatação sistemática do que denominou de complexo da "mãe morta" na identificação primária infantil permitiu descrever um tipo de processo identificatório que não se constituía pela incorporação positiva de um objeto de amor – como em Freud e mesmo Lacan –, mas que também não tinha as características das projeções do ódio para a manutenção do "bom" núcleo identificatório do ego – como em Klein. Mais do que a atividade pulsional engendrando afetos de ódio, o que se observava nesses casos era um intenso desinvestimento dos objetos externos e desligamento dos vínculos internos, produzindo a sensação de "vazio" e morte subjetiva. Constituiu-se, a partir daí, a proposta de desenvolver uma teoria sobre os vínculos mortíferos constituintes do narcisismo.

O trabalho de Green visa, portanto, a um resgate do tema do narcisismo em Psicanálise e a um aprofundamento dessa teoria para contemplar os processos tanáticos caracterizados pelo desligamento dos vínculos objetais e egoicos. O negativo, portanto, não é somente a dimensão irrepresentável da pulsão de morte em sua exigência de simbolização, mas, também, um conjunto de defesas que promovem desligamentos nos processos de identificação. A constituição do aparelho psíquico não é função apenas de um processo contínuo e progressivo de níveis de inscrição de uma pulsão que é originalmente irrepresentável, mas de processos que atuam como forças silenciadoras e desinvestidoras no próprio fundamento dos processos de simbolização e identificação, as quais visam a um hipotético estado de ausência de tensões, mesmo que à guisa do completo apagamento das marcas identitárias e, por fim, do apagamento do próprio eu que poderia vir a querer qualquer coisa. Faz-se notar a escolha greeniana do termo "branco" (blank) para designar a figura do neutro no narcisismo negativo, como ausência de qualquer positividade: "Blank rime = rima neutra. Eu lhes dou carta branca = abdico de qualquer vontade. Assino um cheque em branco = corro o risco de perder todas as minhas posses" (Green, 1988a, p. 61).

Mais do que a atividade pulsional engendrando afetos de ódio, o que se encontra primeiro nas organizações limítrofes é um intenso desinvestimento dos objetos externos e internos, com desligamento dos vínculos, produzindo sensação de "vazio", perda de sentido e morte subjetiva. O autor usa expressão: "buracos" no psiquismo e "eu esburacado". O negativo não é somente a dimensão irrepresentável da pulsão de morte em sua exigência de inscrição, mas, também, um conjunto de defesas que promovem ruptura e retração nos processos de identificação, atuando "negativamente" como forças ativas que interferem na formação do símbolo e na capacidade de fantasia.

Green propõe um conceito ligado às pulsões de vida (o narcisismo positivo) e outro ligado às pulsões de morte (narcisismo negativo), através das categorias do Um, o Outro e o Neutro. A categoria do Um corresponde ao movimento constituído via investimento (pulsões de vida), coincidindo com o narcisismo primário da "nova ação psíquica" e da unificação das pulsões parciais autoeróticas, mas não implica ainda uma diferenciação interno/externo, eu/outro. Esse narcisismo primário poderia ter na sequência um duplo destino: o outro ou o nada. No primeiro caso, tem-se diferença colocada por meio da instalação de um porvir (o ideal de ego, "herdeiro do narcisismo infantil") e de um ego total em suas vicissitudes rumo aos objetos, ao outro. A referência aqui é a passagem do narcisismo primário (ego ideal), para o narcisismo secundário (ideal de ego). Tal é o percurso do narcisismo de vida. O segundo destino é a expressão do narcisismo primário absoluto, onde a excitação tende ao zero: o narcisismo negativo. Nas palavras do autor:

Parece-me que a coerência teórica, assim como a experiência clínica, nos permite postular a existência de um narcisismo negativo, duplo sombrio do Eros unitário e do narcisismo positivo, de modo que todo investimento de objeto, assim como do Eu, implica seu duplo invertido que visa um retorno regressivo ao ponto zero. […] Este narcisismo negativo parece-me diferente do masoquismo, apesar das observações de numerosos autores. A diferença é que o masoquismo – se fosse originário – é um estado doloroso que visa a dor e sua manutenção como única forma de existência, de vida, de sensibilidade possíveis. Inversamente, o narcisismo negativo dirige-se à inexistência, à anestesia, ao vazio, ao branco (do inglês blank, que se traduz pela categoria do neutro), quer este branco invista o afeto (a indiferença), a representação (a alucinação negativa), ou o pensamento (psicose branca). (Green, 1988a, p. 41)

Para resumir esta "deriva conceitual", Freud partiu do olhar e descobriu o Um. Depois dele, os analistas instalam o Outro em posição dominante (quer se trate das relações objetais da escola inglesa ou da acepção totalmente diferente que Lacan lhe dá). Proponho completar esta série com a categoria do Neutro (neuter), nem o Um nem o Outro. (Green, 1988a, p. 41)

O negativo aqui não é a simples inversão do positivo, como na inversão entre amor e ódio, "mas o negativo remete ao conceito puro de nadificação" (Green, 1988a, pp. 60-61). O negativo deve ser entendido no sentido economia psíquica que tende à completa descarga, própria do Nirvana, embora jamais a alcance: nada de desejo, nem agradável, nem desagradável, nem Um, nem Outro. É nesse campo que se situa a figura do neutro, categoria que o autor remete a várias modalidades narcísicas de estar com o outro sem estar de fato: alguém que alimenta e limpa, mas não insere a criança no seu circuito pulsional erótico, olha mas não vê; reveste, mas não a investe; cuida, mas não se apaixona. Para o autor, este narcisismo negativo seria diferente do masoquismo, pois nele se visa a dor como forma de existência possível: "prefiro sofrer a ter essa vida", enquanto na categoria do neutro visaria à inexistência e à indiferença. Seria algo como: "prefiro morrer a ter que sofrer".

Os dois narcisismos são análogos e antagônicos, assim, o narcisismo positivo e o negativo são pensados numa oscilação permanente de um ao outro: "a regressão leva às vezes mais longe: para o zero da ilusão do não investimento, mas é o zero que se torna objeto de investimento fazendo deste retraimento regressivo uma aspiração positiva, um progresso…" (Green, 1988b, p. 38). Essa relação fica mais clara quando se considera a ambiguidade presente no conceito do zero (0), como um princípio teorético e não como um estado, outrossim, "os princípios – e, portanto, o do Nirvana – tendem a […] sem nunca chegarem ao término do que está no princípio de […] Sem o que, não se trataria de um princípio" (Green, 1988a, p. 61). Assinala o autor que a regressão absoluta não se sustenta, assim como não existe uma realidade e nem um prazer absolutos. O Neutro cai para Um ou Outro lado, a ele cabe ligar-se ou desligar-se.

Os conceitos de função desobjetalizante e função objetalizante (Green, 1988b) dão uma melhor compreensão do trabalho do negativo e sua relação com o narcisismo de vida. Para Green, a função objetalizante está ligada à meta essencial das pulsões de vida, que seria não apenas criar uma relação com o objeto, mas investi-lo e criar estruturas, espaço e regras de funcionamento.

Ela se revela capaz de transformar em estruturas o objeto, mesmo quando o objeto não está mais diretamente em questão […] mas pode fazer chegar à categoria de objeto aquilo que não possui nenhuma das qualidades, das propriedades e dos atributos do objeto, desde que uma única característica se mantenha no trabalho psíquico realizado: o investimento significativo. (Green, 1988b, p. 59)

Pelo contrário, a meta da pulsão de morte é realizar ao máximo uma função desobjetalizante através do desligamento. Esta qualificação permite compreender que não é somente a relação com o objeto que é atacada, mas também todos os substitutos deste – o eu, por exemplo, e o próprio investimento à medida que sofreu o processo de objetalização. Na maior parte do tempo, assistimos, com efeito, apenas ao funcionamento concorrente das atividades em relação aos dois grupos de pulsões. Mas a manifestação própria à destrutividade da pulsão de morte é o desinvestimento. (Green, 1988b, p. 60)

O trabalho do negativo e a função desobjetalizante de Green são interessantes do ponto de vista de pensar a metapsicologia em face de uma teoria das identificações que transcenda o paradigma representacional ideativo e se mostrem como operadores conceituais importantes para fundamentar a clínica dos sofrimentos narcísicos. Tal acepção de pulsão de morte disponibiliza um modelo para pensar a defusão pulsional, para além das noções de desligamento como mera disjunção, mas como modos de vinculação e desvinculação anestesiantes e empobrecedores. No extremo, "trata-se de uma estrutura narcísica negativa onde o próprio Ego se empobrece e se desagrega ao ponto de perder sua consistência, homogeneidade, identidade e organização" (Green, 2008, p. 271).

Tais configurações estão bastante presentes na clínica dos estados-limites e naquelas zonas marcadas pela indefinição (sentido ontogenético) ou indiferença (aqui no sentido afetivo) entre bom e mau, masculino e feminino, eu e objeto, dentro e fora, castrado e não castrado, ser e não ser, para as quais o modelo psicopatológico centrado na neurose e no complexo de Édipo não é suficiente. Jean Bergeret e colaboradores (2006) diferenciam os estados-limítrofes das estruturas neurótica e psicótica no sentido clássico dado por Freud, preferindo designá-los como arranjos. Eles descrevem quadros clínicos em que a angústia é essencialmente depressiva, ou seja, em que está em jogo a elaboração da perda do objeto primário, como sendo organizações que preservaram uma certa autonomia, mas não alcançaram a estabilidade de uma estrutura: "É um domínio bem menos rígido, bem menos sólido estruturalmente e bem menos definitivo, bastante mais móvel também, o domínio dos estados-limítrofes e de seus diversos arranjos, mais ou menos bem-sucedidos" (Bergeret et al., 2006, p. 190). Nesses quadros, teria havido um trauma desorganizador precoce para aqueles indivíduos cujo eu já teria atravessado o estado de fragmentação psicótica, mas ainda não estabelecido um modo de relação genital, permanecendo numa relação objetal diádica, de dependência e maior necessidade de apoio no outro.

 

4. Psicopatologia dos casos-limite

O caso clínico que estimulou tal exploração teórica e suas reflexões pode ser compreendido com referência aos arranjos limítrofes e vem ilustrar os efeitos do trabalho do negativo na experiência clínica. O desinvestimento pulsional e a retração narcísica se apresentaram no distanciamento afetivo, impulsividade elevada e em condutas restritivas de suicídio (pensamentos negativos, vontade de morrer e tentativas), de modo que a mortificação psíquica e a relação com a morte própria foram levadas às últimas consequências. Ela sofre um acidente de carro fatal um ano após a interrupção do tratamento analítico.

Essa mulher de 32 anos, atendida por dois anos, duas vezes por semana, chegou ao Centro de Psicologia Aplicada (CPA) da Unesp-Bauru trazida pelo marido. Há um ano apresentava ideação suicida, havia tido três tentativas, com uso de lâminas (agravado pelo fato de que trabalhava no Instituto Médico Legal, tendo acesso a bisturis e porte de arma de fogo). Uma oscilação entre estados psíquicos autodepreciativos e levemente maníacos marcou todo o tratamento, caracterizando uma permanente oscilação entre eu e ideal do eu; salvo alguns momentos de maior integração, em que ela se engajava em projetos mais vitalizados (grupo de corrida, andar de bicicleta, novos estudos etc.), quando também conseguiu trazer aspectos importantes da sua infância, com poucas lembranças, mas significativas. Ela tinha um visível bloqueio para falar da sua história e da família de origem: "Não tenho nada para falar sobre eles". Os vínculos com marido, filho e familiares eram pouco afetivos. Raramente falava do filho, ou quando fala trazia a preocupação com relação aos seus estudos.

Os primeiros sintomas surgiram seis anos antes: crises de pânico, insônia e alucinações auditivas e visuais. Os sintomas psicóticos apareceram quando um antigo professor da faculdade se suicidou (alguém que ela admirava muito). Ela não estava de plantão, mas foi assistir a necropsia. Nesse momento, passou a ver este professor do seu lado no carro quando acompanhava o corpo para o exame médico. A partir de então, ela passou a ouvir vozes (dele e depois outras), chamando-a para ir a uma outra dimensão. A cena visual do exame do professor teve um papel desencadeador da sintomatologia e de intenso sofrimento psíquico. Também via esse professor na sala de aula, dando aula para ela. Estava em acompanhamento psiquiátrico há um ano, mas o uso de medicação antipsicótica e antidepressiva antecedia esse período e fora feito por um cardiologista. As alucinações com o professor morto desapareceram no início do uso da medicação.

Com relação à necroscopia do professor, ela dizia que "Foi diferente de todas as outras; pela primeira vez, vi uma pessoa ali"; "Antes, eram corpos em decomposição"; "Eu procurava deixar os assuntos do IML de fora"; "A morte não existia"; "Eu estava fora daquilo". Aqui parece que, a partir do episódio desencadeador, a questão dos limites fora francamente coloca em xeque, desestabilizando as cisões que ela operava: fora ou dentro do trabalho, implicando a separação dos âmbitos de sua vida; ser pessoa ou cadáver, implicando a linha divisória entre vivo e morto; fantasia ou realidade, implicando a diferenciação entre eu e mundo externo.

Talvez tenhamos aqui um exemplo de como horror do trauma e escrutínio visual caminham de mãos dadas. O horror e a escopofolia se fundiram, pois fica difícil saber se a curiosidade vem como consequência do impacto da notícia ou se a comoção psíquica decorre do próprio desejo de ver. O fato é que a cena visual nos indica um eixo de interpretação do caso, centrado na relação entre escopofilia mortífera (o investimento pulsional do olhar, o prazer de ver corpos mortos), depressividade e automutilação, indicando a importante relação assumida neste caso entre o olhar e a implicação do corpo.

Na primeira sessão, encontrava-se retraída, alheia e irônica. Apresentava clara dissociação ideoafetiva, com frases do tipo: "meu marido é que quer atendimento" e "isso vai ser um monólogo". Também enunciava com sarcasmo: "ganhei cicatrizes". Essa frase recobrir-se-á de uma grande importância um ano e meio depois, além de anunciar de forma bastante significativa a questão da implicação visual do corpo. Essa primeira postura será substituída por um ar de tédio e pragmatismo, como se já soubesse de tudo e portanto não teríamos nada de novo, alternando aparente superioridade e estados de franca desvalia, com sentimento de insignificância.

O seu tratamento seguiu predominantemente com queixas voltadas para dilemas e indecisões na sua atividade profissional. Ela era assistente de necropsia e ficava muito ansiosa nos plantões e principalmente ao realizar procedimentos com crianças, idosos e suicidas. O impasse com relação à mudança na carreira era muito intenso, mas paralisante: abria um leque de possibilidades e descontruía todas, desde trabalhar na área da saúde, fazer doutorado ou prestar outro vestibular, até prestar outro concurso no próprio Instituto Médico Legal (IML). Havia grande insatisfação com seu trabalho, mas não conseguia se desvincular, sempre alegando motivos financeiros e a estabilidade do cargo.

Sobre seus processos de escolhas anteriores, não traz muito conteúdo (casou "de supetão", estava grávida, prestou concurso por sugestão do marido). Apenas queria fazer medicina, "A única profissão digna". Sobre sua busca por novos rumos profissionais, costumava repetir a frase "Se atender aos meus critérios", o que sugere um ideal de ego elevado e um superego sádico. Ela repetia incessantemente que "não queria mais trabalhar com morte", embora não saísse desse ponto. Não conseguia vislumbrar outras possibilidades que não fosse continuar estudando. A dinâmica narcísica entre eu e ideal do eu fica evidente no papel assumido pelo "fazer medicina", a profissão digna, ao passo que se sente envergonhada pelo seu atual trabalho ("Vontade de cavar um buraco no chão e entrar"), marcando o par dignidade versus vergonha. Fazer medicina torna-se um significante ligado à insatisfação profissional e à perda de sentido, uma forma de representar valores dissociados do seu eu (sempre quis, mas foi impedida porque engravidou), como se fosse a única forma de compensar perdas de autoestima e confusões profundas de identidade.

Vai fazendo diversos cursinhos para concursos e vestibulares até decidir-se por prestar medicina, que lhe exigirá mais tempo e investimento financeiro. Logo, ela tem que se manter com a estabilidade do seu emprego. Havia contraído dívidas até 2020, devido a uma fase anterior de sua vida quando teve compulsão por compras. É notável a ambivalência com o IML, sinônimo de trabalhar com a morte, e logo como veremos que se trata de uma relação de circuito fechado.

Depois de um ano e meio, ela teve um episódio de automutilação, após o qual falava que "estas cicatrizes se juntaram às outras". No início, ela havia dito justamente que ganhara cicatrizes. Alguns dias antes dela se cortar, tinha ido a uma dermatologista para retirar as cicatrizes das primeiras tentativas e descompensou ao saber que isso não era possível. No dia da sessão com a terapeuta, ela mostrou os braços com as ataduras.

Logo em seguida, começou uma guinada objetal em que, a partir daí, não trará mais ideação suicida, mas vazio e sentimentos de insignificância, demonstrando uma transformação no modo de expressão da negatividade, primeiro no plano do discurso, por meio de um "vazio visceral" com relação ao trabalho, em relação ao mestrado e a outras decisões. Não encontrou nada que a preenchesse e acredita que nada dará certo para ela. Posteriormente, essa negatividade será expressa na transferência negativa que perdurará até depois do fim do tratamento.

Nesse interim, busca investir em atividades físicas: rematricula-se na academia, vincula-se a um grupo de corrida e pedalava com amigos, marido e filho. Também começou a discriminar melhor situações ocorridas nos plantões e integrá-las ao resto de sua vida afetiva, o que acaba gerando mais angústia. Nesse período também emerge o projeto de prestar medicina, antigo sonho que assume os contornos de uma nova idealização. Ela fala mais sobre o contato com os pais, em que se destaca a falta de vinculação e de reconhecimento. Conta que foi uma criança muito calada, que não dava trabalho na escola e fazia outras atividades de estudo comuns para as crianças, como aulas de piano. Mas se queixava da falta de reconhecimento: "Como os pais não notaram que eu era quieta demais? Não é normal uma criança não dar nenhum trabalho". Esses trechos curtos dizem algo importante para a compreensão das suas passagens ao ato por meio do cortar-se. Ela acreditava que seus pais não a viam no canto da casa, quietinha. Ela acha que "era invisível para eles". Falou isso uma única vez até então, mas percebe-se o retorno de uma cena visual no seu relato: a criança no canto invisível.

Como suas tentativas de suicídio não foram nunca solitárias – o marido, a orientadora e a terapeuta foram previamente avisados –, o que essas tentativas representavam? O que seria ganhar cicatrizes para ela? Antes das crises, ela se referia a uma "profunda tristeza", representando o momento de esvaziamento e pensamentos negativos que antecediam o ato de se cortar. Na medida em que ela se dá conta de que haverá permanência da marca no corpo através das "cicatrizes", estabelece-se um caminho para uma simbolização possível, mesmo que precária. Aparentemente, a inscrição do significante cicatrizes permite vir à tona algumas representações recalcadas sobre as figuras parentais, mas, principalmente, permite fazer a integração de aspectos cindidos de seu funcionamento subjetivo por meio de uma simbolização primária. Apenas nesse momento ela conseguiu falar do sentimento de ser invisível, podendo, assim, reaproximar-se dessas imagos pela via da figurabilidade psíquica e pelo testemunho concreto do analista em reconhecer as cicatrizes pelo olhar.

A busca por uma marca corporal visível pode ter assumido o papel de converter o esvaziamento subjetivo (efeito do desinvestimento desobjetalizante) em outra coisa que a não representação da sua imagem pelas figuras parentais. Seria um modo de visibilizar o invisível, uma derivação para a alucinação negativa da sua imagem? André Green (1988a) retoma Freud e coloca que a pulsão escópica, e o sadismo têm um importante papel na apropriação do corpo, mas principalmente a primeira, devido à função do olhar e do espelho na aquisição do sentimento corporal, como mostra o próprio conceito de eu corporal, "formando sua superfície a partir do sentimento corporal e, ao mesmo tempo, criando sua imagem, mas só podendo criá-la sob os auspícios do olhar que o transforma em testemunho da forma do semelhante" (Green, 1988a, p. 42)

Em conversa casual com o filho, este disse que quando ela for médica, então, vai poder finalmente sair do IML. E ela brinca: vai prestar concurso lá para perito médico. Ela mesma percebe a aparente inconsistência. Só vai trocar o posto, mas continuaria no mesmo local de trabalho, com as atividades de necroscopia. Destaca-se, nesse exemplo, uma relação de circuito fechado entre o trabalho e a morte (o trabalhar com a morte), manifestando uma dinâmica de compulsão à repetição. De modo semelhante ao que A. Green descreve no permanente antagonismo entre narcisismo de vida e narcisismo de morte, através da alternância entre as funções objetalizante e desobjetalizante. A nova idealização (ser médica) reflete o investimento significativo dessa representação pela função objetalizante, mas esta não demora a se deparar com o trabalhar com a morte, expressão do narcisismo negativo e sua aspiração regressiva ao zero, que a levará ao desinvestimento objetal e novamente ao estado psíquico de esvaziamento, já que na desobjetalização o desinvestimento se volta também sobre o eu.

A partir dessa repetição, ela se deu conta do seu movimento de continuar trabalhando com a morte. Este insight, todavia, deu início ao abandono do tratamento e encerramento do caso. Ela desmarcou a sessão seguinte e avisou que estava pensando em parar com a terapia. Com insistência, compareceu a mais duas sessões, queixando-se de insônia e dores pelo corpo, e também estava com bastante raiva. Como efeito de uma nova objetalização que investiu a percepção em relação ao trabalho, tem-se início a etapa de projeção do ódio para a relação objetal, marcando a entrada na transferência negativa e destacando o lugar que o ideal ganha na transferência. A destrutividade passa agora a ser direcionada para a figura da terapeuta, com abordagens invasivas, agressivas e descontextualizadas, por meio de e-mails e mensagens de texto no celular. A paciente se recusava a comparecer à clínica, mas insistia no contato pelo celular. Uma sessão de encerramento foi realizada após um mês.

Ao longo dessa etapa final em que predominou uma guinada objetal, houve grande dificuldade de lidar com novos aspectos da realidade percebida: ela entrou em contato com a crescente insatisfação do marido, com os déficits na relação com seu filho, que se encontrava no registro da cobrança nos estudos (semelhante à relação com seus pais).

Pode-se dizer que houve uma transformação significativa do olhar: de invisível (na fantasia infantil), ela passa a se portar como dolorida (condição erógena e de tonalidade masoquista). Essa transmutação é interessante na medida em que sinaliza um menor grau de dissolução psicossomática e talvez maior coesão do eu, uma vez que agora ela tem um corpo para sentir (nem que seja dor e incômodos diversos), como é mais comum aos neuróticos do que a psicóticos. Antes, esse corpo não era colocado em questão, era como se ele não existisse enquanto unidade, já que ela se cortava e não sentia nada ao ver o sangue escorrer. O corpo irrompia mais como um objeto parcial, nos automatismos motores (pernas inquietas, mexer na capinha do celular etc.) e em imagens intrusivas dela se cortando (quando dava por si, já estava fazendo).

 

5. Considerações finais

Esta paciente havia transitado de uma organização mais limítrofe para uma condição mais neurótica; o que não quer dizer que tenha havido mudança de estrutura clínica, mas uma maior integração do ego e o uso de mecanismos de defesas mais elaborados. De início são marcadas a cisão e a projeção, depois se apresentam a negação e conversão, já que emerge a dor física como o sintoma, marcando uma alteração na relação entre eu e corpo. A destrutividade, que antes atuava como consequência de aspectos depressivos da personalidade (a profunda tristeza, o sentimento de vazio) que incidia sobre si mesma, agora passa a ser derivada para a relação com o outro (marido, terapeuta e psiquiatra). Isso marca uma mudança no regime de funcionamento egoico, que de um narcisismo negativo passa a trabalhar também no registro do narcisismo positivo, com resgate da idealização, embora também marcado por investimentos destrutivos dos objetos. Nesse âmbito, destaca-se o desenvolvimento de processos de simbolização por meio de figuração e também funções de objetalização. Nesse sentido, pode-se afirmar que houve um trabalho inicial de elaboração da pulsão de morte em sua dimensão traumática e irrepresentável, de início projetada via cisões alucinatórias e depois estabilizada por meio da desobjetalização de um narcisismo negativo.

O trabalho analítico permitiu resgatar uma cena primária marcada por aspectos fundamentalmente narcísicos, do âmbito de uma invisibilidade diante da função materna. Isso remete às indicações de Green sobre o complexo da mãe morta e de outros autores sobre o investimento insatisfatório da função materna, que reconhece o bebê suficientemente para libidinizá-lo e dar-lhe alguma unidade corporal, mas falha em reconhecer a sua singularidade, por meio de um olhar que na verdade o atravessa.

Contudo, esses ganhos não são suficientes para romper o circuito fechado de repetição em que se encontrava, de forma que a ruptura acaba se instaurando. Com efeito, além da interrupção do tratamento no serviço escola, com as demais figuras também houve um rompimento, como a separação conjugal e tentativa de interromper o tratamento psiquiátrico. Isso talvez explique o ódio externalizado nestas relações. Mas ao mesmo tempo nos faz perguntar se demandas mortíferas não são, no fundo, tentativas de ligação com o objeto, mesmo que seja por meio da destruição dele ou de si? Tudo isso nos faz pensar no trabalho de autores (Figueiredo, 2003; Green, 2008) que indicam os paradoxos da dinâmica da pulsão de morte, que se reproduz em vários níveis simultâneos, em que a repetição expressa tanto uma destrutividade e ruptura quanto uma forma de ligação e de comunicação com a alteridade, na tentativa de reparar, mas, ao mesmo tempo, destruir.

Este caso vem ilustrar o papel do investimento pulsional do olhar (inicialmente pelas pulsões de vida e depois pela pulsão de morte), manifestado na demanda para se fazer vista no espaço da relação com o outro, através da busca por contornos corporais (as cicatrizes), mesmo à custa de incorrer na morte própria. Assim, parece ter havido uma sobreposição entre a tendência à unificação (narcisismo positivo) e o desinvestimento mortífero (narcisismo negativo). Por fim, os conceitos mais originais do André Green se mostraram operadores fundamentais para fazer a leitura do caso, do entrelaçamento entre escopofilia (pulsão sexual/mortífera), depressividade e a implicação do corpo nas relações intrínsecas entre narcisismo de vida e de morte.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Josiane C. Bocchi

E-mail: b.josiane@fc.unesp.br.

Érico Bruno Viana Campos
E-mail: ebcampos.online@gmail.com.

 

 

* Universidade Estadual Paulista – Faculdade de Ciências de Bauru. E-mail: b.josiane@fc.unesp.br.
** Universidade Estadual Paulista – Faculdade de Ciências de Bauru. E-mail: ebcampos.online@gmail.com.

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