Natureza humana
ISSN 1517-2430
Nat. hum. vol.21 no.2 São Paulo jul./dez. 2019
APRESENTAÇÃO
Loparic, um pensador radical
Caroline Vasconcelos RibeiroI; Eder Soares SantosII
IProfessora Titular da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Colabora no Programa de Pós- Graduação em Memória, Linguagem e Sociedade (PPGMLS/UESB). Psicóloga (UFSJ), Mestre em Filosofia (UFPB), doutora e pós-doutora em Filosofia pela UNICAMP, sob orientação de Zeljko Loparic
IIProfessor Associado do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Coordenador do Programa de Pós-graduação (2019-2021) da mesma Universidade, mestre e doutor em Filosofia pela UNICAMP, sob orientação de Zeljko Loparic
Esse texto de apresentação do volume de Natureza Humana em homenagem aos 80 anos de Zeljko Loparic e seus 50 anos de Brasil visa a indicar a radicalidade de seu pensar, de seu modo de fazer filosofia. Seu pensamento é radical porque vai à raiz de conceitos e sistemas filosóficos e científicos, expõe com precisão os caminhos argumentativos e descobre "a lógica e o desenvolvimento histórico das perguntas das quais resultam obras monumentais."1 Tudo isso implica não apenas "espanar a poeira" dos monumentos ou historicizar um sistema de pensamento e comentá-lo em suas minúcias. Implica em ir à "fonte dos problemas e refazer todo o caminho das respostas", em outros termos, implica em "pegar o touro pelos chifres e dominar o touro".2 Essas expressões, proferidas pelo professor Loparic em entrevista por ocasião de sua Festschrift de 70 anos, refletem um modo de apropriação de pensamento aprendido em um longo e denso itinerário formativo. Nessa entrevista, Loparic reconhece a importância que o contato com grandes mestres teve em sua trajetória como estudante e na formação de seu perfil como pensador. Nesse sentido, relata sobre o valor, no começo de seus estudos juvenis, da relação com o atento e acolhedor monge cartuxo Padre Emanuel e sobre as marcas em sua identidade intelectual decorrentes dos cursos e aulas que teve com filósofos notórios como Jean Ladrière, Alphonse de Waelhens, Dieter Henrich, Eugen Fink, Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer, Ernst Tungendhat, Paul Ricoeur, dentre outros.
Portando uma densa história de estudos acadêmicos e com interesses tanto no campo da filosofia analítica da ciência, quanto no campo da fenomenologia e hermenêutica, Loparic aportou no Brasil em 1969 e, ao longo destes 50 anos, trilhou e tem trilhado caminhos de pesquisa e orientação em distintas universidades brasileiras. Suas digitais epistêmicas estão presentes na criação do primeiro curso de pós-graduação Lato Sensu em Lógica e Filosofia da Ciência (1970) da Universidade Federal da Paraíba UFPB e no primeiro curso do Brasil dedicado ao estudo da Filosofia da Psicanálise, instituído na Unicamp em 1984.3 É possível notá-las também na criação do Grupo de Pesquisas em Filosofia e Práticas Psicoterápicas (1995), na concepção e implementação da Revista Natureza Humana (1999) e na fundação, junto com Elsa Oliveira Dias, da Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana (SBPW) em 2005.
Em 2013, Loparic presidiu a reunião de fundação da International Winnicott Association (IWA) a qual contou com a presença de diretores de Centros Winnicott de várias cidades do Brasil, da então diretora da SBPW, Elsa Dias, da coordenadora do Grupo Winnicott de Paris, Laura Dethiville e da representante do Grupo Winnicott de Lisboa, Rosário Belo. Com a fundação da IWA, foi possível construir uma parceria com os Grupos Winnicott da Argentina, China, França, Inglaterra, Israel, Portugal, dentre outros.4 Como presidente da IWA, Loparic tem trabalhado no fomento de uma divulgação internacional da pesquisa, do ensino e das publicações sobre a psicanálise winnicottiana, estimulando um intercâmbio entre terapeutas, pesquisadores e docentes de universidades e de grupos de estudos de várias partes do mundo. Sua disposição em levar o conhecimento o mais longe possível, pode ser constatada com a oferta de vários cursos de formação em psicanálise winnicottiana na China, um dos quais já está em sua terceira turma.
Em seu percurso como professor e pesquisador em diferentes universidades brasileiras, Loparic se consolidou como um investigador tão profundo quanto versátil, apresentando ampla habilidade para construção de diálogos entre distintos campos epistemológicos.
Esse traço já foi salientado pelo grupo de colegas e alunos que o homenagearam quando ele completou 70 anos, e 40 de Brasil, com outro Festschrift, concebido e organizado, desde a Unicamp, por Róbson Ramos dos Reis e Andréa Faggion, intitulado, exatamente a propósito, Um filósofo e a Multiplicidade de Dizeres5. No prefácio desse livro, escreve Oswaldo Giacóia, referindo-se ao homenageado: "Nenhuma esfera do universo filosófico é estranha a seu interesse e atenção : preocupa-se com a estética e as artes, com a ética e a política (Heidegger Réu, 1990); Ética e Finitude, 1995), com metafísica e ontologia, é um dos mais destacados epistemólogos e filósofos da ciência brasileiros, além de ser um extraordinário mestre dos clássicos da filosofia ocidental (Descartes e o Perigo da Técnica, 2009)".
Todo este percurso é facilmente visualizado no site do Instituto Brasileiro de Psicanálise Winnicottiana, que disponibiliza um link nomeado "Acervo Loparic", em que constam todos seus textos publicados ao longo de sua ativa carreira.6 Também estão sendo publicados online os textos inéditos, em Loparic e-Prints revista eletrônica da DWW editorial. À medida que os inéditos forem sendo publicados, na revista eletrônica, eles passarão a fazer parte do Acervo. Também está sendo lançada a Loparic Colletion que conterá a lista de todas as suas publicações em outras línguas que não o português, com links para os textos originais.
A radicalidade do pensar de Loparic tomou corpo e se fez notar, ainda mais, no percurso formativo de muitos de seus orientandos de pós-graduação e nos fecundos diálogos que estabeleceu ao longo de anos com pesquisadores do campo da filosofia e da psicanálise. Alguns desses pesquisadores e de seus ex-alunos compõem esta coletânea com artigos inspirados no vigor do pensar lopariciano, em sua habilidade de criar caminhos apropriativos em relação a horizontes filosóficos (como seu Descartes heurístico e seu Kant semântico) e em estabelecer diálogos pouco ou nada visualizados até então (como entre Kuhn e a psicanálise ou entre Heidegger e Winnicott). Em franca interface com o pensamento de Loparic, os trabalhos apresentados nesta Festschrift trazem, de distintas formas, a marca dos diversos horizontes investigativos abertos por ele. Uns transitam em torno de uma leitura de Kant como solucionador de problemas científicos e filosóficos, ou seja, trazem para a discussão um Kant heurístico e semântico. Outros foram tecidos nas sendas abertas por Loparic a partir do uso da epistemologia de Thomas Kuhn na leitura da história da psicanálise. Alguns aprofundam o diálogo com Heidegger e outros apontam a importância do contato com as leituras loparicianas de Winnicott para pensar as revoluções teóricas e clínicas instituídas por este psicanalista. O percurso formativo, criativo e investigativo deste filósofo nascido na Croácia e que fez morada física e intelectiva em nosso país foi, de alguma forma, retraçado e reverberado nos textos aqui apresentados e elaborados em sua homenagem.
Em Idealismo transcendental e realismo empírico: uma interpretação semântica do problema da cognoscibilidade dos objetos externos, Daniel Omar Perez apresenta o idealismo transcendental como uma semântica transcendental que permite resolver problemas cognitivos da ciência e decidir sobre problemas filosóficos por meio de novos argumentos e documentos textuais da filosofia kantiana. Para isso, advoga que a pergunta fundamental que aparece em todo o percurso da obra kantiana - a pergunta pela possibilidade das proposições sintéticas - demanda o desenvolvimento de uma resposta que essencialmente diz respeito não apenas sobre sua necessidade e possibilidade lógica, mas também sobre sua exequibilidade, mostrando suas peculiaridades em cada caso. Em sua argumentação, Perez intenta provar que o problema da cognoscibilidade dos objetos se resolve em Kant em termos decididamente semânticos.
Dando sequência à temática dos estudos de Kant no Brasil - que tem em Loparic um dos grandes propulsores -Joãosinho Beckenkamp partirá dos delineamentos que Loparic deu à discussão entre Kant e o ceticismo e agregará uma contextualização histórica ao tema. Para isso, explora uma das teses principais colocadas por Loparic em que diz que "[...]Kant não tentou expurgar o ceticismo, mas, pelo contrário, levá-lo às últimas consequências para poder, depois dessa radicalização, domesticá-lo definitivamente. (Loparic, 1988, p. 67)" (Loparic, apud Beckenkamp, 2019). Percorrendo o debate de Kant com seus contemporâneos sobre esta questão, bem como se utilizando também dos textos do próprio Kant, Beckenkamp mostra que, decididamente, por meio do método cético torna-se possível estabelecer a paridade entre tese e antítese no que diz respeito aos limites da experiência que, segundo o autor, se mostra necessária para manter em aberto o lugar no qual se coloca a filosofia moral, sobretudo no concernente ao conceito indispensável de liberdade.
O artigo de Fábio Cezar Scherer trabalha com o pressuposto de que a lógica formal e a lógica transcendental são duas ciências racionais puras, mas que têm conexões entre si. Por um lado, será estabelecido um debate com as leituras que sugerem que a lógica transcendental substitui a lógica formal; e por outro, ele se apoiará na tese da semântica transcendental kantiana proposta por Loparic para tratar do conhecimento metafísico da natureza para o trabalho de caracterização da lógica transcendental. Para tal empreita, seu texto se inicia mostrando o quão a lógica está presente nas obras de Kant e como ele se serviu dos estudos de lógica formal os quais levam às considerações sobre a lógica transcendental. Segue mostrando que diferente da lógica formal, que considera somente a forma lógica na relação entre os conhecimentos entre si, a lógica transcendental abrange os conhecimentos em que há conteúdo ou em que esse não foi de todo abstraído. Depois mostra como o conhecimento é possível da perspectiva da lógica forma e da lógica transcendental. Por fim, avança apontando que a lógica transcendental complementa a lógica formal porque ambas seriam requeridas na determinação do conhecimento.
No artigo intitulado Psicologia racional e antropologia empírica em Kant, Alexandre Hahn destaca a importância dos paralogismos da razão pura para o projeto kantiano de uma antropologia empírica sistematicamente constituída, isto é, para uma ciência do homem. Nos aponta também que o principal resultado da crítica à psicologia racional (enquanto doutrina da alma) foi garantir a possibilidade lógica do 'eu numênico', o que permitiu que o homem fosse pensado como agente livre e não como um mero produto da natureza. Em seu artigo, o autor destaca o quanto essa ideia de homem é fundamental para a antropologia kantiana.
Avançando para além do debate com Kant, mas tendo também este filósofo como referência, o artigo de Andrea Faggion trata de explorar a ideia de um pluralismo moral, mostrando que seria possível pensar modelos éticos para além de uma opção que seja excludente a outra. Sua intenção é apontar que a vida moral humana pode ser marcada por uma conjunção de modelos éticos. Assim, partirá de Isaiah Berlin para investigar a questão do pluralismo moral, porém mostrando algumas limitações desta leitura. Num espírito de busca mais analítica, trará como apoio à discussão Thomas Nagel. Também se questionará, na sequência, se a sensibilidade ajuda na resolução do conflito entre diferentes formas de pensar moralmente. Todavia, como a abordagem pela sensibilidade também se mostrará limitada, recorrerá, por fim a Joseph Raz, para pensar um modelo de racionalidade para os conflitos morais.
Oswaldo Giacoia Junior traz um debate muito caro a Loparic ao tratar da questão do verdadeiro e do falso self. Sua abordagem, embora dê margem à discussão em psicanálise, se concentrará no desenvolvimento do conceito de verdadeiro Selbst em Friedrich Nietzsche, que está no âmago da reflexão deste filósofo sobre o dualismo substancial, bem como da relação entre razão e afetos. Por meio de vários textos produzidos por Nietzsche, Giacoia mostrará que o filosofo do martelo não tinha ilusões a respeito da processualidade necessária do verdadeiro Selbst (Self). A investigação proposta mostrará que o alcance de si passa pela ideia de Espírito Livre e Auto-Consciência. De modo que, em Nietzsche, aquilo a que a subjetividade se refere é, antes de tudo, a uma tarefa, a um problema filosófico a ser descoberto, a um modo particular de colocar perguntas e respostas, ao qual somente se tem acesso depois de um afastamento, que é também libertação.
Irene Borges-Duarte nos oferece uma aprofundada análise sobre a dor e o sofrimento em seu artigo intitulado À força de padecer. Considerações sobre a dor como experiência ontológica. A autora nos indica que a vulnerabilidade que impregna a existência do ser humano, pode receber abordagens positivas e epistemológicas. Ancorada em Heidegger, Freud, Winnicott e Jünger, apresenta-nos uma análise da dor de um ponto de vista ontológico. Para Borges-Duarte, é a experiência da dor, nos seus abismos e ápices, que revela o modo de ser em que o ente humano se encontra com a sua pele ontológica: com o limite do seu ser, em que soma e psyche se não distinguem. A autora busca abordar essa experiência ontológica do limite a partir de um diálogo entre a fenomenologia e a psicanálise.
No artigo Pontes sobre o nada: narrativas do sofrimento e transformação existencial, Marco Antônio Casanova analisa o modo como as nossas narrativas sobre o sofrimento estão impregnadas por uma série de elementos que nos afastam do sofrimento propriamente dito e que o maculam como algo necessariamente mal. Em sua argumentação, o autor acentua que o sofrimento não deve ser abordado a partir de uma determinação quididativa, posto que não é algo simplesmente subsistente no plano de nossas concepções pretensamente puras. Por entender que o sofrimento possui uma fenomenalidade própria que obedece ao caráter histórico de seu campo, Casanova nos apresenta um modo hermenêutico-fenomenológico de considerar o problema.
Partindo da tese proposta por Loparic que afirma que Winnicott provoca uma revolução na psicanálise ao introduzir um novo paradigma, um novo quadro conceitual fundado sobre problemas fundamentais que implicam novas práticas clínicas e novos modos de pesquisa, Loris Notturni sugerirá que a revolução paradigmática promovida por Winnicott abre igualmente a possibilidade de um retorno ao espírito de pesquisa freudiano muito além da ortodoxia teórica e dogmática frequente nas instituições acadêmicas que se propõem discutir o pensamento de Freud. Por consequência, tem a intenção de mostrar que aquilo que faz surgir uma ruptura entre Winnicott e Freud - a mudança de paradigma - ao mesmo tempo, é o que os mantêm ligados intimamente.
Em De saltos paradigmáticos a redes de cuidado: un extraño recorrido, Letícia Minhot nos indica o quão forte é a influência do pensamento de Loparic em suas reflexões e quantos dos problemas de seu trabalho são atravessados pela filosofia de seu exorientador. Inicialmente nos mostra o quanto a sua discussão sobre os exemplares na psicanálise sofreu influência da maneira como Loparic pensou as matrizes disciplinares freudiana e winnicottiana. Em seguida, destaca essa influência em seu modo de analisar as estruturas ontológicas que subjazem ao modo como estas duas psicanálises pensam o pathos do ser humano. Por fim, nos mostra o quanto a discussão winnicottiana sobre o cuidado exerceu um impacto sobre seu itinerário de pesquisa, a ponto de provocar uma mudança em seu foco. Em seu artigo, Minhot nos desvela como - sob o impacto do pensamento lopariciano - passou de agradáveis exercícios epistemológicos para ocupações éticas desconfortáveis, o que a levou a se deparar com a temática de uma ética do cuidado.
Também assumindo a tese da mudança de paradigmas proposta por Loparic, o artigo de Eder Soares Santos se concentra em desenvolver os desdobramentos filosóficos que a teoria do amadurecimento pessoal de Winnicott tem a oferecer para iluminar reflexões filosóficas. Os conceitos eleitos para a discussão são natureza humana, continuidade-deser, eu e si-mesmo. Após percorrer esses conceitos que se intercambiam, fará uso da noção de cooriginação dependente, mostrando que relacionalidade, cuidado e confiabilidade nos proporcionam uma sustentação para ser no mundo; para a existência de um si-mesmo que não surge como algo ou uma propriedade que se assenta sobre outro algo.
No artigo Não há outra igual, Francisco Verardi Bocca aponta a importância do diálogo com Zeljko Loparic para o seu modo de pensar a psicanálise. O autor nos mostra como a reflexão compartilhada em torno do conceito de paradigma permitiu-lhe apurar a sua própria compreensão acerca da obra de Freud. Apesar do reconhecimento de diferentes psicanálises pós-freudianas à luz da identidade epistêmica de cada uma, Bocca nos apresenta em seu texto a ideia de que não há outra igual à obra de Freud. O diálogo com Loparic, segundo o autor, lhe permitiu aprimorar sua compreensão acerca da condição especial do legado freudiano, bem como, da sua distinção.
No artigo Em primeira pessoa, Alfredo Naffah examina o texto "Temporalidade e regressão" de Zeljko Loparic, o qual discute o processo de regressão â dependência, em pacientes de tipo borderline. O autor se propõe a pinçar alguns trechos do texto de Loparic que lhe produziram um impacto novo e reverberante. Ao fazer isso, analisa o sentido etimológico do termo sujeito e o que poderia ser entendido como alienação do sujeito (devidos a falhas ambientais). Em seguida, Naffah salienta o impacto que teve sobre ele o uso, por Loparic, da expressão "em primeira pessoa", ao referir-se à tarefa terapêutica prescrita por Winnicott, quando o paciente, regredido â dependência, retoma "em primeira pessoa", o processo de amadurecimento. Ao fim de seu artigo, Naffah tece considerações - à luz de ponderações de Loparic - sobre a temporalidade humana saudável e a sua versão patológica.
Em Para além do inconsciente verbalizável e da memória lacunar: a psicanálise sob o olhar de Loparic, Caroline Vasconcelos Ribeiro nos indica o quanto Zeljko Loparic aprofundou a discussão filosófica em torno do conceito freudiano de inconsciente. Além disso, nos apresenta a original leitura lopariciana sobre as formulações winnicottianas relativas a um tipo de conteúdo inconsciente que não pode ser verbalizado através da regra fundamental da psicanálise freudiana e elaborado à luz do clássico modelo de interpretação analítica. Para a autora, ao sistematizar a formulação winnicottiana acerca de um inconsciente não-acontecido, Loparic nos faz pensar numa relação do inconsciente com a memória que não se reduz ao preenchimento de lacunas e de elos faltantes. Seu texto examina as consequências destas formulações loparicianas na teoria e na clínica psicanalítica.
Em seu artigo, Ofra Eshel aborda a mudança revolucionária na psicanálise clínica inaugurada pela radicalidade das ideias de Winnicott. A autora nos mostra o quanto as proposições winnicottianas fornecem uma matriz formativa que transformam o trabalho psicanalítico convencional, tanto no campo da teoria, quanto no da prática clínica. Eshel afirma que, quando começou a escrever sobre a mudança de paradigma do pensamento clínico de Winnicott em 2006, sentia-se solitária em seu modo de pensar até tomar conhecimento do artigo Winnicott's Paradigm Outlined de Loparic (2002). Para a autora, as discussões de Loparic sobre a visão revolucionária de Winnicott apoiaram e enriqueceram seu pensamento. Em seu texto, Eshel examina o poder revolucionário das ideias clínicas de Winnicott e enriquece sua argumentação com uma ilustração clínica.
Yossi Tamir propõe, em seu artigo, uma abordagem clínica da relação entre o brincar e a psicoterapia. Por um lado, apresenta que o brincar se mostra como pré-requisito do processo de cura na psicanálise e, por outro, destaca que a capacidade de brincar pelo terapeuta seria um requerimento e função decisivos. Embora a linguagem cotidiana de Winnicott pareça deixar muito claros esses dois pontos, o autor revela que uma investigação mais aprofundada mostra que há certa opacidade no conceito de brincar. Pelo brincar pode-se obter respostas e explicações que refletem a capacidade para construir uma realidade pessoal capaz de tolerar contradições e, deste modo, o terapeuta que consegue brincar pode aceitar as contradições como um fato e como uma questão que não está colocada em disputa. No intuito de dar visibilidade ao seu argumento, o autor apresenta várias vinhetas clínicas.
Desejamos ao leitor uma instigante e profícua leitura dos textos que compõem essa coletânea da Revista Natureza Humana em homenagem aos 80 anos de Zeljko Loparic. Os textos aqui expostos foram construídos a partir de um diálogo com as sendas abertas pela radicalidade do pensamento lopariciano. Ao examiná-los, o leitor poderá comemorar os 80 anos deste pensador radical, uma vez que co-memorar é um lembrar com, um lembrar junto. O convite, então, é para memorarmos juntos a imprescindível e vigorosa contribuição do professor Loparic para a filosofia e para a psicanálise, contribuição que se reverbera nos artigos aqui apresentados.
1 Estamos aqui usando suas palavras em entrevista concedida a Roseana Moraes Garcia e Mariângela Amêndola publicada no livro Relendo a psicanálise com Loparic, por ocasião de sua Festschrift de 70 anos. Cf.:https://ibpw.org.br/wp-content/uploads/2019/09/Entrevista-Loparic-no-Livro-Relendo-a-Psican%C3%A1lise-com-Loparic.pdf. p.250
2 Essas passagens entre aspas encontram-se na entrevista referida acima e referem-se ao reconhecimento de Loparic sobre a importância do contato com os professores Gadamer, Tugendhat e Henrich e sobre a forma como este último inspirou-o a ser radical com a filosofia.
3 Ainda segundo a entrevista supracitada, este curso foi implementado em parceria com Roberto Monzani, Osmyr Gabbi Jr. e Bento Prado Jr.
4 Sobre a International Winnicott Association (IWA), conferir: http://iwassociation.org/
5 O livro foi publicado na Coleção CLE, v. 57, pp 11-18, 2010.
6 Para acessar este acervo, conferir: https://ibpw.org.br/acervo-loparic/