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Natureza humana
versão impressa ISSN 1517-2430
Nat. hum. vol.21 no.2 São Paulo jul./dez. 2019
ARTIGOS
Da lógica formal enquanto antecâmara da filosofia transcendental
Formal logic as the antechamber of transcendental philosophy
Fábio César Scherer1
Professor Adjunto da Universidade Estadual de Londrina / e-mail: schererfabio@hotmail.com
RESUMO
Neste artigo, pretendo explicitar o papel da lógica formal no projeto crítico kantiano. No tratamento dessa questão, abordarei a relação entre a lógica formal, frequentemente chamada por Kant de lógica geral, e a lógica transcendental. Assumirei a tese de que a lógica formal e a lógica transcendental são duas ciências racionais puras, distintas, independentes, porém, com conexões entre si, a despeito das leituras que sugerem que a lógica transcendental substitua a lógica formal ou que a lógica formal mantenha a sua existência, devendo, no entanto, ser subordinada à lógica transcendental. Na caracterização da lógica formal, utilizarei, sobretudo, a Jäsche-Logik. Quanto à lógica transcendental, exposta na Kritik der reinen Vernunft, irei me servir da leitura semântica de Loparic para tratar do conhecimento metafísico da natureza. Inicio o artigo apontando a proximidade de Kant com a lógica formal e o seu emprego na elaboração do projeto crítico.
Palavras-chave: lógica transcendental, lógica formal, critérios de verdade, semântica.
ABSTRACT
In this article, it is intended to explain the role of formal logic in the Kantian critical project. In addressing this issue, it will be considered the relationship between formal logic, often called by Kant as general logic, and transcendental logic. It will be assumed that formal logic and transcendental logic are two pure, distinct, independent but interconnected rational sciences, despite readings that suggest that transcendental logic replaces formal logic or that formal logic maintains its own existence, but must be subordinated to transcendental logic. In the formal logic characterization, it will be mainly used the Jäsche-Logik. As for transcendental logic, presented in Kritik der reinen Vernunft, it will be used Loparic's semantic reading to deal with the metaphysical knowledge of nature. The article begins by pointing out the proximity of Kant to formal logic and its use in the elaboration of the critical project.
Keywords: transcendental logic, formal logic, truth criteria, semantics.
1. Contato de Kant com a lógica
A familiaridade de Kant com a lógica é inegável. Desde que recebeu a venia legendi, em 1755, até deixar a atividade docente, em 1796, Kant ofereceu cursos de lógica. Inicialmente lecionou na Universidade de Königsberg como Privatdozent e, posteriormente, a partir de 1770, na qualidade de professor catedrático de lógica e metafísica.2 Nesses mais de 40 anos de ensino de lógica, Kant adotou ininterruptamente pelo menos desde 1765 - seguindo decreto do governo prussiano de que todo professor tinha o dever acadêmico de usar um reconhecido compêndio enquanto material base para as lições - o livro Auszug aus der Vernunftlehre de George Friedrich Meier (cf. Log, AA 09: 003.21-26).3 Esse compêndio barroco de Meier - escolhido por Kant provavelmente por representar bem a cultura da razão do Esclarecimento - foi elaborado, sobretudo, tendo como modelo a terminologia da escola latina do século XVIII,4 donde advém a apropriação kantiana de vários termos latinos da lógica, particularmente do Extrato, de Meier, tais como: amphibolia, analysis, antithesis, dialectica, disciplina, doctrina, paralogismus, apagogicus, dogmaticus.
A atitude de Kant diante do compêndio de lógica de Meier, assim como em relação aos compêndios de Baumgarten - um utilizado para o curso de metafísica (Metaphysica, 1757) e dois usados para o curso de ética (Ethica philosophica, 1740/1751 e Initia philosophiae practicae primae, 1760) -, foi marcada por uma postura de ponderação e de crítica. O filósofo de Königsberg não somente reproduziu nas lições o conteúdo do manual de Meier, mas também fez observações críticas e complementares, os quais eram de tempo em tempo ampliadas e revisadas devido a novas ideias ou outros materiais específicos (cf. Log, AA 09: 004.01-10). Muitas dessas anotações foram feitas por Kant nas margens da sua cópia do manual de Meier e em papéis avulsos. Outras tantas foram feitas durante os cursos de lógica e registradas pelos alunos.5 O manual de Meier, juntamente com as anotações, foi repassado por Kant ao seu amigo e discípulo Jäsche em 1799, com a missão de publicar a "lógica de Kant", tal como ela fora ministrada nos cursos de lógica, isto é, segundo a estrutura e a ideia geral de Meier (cf. Log, AA 09: 003.21-26; 004.10-14.). Na confeção do Immanuel Kants Logik, ein Handbuch zu Vorlesungen, além das anotações de Kant e do manual de Meier, Jäsche recorreu aos cadernos de anotações de alunos, misturando, em alguns casos, as anotações de Kant com os apontamentos de lições de alunos. Isso, posteriormente, abriu margem para o questionamento da fidelidade do texto e a sua inclusão no rol das obras escritas por Kant. Todavia, considerando que Kant encomendara a obra, oferecera o material para a confeção e supervisionara a elaboração do livro, assim como por se tratar da única obra de lógica, ela foi aceita pela Academia.
O Corpus logicus de Kant compreende, além do livro editado por Jäsche, Logik-Vorlesungen e Reflexionen zur Logik.6 Essas lições e reflexões são uma fonte rica para a investigação do pensamento kantiano, já que as observações críticas de Kant sobre os precursores, os seus comentários - espontâneos e algumas vezes contraditórios - e as notas possibilitam uma doxografia pessoal e indicam claramente as tentativas do filósofo de construir seu próprio caminho, para além da tradição. Sem dúvida, a comparação dessas seções com os manuais wolffianos constitui uma porta de entrada para o que podemos denominar de "laboratório de Kant", assim como para o estudo do Esclarecimento alemão. Todavia, neste artigo, irei me concentrar em apresentar a lógica enquanto um dos tripés do projeto de pesquisa científica kantiano, restringindo-me, para tanto, sobretudo, à Jäsche-Logik e à Kritik der reinen Vernunft.
A presença marcante da lógica no pensamento em geral de Kant é notável em várias de suas obras. Entre elas, Kritik der reinen Vernunft merece destaque. Uma das suas principais partes foi concebida enquanto um tipo de lógica. A obra principal de Kant é dividida, tal como a Jäsche-Logik e outras obras kantianas,7 em doutrina dos elementos e em doutrina do método. A doutrina dos elementos é formada pela estética transcendental e pela denominada lógica transcendental. A lógica transcendental pode ser interpretada enquanto uma lógica do conhecimento apriorístico e, dessa forma - conforme a própria terminologia de Kant -, enquanto uma lógica especial para a metafísica. Nesse sentido, seguindo Vásquez Lobeiras (2015, p. 42), seria possível também uma interpretação histórico-lógica,8 para além da metafísica e epistemológica, da obra inaugural do projeto crítico kantiano. De fato, tal leitura existe pelo menos desde a metade do século XX pelos trabalhos de Tonelli, Hinske, Barone, Pozzo, Boswell e outros. Trabalhos anteriores, todavia, já podem ser encontrados em Riehl, Reich, Peirce e Paton.
Grande parte da estrutura geral da Kritik der reinen Vernunft, conforme pesquisas de Hinske (1974, pp. 68 ss; 1986, pp. XII, XXX ss), é similar a dos tratados sobre a história da lógica. Para ilustrar esse ponto, vale citar algumas correspondências entre as principais divisões: a divisão geral em teoria dos elementos e teoria do método, supracitada, reproduz, em outro plano, a divisão entre lógica geral e lógica especial presente nos tratados de lógica na Alemanha; a subdivisão da lógica transcendental em analítica e em dialética foi realizada por Aristóteles e retomada nos séculos XVII e XVIII (Darjes e outros); a incorporação da estética transcendental por Kant para estabelecer, entre outras coisas, a divisão entre sensibilidade e espontaneidade foi tratada por Baumgarten enquanto teoria da faculdade inferior do conhecimento e, por fim, a divisão da filosofia teórica em analítica dos conceitos, analítica dos princípios e dialética corresponde à divisão usual na lógica teórica em lógica dos conceitos, juízos e silogismos. Não menos indicativo da descendência lógica da Kritik der reinen Vernunft são as categorias. Elas foram notoriamente estabelecidas em referência à tabela das formas de juízos, oriunda de Aristóteles.
O próprio termo "Kritik", conforme a literatura especializada, advém da lógica. Segundo Tonelli (1994, p. 8), a lógica foi caracterizada de formas diferentes no decorrer da história, ora enquanto teoria da invenção, ora como teoria de demonstração, ora por teoria da semântica, ora enquanto teoria da verificação e de correção, ou pela combinação de duas ou mais interpretações. Dentre essas determinações da lógica, chama atenção a que a considera ciência da correção e da verificação do entendimento e da razão. Essa qualificação da lógica, denominada de "arte de criticismo", teve seu auge na metade do Século das Luzes e foi acolhida direta ou indiretamente por muitos lógicos e filósofos alemães. É muito provável que o filósofo de Königsberg tenha adotado o termo "Kritik" sob a influência dessa corrente de interpretação com a finalidade de designar sua pretensão metodológica de verificação e de correção da metafísica. Essas semelhanças em Kant entre a estrutura do pensamento metafísico e a forma do pensamento em geral (lógica formal) não são estranhas às disciplinas, posto que ambas tratam do conhecimento dado a priori - ainda que de perspectivas diferentes -, ou inesperadas, uma vez que muitas ideias e termos do compêndio de Meier se cristalizaram em Kant no decorrer dos seus muitos anos de ensino de lógica.
2. Da relação da lógica formal e da lógica transcendental
Na determinação do conceito de lógica na Jäsche-Logik, Kant parte do pressuposto de que tudo na natureza ocorre segundo regras.9 Isso é válido, segundo ele, também para todas as nossas forças em conjunto e, em particular, para nosso entendimento, que tem suas ações ligadas às regras passíveis de serem investigadas (cf. Log, AA 09: 011.04-13). Tal como nossas forças em geral, defende Kant, também o entendimento se encontra submetido às regras. A fonte e a faculdade de pensar as regras em geral, bem como de submetê-las às representações, seria o próprio entendimento. Em outros termos, para Kant, essas regras originam-se no entendimento, o qual fornece regras, procede e se deixa conhecer segundo suas próprias regras (cf. Log, AA 09: 011.22-27). A ciência que estuda as leis do entendimento e da razão, ou da mera forma do pensamento em geral, é denominada lógica (cf. Log, AA 09: 013.03-05).
O conceito de lógica é mais bem clarificado na sequência do texto da Jäsche-Logik. Enquanto uma ciência que se ocupa de todo o pensamento, sem levar em consideração o objeto como matéria do pensamento, a lógica deve ser vista, de acordo com Kant, em primeiro lugar, como "a base para todas as outras ciências e enquanto propedêutica para todo o uso do entendimento" (Log, AA 09: 013.08-10). Justamente por se abster totalmente de todos os objetos, a lógica, em segundo lugar, não pode ser órganon da ciência, isto é, um conjunto de instruções de como um conhecimento deve ser alcançado (cf. Log, AA 09: 013.11-13), posto que, para tal, seria preciso que já se conhecesse o objeto cujo conhecimento deve ser obtido segundo certas regras (como sucede, por exemplo, na matemática). Todavia, enquanto ciência das leis necessárias do pensamento, sem as quais nenhum uso do entendimento e da razão é possível, a lógica, em terceiro lugar, é um cânon, isto é, uma técnica geral da razão para adequar os conhecimentos em geral à forma do intelecto. E enquanto cânon do entendimento e da razão, a lógica não deve abrigar nenhum princípio da ciência, seja qual for, ou da experiência. Ela deve possuir somente leis a priori, necessárias e pertencentes ao entendimento (cf. Log, AA 09: 013.27-014.01). Em quarto lugar, a lógica é uma ciência da razão segundo a forma (porque suas regras não advêm da experiência) e a matéria (porque o seu objeto é a razão); por isso, a lógica pode ser descrita enquanto autoconhecimento do entendimento e da razão, não segundo a matéria, mas tão somente segundo a forma, ocupando-se, por conseguinte, de perguntas do tipo: como o intelecto se conhece e como o intelecto deve proceder? - e "não (com) o quê, quanto e até onde o intelecto conhece, o que seria um conhecimento de si relativo a seu uso material, pertencendo, por conseguinte, à metafísica" (Log, AA 09: 014.27-30). Em quinto e último lugar, a lógica é uma doutrina ou teoria demonstrativa, cuja base se assenta em princípios a priori, com base nos quais todas as suas regras são derivadas e podem ser demonstradas (cf. Log, AA 09: 014.34-015.04).
Em sintonia com essas características essenciais do conceito de lógica,10 Kant aponta rapidamente na Jäsche-Logik que a lógica geral se distingue, enquanto propedêutica de todo o uso do entendimento, da lógica transcendental, dado que a primeira se ocupa dos objetos em geral, ao passo que, na segunda, o próprio objeto é apresentado enquanto um objeto do mero entendimento (cf. Log, AA 09: 015.33-37). Uma diferenciação mais detalhada encontra-se na introdução da "ideia de uma lógica transcendental" da Kritik der reinen Vernunft. Contudo, antes de abordá-la, convém destacar que essa distinção é antiga em Kant, podendo ela já ser vislumbrada na década de 70, em especial, na Dissertation de 1770: De mundi sensibilis atque intelligibilis forma et principiis.
A caracterização do uso lógico e do uso real do entendimento presentes na Dissertation de 1770 (cf. MSI, AA 02: 393. 13-23) podem ser interpretadas como base para a diferenciação, respectivamente, entre a lógica formal e a lógica transcendental, desenvolvida na Kritik der reinen Vernunft. Essa qualificação de ambas as lógicas está ligada à nova definição de metafísica de Kant, a qual é apresentada em 1770, em contraste com a tradição de Baumgarten e Wolff. A metafísica, caracterizada enquanto ciência do mundo noumenal, distingue-se da ciência da sensibilidade (ou do mundo dos fenômenos), bem como da matemática. O caráter racional puro da metafísica é semelhante ao da ciência da razão par excellence: a lógica. Ambas as ciências, a metafísica e a lógica, ocupam-se do âmbito da racionalidade pura, de forma que se faz necessário determinar essas ciências. A lógica é designada enquanto aquela que investiga a razão em relação a si mesma, suas próprias leis; e a metafísica como aquela que analisa a razão em relação aos conhecimentos que podem ser conhecidos a priori, mas que, no entanto, se aplicam aos objetos das intuições sensíveis. Essa caracterização da lógica e da metafísica enquanto ciências da razão pura, presente na Dissertation e em materiais das lições, é o ponto de partida da distinção posterior, em Kritik der reinen Vernunft, entre lógica formal e lógica transcendental. Em linhas gerais, a lógica formal pode ser identificada enquanto lógica tal como definida na Jäsche-Logik (cf. Log, AA 09: 013.03-016.12) e a metafísica pode ser qualificada em analogia com a lógica transcendental, de forma que o estudo da lógica transcendental consiste numa das tarefas da metafísica (cf. Log, AA 09: 033.29-35).
Na Kritik der reinen Vernunft, essa distinção entre a lógica formal e a lógica transcendental é feita na introdução da "lógica transcendental", após Kant indicar que se deve distinguir atentamente a ciência das regras da sensibilidade em geral, a estética, e a ciência das regras do entendimento, a lógica,11 e anunciar que a lógica, por sua vez, pode ser considerada sob uma dupla perspectiva, a saber, em lógica do uso geral ou do uso particular do entendimento (cf. KrV, AA 03: 075. 22-34).12 Conforme Kant, a lógica geral se subdivide em lógica geral pura (lógica formal) e lógica transcendental. A primeira trata de todos os objetos em geral, trata de todos os conhecimentos a priori, sendo definida enquanto ciência das leis necessárias do intelecto e da razão em geral, ao passo que a segunda ocupa-se apenas dos objetos do intelecto, mais precisamente, somente com as representações (intuições e conceitos) em que reconhecemos a sua origem não empírica, em que conhecemos que e como elas sejam possíveis ou aplicáveis simplesmente a priori a objetos da experiência (cf. KrV, AA 03: 078. 05-20). Diferentemente da lógica formal, que considera somente a forma lógica na relação entre os conhecimentos entre si, a lógica transcendental abrange os conhecimentos em que há conteúdo ou em que esse não foi de todo abstraído. Isso se deve ao fato de essa (a lógica transcendental) ocupar-se somente dos conceitos puros do entendimento, ou seja, conceitos que se originam não somente no que se refere à forma, mas também quanto ao conteúdo do intelecto. Em suma, a lógica transcendental pode ser descrita enquanto uma ciência do entendimento puro e do conhecimento da razão, que trata somente dos objetos absolutamente a priori, buscando determinar a origem, o âmbito e o valor objetivo desses conhecimentos (cf. KrV, AA 03: 078. 28-34).
A lógica formal, assim como lógica transcendental, subdivide-se em analítica e dialética. Na lógica formal, a analítica pode ser qualificada como análise da forma do intelecto e da forma da razão, que tem enquanto finalidade corrigir formalmente o nosso conhecimento. Consequentemente, ela se ocupa das regras necessárias a toda verdade formal, sem as quais o nosso conhecimento não seria verdadeiro em si mesmo (cf. Log, AA 09: 016.18-23). Dessa forma, ela é também denominada de lógica da verdade. Já a dialética consiste no mau uso dessa doutrina teórica e geral (analítica) enquanto técnica prática, de modo que a lógica formal - que deveria ser somente um cânon para o discernimento da correção formal dos seus dados - passa a ser utilizada como um órganon para tratar da verdade material do conhecimento, ou melhor, para dar uma ilusão de verdade. Esse uso, segundo Kant, é um abuso da analítica, uma lógica da aparência, em que se busca envernizar de verdade a ignorância e as ilusões voluntárias da própria dialética através da imitação do método prescrito pela lógica, assim como da utilização de uma estrutura de tópicos e subdivisões (cf. KrV, AA 03: 081. 04-25). Convém ainda afirmar que a lógica formal, considerada enquanto órganon, produz sempre um simulacro do verdadeiro conhecimento, já que sua pretensão de servir como instrumento para ampliar os conhecimentos, que exige ciência do conteúdo dos conhecimentos, não é compatível com seu âmbito de ocupação - a mera forma lógica dos conhecimentos. Dentro deste quadro, Kant tratou da analítica dos critérios formais de verdade e da dialética da crítica da aparência da verdade, buscando, nesta última, apresentar notas e regras que facilitem identificar o que parece concordar, mas não concorda, com os critérios formais de verdade.
O critério puramente lógico da verdade é certo, mas, de acordo com Kant, insuficiente para determinar um conhecimento, posto que este pode concordar com as leis lógicas, mas estar em contradição com o objeto (cf. KrV, AA 03: 080. 02-10). A lógica formal fornece, por conseguinte, somente um critério negativo da verdade, faltando o confronto dessas leis com o conteúdo do conhecimento. A investigação dessa condição positiva da verdade é a tarefa da lógica transcendental (cf. KrV, AA 03: 080. 17-32). Esta se ocupa somente dos conceitos do entendimento que possam ser aplicados aos objetos da intuição, dado que os conceitos sem seu correspondente na intuição são vazios, não permitindo ampliar o conhecimento. Logo, os objetos da intuição são condições indispensáveis para todo conhecimento transcendental e pedras de toque da verdade desses conhecimentos. A analítica transcendental encarrega-se de expor os elementos do conhecimento puro do entendimento e os princípios, condição necessária para se pensar os objetos. A dialética transcendental, por sua vez, deverá consistir em uma crítica do entendimento e da razão, a fim de frustrar as tentativas de descoberta e extensão do conhecimento por meio do emprego dos conceitos e princípios do entendimento para além dos limites de toda a experiência possível. Nesse sentido, a analítica transcendental é considerada um cânon do entendimento puro - por se ocupar somente de conhecimentos sintéticos a priori - e a dialética transcendental, uma disciplina - por almejar um conhecimento sintético da razão pura (cf. KrV, AA 03: 517. 29-518.10). Em suma, as principais diferenças entre a analítica e a dialética da lógica formal, e a da lógica transcendental, são: a) a analítica da lógica formal fornece somente uma condição negativa de toda a verdade ao passo que a analítica da lógica transcendental apresenta um critério positivo da verdade; e b) a lógica da aparência é típica da lógica formal, sendo a dialética transcendental um escudo contra ilusões sofísticas daquela.
De acordo com o filósofo de Königsberg, o conhecimento deve ser analisado, em primeiro lugar, conforme as leis lógicas gerais e puras para, em segundo lugar, se investigar o conteúdo e a sua relação com a forma (cf. KrV, AA 03: 080. 17-32; Log, AA 09: 051.09-23). Em termos gerais, primeiro vem a lógica e, depois, a metafísica. Nessa perspectiva, entende-se a lógica transcendental enquanto complemento da lógica formal, pois, por mais que sejam independentes uma da outra, trabalham juntas para a filosofia crítica, na medida em que cada uma delas trata de um âmbito diferente do conhecimento (cf. Log, AA 09: 006.23-37, 008.07-21). Nesse contexto, a lógica formal deve ser vista enquanto fundamento e propedêutica de todas as ciências teóricas da razão, por se ocupar da forma do pensamento em geral, e a lógica transcendental deve ser pensada enquanto controle de qualidade dessas ciências, pelos seus critérios para admissão de um novo conhecimento seguro e confiável. Por conseguinte, pode-se afirmar que a lógica constitui o ponto de partida e de estruturação do projeto crítico de Kant.
Essa posição sobre a relação entre a lógica formal e a lógica transcendental para o projeto crítico kantiano é próxima da defendida por Vásquez Lobeiras. Em seu livro Die Logik und ihr Spiegelbild (1998), a autora faz um mapeamento das teses levantadas pelos estudiosos quanto ao tema. Delas, três se destacam: a) a lógica formal é insustentável, sendo a lógica transcendental sua superação (Fichte, Schelling, Hegel sob uma perspectiva da lógica metafísica, Cohen, Prauss); b) a fundamentação da lógica formal é dada através da lógica transcendental, já que somente esta última garante a relação da forma do pensamento com o conteúdo, sem a qual a lógica formal seria totalmente vazia (Schaumann, Maimon, Trendelenburg, Überweg, Wickenhagen, Steckelmacher, Stuhlmann-Laesiz); e c) a lógica transcendental é um complemento da lógica formal e esta última é uma ciência bem fundamentada que pode continuar ao lado da lógica transcendental sem se apoiar quanto os seus fundamentos nesta ou ser com esta confundida (Kemp Smith, Paton, Wagner, Heckmann). Segundo a autora, entre a lógica formal e a lógica transcendental, não há uma relação simples de fundamentação ou de superação. Os Manuscritos de lógica e o Corpus metafísico mostram que Kant as tratava, muito mais, como duas ciências racionais puras, que devem ser pesquisadas e determinadas paralelamente. Não havia, por parte de Kant, a pretensão de deixar a lógica formal ser substituída pela lógica transcendental. Ele as considerava ciências distintas, independentes, mas relacionadas (Vásquez Lobeiras, 1998, pp. 215-216). A posição assumida neste artigo - e que é defendida por Vásquez Lobeiras - aproxima-se da terceira interpretação (c), defendida por Kant na obra Jäsche-Logik, na qual a lógica formal é definida enquanto fundamento e propedêutica de todas as ciências.
3. Do conhecimento sob a perspectiva da lógica formal
O conhecimento em geral, segundo a obra Jäsche-Logik, é formado pela sua relação com o objeto ou com o sujeito, mais especificamente, pela sua conexão, respectivamente, com uma representação ou com a consciência (cf. Log, AA 09: 033.09-14). Consequentemente, esse conhecimento é resultante da união entre a forma (maneira como conhecemos o objeto) e a matéria (resultante da relação do entendimento com o objeto). A diversidade da forma do conhecimento em geral repousa, para Kant, sobre a consciência, entendida enquanto representação de uma outra representação que está no indivíduo (cf. Log, AA 09: 033.023-24). A consciência pode ser clara (se o indivíduo está consciente de sua representação) ou obscura (se ele não está consciente de sua representação). Em virtude de a consciência ser a condição universal de toda forma lógica dos conhecimentos, a lógica formal só pode e deve tratar das consciências claras. Nesse sentido, de acordo com Kant, a lógica formal analisa unicamente a concordância das representações13 com as regras do pensamento, quer elas estejam presentes em conceitos, em juízos ou em inferências, abstendo-se das meras representações e de sua possibilidade, as quais são objetos da metafísica (cf. Log, AA 09: 033.27-35).
Seguindo essa exposição lógica do conhecimento na Jäsche-Logik, tem-se que todos os conhecimentos são intuições (representação singular) ou conceitos (representação universal).14 As intuições são oriundas da sensibilidade e os conceitos advêm do entendimento. Sobre essa distinção entre conhecimentos intuitivos e discursivos, conforme Kant, fundamentam-se as diferenças entre a perfeição estética e a perfeição lógica do conhecimento (cf. Log, AA 09: 036.17-20). A perfeição estética "consiste no acordo do conhecimento com o sujeito e fundamenta-se na sensibilidade particular do homem" (Log, AA 09: 036.28-30), o que implica que essa perfeição pode somente fornecer leis universais para a sensibilidade, tendo uma validade subjetiva para a humanidade em seu conjunto (por exemplo, o belo). Já a perfeição lógica, entendida como concordância de um conhecimento com o seu objeto, pode estabelecer leis objetivas e universais, ou seja, suas regras são válidas para todos os seres em geral e podem ser julgadas a priori (cf. Log, AA 09: 036.25-28). Um conhecimento é esteticamente perfeito se contém: universalidade estética, distinção estética, verdade estética e certeza estética. Esses quatro momentos capitais da perfeição estética são análogos às quatro perfeições lógicas, a saber, a da quantidade, a da qualidade, a da relação e a da modalidade. Da análise dos quatro momentos de cada uma das categorias do entendimento, Kant conclui que um conhecimento lógico perfeito é aquele que, segundo a quantidade, se tem universidade objetiva; quanto à qualidade, se tem distinção objetiva; no que diz respeito à relação, se tem verdade objetiva; e no que se refere à modalidade, se tem certeza objetiva (cf. Log, AA 09: 038.22-25).
A perfeição em geral (lógica estética e lógica)15 é formada pela união da multiplicidade e da unidade. Dessas duas, a unidade, que reside tanto nos conceitos (entendimento) quanto nas intuições (sensibilidade), é a condição central para a perfeição do conhecimento, de modo que a "mera multiplicidade sem a unidade não pode nos satisfazer" (cf. Log, AA 09: 039.19), embora o oposto seja possível. Sendo assim, a verdade, por ser o fundamento da unidade pela relação entre nosso conhecimento e o objeto, constitui a principal perfeição lógica e estética (cf. Log, AA 09: 039.20-22). Na perfeição estética, a verdade desempenha o papel de suprema condição formal negativa, necessária para a universalização na sensibilidade dos juízos de gosto. Na perfeição lógica, a verdade é vista enquanto condição essencial e inseparável de todo o conhecimento e pertence à categoria da relação.
A pergunta relativa à definição de verdade conduz à questão "se há e em que medida há" um critério de verdade que seja certo, universal e de aplicação útil (cf. Log, AA 09: 050.19-21). A resposta a essa pergunta se desdobra em duas outras, decorrentes do fato de que o nosso conhecimento é formado por matéria (objetivo) e por forma (subjetivo). Uma delas indaga se é possível um critério universal material de verdade e a outra, se há um critério universal formal de verdade. A primeira questão é, segundo Kant, em si contraditória, já que esse critério teria de, ao mesmo tempo, fazer (dado sua pretensão de universalidade) e não fazer abstração de toda a diferença dos objetos (visto sua natureza de conhecimento material). Os critérios universais formais de verdade, por sua vez, são possíveis, dado que a verdade formal consiste "unicamente no acordo do conhecimento consigo mesmo, fazendo-se total abstração de todos os objetos em conjunto e de suas diferenças" (Log, AA 09: 051.11-13). Consequentemente, esses critérios formais podem ser qualificados enquanto notas lógicas universais do acordo do conhecimento com as leis do intelecto e da razão. Essas notas lógicas não são suficientes para determinar a verdade objetiva, porém, são a conditio sine quan non dessa verdade. Isso porque a questão "se o conhecimento concorda segundo si próprio no que se refere à forma" é anterior à questão "se o conhecimento concorda com o objeto" (Log, AA 09: 051.21-23). Em outros termos, a lógica formal é anterior à lógica transcendental, a qual se ocupa, entre outras coisas, da verdade objetiva.
Para Kant, os critérios formais de verdade, segundo os quais operam o nosso entendimento e nossa razão, e que são objetos de estudo da lógica formal são: a) o princípio de identidade;16 b) o princípio de contradição;17 c) o princípio de razão suficiente;18 e d) o princípio do terceiro excluído.19 Os princípios (a) e (b) determinam a verdade lógica interna, ou seja, a possibilidade lógica, de um conhecimento para juízos em que há consciência da mera possibilidade de julgar e em que a matéria é dada pela possível conexão entre o predicado e o sujeito, denominados de juízos problemáticos. O princípio de contradição fornece um sinal negativo da verdade do conhecimento, posto que não se pode extrair que um conhecimento é verdadeiro por não ser contraditório, mas, tão somente, que ele, caso se contradiga, é falso. O princípio de identidade, por sua vez, estabelece também, ao atestar que o predicado é idêntico ao sujeito, um sinal negativo de verdade, determinando que esse conhecimento é possível. Este princípio é considerado por Kant o primeiro e fundamental princípio (cf. PND, AA 01: 390.33-39), o qual, no entanto, se encontra incluso no princípio de contradição (ao aplicar este último já se pressupõe o primeiro como possível). Os princípios (c) e (d) determinam a verdade lógica externa de um conhecimento. O princípio de razão suficiente comprova a realidade lógica de um conhecimento para os juízos em que há consciência de julgar - chamados de juízos assertivos - ao estabelecer que eles tenham fundamentos e que seus consequentes não sejam falsos. Esse critério de verdade é positivo e também pode ser incluso no princípio de contradição (cf. V-Met-L2/Pölitz, AA 28: 544.20-36). O princípio do terceiro excluído verifica a necessidade lógica de um conhecimento para os juízos em que há consciência da necessidade de julgar, designados de juízos apodíticos. Esses critérios de verdade atestam a possibilidade, a realidade e a necessidade lógica dos conceitos e dos juízos.
Outra parte fundamental na determinação dos conhecimentos metafísicos e filosóficos dá-se pela verificação da possibilidade, da realidade objetiva e da efetividade dos conteúdos dos conceitos e juízos. Essa análise é o verdadeiro desafio da metafísica e da filosofia, já que sua tarefa mais elevada não se encontra no conhecimento subjetivo, mas no objetivo, não no idêntico, mas no conhecimento sintético (cf. Log, AA 09: 008.27-30). Os critérios do conhecimento metafísico e filosófico são abordados na primeira parte da lógica transcendental da Kritik der reinen Vernunft, a qual se ocupa, no geral, da decomposição dos conhecimentos a priori da própria faculdade do entendimento, mais especificamente, dos conceitos e dos princípios. A analítica transcendental inclui uma teoria do significado e da referência dos conceitos. Exporei os principais elementos dessa teoria em conformidade com a interpretação de Loparic, presente, sobretudo, no livro A semântica transcendental de Kant (2005) e no artigo "Kant's semantic turn" (2007).
4. Do conhecimento sob o ângulo da lógica transcendental
O projeto crítico kantiano, iniciado na Kritik der reinen Vernunft, é visivelmente uma contraproposta ao projeto de pesquisa da metafísica tradicional, particularmente ao adotado por Wolff e Baumgarten. O ponto de partida da proposta crítica (primeira tese) é a declaração de que a razão humana é capaz de resolver seus próprios problemas (cf. KrV, AA 03: 041.20-26; 498.17-21), ou seja, que, para todas as questões prescritas pela natureza de nossa razão, é possível responder ou provar que não há solução possível. Não se espera da razão que ela possa responder afirmativa ou negativamente a todos os seus problemas, mas que solucione o problema ou prove que tal resultado não pode ser atingido, o que implica, consequentemente, que a razão kantiana é isenta de antinomias. O foco desse teorema kantiano da solubilidade são as proposições sintéticas.20 A classe de problemas solúveis envolvendo as proposições analíticas é deixada em segundo plano, já que não auxilia em absoluto para a ampliação do conhecimento objetivo. A classe de proposições sintéticas solúveis é, para Kant, equivalente à classe de proposições sintéticas possíveis, isto é, à classe de proposições sintéticas que satisfazem o requisito lógico da obediência ao princípio de não contradição, bem como o requisito semântico de serem preenchíveis, ou seja, aplicados a dados do domínio da intuição sensível.
É interessante notar que o principal problema da metafísica não é solucionado pela identificação de problemas solúveis particulares, mas de classes inteiras de problemas que extrapolam os limites do conhecimento possível (cf. KrV, AA 03: 497.09-18). Segundo Kant, o sistema cognitivo humano trabalha com dois tipos de entidades de conhecimento: os objetos sensíveis (fenomênicos) e o sistema de objetos sensíveis, também denominado objetos do pensamento. Essa classificação corresponde, respectivamente, à classe de incógnitas objetuais e à classe de incógnitas sistêmicas. A investigação da primeira Kritik demonstra que, no âmbito especulativo, somente a classe de incógnitas objetuais possui conceitos preenchíveis e satisfazíveis na sensibilidade cognitiva. Os conceitos resultantes da classe de problemas sistêmicos da razão teórica pura (tais como a teologia, a cosmologia e a psicologia) são ditos impossíveis ou indecidíveis. Por conseguinte, pode se afirmar que os limites do conhecimento especulativo coincidem com a classe de proposições sintéticas com sentido e referência no âmbito dos problemas objetuais.
A segunda tese fundamental do projeto de pesquisa kantiano é a de que os problemas são solúveis se puderem ser vinculados, de alguma forma, com objetos possíveis, isto é, a dados sensíveis (representações intuitivas). Essa exigência é válida universalmente para todos os conceitos e os juízos com pretensão à validade objetiva. O campo de objetos construtivamente possíveis abrange os domínios dos possíveis construtos na intuição pura, ou esfera dos esquemas puros, e os dos possíveis objetos empíricos ou exemplos. Esses domínios, o dos objetos empíricos e o dos objetos matemáticos, são representados por estruturas empíricas ou puras de dados empíricos e esgotam a esfera dos objetos possíveis. Essa esfera de interpretação dos juízos sintéticos a priori teóricos é determinada, por Kant, pelo estudo a priori da sensibilidade realizado na estética transcendental. Por conseguinte, a teoria dos objetos dáveis na intuição é uma parte essencial da teoria da determinação dos predicados. As questões ou problemas que não cumprem com a regra supracitada - isto é, que não possuem objeto correspondente no domínio de dado sensíveis - são ditas "inválidas" ou "sem sentido", posto que os predicados não podem ser determinados.21 Para alguns comentadores de Kant, essas questões insolúveis não passam, no contexto da filosofia crítica kantiana, de problemas mal formulados, já que usa de conceitos e de uma forma lógica que não têm referência sensível.
Essa regra da solubilidade de problemas teóricos envolve, em específico, dois elementos: 1) o da possibilidade dos conceitos que têm conteúdo no domínio dos objetos que nos são dados na intuição e 2) o da possibilidade de determinação da verdade ou falsidade dos juízos - usados na resposta dos problemas teóricos - nesse mesmo domínio. A lógica transcendental ocupa-se dessas questões, na medida em que busca saber que e como certas representações, incluindo conceitos, são aplicadas ou possíveis unicamente a priori (cf. KrV, AA 03: 078.7-11). Nesse sentido, interpreto, seguindo Loparic, a lógica transcendental como uma teoria a priori do significado e da referência dos conceitos e da verdade dos juízos a serem interpretados (sensificação) no domínio dos objetos acessíveis à intuição.22 Essa teoria, denominada contemporaneamente de semântica, encontra-se a serviço do método de resolução de problemas heurísticos, conhecido na história da matemática, enquanto método de análise e síntese.
A caracterização kantiana da referência e do significado dos conceitos, enquanto a priori, ideal e (de acordo o jargão contemporâneo) construtivista, é uma generalização das teses sobre conceitos defendidas por matemáticos desde a antiguidade23 e, em grau menor, pela ciência da natureza. A eficácia heurística dessas ciências na solução de problemas - razão pela qual elas foram tomadas enquanto modelo de pesquisa - fundamentava-se, primeiro, no fato de que os conceitos deveriam se referir a objetos possíveis, de forma que as respostas aos problemas eram apreendidas dos próprios objetos possíveis e, segundo, na presença de condições a priori de possibilidade dos objetos tratados. No caso da matemática, em condições que regulam construções matemáticas e geométricas; no caso das ciências naturais, em princípios da experiência possível (cf. Loparic, 2005, 19). O resultado foi uma semântica não do tipo realista, mas construtivista. A diferença entre ambas pode ser explicada, grosso modo, pelo conceito de interpretação. Diferentemente do primeiro tipo, em que interpretar significar associar, de alguma maneira, conceitos já formados com objetos anteriormente dados, a semântica construtivista busca gerar, por meio de uma operação de construção, um objeto que satisfaça as condições do conceito (forma representacional discursiva) ainda vazio e que o preencha. Assim sendo, o construtivista gera, primeiro, os dois lados da associação - o conceito e o "esquema do objeto" correspondente - e, depois, associa ambos.24 Em linhas gerais, pode-se afirmar que a geometria euclidiana, a "álgebra universal" e a física newtoniana são as matérias-primas (fontes) usadas por Kant para a determinação das formas dos problemas metafísicos, bem como das condições a serem satisfeitas para a sua solução; enfim, para a teoria semântica transcendental de tipo construtivista.
A terceira tese central da semântica a priori de Kant é a de que a possibilidade da forma discursiva/lógica das proposições sintéticas depende de sua sensificação (interpretação) por formas intuitivas dáveis na intuição sensível, pura ou empírica (cf. KrV, AA 03: 204.07-30). A tarefa de estabelecer que e como essa associação entre formas lógicas e formas intuitivas é possível encontra-se exposta na analítica transcendental, particularmente na parte dedicada à doutrina transcendental do juízo, a qual se subdivide em esquematismo transcendental e princípios do entendimento. Por um lado, nem todos os grupos de condições discursivas são irredutíveis às intuitivas - como é o caso das categorias -, e, por outro lado, em todas as subsunções de um objeto num conceito, a representação do primeiro deve ser homogênea à representação do segundo (de maneira que este último contenha o que está dado no primeiro). Sendo assim, faz-se necessário um terceiro elemento que estabeleça a ligação entre o campo discursivo e o intuitivo, tornando, assim, possível a aplicação do primeiro ao segundo. Essa conexão é realizada por procedimentos de construção determinados por regras discursivas de modelos intuitivos puros para conceitos. Essas construções devem ser a priori e, devido a sua função, ser, de um lado, intelectual e, de outro, sensível (cf. KrV, AA 03: 134.22-27). A teoria que trata desse procedimento viabilizador da realidade objetiva dos conceitos em geral é denominada por Kant esquematismo.
A teoria da sensificação das categorias25 (parte central do esquematismo transcendental) e a teoria da verdade dos juízos teóricos a priori em geral - incluindo, além dos juízos filosóficos, também os da matemática e os da física newtoniana - constituem, seguindo Loparic, uma teoria semântica a priori da satisfazibilidade das formas lógicas (de proposições e das categorias) procedentes do entendimento sobre o domínio das determinações temporais puras e das percepções empíricas (cf. Loparic, 2005, 23). Esta semântica transcendental, denominada por Kant de "lógica da verdade" (cf. KrV, AA 03: 082.03-08), objetiva, em última instância, encontrar as condições de verdade dos juízos teóricos a priori no domínio dos objetos possíveis. Por conseguinte, a tarefa geral da filosofia transcendental da razão especulativa consiste em responder a esta questão: como são possíveis juízos sintéticos a priori do tipo teórico? (KrV, AA 03: 073.06-08). A resolução deste problema, apesar de se concentrar na análise da possibilidade, abrange também a das condições e a do âmbito de validade das proposições sintéticas a priori. O resultado da investigação serve, por sua vez, de fundamento para a solução de outra tarefa, de relevância ainda maior: a de determinar a capacidade da razão humana de resolver seus próprios problemas.26
A solução dessa questão geral da filosofia transcendental já se encontra, em linhas gerais, exposta acima. Todavia, a efeito de sistematização, vale apresentá-la novamente. A satisfazibilidade das proposições sintéticas requer o cumprimento de uma condição formal e de duas condições semânticas quanto a sua verdade ou a sua falsidade objetivas. O requisito formal (possibilidade lógica) é dado pelos princípios de identidade e de contradição; contudo - pelo fato de o primeiro princípio estar compreendido dentro do segundo -, pode-se afirmar que a única condição formal quanto à possibilidade dos conceitos e juízos é o princípio de contradição. A primeira condição semântica (realidade objetiva) é a de que todos os conceitos não lógicos dados em uma proposição sintética necessitam de referências e de significados objetivos (cf. KrV, AA 03: 204.25-205.03).27 Fica pressuposto nesse requisito que a possibilidade das proposições está condicionada pelos conceitos nelas presentes, assim como que o significado objetivo do conceito é decorrente da sua referência a um objeto possível correspondente e disponível no domínio de objetos empíricos ou de objetos matemáticos. Em outros termos, um conceito tem significado objetivo apenas se tiver referência objetiva. A segunda exigência semântica (efetividade) é a de que seja dada às proposições sintéticas uma interpretação objetiva ou sensível de sua forma lógica. Essa associação pode ser realizada por exemplos ou construções a priori ou a posteriori. As construções a posteriori são experimentos e as construções a priori são produtos da imaginação transcendental, também chamados de esquemas a priori, os quais podem ser tanto "constitutivos" ou meramente "regulativos". Casos de aplicação dessa solução do problema da filosofia transcendental na primeira Kritik são, por exemplo, a resolução das antinomias e dos juízos categóricos teóricos a priori.
Em suma, a prova do teorema de solubilidade exigiu de Kant, além da resposta ao problema da possibilidade de proposições sintéticas em geral (a priori ou a posteriori), uma teoria a priori da referência e da verdade. A teoria semântica kantiana funda-se no conceito de construção. A teoria da verdade, por sua vez, apoia-se na doutrina dos princípios a priori do entendimento. Ambas as teorias constituem conjuntamente uma teoria da estrutura dos domínios de entidades sensíveis (puras ou empíricas), nos quais os juízos sintéticos podem ser satisfeitos ou preenchidos. Neste contexto, a filosofia especulativa de Kant, formada pela crítica e pela metafísica da natureza, pode ser interpretada, seguindo a leitura lopariciana, como uma teoria da solubilidade de problemas inevitáveis da razão especulativa e uma teoria da pesquisa científica no campo da natureza.28 A reconstrução kantiana da razão humana enquanto um dispositivo para a solução de problemas, inicialmente aplicada somente à filosofia especulativa, foi estendida posteriormente por Kant à filosofia prática e aos juízos estéticos.
5. Considerações finais
Neste artigo, pretendi explicitar o papel da lógica formal na formulação do projeto crítico, bem como indicar que ela não deve ser considerada subordinada ou superada pela lógica transcendental. Assumi a tese, defendida expressa e repetidamente por Kant, conforme o relato de Jäsche, de que a lógica formal no interior do projeto crítico deve ser considerada "enquanto uma ciência separada, independente e fundamentada em si mesma" (Log, AA 09: 006. 29-31). Segundo Kant, tal feito foi alcançado pela lógica formal desde o seu surgimento com Aristóteles. As modificações feitas até Kant, em especial pelos lógicos modernos, nada teria acrescentado quanto à fundamentação da lógica formal. Ela, para Kant, nascera enquanto uma ciência "acabada e perfeita" (KrV, AA 03: 007.15-22). Em conformidade com essas afirmações, seguindo Jäsche, não há que se esperar em Kant quer uma fundamentação dos princípios de identidade ou de contradição por um princípio mais elevado, quer uma dedução da forma lógica dos juízos (cf. Log, AA 09: 006. 31-37). O filósofo de Königsberg reconhecera e tratara o princípio de contradição como uma proposição que tem sua evidência em si mesma e que não necessita, portanto, da sua dedução com base em um princípio superior. Ainda conforme Jäsche, a filosofia kantiana sabe distinguir entre o ponto de vista transcendental e o meramente lógico, de modo a, por um lado, não procurar o fundamento último do conhecimento real-filosófico no interior do campo da mera lógica e, por outro lado, não extrair um objeto real de uma proposição da lógica (cf. Log, AA 09: 008.32-37).
Entre a lógica geral - enquanto uma ciência meramente formal - e a filosofia transcendental - enquanto ciência racional material pura -, há uma diferença grande. Todavia, na resolução de problemas de ordem especulativa, tanto uma quanto a outra devem ser consideradas. A lógica transcendental complementa a lógica formal. Ambas são requeridas na determinação do conhecimento. Conforme Kant, "para cada conceito, exige-se primeiro a forma lógica de um conceito (do pensamento) em geral, e, em segundo lugar, a possibilidade de lhe dar um objeto a que se refira" (cf. KrV, AA 03: 204.15-20). Os critérios de verdade (princípio de identidade, o princípio de contradição, princípio de razão suficiente, o princípio do terceiro excluído) atestam a possibilidade, a realidade e a necessidade lógica dos conceitos e dos juízos; contudo, somente enquanto critérios negativos da verdade, posto que um "conhecimento" pode concordar com as leis lógicas mas estar em contradição com o objeto. Nesse sentido, requer-se também que todos os conceitos não lógicos, dados em uma proposição sintética, tenham referência e significado objetivos, assim como que sejam dadas às proposições sintéticas uma interpretação objetiva ou sensível de sua forma lógica. Esses requisitos semânticos conferem, respectivamente, realidade objetiva e efetividade aos juízos sintéticos a priori em geral. Com essa conjunção de critérios formais e semânticos, Kant espera afastar a metafísica do dogmatismo e colocá-la no caminho real das ciências seguras e confiáveis.
Referências
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1 Possui pós-doutorado em Filosofia pela Humboldt-Universität zu Berlin (bolsa da Fundação Alexander von Humboldt) e pela Unicamp (bolsa Fapesp). Fez doutorado (bolsa Fapesp) e mestrado (bolsas Fapesp e Cnpq) em Filosofia pela Unicamp e graduação em Filosofia pela Unioeste (bolsa Pibic/Cnpq). Realizou estágio de doutorado sandwich na Humboldt-Universität zu Berlin entre 2007 e 2009 (bolsa Daad). É membro colaborador da Sociedade Kant Brasileira (seção Campinas), membro do grupo de pesquisa "Criticismo e semântica" (Unicamp). Atua na área de Filosofia Moderna, com ênfase em epistemologia, filosofia jurídica e filosofia política, e se interessa por temas relacionados a filosofia kantiana.
2 Segundo a tabela de Arnoldt/Schöndörfferscher (Kant, 2017, Kap.Nr. 4524), somente outras três disciplinas tiveram tamanha regularidade: metafísica, geografia física e moral.
3 De acordo com Meier (1752b, p. 1), o seu compêndio de lógica é um extrato da sua obra maior Vernunftlehre (1752a). O objetivo desse compêndio era servir de material didático para aulas e tratava essencialmente de temas ligados à lógica; no entanto, eram também abordados, marginalmente, sem nenhuma grande sistematização, elementos da metafísica, retórica, teoria do conhecimento, psicologia, estética e antropologia.
4 Os dois grandes nomes na lógica moderna, segundo Kant, foram Wolff e Leibniz e, entre eles, a melhor lógica geral era a de Wolff (cf. Log, AA 09: 021.05-06). A lógica wolffiana foi compilada por seu discípulo Baumgarten e comentada pelo aluno deste, Meier. Esses autores, incluindo Kant, foram fortemente influenciados pela lógica aristotélica.
5 Há 26 manuscritos das lições de lógica de Kant catalogados, sendo que 14 são considerados desaparecidos (Kant, 2017, Kap.Nr. 4526). Os manuscritos com cópias físicas e/ou digitais em bibliotecas são Logik 'anonymus-Blomberg', Logik 'anonymus-Pölitz 3', Logik 'anonymus-Warschau', Logik 'anonymus-Wien', Logik 'Bauch', Logik 'Busolt', Logik 'Dohna-Wundlacken', Logik 'Hechsel', Logik 'Herder', Logik 'Mrongovius', Logik 'Philippi' e Logik 'Volckmann'. A maioria desses 12 manuscritos foi publicada no volume 24 da edição da Academia.
6 Sobre o uso dos manuscritos das lições na interpretação do pensamento de Kant, confira o livro Kant's Lectures/Kants Vorlesungen (Dörflinger, La Rocca, Louden & Marques, 2015).
7 Essa divisão em doutrina geral dos elementos e doutrina geral do método está presente, praticamente, em todas as obras kantianas que se ocupam de uma ciência ou de sua propedêutica (ainda que esta seja entendida enquanto crítica de uma ciência) e que possuem princípios a priori, como é o caso da Kritik der reinen Vernunft, da Kritik der praktischen Vernunft, da Kritik der Urteilskraft, da Metaphysik der Sitten e da Logik. Tal divisão, todavia, não é nenhuma novidade. Ela já havia sido estabelecida em 1662 por Arnauld e Nicole na obra La logique, ou l'art de penser.
8 O que não implica, conforme Vásquez Lobeiras (1998, p. 6), interpretar Kant enquanto um lógico ou um "técnico" da lógica formal - tal como Aristóteles, Leibniz e Frege; todavia, enquanto filósofo da lógica, isto é, enquanto alguém que se pergunta quanto às definições, às fundamentações e à tarefa da lógica enquanto ciência. Posição similar pode ser encontrada em Deaño (1980, pp. 46-61) e Michael Wolff (1995, pp. 19-31).
9 O conceito "regra", para Kant, consiste numa sentença em que se afirma que certa determinação de algo está relacionada com um determinado fundamento (razão). A fórmula dessa regra era se (...) então (...), isto é, por causa desta e daquela razão, a coisa tem esta e aquela determinação. Tanto em Reflexionen (Refl. 5741) quanto em Kritik der reinen Vernunft (cf. KrV, AA 04: 085. 22-24), a regra é determinada enquanto aquela que exprime uma representação de uma regularidade e que é formulada em termos de fundamento-consequência-relação. Esse emprego do conceito de "regra" é idêntico ao utilizado por Christian Wolff (1728, § 475) e Baumgarten (Metaphysik, § 83). Vale advertir que essa determinação de regra, do século XVIII, é diferente da atualmente dominante, que, diga-se de passagem, tem forte influência wittgensteiniana, na qual as regras são válidas enquanto convenções.
10 Uma definição geral da lógica, tendo em vista as características supracitadas, é apresentada por Kant da seguinte forma: "a lógica é uma ciência da razão racional não segundo a mera forma, mas conforme a matéria; uma ciência a priori das leis necessárias do pensamento, não, porém, relativamente a objetos particulares, mas a todos os objetos em geral; portanto, uma ciência do uso correto do intelecto e da razão em geral, não, porém, subjetivamente, isto é, segundo princípios empíricos (psicológicos), sobre como o intelecto pensa, mas, objetivamente, isto é, segundo princípios a priori, sobre como ele deve pensar" (Log, AA 09: 016.04-12). Ainda segundo Kant, a lógica persegue três finalidades: a) investigar as representações reconhecidas pelo intelecto, isto é, a forma dos conceitos; b) definir as possíveis formas de juízos; e c) pesquisar quais raciocínios (inferências) são válidos. Essas tarefas refletem que a lógica formal está intrinsecamente interligada com o conhecimento discursivo.
11 É da interação entre a sensibilidade e o entendimento que surge o conhecimento, donde, todavia, não se segue que possamos misturá-los. Muito pelo contrário, prossegue Kant, eles devem ser separados (cf. KrV, AA 03: 075. 05-26). Segundo Kant, a sensibilidade e o entendimento são as duas fontes do conhecimento e da interação mútua entre ambas, sem supremacia de uma sobre a outra, surge o conhecimento. Em termos mais específicos, é necessário que seja possível tanto a sensificação dos conceitos (acrescentando-lhes o objeto na intuição) quanto a compreensão das intuições (ao submetê-las aos conceitos); caso contrário, teremos, respectivamente, pensamentos vazios e intuições cegas.
12 A lógica do uso geral contém as regras absolutamente necessárias do pensamento, inclusive para o seu uso. Essas regras são abstraídas de todo o conteúdo dos conceitos, de modo que são válidas para todos os tipos de conceitos, independentemente de suas diferenças (puro ou empírico). A lógica do uso especial do entendimento (lógica aplicada), por sua vez, é entendida enquanto aquela que contém as regras para pensar corretamente sobre determinada espécie de objetos, ocupando-se, para tanto, das regras do uso do entendimento nas condições empíricas subjetivas (cf. KrV, AA 03: 075. 27-34). Os princípios da lógica aplicada advêm da observação do nosso intelecto, por exemplo: como o intelecto é, como pensa e como procedeu até agora ao pensar. Por conseguinte, os seus princípios se fundamentam em elementos empíricos, de caráter psicológico, fornecendo ao intelecto somente regras e leis contingentes, o que é incompatível com a essência da lógica pura, que trata somente de regras necessárias.
13 As representações (consciências) claras podem ser diferenciadas, conforme o filósofo de Königsberg, em distintas e indistintas. As representações distintas são aquelas nas quais estamos conscientes de sua forma e de sua matéria, e as representações indistintas são as que não cumprem com um desses dois critérios (podemos estar consciente de toda a representação, mas não do multíplice nela contido ou vice-versa). Além disso, as representações distintas podem ser de dois tipos. Elas podem ser sensíveis, se temos consciência do multíplice na intuição, ou podem ser intelectuais, se temos consciência do multíplice dado no intelecto (cf. Log, AA 09: 034.08-035.32).
14 Segundo Kant, além dessa diferenciação lógica entre a sensibilidade e o entendimento, a saber, enquanto faculdade das intuições e faculdade dos conceitos, há diferenciação metafísica. Nela, sensibilidade é definida como faculdade da receptividade e o entendimento, enquanto faculdade da espontaneidade (cf. Log, AA 09: 036.02-12).
15 A união de ambas as perfeições, exigidas pela natureza humana e pelo objetivo de popularizar o conhecimento, requer, de acordo com Kant, que algumas regras sejam respeitadas: 1) que a perfeição lógica seja a base de todas as outras; 2) que, ao tratar da perfeição estética, tenha-se em vista a perfeição estética formal (belo), posto que ela é a que melhor se concilia com a perfeição lógica; e 3) que se observe com cautela a perfeição estética material (que inclui o atraente e o emocionante). O conhecimento a ser popularizado deve ser a perfeição de escola, podendo, para tanto, utilizar-se a perfeição estética (cf. Log, AA 09: 037.32-38.14; 047-17-28).
16 O princípio de identidade consiste na identificação do sujeito com o predicado. Pode ser expresso de duas formas: "o que é, é" - válido para sentenças positivas -; "tudo, o que não é, não é" - válido para sentenças negativas (cf. PND, AA 01: 389. 03-06).
17 O princípio de contradição pode ser expresso da seguinte maneira: "é impossível que algo seja e não seja ao mesmo tempo" (cf. PND, AA 01: 391. 01-03). Segundo Jäsche, Kant restringiu o uso desse princípio somente ao campo da lógica, afastando-o principalmente da metafísica (cf. Log, AA 09: 007.02-06).
18 O princípio de razão suficiente determina o nexo entre os fundamentos e os consequentes. Duas regras devem aqui ser observadas: a) "da verdade do consequente, pode-se inferir a verdade do conhecimento tomado como fundamento, mas apenas negativamente" (Log, AA 09: 052.03-04); b) "se todos os consequentes de um conhecimento são verdadeiros, então o próprio conhecimento é verdadeiro" (Log, AA 09: 052.11-12). Essas regras (modo de inferir) são também conhecidas, respectivamente, de modus tollens e de modus ponens. O último modo de inferir é um critério positivo e direto da verdade, e o primeiro é um critério negativo e indiretamente suficiente da verdade formal.
19 O princípio do terceiro excluído reside na observação de que dois juízos contraditórios não podem ser ambos verdadeiros, porém, não podem também ser ambos falsos. De forma que, se um é verdadeiro, o outro é falso, e o mesmo é válido inversamente, dado que não há uma terceira possibilidade (cf. Log, AA 09: 117.04-07).
20 Uma prova da relevância das proposições sintéticas, segundo Kant, pode ser encontrada na "álgebra universal". Conforme carta de Kant a J. Schultz em 25 de novembro de 1788, a "álgebra universal", formada por proposições sintéticas, é qualificada como maior exemplo de ciência ampliativa (cf. Br, AA 10: 555. 10-19).
21 "É pois o caso de dizer, seguindo uma expressão corrente, que a ausência de resposta é também uma resposta, a saber, que é inteiramente nula e vazia uma pergunta acerca da qualidade de essa qualquer coisa que não pode ser pensada por nenhum predicado determinado, pois se encontra posta fora da esfera dos objetos que nos podem ser dados" (KrV, AA 03: 331 Fn).
22 Dentro da interpretação semântica de Loparic, um conceito possível é entendido enquanto "uma representação formal-discursiva de uma condição universal ou propriedade de uma classe construtiva kantiana, associada a uma regra para engendrar, a partir de membros dados, os membros remanescentes dessa classe". Esse conceito terá significado objetivo apenas se estiver "relacionado a representações intuitivas de objetos enquanto condição universal de uma regra para a produção (constituição ou busca) dessas representações" (Loparic, 2005, 177).
23 O procedimento adotado pelos matemáticos gregos consistia, em primeiro, na construção de figuras e magnitudes na intuição pura e, em segundo lugar, na aplicação desses conceitos no campo dos objetos empíricos.
24 Kant desenvolveu uma teoria construtivista de conceitos, na qual estes representam somente propriedades que podem ser exemplificadas, seja na experiência possível, seja através de construções arbitrárias.
25 O significado e a validade objetivos das categorias dependem de regras de aplicação das categorias à sensibilidade (cf. KrV, AA 04: 159.02-08).
26 É oportuno salientar que Kant utiliza-se de uma teoria dos juízos - e não de uma teoria das faculdades mentais - para edificar o programa de uma razão crítica, bem como para fundamentar a possibilidade da metafísica, da matemática pura e da física newtoniana.
27 A possibilidade lógica de um conceito, a possibilidade real de um objeto e a realidade objetiva do conceito são elementos distintos da teoria de solubilidade dos problemas metafísicos. A possibilidade lógica de um conceito é deduzida do fato de não ser contraditório (critério formal). A possibilidade real do objeto expressa que o objeto pode ser real ou realizado na intuição sensível (critério material). Já a realidade objetiva, denota a relação enquanto tal entre o conceito e o objeto (associação do critério formal com o material).
28 Seguindo Loparic, Kant propôs, no texto Metaphysische Anfangsgründe der Naturwissenschaft, baseado, em particular, no teorema de solubilidade ou tese de decidibilidade, a substituição da metafísica tradicional da natureza por novos princípios metafísicos da ciência da natureza (cf. Loparic, 2007, 108).