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Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva

versão impressa ISSN 1517-5545

Rev. bras. ter. comport. cogn. vol.3 no.1 São Paulo abr. 2001

 

ARTIGOS

 

Questões referentes à causalidade e eventos privados no Behaviorismo Radical1

 

Questions referent to causality and private events in Radical Behaviorism

 

 

Maura Alves Nunes GongoraI,2; José Antônio Damásio AbibII

IUniversidade Estadual de Londrina, PR
IIUniversidade Federal de São Carlos

 

 


RESUMO

Examina-se uma questão ainda freqüente entre behavioristas radicais e psicoterapeutas: afinal, eventos privados são ou não são causas de comportamento? Investigam-se neste artigo dois temas do behaviorismo radical com o propósito de sondar essa questão. Examina-se, em primeiro lugar, o conceito de mente no behaviorismo radical, inscrevendo-a, em parte, no domínio de eventos públicos. Em segundo lugar, examina-se o acesso a eventos privados e a aquisição de autocorúiecimento com base em práticas sociais públicas. A partir da análise desses dois temas, da natureza comum entre eventos públicos e privados e com base em um paradigma relacional, defende-se uma interpretação contextualista do behaviorismo radical. Sugere-se que o contextualismo se afasta do estilo dualista e mecanicista de pensamento. Sendo assim, não faz sentido perguntar se eventos privados são ou não são causas de comportamento; com efeito, trata-se de formular perguntas cujas respostas descrevam as relações possíveis entre eventos de domínio público e privado.

Palavras-chave: Eventos privados; causas; behaviorismo radical; contextualismo.


ABSTRACT

It is examined a still frequent question among radical behaviorists and psychotherapists: after all, are or not private events causes of behavior? Two themes from radical behaviorism are investigated in this paper with the purpose of searching out this question. It is examined, in the first place, the concept of mind in radical behaviorism, including it, partially, in the realm of public events. Second, it is examined the access to private events and the self-knowledge acquisition based on public social practices. From the analysis of these two themes, the common characteristics of public and private events, and based on a relational paradigm, it is defended a contextualist interpretation of radical behaviorism. It is suggested that the contextualism differs from the dualistic and mecanistic styles of thought. Therefore, there is no sense in asking whether private events are causes of behavior or not; in fact, it is a matter of formulating questions, whose answers will describe possible relations between public and private events.

Keywords: Private events; causes; radical behaviorism; contextualism.


 

 

O tema da privacidade ou subjetividade no behaviorismo radical tem sido objeto de questionamentos, particularmente na área de Psicologia Clínica. Uma das indagações mais freqüentes refere-se ao estatuto causal dos eventos privados. Em geral, procura-se esclarecer se, afinal, eventos privados são ou não são causas de comportamento.

Este texto examina essa questão a partir de dois temas: o primeiro refere-se às explicações ambientais do comportamento que resgatam e inserem no domínio público os fenômenos mentais que, no mentalismo, são considerados internos; o segundo refere-se aos eventos privados, os quais são examinados com ênfase no modo de acessá-los. Com base nesse exame, e em algumas características da visão behaviorista radical de ciência, sugerem-se que perguntas do tipo "eventos privados são ou não são causas" pressupõem uma visão mecanicista e dualista de Psicologia, incompatível com a visão pragmática ou contextualista do behaviorismo radical.

Antes de tratar dos temas deste ensaio, é necessário esclarecer que no behaviorismo radical, termos como causalidade, causa ou causação referem-se apenas às relações funcionais entre eventos, um sentido completamente diferente do tradicional modelo de causa-efeíto, amplamente refutado por Skinner (1953/1998, 1974).

É importante esclarecer, ainda, que no seu exame de eventos privados, Skinner (1974) discute, principalmente, o mentalismo (especialmente o cognitivismo e a Psicanálise) e o behaviorismo metodológico. Ao aderir ao operacionismo, o behaviorismo metodológico adotou o critério da concordância entre observadores para definir a objetividade e o valor de verdade dos enunciados científicos. Como os eventos privados não atendem a esses critérios, foram negligenciados pelo behaviorismo metodológico. No behaviorismo radical, porém, não foram considerados subjetivos, ao contrário, considera-se que eventos privados existem em relação com eventos públicos. Têm, portanto, o mesmo estatuto ontológico dos eventos públicos, motivo pelo qual não foram descartados. O único problema com eles resume-se na dificuldade em acessá-los (Skinner, 1974), uma questão de ordem epistemológica e não ontológica.

O mentalismo, por outro lado, tem implicações para a compreensão das concepções skinnerianas sobre eventos privados, motivo pelo qual será aqui abordado, na medida necessária ao exame dos temas deste ensaio.

 

Mentalismo e Behaviorismo Radical

Skinner (1945/1984, 1974, 1989a) procura demonstrar que a mente não pode explicar, apropriadamente, o comportamento. Por isso, costuma-se dizer que o behaviorismo radical nega ou refuta a mente. E preciso esclarecer, entretanto, que a mente por ele refutada é a mente imaterial, que atua como um agente criador ou propulsor e que evoca comportamentos. Uma mente que permanece na penumbra e que não é publicamente observável. E mais, não é acessível à intervenção. Em outras palavras, ele refuta a mente tal como concebida pelo mentalismo, uma das filosofias da mente. Skinner (1989ª) considera que "o que é a mente e o que ela faz são coisas ainda longe de ser esclarecidas" (p.22). Ele busca, então, outro caminho que permita um avanço na compreensão da mente.

Skinner (1989ª) sugere que "Para se compreender o que significa mente, é preciso primeiro considerar percepção, idéia, sentimento, intenção e muitas outras coisas ..." (p.22). Ele entende que o caminho é "verificar como a palavra [mente] é usada e o que as pessoas parecem dizer quando a empregam" (p.23). Em resumo, ele entende que o caminho para compreender a mente é analisar os usos que as pessoas fazem tanto da palavra mente, quanto de outros termos com os quais se referem a fenômenos mentais.

Quanto à mente, um primeiro uso refere-se a ela como se fosse "um lugar ou um espaço" no qual os fenômenos mentais se localizam e os processos mentais acontecem, por exemplo, quando alguém diz que algo está na sua mente. Supõe-se que o espaço mental e com ele os processos mentais ocorram no interior de cada pessoa, sendo, em parte, observados introspectivamente (por exemplo, sentimentos e idéias) e, em parte, inferidos (processos cognitivos de transformação da informação, mecanismos psíquicos inconscientes). Outro uso, refere-se à uma "disposição para agir", por exemplo, ao se dizer: "eu tinha em mente falar com você."

Um terceiro uso refere-se à mente como executora, semelhante a "um órgão" ou uma pessoa, por exemplo, quando as pessoas dizem fazer coisas com a mente. Diz-se "use sua mente" quase como um sinônimo de "use sua cabeça ou cérebro". Para o enfoque cognitivo, ela é executora dos processos cognitivos: ela percebe, organiza e processa a informação. Para o enfoque psicanalítico, a mente faz aquilo que a personalidade ou o aparelho psíquico fazem.

Analisando, ainda, os usos de termos mentalistas, Skinner (1974) insiste no fato das abordagens cognitivas e psicanalíticas promoverem uma "interiorização" de processos comportamentais que ocorrem em um mundo externo, deslocando-os para um mundo interno. Eventos cognitivos como intenção, pensamento, expectativa, por exemplo, se analisados comportamentalmente, sem interiorizá-los, podem indicar relações comportamentais nas quais determinadas contingências operantes, públicas, atuaram e aumentaram a probabilidade de certas formas de ação.

A abordagem psicanalítica, por sua vez, promove a interiorização ao preconizar um "id" com seus impulsos que parecem descrever a força de reforçadores biológicos, selecionados em contingências ambientais de sobrevivência, enquanto o funcionamento do "superego", um agente censurador, parece descrever processos semelhantes aos que ocorrem nas contingências sociais punitivas.

Em uma longa análise, Skinner (1974, 1989a) procura descrever como todos os usos que se referem à "mente", seja na sua forma mais intelectual (cognitiva), seja na sua forma mais motivacional ou emocional (psique), podem ser atribuídos à "pessoa", pela simples substituição da primeira palavra pela segunda. Assim, tudo o que a mente faz poderia ser substituído pelo que a pessoa faz, e o que a pessoa faz é aquilo que um organismo faz após adquirir um repertório comportamental em decorrência de uma história particular de contingências ontogenéticas e culturais. Portanto, sendo o que a pessoa faz, a mente seria, em outras palavras, comportamento.

No entanto, lembra Skinner (1954/1972, 1974, 1977, 1989a), no mentalismo, comportamentos são explicados por inúmeros eventos mentais, entre eles, sentimentos, expectativas, desejos, os quais se situam no interior de cada pessoa e, sendo assim, cada um deveria buscar dentro de si mesmo as explicações para o seu comportamento.

Skinner (1974) inicia sua crítica ao papel causal dos eventos mentais questionando a "sua localização e natureza". Ele levanta duas questões: "Onde estão os sentimentos e os estados mentais? De que eles são feitos?" (p. 10). E a resposta tradicional é a de que estão na mente, um mundo sem dimensões físicas e não observável publicamente. Então, ele formula dois tipos de perguntas: o primeiro tipo é sobre o acesso à mente, questionando o que realmente se vê pela introspecção; o segundo tipo refere-se à natureza não física da mente e suas relações com o mundo físico. Ele pergunta: "como um evento mental pode causar ou ser cansado por um evento físico?" (1974, p. 10). Como a mente poderia, por exemplo, agir sobre o corpo para fazê-lo comportar-se?

Como parte das respostas a essas questões, Skinner (1974) introduz uma de suas teses fundamentais na análise de eventos privados: aquilo que se observa via introspecção não são eventos mentais de natureza não física, mas o próprio corpo do observador, estados ou condições corporais ou, ainda, o corpo se comportando. Trata-se de eventos privados, porque acessíveis apenas à própria pessoa, mas ele enfatiza a natureza corporal (e portanto física) desses eventos, passando a denominá-los como o "mundo sob a pele" (p. 21).

Continuando, ele levanta questões de ordem metodológica. Sendo a mente acessível apenas por introspecção ou inferência, a mesma poderia até permitir a predição de comportamentos mas não o seu controle. Seria possível prever a ocorrência de certos comportamentos que tendem a acompanhar determinados sentimentos e estados da mente, mas, na impossibilidade de intervir diretamente sobre estes e alterá-los (investigando-os como variáveis independentes), não haverá como promover os comportamentos de interesse (possíveis variáveis dependentes). Uma ciência desse tipo serviria apenas para a contemplação e não seria aplicável na solução de problemas humanos, um sério obstáculo para a concepção pragmática de ciência amplamente defendida por Skinner (1953/1998, 1957, 1974). Ele argumenta, ainda, que explicações mental istas não favorecem as pesquisas porque as pessoas entendem que o comportamento já está explicado e param de fazer perguntas. "Explicações mentalistas acalmam a curiosidade e levam ci paralisação dapesqnisa" (1974, p.14). Quando aquilo que uma pessoa faz é atribuído a algo que lhe ocorre no íntimo, cessa a investigação.

Considerando-se que a alternativa behaviorista radical ao mentalismo consiste em compreender a mente analisando-se os usos de termos mentais, procura-se, nas duas próximas seções, descrever dois procedimentos com os quais, segundo Skinner (1945/1984, 1957, 1974), pode-se analisar, um a um, os usos desses termos com base em conceitos comportamentais, O primeiro procedimento consiste em trazer fenômenos mentais para o domínio público. O segundo, em analisar o acesso aos eventos privados e a aquisição de autoconhecimento.

 

Análise comportamental de fenômenos mentais

Skinner (1945/1984, 1974), empenhou-se em compreender a mente conforme seu modelo operante de análise do comportamento, fazendo inúmeras análises ou interpretações de eventos mentais, em termos comportamentais. Uma delas será relatada como ilustração, para demonstrar como o autor traz a análise da mente para o domínio público.

Análise comportamental da vontade - Muitos comportamentos são explicados por um ato de vontade; por exemplo, diz-se que a pessoa agiu de determinada forma porque quis, porque sentiu ou teve vontade. Nesse caso, supõé/se que a vontade produz comportamento. Em uma análise comportamental, uma explicação desse tipo levanta o problema do determinismo. Com efeito, esses atos parecem espontâneos, parece que a vontade surge do nada; e mais, tal explicação sugere que uma vontade - um evento mental sem dimensões físicas - possa produzir conseqüências físicas, o organismo se comportando.

No entendimento de Skinner (1974), se o leigo formula explicações desse tipo, elas devem ter certa utilidade no seu cotidiano. O leigo não precisa levantar as questões teóricas acima. Mas no caso de uma análise científica, Skinner sugere um rastreamento de enunciados leigos e uma busca da compreensão de seus determinantes ambientais. Para exemplificar, enquanto o leigo se contenta com uma explicação do tipo "ele foi candidato novamente devido à sua vontade de poder", o cientista continuaria a perguntar, rastreando o enunciado, "qual a origem da vontade de poder?" No behaviorismo radical a resposta é procurada nas contingências ambientais anteriores à ocorrência da vontade. Sobre a explicação baseada em ato de vontade, Skinner (1974) afirma:

O comportamento é satisfatoriamente explicado na medida em que não tivermos necessidade de explicar o ato de vontade. Mas as condições que determinam a forma de probabilidade de um operante estão na história da pessoa. Uma vez que não estão ostensivamente representadas no ambiente atuai, são faciimente negligenciadas, (p. 53).

No exemplo, tudo indica que a determinação do comportamento atual - candidatar-se para um cargo de poder - situa-se em uma história de contingências operantes na qual comportamentos relativos ao exercício do poder foram reforçados. Ganhos econômicos ou o próprio governar outras pessoas podem ter sido os reforçadores: a explicação está em uma história de condicionamento operante a qual pode ser, em grande parte, observada publicamente.

Por outro lado, na comunicação entre as pessoas comuns, a simples explicação de uma classe de comportamento como um ato de vontade tem sua utilidade nas interações sociais: ela dá pistas para os demais quanto à probabilidade daquela classe de comportamento vir a ocorrer no futuro. Se a pessoa quer ou tem vontade, a probabilidade deve ser alta e poder aferir isto dá certa previsibilidade ao comportamento.

Do ponto de vista científico defendido pelo behaviorismo radical, alguém dizer que tem ou possui "vontade" não implica que guarde dentro de si um evento mental ou algo causador de comportamento, implica apenas a constatação de que o comportamento em questão possui probabilidade alta de ocorrer em certas condições apropriadas. Mas indica ainda mais: que o corpo da pessoa, ao entrar em contato com as contingências operantes anteriores, responsáveis por tornar os seus comportamentos mais prováveis, responde a essas contingências; e a pessoa sente os seus efeitos, percebe de imediato as alterações corporais relacionadas com a probabilidade de se comportar e então diz "ter vontade", provavelmente, sob o controle desses efeitos. Ao dizer que tem vontade a pessoa descreve um fato que ocorre com o seu corpo, e não um fato mental. Entretanto, esse sentimento, um evento privado, não explica a ação, um evento público; sentir ou ter vontade de poder não explica as ações para se chegar ao poder, no caso, candidatar-se. Ambos tiveram origem nas mesmas contingências vigorosas de reforçamento positivo. É neste sentido que Skinner (1953/1998, 1974) situa "o início da ação causal" no ambiente.

Sobre a análise comportamental dos usos de termos que se referem à mente, Skinner (1989a) observa que sentimentos e estados mentais tendem a ser tomados como causas de comportamentos públicos por ocorrerem ou se iniciarem imediatamente antes deles. Mas esse é um modo mecanicista de se interpretar o comportamento. A definição de comportamento operante, sendo funcional (relacional) e histórica, não pressupõe que as causas antecedentes devam ser imediatas. Com o modelo operante, muda-se completamente a direção na qual se buscam as explicações para o comportamento, possibilitando, desse modo, o procedimento acima de rastrear as contingências ambientais públicas, principalmente as passadas.

Ao trazer a análise dos fenômenos mentais para o domínio público, Skinner (1954/1972, 1974, 1977) faz um rearranjo do que ele denominou "seqüência ou cadeia causal". Ele descreve a seqüência causal nas explicações psicanalíticas e cognitivistas desta forma: o primeiro elo, "o ambiente", conta apenas na forma de experiência; ele é internalizado peia pessoa e, enquanto experiência interna, participa na composição do segundo elo: entidades mentais como o aparelho psíquico, um sistema de crenças ou esquemas cognitivos; esses, por sua vez, determinam os comportamentos públicos. Nessa seqüência, embora haja referências ao ambiente, o elo realmente causal não é o primeiro, o ambiente, mas o segundo, a mente, a qual explica o terceiro elo, o comportamento público. Nesse modelo, o interesse centra-se na mente, sendo que o comportamento só é de interesse enquanto sua manifestação ou sintoma. Observe-se que, na seqüência acima, há elementos físicos e não físicos em relação de causalidade.

No behaviorismo radical, a alteração da ordem e do papel de cada elo da cadeia causal fica assim: o ambiente assume o papel iniciador da causalidade; seleciona e gera comportamento; os fenômenos mentais perdem sua condição causal, enquanto os eventos privados se tornam objeto de explicação tanto quanto os comportamentos públicos. Em um exemplo, ao abordar o pensamento, Skinner (1974) afirma: "ele [o pensamento] não explica o comportamento manifesto: é simplesmente mais comportamento a ser explicado" (p. 104). Observa-se, ainda, nessa acepção que os comportamentos públicos também mudam de estatuto na medida em que deixam de ser de interesse por representarem manifestações mentais e passam a ser de interesse por si mesmos. O objeto de estudo da Psicologia deixa de ser a mente para ser o comportamento.

Com a possibilidade de analisar fenômenos mentais com base em fenômenos comportamentais, sob o controle de variáveis ambientais públicas, resta muito menos para ser analisado no domínio privado. O conceito tradicional de mente, entendida como geradora de comportamentos, fica esvaziado. Permanecem, de todo modo, questões importantes em relação a eventos privados, motivo pelo qual esse domínio também precisa ser analisado, e isto é feito, naturalmente, na perspectiva do modelo operante.

 

0 acesso a eventos privados e a natureza do autoconhecimento

Para melhor desenvolver o tema desta seção, o uso dos termos público e privado e de kh terno e externo precisa ser esclarecido. Eventos qualificados como privados são aqueles acessíveis apenas ao próprio sujeito, principalmente aquilo que se observa pela introspecção. Esse é o único meio para se estabelecer contato com os eventos sensoriais, situados dentro do próprio corpo. Os três sistemas nervosos, proprioceptivo, interoceptivo e, parcialmente, o exteroceptivo, medeiam esse contato. Cabe notar que outros eventos, acessíveis pela observação direta, mas disponíveis para um único observador, também são considerados privados, por exemplo, determinados locais ou informações particulares. Eventos públicos, ao contrário, são aqueles passíveis de acesso a mais de uma pessoa. Neste caso, os eventos corporais acessíveis às observações e pesquisas fisiológicas, embora ocorram dentro do corpo, são públicos por serem acessíveis a mais de uma pessoa. Certamente, eventos privados passíveis de observação direta podem vir a se tornar públicos muito mais facilmente que aqueles acessíveis apenas via introspecção. Nas análises skinnerianas dos eventos privados são tratados apenas esses últimos (os introspeccionados), motivo pelo qual Skinner (1974) afirma ter "restaurado" a introspecção.

Mais complicados são os vários usos de interno e externo, os quais podem ser encontrados nas críticas de Skinner (1953/1998, 1954/1972, 1974/1977) às várias versões do mentalismo. Interno pode se referir tanto àquilo que é sentido quando nos referimos a sensações, sentimentos e outros estados corporais diretamente introspeccionados, quanto a eventos mentais hipotéticos, inferidos e, portanto, não introspeccionáveis, tais como personalidade, crenças, entre outros. As vezes, interno pode também ser usado como sinônimo de privado, de subjetivo, ou, ainda, de não observável diretamente. Externo, em geral, refere-se àquilo que "está fora", seja do coipo ou da mente e, ainda, pode ser sinônimo de público, de objetivo, de diretamente observável e de natureza física. Skinner (1974) demonstrou como as teorias mentalistas levaram para o domínio interno quase tudo o que era relevante para explicar o comportamento. O aparelho psíquico parece, diz ele, uma metáfora das contingências ambientais. Essa interiorização dos processos psicológicos resultou em mais um tipo de uso, passou-se a atribuir maior valor a tudo o que é interno e a se depreciar o que é externo. Com tantos usos, os termos interno e externo perderam muita de sua precisão para o emprego científico e têm causado confusões, particularmente na compreensão da análise behaviorista radical dos eventos privados. Comparativamente, os termos público e privado parecem bem mais específicos e precisos.

Aponta-se aqui a adequação do uso de público e privado, não apenas para se garantir precisão de linguagem, mas, principalmente, para se evitar o dualismo implícito nos usos, pelos mentalistas. de interno e externo, uma questão que ainda será retomada nas seções finais. No behaviorismo radical, como afirma Skinner (1974), eventos públicos e privados são da mesma natureza, o que permite que entrem em relação funcional. A única diferença entre ambos, insiste o autor, é a acessibilidade: o fato dos eventos privados serem observáveis diretamente apenas para o próprio sujeito. Mas este é um problema apenas para o cientista que tem de haver-se com a confiabilidade de suas observações. Trata-se, assim, de um problema de ordem epistemológica e não ontológica. Em outras palavras, o problema é de ordem epistemológica porque se refere ao exame das possibilidades de se investigar indiretamente eventos privados; e não é de ordem ontológica porque não se refere a modalidades diferentes de existência, uma externa (objetiva) e outra interna (subjetiva). Concluindo, é um equívoco supor que, no behaviorismo radical, os usos de público e privado sejam equivalentes a interno e externo, ou que se refiram a categorias de eventos ontologicamente dicotômicos.

Para Skinner (1945/1984, 1957, 1974), compreender como se dá o conhecimento do mundo privado é sempre problemático, quer se trate do autoconhecimento ou do conhecimento do mundo privado do outro. O problema está na possibilidade de acessar esses eventos, a qual só pode ser inferencial. Em decorrência, o método experimental, defendido por ele como o mais apropriado para demonstrar relações funcionais na análise do comportamento, mostra-se limitado para demonstrar relações funcionais envolvendo eventos privados. Mas ele insiste na busca da superação desse problema e parece ter indicado um caminho com o desenvolvimento de sua interpretação do comportamento verbal, a qual se fundamenta em sua concepção operante para o comportamento em geral. Com base nessa concepção, Skinner (1945/1984, 1953/1998,1957) descreve alguns procedimentos pelos quais a comunidade verbal contorna, ainda que limitadamente, o problema do acesso aos eventos privados e, também, do autoconhecimento.

Skinner (1953/1998, 1957) entende que, sem a participação de um grupo social que fale uma mesma língua e compartilhe alguma cultura comum, ao qual ele denominou comunidade verbal, não é possível conhecer o mundo privado. Isto porque ele pressupõe que, de início, o mundo privado de cada um, tal como o ambiente, não é diferenciado. Apenas com a participação da comunidade verbal é possível a cada indivíduo aprender, desde criança, a ir fazendo discriminações a respeito de eventos de seu mundo privado. Um de seus relatos ilustra essa posição:

O ambiente, seja público ou privado, parece permanecer indistinto até que o organismo seja forçado a fazer uma distinção (...) o comportamento discriminativo espera pelas contingências que forçam as discriminações (...) e se uma discriminação não pode ser forçada peia comunidade, pode não aparecer nunca. (...) é a comunidade que ensina o indivíduo a "se conhecer". (1953/1998, p. 284).

Em sua interpretação operante dos comportamentos verbais, Skinner (1957) propõe dividi-los de acordo com o tipo de variável que os controla. O resultado são cinco tipos de comportamento: ecóico, textual, intraverbal, mando e tato. O tipo de interesse para explicar o acesso aos eventos privados é o "tato", por isso será o único aqui abordado.

Skinner (1957) denominou tatos àqueles comportamentos verbais que descrevem, ou que estão sob o controle de objetos e acontecimentos do meio físico, por exemplo: "isto é uma flor" ou "está chovendo". A comunidade verbal, em geral, modela tatos estando ambos, falante e ouvinte (o aprendiz), na presença do evento a ser descrito. No exemplo, o aprendiz pode ser solicitado a repetir ou a emitir a "palavra flor" na presença do "objeto flor" e, sempre que o fizer, nessas circunstâncias, será reforçado de maneira generalizada, pela comunidade verbal. Dessa forma, o objeto flor, ou algumas de suas propriedades, passa a controlar a resposta verbal flor; o aprendiz agora compartilha mais um tato com sua comunidade verbal. Essa é a maneira pela qual cada membro de uma comunidade verbal aprende todo o repertório operante discriminativo utilizado para descrever o mundo. Trata-se de um processo de desenvolvimento de controle de estímulos ou de discriminações, o qual é estabelecido conforme as práticas reforçadoras de cada comunidade verbal particular. Quanto maior a quantidade e refinamento dos tatos que uma comunidade ensina, maiores as possibilidades de contato que seus membros poderão estabelecer com o mundo; uma possibilidade que ainda é ampliada por processos de generalização. Além disso, considerando-se que no behaviorismo radical o conhecimento depende da habilidade para descrever, quanto maior o repertório de tatos, maior a possibilidade de se adquirir conhecimento.

Skinner (1945/1984, 1957) supõe, ainda, que o aprendizado dos tatos, os quais descrevem os eventos públicos, é também um caminho para a descrição dos eventos privados. No entanto, para ensinar a descrever eventos privados, a comunidade precisa contornar um problema: a impossibilidade do representante da comunidade (agente reforçador) ter acesso aos estímulos que, finalmente, controlarão a descrição. A possibilidade de acesso é uma condição sob a qual, em geral, se fazem as correções apropriadas quando o processo de modelagem se refere a eventos públicos. Mas no caso de eventos privados, a comunidade precisa ensinar a descrever ou a nomear algo que ela mesma não sabe, com clareza, do que se trata.

De que forma, então, a comunidade verbal poderia arranjar as contingências de reforçamento apropriadas para a modelagem e manutenção de um repertório verbal descritivo de estímulos privados? Como, por exemplo, reforçar apropriadamente uma resposta verbal como "dor de dente", se o agente reforçador não tem contato com os estímulos privados que controlam a resposta privada de sentir dor? O problema só pode ser contornado porque, na verdade, para arranjar as contingências necessárias à modelagem de um repertório de termos subjetivos, os estímulos privados que controlam respostas privadas não precisam estar disponíveis para o contato direto com a comunidade verbal. Isto pode ser constatado nos quatro principais procedimentos abaixo, através dos quais, em geral, a comunidade verbal ensina termos psicológicos (Skinner, 1945/1984, 1957).

Em um primeiro procedimento, para contornar o problema do acesso à privacidade, o agente reforçador se baseia em acompanhantes públicos (estímulos) que ocorrem, com suficiente regularidade, associados àquela condição ou àquele estímulo privado que se deseja descrever. Por exemplo, no caso de alguém sentir uma dor e também apresentar um hematoma, a base para se reforçar, diferencialmente, a resposta verbal "sinto dor" é o seu acompanhante (estímulo público), o hematoma. O reforço social é contingente à presença do hematoma, mas a descrição "sinto dor" fica sob o controle dos estímulos privados.

Em procedimento semelhante, ainda para ensinar descrições de eventos privados, a comunidade se baseia em respostas colaterais públicas, apresentadas regularmente pelo sujeito quando ocorre determinada condição privada. Isto é possível desde que as respostas não sejam condicionadas e nem estejam sob o controle de contingências ambientais. No caso de "sensação de dor", uma resposta colateral pública, incondicionada, poderia ser o gemido, ou ainda, uma expressão facial de dor.

Um terceiro procedimento, bastante comum, é o uso de metáforas: respostas verbais adquiridas e mantidas em conexão com estímulos públicos passam a ser emitidas, por generalização, em relação a eventos privados. A transferência não se baseia na identidade entre os estímulos, mas em alguma propriedade comum a ambos. Por exemplo, nas duas expressões "sinto uma saudade doce" e "sinto uma saudade amarga" a propriedade de alimentos doces ou amargos, identificáveis publicamente, auxiliam na discriminação de sentimentos positivos ou negativos.

Skinner (1945/1984, 1957) refere-se, ainda, a um quarto procedimento de acesso a eventos privados: o autotato. Nesse caso, a comunidade verbal ensina o indivíduo a descrever seu próprio comportamento (público ou privado), bem como seus determinantes. Autotato é o comportamento verbal que descreve comportamentos da própria pessoa. Os comportamentos descritos tornam-se, por sua vez, estímulos discriminativos que controlam a ocorrência dos autotatos. Os procedimentos de ensino da comunidade, nesse caso, geralmente envolvem perguntas sobre o que a pessoa está fazendo. Ao responder, a resposta verbal do falante fíca, em parte, sob o controle de auto-estímulações, um controle diferente daquele dos estímulos públicos acessíveis para ambos, falante e ouvinte. Os autotatos, quando sob fraco controle de eventos públicos (reforço insuficiente, por exemplo) podem assumir uma intensidade sub-vocal e recolher-se para uma condição privada ou encoberta. Entretanto, as respostas verbais encobertas podem facilmente retornar ao nível público sempre que houver condições apropriadas de controle ambiental.

Em todos os procedimentos, é possível a ocorrência de falhas. Todos eles envolvem inferências que o agente da comunidade faz da condição pública para a condição privada. A precisão das inferências, embora admita alguma variação na ocorrência de ambas as condições (conexão intermitente), vai depender do grau de correspondência entre elas. Se a correspondência for fraca ou o estímulo privado for tênue, a modelagem pode falhar. O fato é que, devido à sua forma de aquisição e manutenção, o vocabulário subjetivo ou os termos psicológicos são pouco precisos.

É importante, contudo, verificar que, ao defender esse conceito de autoconhecimento, Skinner (1945/1984, 1953/1998, 1957) supera, de certa forma, os limites da pura introspecção. Em sua concepção, as propriedades dos estímulos privados e das respostas privadas são inferidas de observações de estímulos e respostas públicas, conforme pode-se constatar em todos os procedimentos de acesso a eventos privados acima descritos.

Por outro lado, mesmo que limitadas, as soluções encontradas no behaviorismo radical para o acesso aos eventos privados estão longe das soluções do introspeccionismo e do behaviorismo metodológico. No primeiro caso, supor que, devido à própria intimidade com seu mundo privado, cada indivíduo já seria, naturalmente, o seu grande conhecedor e que não seria complicado para cada um descrevê-lo; e, no segundo caso, reconhecendo as dificuldades epistemológicas, esquivar-se e não abordar o assunto.

O desenvolvimento da descrição de eventos privados, semelhante ao de tatos, ocorre conforme as diferentes práticas de cada comunidade verbal. Como as práticas de cada comunidade variam, também variam o tipo e a quantidade de autoconhecimento possível a cada um de seus membros.

É somente através do crescimento gradual de uma comunidade verbal que o indivíduo se torna "consciente". Ele acaba por se ver apenas como os outros o vêem ou, pelo menos, apenas como os outros insistem que ele se veja. (Skinner, 1957, p. 140).

Pode-se perguntar porque uma comunidade verbal se empenharia tanto em ensinar seus membros a descrever eventos privados, se o autoconhecimento resultante é tão limitado? Skinner (1945/1984) entende que, mesmo limitado, "ser consciente" ou autoconhecer-se é útil tanto para o indivíduo quanto para a comunidade verbal.

É somente porque o comportamento do indivíduo é importante para a sociedade que a sociedade, em decorrência, torna-o importante para o individuo. Alguém só se torna consciente do que faz depois que a sociedade reforçou respostas verbais ao seu próprio comportamento enquanto estímulo discriminativo. (Skinner, 1945/1984, p. 551).

Para a comunidade verbal o autoconhecimento é importante porque ela pode, a partir das descrições de eventos privados, inferir antecedentes do comportamento atual e, ainda, prever a probabilidade de certos comportamentos futuros. Por outro lado, o autoconhecimento, em conexão com o conhecimento do ambiente, pode ser um caminho para o autocontrole, uma vez que facilita, a cada indivíduo, alterar variáveis ambientais que controlam seu próprio comportamento. "Uma pessoa que se * tornou consciente de si mesma' (...) está em melhor posição de prever e controlar sen próprio comportamento" (Skinner, 1974, p. 31). Por isso, embora as descrições de eventos privados, comparativamente às de eventos públicos, apresentem-se pouco precisas, a sua utilidade para ambos, a comunidade verbal e o indivíduo, ainda lhes garante um grau suficiente de precisão.

Outra afirmação de Skinner (1989b) demonstra que sua preocupação com o autoconhecimento vai além das questões referentes ao acesso:

Mas eu discordava da distinção que Watson fazia de objetivo e subjetivo. Não se tratava, penso eu, de uma diferença na natureza, caráter ou qualidade dos dados, ou mesmo de sua acessibilidade. Era uma diferença na maneira peia qual o comportamento verbal poderia ser colocado sob o controle dos eventos internos. O que era sentido ou introspeccionado não era um sentimento ou um pensamento mas um estado do próprio corpo; sendo que a pessoa falaria sobre isso apenas sob certas contingências verbais de reforçamento. (p. 132).

O problema, então, não era exatamente o acesso, conforme o próprio Skinner (1945/1984, 1953/1998, 1957) afirmou muitas vezes, ou não era "apenas" isto. O autoconhecimento não envolve descobrir um modo de buscai' algo que já se encontra lá, em algum ponto inacessível; a comunidade não arranja as contingências verbais apenas para "buscar", mas para "ensinar o que buscar". Em outras palavras, as contingências sociais não ensinam um "jeito" para a pessoa encontrar dentro de si mesma, por exemplo, uma saudade e então passar a falar dela. Nesse caso específico, a comunidade ensina que, sob certas condições, quando se está longe de lugares e de pessoas familiares, determinadas estimulações corporais sentidas devem ser nomeadas ou descritas como saudade. Isto equivale a dizer que, de certo modo, a comunidade constrói o autoconhecimento. Esse parece ser também, o sentido atribuído por Skinner (1945/1984, 1974) às suas afirmações de que toda forma de conhecimento (e aqui se inclui também o conhecimento científico) é um produto social.

Resumindo, Skinner (1945/1984, 1957, 1969, 1974) afirma que toda forma de conhecimento, incluindo-se, portanto, o autoconhecimento, é de natureza social e possível de ser viabilizado somente enquanto comportamento verbal descritivo. Uma parte do autoconhecimento é adquirida como descrição de eventos privados (considerando-se que a outra parte refere-se à descrição de eventos públicos). Em se tratando de comportamento verbal, o autoconhecimento é sempre socialmente mediado ou construído por uma comunidade verbal. E, nessa acepção, a consciência é essencialmente verbal.

 

Sobre o estatuto causal dos eventos privados

Com relação à questão de os eventos privados serem ou não causas de comportamento, são examinados brevemente aqui, aspectos do fisicalismo [Skinner(1953/1998,1974) adotao fisicaíismo tanto em uma concepção epistemológica quanto ontológica, um tema complexo e polêmico, que merece uma análise minuciosa, mas que extrapolaria os objetivos desse texto] e do pragmatismo ou contextualismo que são relevantes para compreender o behaviorismo radical em seu distanciamento com respeito ao dualismo e ao mecanicismo.

Uma das principais questões levantadas por Skinner (1974) em relação ao mentaíismo refere-se à natureza não física dos eventos mentais, o que os impossibilitaria, logicamente, de causar comportamento, ou de levar um organismo a se comportar. O behaviorismo radical pressupõe que comportar-se implica, necessariamente, um organismo físico interagindo com estímulos ou ambientes físicos. Isto deve caracterizar qualquer tipo de relação comportamental e inclui, naturalmente, as que envolvem eventos privados. "Uma ciência do comportamento deve considerar o lugar dos estímulos privados como coisas físicas e, ao fazê-lo, proporciona uma descrição alternativa da vida mentar (Skinner, 1974, p. 211). Em decorrência de sua concepção fisicalista, para dar conta de uma explicação alternativa da vida mental que abordasse eventos privados, ele passa a dedicar especial atenção ao papel do corpo na Análise do Comportamento. Em suas próprias o corpo e à análise do comportamento ao qual o corpo dá origem" (1989a, p. 25).

Os estímulos privados, entendidos como condições corporais, não estão impedidos, ao menos logicamente, de entrar no controle do comportamento. No modelo operante, eles o fazem, entretanto, apenas como elos de cadeias comportamentais.

Contextualismo. Comportamento e Conhecimento - Contextualismo é outro nome para pragmatismo (Pepper, 1942/1970; Morris, 1988) e, segundo Morris, constitui um dos mais importantes temas na epistemologia do behaviorismo radical. Diz-se que o projeto skinneriano de ciência é pragmático porque, além da predição, visa também, entre outras coisas, o controle do comportamento. Controlar, nesse caso, refere-se apenas à possibilidade de intervir de maneira a alterar a ocorrência do comportamento. Em uma visão pragmática da Análise do Comportamento, entende-se que de nada adiantaria, por exemplo, prever a ocorrência de comportamentos perigosos ou daqueles de interesse social, se não fosse possível nem evitar os primeiros e nem promover os últimos. Mas isso seria possível adotando-se o modelo funcional de análise, através do qual o comportamento, considerado variável dependente, poderia ser modificado como resultado de certas manipulações nas variáveis independentes. Entretanto, só é possível a manipulação de variáveis se for viável o acesso direto a elas. Para a intervenção comportamental, as variáveis mais acessíveis são as ambientais, de domínio público. Foi, portanto, a necessidade de "intervir" que levou o behaviorismo radical a, sistematicamente, rastrear as explicações para o comportamento, até alcançar as variáveis ambientais públicas; ou as "causas iniciais" do comportamento (Skinner, 1974, 1990).

A noção de "causas iniciais" é, reconhecidamente, problemática no contextualismo, uma vez que este sugere relações não lineares entre eventos. Contudo, essa noção ainda parece útil ao behaviorismo radical e aos objetivos deste texto: permite destacai- o quanto se procua, nesse modelo, trazer a análise do comportamento para o domínio público.

Continuando, conforme já abordado anteriormente, o pragmatismo skinneriano admite que as predições derivadas de estímulos privados, podem ser suficientemente úteis para o leigo. Entretanto, o conhecimento do mundo privado do outro não permite ao cientista, além de prever, intervir no sentido de alterar o seu (do outro) comportamento. Essa é a razão pela qual Skinner (1977) defende que o cientista não se limite às explicações do leigo, como fazem os mentalistas, mas procure, na cadeia causal, as variáveis ambientais acessíveis e relevantes à intervenção. E preciso admitir, porém, que ao fazer predições, os mentalistas apontam relações entre eventos e esse já é um modo de se fazer ciência; apenas não é o modo do pragmatista. Para esse, explicações devem permitir ou facilitar alguma fornia de alteração ou controle do comportamento.

Outra face do pragmatismo refere-se à sua incompatibilidade com o realismo. Apesar de defender uma metodologia científica rigorosa e procurar por dados precisos, a meta do behaviorista radical não é aproximar-se da verdade em seu sentido absoluto; mas é, tão somente, ser mais eficaz na verificação de regularidades entre os eventos que favoreçam o controle do comportamento:

O conhecimento científico é comportamento verba!, (,..). É um corpo de regras para a ação eficaz, e há um sentido especial em que poderia ser "verdadeiro" se produzir a ação mais eficaz possível. Mas as regras nunca são as contingências que descrevem; permanecem sendo descrições e sofrem as limitações inerentes ao comportamento verbal. (...) uma proposição é "verdadeira" na medida em que ajuda o ouvinte a responder efetivamente â situação que descreve. (Skinner, 1974, p. 235)

A citação acima remete, ainda, a outro desdobramento importante do pragmatismo: "a natureza verbal e contextual do conhecimento". Embora trate do conhecimento científico, ela se aplica também ao conhecimento em geral. Primeiro, para o behaviorismo radical, conhecer implica descrever e, sendo assim, o conhecimento é necessariamente mediado por comportamento verbal. Isso inclui todas as formas de coiihecimento, desde o autoconhecimento até o conhecimento do mundo público, popular ou científico.

Para a compreensão apropriada da natureza contextuai do conhecimento seria interessante conhecer a concepção de Skinner (1957) relativa ao comportamento verbal descritivo (tato) e sua crítica à teoria da referência. Em Abib (1994) encontra-se uma ampla elucidação dessa crítica skinneriana. Para nossos objetivos, entretanto, parece suficiente retomar a noção já referida com o exemplo sobre a discriminação de "saudade". Nele, procura-se demonstrar que a comunidade verbal ensina não somente a discriminação de estímulos, mas também o que discriminar e, neste sentido, o conhecimento é por ela construído e limitado.

As práticas de cada comunidade verbal modelam o conhecimento que se mostra útil aos seus membros e não os "mais verdadeiros". No caso específico do conhecimento científico, a comunidade verbal científica ensina regras para a ação eficaz. Ao considerar, então, que todo conhecimento, incluindo-se o autoconhecimento, é produto de práticas sociais de uma mesma comunidade verbal - sendo, portanto, construído nessas comunidades - torna-se dispensável o jogo de linguagem envolvendo os termos externai ismo e internalismo. Ou seja, no contextualismo pode-se pensar que todo conhecimento tem origem na comunidade verbal, e origem pública, porque é modelado por práticas públicas dessa comunidade. Além disso, do ponto de vista contextualista, supõe-se que sendo construído, todo conhecimento (descrições do mundo) implica em algum grau de observação indireta ou inferência, apenas com a diferença de que no conhecimento do mundo público, o grau de observação indireta (inferência) é menor do que no autoconhecimento. Dessa perspectiva, a concepção contextualista tende a esvaziar as dicotomias, seja entre conhecimento objetivo ou subjetivo, seja entre mundo interno ou mundo externo. O que se verifica no pragmatismo ou contextualismo é um rompimento com qualquer forma de dualismo.

Causalidade. Mecanicismo e Modelo Relacional de Análise do Comportamento - No mentalismo há dois mundos diferentes se relacionando, de modo linear, sempre na direção do interno para o externo. Eventos internos causais ocorrem imediatamente antes dos comportamentos explicados. Esse é um modo dualista e mecanicista de se compreender a ciência. O behaviorismo radical não pressupõe dois mundos diferentes em sua natureza:

Não temos necessidade de supor que os eventos que ocorrem sob a pele de um organismo tenham, por essa razão, propriedades especiais. Pode-se distinguir um evento privado por sua acessibilidade limitada mas não, peio que sabemos, por qualquer estrutura ou natureza especiais. (Skinner, 1953/1998, p. 281).

No behaviorismo radical, atribui-se aos eventos privados a mesma natureza dos eventos públicos. Constituídos por conjuntos de estímulos e respostas não estão impedidos de, logicamente, apresentar relações funcionais, tanto entre si quanto em conexão com os eventos públicos, e cuja particularidade está, unicamente, em não serem públicos como os demais estímulos e respostas. Mas, como já foi visto anteriormente, esta é uma questão epistemológica e, portanto, não se refere à natureza dos eventos.

O behaviorismo radical, ao propor o conceito de comportamento operante, calcado no modelo de tríplice contingência, rompeu também com as relações estímulo-resposta próprias do mecanicismo. Trata-se de modelo de "interação" entre a pessoa e o mundo. Nas relações operantes o condicionamento se inicia com a ocorrência da resposta e depois do estímulo reforçador, sendo o último produzido pela primeira. Estímulos discriminativos, embora antecedam as respostas, só adquirem propriedades controladoras (discriminativas), na dependência de uma história particular de reforçamento (antes dessa história, sequer podem ser chamados de estímulos, menos ainda de estímulos discriminativos, porque, segundo Sldnner (1953/1998), o que existe, no princípio, é um universo indiferenciado). Portanto, suas funções são mutáveis e dinâmicas e, além disso, não são eliciadores de respostas, controlam apenas a probabilidade delas ocorrerem. Entre as contingências iniciais, passadas, geradoras de uma discriminação e a ocorrência de uma resposta discrkninativa atual (sob controle de um estímulo discriminativo presente), o intervalo temporal pode variar de horas a décadas. Nas contingências operantes, embora os arranjos temporais sejam importantes, não implicam relação de contiguidade estímulo-resposta. Nesse sentido, as "causas iniciais" (contingências anteriores) podem ser remotas. Daí a importância, no behaviorismo radical, da história passada. E a origem do comportamento operante pode, ainda, ser mais remota, se considerarmos as bases filogenéticas que possibilitam os processos discriminativos. Uma extensa análise do behaviorismo radical enquanto modelo relacional, em oposição ao mecanicismo, encontra-se em Chiesa (1992) e em Morris (1988).

Ao romper com o dualismo e com o mecanicismo, adotando o modelo funcional de análise, um modelo relacional oposto ao mecanicismo, o behaviorismo radical desvincula-se também de perguntas do tipo "qual é a causa?". Nesse caso, trata-se de perguntar quais relações podem ser estabelecidas entre os eventos privados e os demais. Sobre isso, alguns comentários skinnerianos merecem ser retomados:

Quando dizemos que o comportamento é função do ambiente, o termo "ambiente" presumivelmente significa qualquer evento no universo capaz de afetar o organismo. Mas parte do universo está encerrada dentro da própria pele de cada um. Portanto, algumas variáveis independentes podem se relacionar ao comportamento de maneira singular. (...) com respeito a cada indivíduo (...) uma pequena parte do universo é privada. (Skinner, 1953/1998, p.281).

Esse trecho pode ser lido de dois modos. Primeiro, eventos privados, embora representem uma "pequena" parte do universo, podem funcionar como variáveis independentes e entrar no controle do comportamento. Esta posição parece inconciliável com argumentações de que os eventos privados não explicam o comportamento uma vez que precisam, eles próprios, ser explicados.

E preciso, contudo, atentar para um segundo tipo de argumentação skinneriana; ele afirma, consistentemente, que as causas "iniciais" do comportamento são ambientais (entenda-se ambientais públicas). Ora, se as causas iniciais são variáveis públicas, parece lógico supor que existam outras, "não iniciais" que poderiam não ser públicas - os eventos privados, naturalmente.

Há, ainda, um terceiro argumento: "As partes iniciais do comportamento [referindo-se a comportamento encoberto] afetam as partes seguintes, mas é o comportamento como um todo que é o produto de variação e seleção" (Skinner, 1990, p. 1208). Nesta afirmação encontra-se uma noção sobre a qual ele costuma insistir, a noção de cadeias causais ou comportamentais com a qual é possível compreender os três argumentos em conjunto. De uma perspectiva molar pode-se analisar as cadeias totais, e de uma mais molecular, os elos das cadeias.

Ao fazer uma macroanálise das cadeias de relações comportamentais, Skinner (1974, 1990) procura demonstrar o que ele denomina a origem do comportamento como um todo. Ele busca, então, a origem do comportamento, ou das cadeias comportamentais, no ambiente. Isto é feito, em primeiro lugar, como já destacado, por uma questão pragmática: a necessidade de controle; mas, segundo parece, principalmente devido ao papel do ambiente no modelo de seleção por conseqüências. Neste, é o ambiente que seleciona e gera comportamento. Sobre isso, Skinner (1974) é enfático: deve-se rastrear as variáveis do ambiente de domínio público, não apenas por uma questão de acesso, mas porque é lá que as coisas importantes acontecem. Entre os seres humanos, o repertório mais significativo é modelado pelas práticas sociais que constituem um ambiente público; no ambiente social estão os reforçadores finais que mantêm as cadeias comportamentais.

Cabe lembrar que Skinner (1974, 1990) entende o comportamento como atividade contínua, como um fluxo. Como não há diferença ontológica entre o mundo público e privado, as cadeias se estendem ou transitam de um domínio ao outro, ou seja, "a pele" não impede a ocorrência de relações funcionais, não há dicotomia entre público e privado. Essa visão skinneriana molar, afirma Morris (1988), tem sido muito pouco analisada e reconhecida, devido a equívocos que têm levado a interpretações mecanicistas e moleculares do behaviorismo radical

No nível macro ou molar de análise, portanto, as ocorrências de eventos privados, sejam eles estímulos ou respostas, nada explicam, eles são explicados pelos processos ambientais de variação e seleção. Contudo, numa microanálise, em um modelo relacional, nada impede que estímulos privados possam, sob contingências especiais, assumir função de variável independente e controlar a ocorrência de certas respostas. São essas funções que permitem a noção de "elos": as pequenas unidades funcionais que compõem as cadeias comportamentais. É pertinente esclarecer que variável independente refere-se apenas a relações funcionais mutáveis, não é causa no sentido tradicional. Isso significa dizer que estímulos privados só podem entrar no controle do comportamento em conexão com as variáveis ambientais públicas. Pode-se dizer, até certo ponto, que eles explicam ou que entram na explicação do comportamento, desde que estejam explicados, naturalmente.

 

Considerações finais

Para concluir, dois pontos merecem destaque. O primeiro deles refere-se à constatação de que não só nos procedimentos de rastreamento das variáveis ambientais, mas também nos de acesso a eventos privados e nos de produção de autoconhecimento, o que se encontram são processos de origem pública. No behaviorismo radical, a mente é comportamento e, como tal, tem suas raízes no ambiente de domínio público.

Finalmente, quanto à pergunta do início, "afinal, eventos privados são ou não são causas de comportamento?", espera-se ter demonstrado, ou ao menos sugerido, que eia é dualista e mecanicista; e, sendo assim, é incompatível com a visão contextual e relacional que predomina no behaviorismo radical. Nesta visão é mais apropriado perguntar de que modo eventos privados podem entrar em relação funcional com outros eventos.

 

Referências

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1 Este texto foi elaborado como parte de estudos realizados em programa de pós-doutorado junto à UFSCar. A autora agradece à UFSCar, as condições oferecidas para seus estudos e ao Doutor José Antônio Damásio Abib, pela orientação recebida no desenvolvimento de todo o programa.
2 Endereço para correspondência: Universidade Estadual de Londrina, Departamento: PGAC (CCB), Rodovia Celso Garcia Cid. Londrina, PR, CEP: 86 051 990, Caixa postal: 6001, Fone/fax: (43) 371 42 27. E-mail: maura@uel.br