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Cadernos de Pós-Graduação em Distúrbios do Desenvolvimento

 ISSN 1519-0307 ISSN 1809-4139

Cad. Pós-Grad. Distúrb. Desenvolv. vol.21 no.1 São Paulo jan./jun. 2021

https://doi.org/10.5935/cadernosdisturbios.v21n1p24-38 

O brincar e sua influência no desenvolvimento de crianças com transtorno do espectro autista

 

Playing and its influence on the development of children with autism spectrum disorder

 

El juego y su influencia en el desarrollo en niños con el transtorno del espectro autista

 

 

Alanna Moura e MouraI; Bruna Monyara Lima dos SantosII; Anna Lúcia Sampaio MarchesiniIII

IUniversidade Salvador (Unifacs), Salvador, BA, Brasil. E-mail: am.alannamoura@gmail.com
IIUniversidade Salvador (Unifacs), Salvador, BA, Brasil. E-mail: brunamonyara@gmail.com
IIIUniversidade Salvador (Unifacs), Salvador, BA, Brasil. E-mail: marchesinianna@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo busca proporcionar reflexões acerca dos impactos da brincadeira sobre aspectos do desenvolvimento infantil, especificando a necessidade de intervenções que estimulem a prática do brincar em crianças com transtorno do espectro autista (TEA). Visto que a experiência do brincar perpassa o campo biopsicossocial, faz-se necessário pensar como esse processo atravessa as crianças com TEA diante das peculiaridades de se relacionar com o outro e com o mundo. A revisão teórica foi produzida com base na perspectiva sócio-histórica de Vygotsky, por meio de livros e levantamentos teóricos de publicações entre os anos 2010 e 2020, selecionados em plataformas digitais. Como resultado, entende-se que o estímulo das experiências proporcionadas pelo brincar promove um enriquecimento de estruturas psicológicas, levando à construção de sujeitos cada vez mais autônomos. Tal capacidade não deve ser limitada quando se fala de crianças com TEA, que, por meio de mediação e estímulos adequados, possuem condições de se desenvolver brincando.

Palavras-chave: Brincar. Autismo. Desenvolvimento infantil. Transtorno do espectro autista. Psicologia infantil.


ABSTRACT

This article aims to provide reflections on the impacts of playing on childhood development aspects, specifying the need for interventions that stimulate the playing practice of children with Autism Spectrum Disorder (ASD). Since the experience of playing passes through biopsichosocial field, it is necessary to think how this process affects children with ASD in front of the quirks of relating to others and to the world. The theoretical review was produced based on Vygotsky's social-historic perspective, through books and theoretical surveys of publications between years 2010 and 2020, selected from digital platforms. As a result, it is understood that the incentive of experiences provided by playing promotes an enrichment of psychological structures, leading to the construction of increasingly independents individuals. Such ability cannot be limited when it comes to children with ASD, whose, through appropriated mediation and incentive, have conditions to develop themselves by playing.

Keywords: Play. Autism. Child development. Autistic spectrum disorder. Child psicology.


RESUMEN

Este artículo busca proporcionar reflexiones acerca de los impactos de los juegos sobre aspectos del desarrollo infantil, especificando la necesidad de intervenciones que estimulen la práctica del jugar en niños con el Trastorno del Espectro Autista (TEA). Teniendo en cuenta que la experiencia del jugar atraviesa el campo biopsicosocial, se hace necesario pensar como ese proceso pasa por los niños con TEA frente a las peculiaridades de relacionarse con el otro y con el mundo. La revisión teórica fue producida con base en la perspectiva sociohistórica de Vygotsky, por medio de libros y encuestas teóricas de publicaciones entre los años 2010 y 2020, seleccionadas de plataformas digitales. Como resultado, se entiende que el estímulo de las experiencias proporcionadas por el jugar promueve un enriquecimiento de estructuras psicológicas, llevando a la construcción de sujetos cada vez más autónomos. Tal capacitad no debe ser limitada cuando se habla de niños con TEA, que, por medio de mediación e estímulos adecuados, tienen condiciones de desarrollar jugando.

Palabras clave: Jugar. Autismo. Desarollo infantil. Trastorno del espectro autista. Psicología infantil.


 

 

INTRODUÇÃO

O transtorno do espectro autista (TEA) é classificado como um transtorno do neurodesenvolvimento, que tem como principais características o prejuízo na comunicação social recíproca e na interação social, além da apresentação de padrões restritos e repetitivos de comportamento. A presença desses sintomas se dá no início da infância e limita e/ou prejudica de alguma forma o funcionamento da criança em seu dia a dia (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION [APA], 2014).

Portolese et al. (2017) relatam que o transtorno acomete principalmente meninos, sendo afetados quatro meninos para cada uma menina. Identifica-se também que as crianças comumente têm problemas para dormir e se alimentar, além de medos excessivos e restrita preferência por alguns objetos, cores, texturas ou jogos. Em alguns casos, podem demorar a engatinhar, andar, falar ou apresentar regressão da fala entre 1 e 2,5 anos de idade (VOLKMAR; WIESNER, 2019).

Como apontam Albuquerque e Benitez (2020), o brincar é uma das formas que geralmente as crianças utilizam para suprir algumas necessidades, reproduzir fenômenos de sua realidade e para satisfação em determinadas ações que não podem ser executadas fora desse contexto, configurando a brincadeira como uma atividade significativa no desenvolvimento infantil. Assim, a brincadeira pode ser classificada como uma das protagonistas no desenvolvimento da criança e de suas funções psicológicas, desde capacidades de imitação, atenção, memória e imaginação até a solidificação de habilidades socioemocionais por meio da interação da criança com o outro e com o meio. Sabe-se que a brincadeira é dotada de um grande teor de imaginação, mas é importante salientar que o ato do brincar vai além de situações imaginárias, já que brincadeiras e jogos proporcionam à criança o contato com o estabelecimento de regras, maneiras de se relacionar consigo e com o outro e aspectos que reforçam o desenvolvimento cognitivo.

Nesse sentido, Vygotsky (1991, p. 58) apresenta o conceito de zona de desenvolvimento proximal: "A zona de desenvolvimento proximal define aquelas funções que ainda não amadureceram, mas que estão em processo de maturação, funções que amadurecerão, mas que estão presentemente em estado embrionário".

O que Vygotsky (1991) propõe é que, entre o que a criança já desenvolveu e o que ela poderá desenvolver, existe um espaço onde, por meio de estímulos e mediação, a criança poderá atingir capacidades superiores às já alcançadas. Desse modo, o que a criança consegue fazer com ajuda do outro (mediador) é tão valioso quanto o que ela consegue realizar sem essa mediação, já que, quando resolve um problema com o auxílio de alguma ferramenta, utiliza capacidades superiores e começa a desenvolver elementos mais complexos na estruturação psicológica. Assim, o brincar assume um papel essencial nesse processo, tendo em vista que, por meio das brincadeiras, o sujeito terá acesso a tais fontes de desenvolvimento.

Quando se fala do TEA, é importante atentar ao fato de que algumas crianças apresentam prejuízos em determinadas funções, sejam elas relacionadas à capacidade do entendimento simbólico ou às habilidades de relacionamento com o outro e com o mundo, de modo a acometer significativamente a ludicidade. Dessa forma, nota-se que essas crianças tendem a preferir brincar com objetos, evitando contato com outras pessoas, já que possuem limitações nas habilidades sociais. Além disso, um estudo feito por Saboia (2017), observando filmagens da interação de 23 crianças de 3 meses a 4 anos de idade - entre elas, crianças típicas, crianças com traços autistas, crianças diagnosticadas com autismo e crianças com atraso no desenvolvimento -, aponta que comumente crianças com TEA utilizam os brinquedos realizando estereotipias, de maneira disfuncional e descontextualizada, muitas vezes destituindo-se dos significados e sentidos da brincadeira, de forma a utilizá-los para estimulação sensorial.

Entretanto, esse fenômeno não deve ser determinante, visto que os sujeitos, principalmente as crianças, que são dotados de uma grande plasticidade cerebral estão em constante mudança, podendo realizar novas sinapses, que levarão à construção de novos significados e modificações importantes para o desenvolvimento subjetivo da criança. Dessa forma, faz-se necessário pensar as individualidades de cada uma delas, para que se possa compreender as relações criança-objeto, criança-mundo e criança-outro.

Albuquerque e Benitez (2020) salientam que, enquanto com crianças típicas o processo do brincar se dá de forma natural, a partir da interação com o outro, aprendendo a manipular o objeto com ludicidade, no caso da criança com TEA, esse processo pode ter mais barreiras. Devido aos déficits e dificuldades que o transtorno causa, essas crianças geralmente não envolvem os pares nas brincadeiras, o que pode acarretar prejuízos no desenvolvimento de habilidades sociais, cognitivas e imaginativas, que são essenciais para dar impulso à atividade do brincar. Os fatos mencionados acabam desapontando as expectativas colocadas sobre a criança, tanto pelos pais quanto por familiares e educadores, que, consequentemente, podem se desestimular, passando a ignorar esse âmbito tão importante no desenvolvimento das crianças.

Considerando o exposto, a presente revisão de literatura justifica-se pela importância de abordar o fenômeno do brincar na evolução e desenvolvimento de crianças com TEA, tendo em vista que essa se configura como uma condição neurológica que acomete uma a cada 54 crianças, de acordo com o estudo epidemiológico feito pelo Centers for Disease Control and Prevention (Centro de Doença, Controle e Prevenção) (MAENNER et al., 2020). Entende-se que, devido à quantidade considerável de crianças acometidas pelo transtorno, combinada à falta de conhecimento por grande parte da sociedade acerca do assunto, a busca por estratégias de adaptação que possibilitem melhores condições ao desenvolvimento físico, emocional, psicológico e social dessas crianças ressalta a relevância social do estudo.

Nesse viés, é possível perceber a importância de considerar as individualidades de cada sujeito, incluindo o meio social e os processos biológicos que exercem influência sobre o desenvolvimento infantil, de forma que as estratégias traçadas considerem as limitações e as potencialidades de cada criança.

Portanto, constitui-se como objetivo desta revisão teórica estabelecer relações entre a prática do brincar e os diferentes aspectos do desenvolvimento infantil da criança com TEA, como linguagem, motricidade, interação social e autonomia, avaliando o impacto da brincadeira em crianças de neurodesenvolvimento típico e em crianças com o transtorno, com o intuito de esclarecer o funcionamento da brincadeira para o sujeito que apresenta TEA.

 

MÉTODOS

A presente revisão teórica foi produzida com base na perspectiva sócio-histórica de Vygotsky, por meio de livros e levantamentos teóricos de publicações entre os anos 2010 e 2020, de modo que a análise não constitui uma revisão sistematizada, mas, sim, um estudo dos documentos que abordam o tema proposto para que haja uma reflexão acerca da importância do brincar no desenvolvimento de crianças com TEA, já que esse é um fenômeno indispensável na estimulação e tratamento das crianças acometidas pelo transtorno.

Foram selecionados em plataformas digitais - Scielo, Periódicos Eletrônicos de Psicologia (Pepsic), Repositório da Produção Científica e Intelectual da Unicamp, Repositório Institucional Unesp, DocPlayer, Sistema de Informação Científica Redalyc e Sociedade Brasileira de Pediatria - artigos sobre a influência do brincar em crianças típicas e em crianças com TEA. A seleção dos documentos ocorreu de acordo com títulos que se relacionaram com o brincar em crianças autistas. Além disso, o método propõe uma análise fundamentada principalmente nas ideias de Vygotsky (1991) presentes na obra A formação social da mente.

O critério de inclusão e exclusão dos artigos analisados baseou-se no ano de publicação e na relevância das informações neles apresentadas no que tange ao vínculo com o tema do estudo, excluindo-se, assim, artigos publicados anteriormente a 2010 e outros em que o assunto exposto não condizia com a temática. Inicialmente, houve a seleção de 25 artigos para análise. Destes, foram utilizados apenas sete, por conversarem melhor com a proposta do estudo. Posteriormente, um artigo foi excluído devido ao ano de publicação e à defasagem das informações. Além dessa mudança, incluíram-se mais oito artigos que trouxeram informações atuais sobre a temática. Foram utilizados também cinco livros para respaldar as ideias aqui apresentadas e, após revisão do estudo, incluíram-se mais dois livros com publicação recente, totalizando 15 artigos e sete livros estudados.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Brincar sob o olhar sócio-histórico

Vygotsky conceitualiza o brincar como uma resolução de certas tensões que surgem no início da idade pré-escolar, quando desejos não podem ser satisfeitos ou esquecidos. Nesse sentido, a estratégia encontrada pelas crianças é a de criar um mundo ilusório, ou seja, um mundo imaginário onde tais desejos podem ser realizados. Diante dessa concepção, o autor afirma que esse mundo imaginário é o que chamamos de brinquedo (VYGOTSKY, 2000 apud FOLTRAN; ROSIN, 2015).

É no contexto ressaltado por Vygotsky (1991) que a criança entra em contato com aspectos criativos, assim como resoluções de problemas, de modo que o brincar simbólico acaba se tornando uma forma de se comunicar e de interagir. Vale salientar que a brincadeira é muito mais do que puramente a ação de brincar, funcionando como uma via de mão dupla: a criança age sobre o brinquedo ao passo que o brinquedo também age sobre a criança. As possibilidades oferecidas pelo ato de brincar proporcionam encontros importantes com o mundo, com o outro e consigo. Na brincadeira, a criança tem a oportunidade de vivenciar momentos nos quais ela pode ser quem quiser e colocar em prática desejos que não podem ser realizados fora desse contexto, além de reproduzir vivências experienciadas no cotidiano.

O momento da brincadeira proporciona o desenvolvimento de capacidades como atenção, memória, imitação e imaginação (FOLTRAN; ROSIN, 2015). À medida que a criança depara com as situações que a brincadeira oferece, é desafiada a manter sua atenção concentrada em um foco específico, em compartilhar sua atenção com os pares e com os estímulos externos, assim como alternar essa atenção diante dos diferentes acontecimentos do brincar. É dessa forma que a memória passa a ser estimulada, já que na experiência de brincadeiras e jogos o sujeito terá possibilidade de estar sob estímulos que o levarão à necessidade de desenvolver estratégias de resolução de problemas, aumentando sua capacidade de criar soluções diante dos conflitos que deverão surgir, o que, consequentemente, reverbera na inserção do sujeito nos campos imaginativos e de imitação.

Na brincadeira imaginativa, as crianças reproduzem comportamentos vistos e vivenciados no dia a dia enquanto se relacionam com os pares na escola, em casa com a família e em outros contextos que elas frequentam no meio sociocultural. É nessa perspectiva que Vygotsky (1991) apresenta a ideia de que, enquanto há brincadeira, há regra. Essa ideia implica a noção de que, quando brinca, a criança, necessariamente, está em contato com regras, sejam as regras impostas pela própria brincadeira ou jogo, sejam regras de relações e comportamentos cotidianos. Nesse sentido, se a criança brinca de escolinha, obedecerá às regras sociais estabelecidas pelas relações culturalmente desenvolvidas entre professor, estudante, colegas e instituição, ou seja, se a criança está inserida em um contexto de brincadeira, também está inserida em um conjunto de regras.

Dessa forma, entende-se que a partir da brincadeira a criança tem a possibilidade de estimular diferentes pontos que são essenciais para o desenvolvimento, tais quais: habilidades socioemocionais, que serão experienciadas a partir do autoconhecimento e do manejo das emoções vivenciadas durante a brincadeira, assim como o conhecimento sobre o outro, de forma que a criança poderá desenvolver a capacidade da percepção desse outro que é, também, dotado de emoções; autonomia, já que, no contexto da brincadeira, a criança entra em contato com tomadas de decisões, realização de escolhas, organização do ambiente, resolução de conflitos, definição e criação de regras; motricidade, enquanto manipula os objetos e se movimenta de forma planejada, percebendo o ambiente em que está inserida, o que, consequentemente, estimula o refinamento das motricidades fina e ampla; e comunicação e linguagem, que poderão ser aperfeiçoadas pela interação com o outro e diante de situações que requerem a utilização de recursos comunicativos, sejam eles verbais ou não.

Outros fatores que devem ser levados em conta são as perspectivas ontológica, filogenética e social da brincadeira. A história de vida do sujeito que brinca, assim como o contexto em que ele está inserido, terá sua influência no repertório das brincadeiras realizadas, bem como as características culturais que perpassam a subjetividade dele. Brincadeiras comumente realizadas em uma época não serão, necessariamente, as mesmas realizadas em outra, porém cada uma delas carrega seu grau de importância no processo de desenvolvimento do ser humano.

O Transtorno do Espectro Autista

A Organização Mundial da Saúde afirma que o TEA é uma condição neurológica que acomete as crianças durante a primeira infância, sendo que uma a cada 54 é acometida pelo transtorno no mundo (MAENNER et al., 2020). O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais: DSM-5 classifica-o como um transtorno do neurodesenvolvimento, em que o prejuízo na comunicação social recíproca e na interação social e a presença de padrões restritos e repetitivos de comportamento são tidos como principais características para o diagnóstico. Além disso, tais sintomas frequentemente surgem no início da infância e limitam e/ou prejudicam de alguma forma o funcionamento da criança em seu dia a dia (APA, 2014).

Os estudos citados por Siqueira et al. (2016) sugerem um comprometimento neurológico que atinge principalmente as áreas cerebrais, como corpo caloso e mamilar, cerebelo, hipocampo, giro do cíngulo, lobo temporal, amígdala, córtex pré-frontal e entorrinal, e subículo. Entretanto, apesar desses achados, sabe-se que o diagnóstico deve partir de uma perspectiva multifatorial, sugerindo que não existe uma causa específica para o transtorno, o que exige uma análise complexa acerca da demanda individual de cada sujeito considerando seu contexto de vida.

Nota-se na criança com TEA algumas modificações no curso típico das brincadeiras. No geral, apresentam ausência ou dificuldade no que diz respeito à realização de brincadeiras imaginativas e tendem a preferir brincar com objetos, evitando contato com outras pessoas, já que possuem limitações relacionadas às habilidades sociais (MARTINS, 2009).

Nesse contexto, a presença de algumas características psíquicas e sociais em conjunto com os fatores neurológicos e ambientais é importante para identificação do transtorno. Geralmente, as crianças apresentam dificuldade na interação social, e isso inclui a capacidade de comunicação, compreensão e processamento de informações, além da evitação do contato com o outro como, por exemplo, a dificuldade de olhar nos olhos e de expressar e lidar com as emoções de maneira funcional. Outras dificuldades que também podem estar presentes nesses sujeitos dizem respeito ao desenvolvimento de brincadeiras imaginativas, à realização de atividades em grupo, à capacidade de se colocar no lugar do outro, assim como às questões sensoriais, que influenciam diretamente o processo de autorregulação da criança. Além disso, comportamentos estereotipados, ecolalia, interesses específicos em determinados objetos e atividades fazem parte do conjunto dos principais sintomas de TEA. Porém, é importante atentar ao fato de que nem todas as crianças apresentam essas características. Cada criança possui sua singularidade e não deve ser reduzida ao transtorno.

O brincar e sua funcionalidade para crianças com TEA

Desde os primórdios, o brincar está presente na história da humanidade. Jogos e brincadeiras eram inseridos, principalmente, no dia a dia dos adultos como uma forma de entretenimento. Com o passar do tempo, essa prática passou a fazer parte das principais atividades das crianças, pois percebeu-se que era uma importante ferramenta para o desenvolvimento cognitivo, motor, psicológico e social. A ludicidade tornou-se a forma de linguagem das crianças (COSTA, 2010).

É por meio da brincadeira que a criança amplia as possibilidades de contato com o mundo, o que proporciona o enriquecimento das relações interpessoais e individuais, de forma que a experiência desses encontros insere a criança no contexto sociocultural. Então, a brincadeira é muito mais que puramente a ação de brincar. A criança age sobre o brinquedo, ao passo que o brinquedo age sobre ela e, dessa forma, constrói-se um campo em que aspectos criativos são estimulados a partir da resolução de problemas, do contato com situações conflituosas e necessidades do uso de estratégias para atender a demandas que surgirão no processo do brincar.

A criança expressa sua intencionalidade no brincar, ou seja, demonstra a real expressão de si naturalmente, manifestando as experiências de vida, a percepção de mundo e a representação das relações pessoais e interpessoais vivenciadas no contexto em que está inserida. Assim, diante da brincadeira de faz de conta, em que a criança representa, por exemplo, o papel materno, pode-se compreender como ela internaliza o significado do que é ser mãe e como as regras sociais impostas a essa função se constroem no seu cotidiano. Sendo assim, é também na brincadeira que a criança tem maior liberdade para expressar seus sentimentos e dar significado às coisas, objetos e pessoas.

Enquanto uma criança brinca, ela embarca no mundo da imaginação, e é por meio das atividades simbólicas que a criança passa a ter consciência de seus atos, levar em conta determinadas regras para que possa agir de forma adequada e realizar ideias e desejos que são, de certa forma, impossíveis de ser satisfeitos em sua realidade. Além de todos esses fatores, as brincadeiras ainda trazem possibilidades de autorregulação, autodeterminação e autocontrole, justamente pelo fato de esse processo do brincar exigir foco, atenção e intenção para exercer determinadas ações, assim como a compreensão e a utilização de regras (CHICON et al., 2019).

Quando se fala em crianças com TEA, existem algumas peculiaridades no que tange à experiência do brincar. O fato de possuírem um pensamento mais focalizado no concreto pode levar à dificuldade de participação em brincadeiras imaginativas e de faz de conta, o que, provavelmente, pode estar relacionado com o desempenho de brincadeiras simbólicas. Infere-se que, no momento da brincadeira, a maioria das crianças com TEA apresenta dificuldade para entrar no campo simbólico propriamente dito, visto que, na maioria das vezes, apenas segue comandos de pares e mediadores enquanto brinca, e utiliza as brincadeiras e os objetos como forma de autorregulação por meio de movimentos estereotipados. Um estudo realizado por Bagarollo, Ribeiro e Panhoca (2013) aponta que a dificuldade que as crianças autistas possuem no desempenho das brincadeiras não se resume a causas biológicas, mas está também relacionada ao empobrecimento do repertório adquirido por meio do brincar, bem como à dificuldade de compartilhar e elaborar brincadeiras, isentando-se da busca pelo outro com a intenção de brincar.

Sabe-se que o brincar simbólico configura-se como uma forma de comunicação e interação, tanto com pares e adultos quanto com as possibilidades do mundo externo. Assim, cabe a reflexão acerca de como as crianças com TEA são impactadas pelo empobrecimento desse repertório, de forma a afetar, consequentemente, o âmbito da linguagem e da comunicação, que são aspectos que orientam o comportamento e direcionam ao desenvolvimento de habilidades cognitivas e sociais. No mesmo sentido, Vygotsky (1991, p. 84) afirma que "[...] a fala também é um exemplo excelente do uso de signos, já que, uma vez internalizada, torna-se uma parte profunda e constante dos processos psicológicos superiores", fazendo-se necessárias a estimulação e a exposição da criança a situações de brincadeiras que proporcionem esse tipo de experiência, de forma a desenvolver o aumento do repertório de linguagem e comunicação, a fim de facilitar o processo de compreensão, planejamento e solução de problemas.

A brincadeira também é uma grande fonte de estimulação dos sentidos (tato, olfato, paladar, visão, audição, propriocepção e vestibular). Levando em conta que a criança com TEA pode apresentar alterações sensoriais, é importante considerar a quantidade de estímulos oferecidos no momento da inserção da criança nas brincadeiras que serão mediadas, já que pode ocorrer uma sobrecarga de informações sensoriais e, consequentemente, provocar uma desorganização, o que dificulta o processo de aprendizagem oferecido pela experiência da brincadeira. Nesse sentido, entende-se que a brincadeira livre é relevante para a aquisição de habilidades essenciais, entretanto, o brincar direcionado também assume uma importância nesse processo, já que o papel de mediador desempenhado pelo adulto deverá promover a apresentação de novos desafios e possibilidades, implicando o aumento dos repertórios da criança.

De acordo com Vygotsky (1991, p. 41), "todas as funções superiores originam-se das relações reais entre indivíduos humanos", o que sugere pensar sobre o aperfeiçoamento das funções superiores em crianças com TEA, já que apresentam especificidades no que se refere à forma de perceber o outro e o mundo, de maneira que interfere no estabelecimento da comunicação e das suas relações, afetando, assim, o desdobramento do ato de brincar.

Dessa forma, cabe aos profissionais e adultos envolvidos no processo de desenvolvimento da criança traçar estratégias que permitam a exposição a situações que estimulem o desenvolvimento da cognição e de habilidades comunicativas e socioemocionais. Brincadeiras que motivem a criação de histórias, a formulação de novas ideias que convoquem a criança a resolver conflitos proporcionam o exercício da capacidade imaginativa. Além disso, a rigidez do pensamento, comumente apresentada nas crianças diagnosticadas com TEA, pode ser trabalhada por meio da busca de novas estratégias que surgem durante a brincadeira, favorecendo o aprendizado da autorregulação, da flexibilização do pensamento e da resiliência diante de situações que demandem a capacidade de adaptação.

Assim, a não inserção das crianças com TEA no mundo da brincadeira impossibilita o grande prazer da capacidade de agir sobre o mundo externo por meio da relação com o brincar. Um estudo feito pelo Núcleo de Acessibilidade Pedagógica (NAPE, 2020) revela a necessidade de pensar estratégias para inclusão das pessoas com TEA nos diversos âmbitos sociais. Ainda que existam leis voltadas para esse público, faz-se necessário pensar em meios de assegurar esses direitos. O autor aborda a importância da Lei nº 12.764/2012, que instituiu a política nacional de proteção dos direitos da pessoa com TEA.

Nessa perspectiva, sabe-se que a plasticidade do cérebro humano e sua capacidade de adaptação sugerem que todo indivíduo tem a possibilidade de criar novas sinapses. Sendo assim, a oportunidade de aprender brincando não deve ser negada a essas crianças, visto que elas também possuem condições de desenvolver funções psicológicas superiores por meio da interação com os outros e com o meio, sendo necessária, em alguns casos, a mediação do outro para que possa contemplar todas as experiências proporcionadas pelo ato de brincar.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em virtude dos fatos mencionados, à luz da abordagem sócio-histórica de Vygotsky (1991), percebe-se que o ato de brincar, seja ele exercido pela criança sozinha ou com os pares, desempenha um papel indispensável no desenvolvimento cognitivo, social, emocional e psicológico, já que estimula a formação do pensamento abstrato, da imaginação, da criatividade, da imitação, além de promover o aumento do repertório comunicativo e comportamental das crianças.

Apesar de a criança com TEA apresentar dificuldades de comunicação, interação social e pensamento imaginativo, que interferem no modo de brincar, ela é completamente capaz de se desenvolver brincando e de compartilhar interesses e experiências com os pares. Uma pesquisa-intervenção realizada por Pinho (2018) resultou na observação de que momentos lúdicos que incentivem o brincar funcional são cruciais para o desenvolvimento das habilidades sociais, pois possibilitam a construção de uma relação funcional e prazerosa com seus pares, iniciando a capacidade de imitação e, por fim, aumentando o repertório simbólico.

Outro estudo realizado com 30 crianças entre 2 e 4 anos de idade, baseado no Protocolo de Avaliação para Crianças com Suspeita de Transtornos do Espectro do Autismo (PRO-TEA), sugere que as crianças diagnosticadas com TEA podem se desenvolver em brincadeiras funcionais. Ainda que não seja algo tão frequente, demonstraram a capacidade de buscar brincadeiras com objetivos próprios (MARQUES; BOSA, 2015). Diante dessa perspectiva, cabe a reflexão de que reduzir a criança ao transtorno anula sua participação ativa sobre o mundo, que se dá por meio da brincadeira, impossibilitando que suas potencialidades possam ser trabalhadas de maneira a externalizar ideias, afetos, vontades, desejos e contribuições como sujeitos autônomos e ativos no mundo.

Tendo em vista que algumas brincadeiras e objetos não possuem, para a criança com TEA, a mesma funcionalidade que para crianças com neurodesenvolvimento típico, faz-se necessário que sejam traçadas estratégias individuais, que considerem as capacidades já desenvolvidas pela criança e foquem o aperfeiçoamento de habilidades com potencial de serem atingidas. Para isso, uma equipe multidisciplinar deve estar envolvida no processo, além do engajamento da escola e da família, como demonstra o estudo realizado pelo Departamento Científico de Pediatria do Desenvolvimento e Comportamento (2019), sobre a importância da orientação aos pais das crianças quanto à estimulação de brincadeiras de faz de conta e ao ar livre, contribuindo, assim, positivamente para o caminhar da criança no alcance dos objetivos terapêuticos, proporcionando maior autonomia e qualidade de vida.

Assim, é preciso estarmos atentos à forma como a brincadeira é conduzida, já que não se trata de uma simples ação comumente exercida por crianças, mas, sim, de uma fonte de desenvolvimento de potencialidades. Dessa forma, garantir que seja uma experiência prazerosa e rica para a criança implica a formação de um sujeito atuante no mundo e repleto de possibilidades transformadoras.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em: 22/10/2020
Aprovado em: 08/04/2021

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