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Revista Psicologia Política

 ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.20 no.48 São Paulo maio/ago. 2020

 

ARTIGOS

 

Quase da família: perspectivas intersecionais do emprego doméstico

 

Almost family: intersectional perspectives of domestic employment

 

Casi de la familia: perspectivas interseccionales del empleo doméstico

 

Presque la famille: perspectives intersectionnelles de l'emploi domestique

 

 

Odair FurtadoI; Mônica Gurjão CarvalhoII; Winnie Nascimento dos SantosIII

IDoutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor associado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, no Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Social (PSO) / odairfurtado@pucsp.br
IIAdministradora formada pela Universidade Federal do Ceará. Psicóloga Formada pela Universidade São Judas. Mestre pelo PEPG em Psicologia Social (PSO) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Doutoranda pelo PEPG em Psicologia Social (PSO) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora na Universidade São Judas na Graduação em Psicologia / monicagurjao@hotmail.com
IIIPsicóloga formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, especialista em Gestão de Pessoas e Negócios pela CUNY (Nova Iorque) - Baruch College, aprimoramento em Gestão de Recursos Humanos pela Fundação Getúlio Vargas, mestre pelo PEPG em Psicologia Social (PSO) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) / winnie.santos@uol.com.br

 

 


RESUMO

No Brasil, o trabalho doméstico emprega 5,9 milhões de mulheres. Deste total, 66% são negras, residem em regiões periféricas e não dispõem de proteção trabalhista. Historicamente, as empregadas domésticas estiveram submetidas a uma série de aspectos excludentes, como baixa remuneração, contratações à margem da legalidade e discriminação de gênero e raça. O presente artigo discute teoricamente as articulações entre gênero, raça e classe presentes no trabalho doméstico brasileiro. Compreende-se tais questões a partir do conceito de nó proposto por Saffioti (2004) - que destacou o imbricamento das categorias patriarcado-racismo-capitalismo - e da perspectiva interseccional proposta por Lélia Gonzalez (2018) - que ressaltou a relação do racismo, patriarcalismo, opressões de classes e outros sistemas discriminatórios, reconhecendo estes como marcadores da desigualdade social no Brasil. Tais conceitos foram mobilizados a fim de se refletir a desvalorização social das empregadas domésticas. Por meio deste artigo, pretende-se evidenciar o modo como os sentidos relativos a gênero, classe e raça são articulados na produção de assimetrias sociais e na subalternização das trabalhadoras domésticas, contribuindo, também, para as resistências às alterações na legislação no que tange ao trabalho doméstico.

Palavras-chave: Trabalho doméstico; Gênero-raça-classe; Patriarcado.


ABSTRACT

In Brazil, domestic work employs 5.9 million women. 66% of Brazilian domestic women are black, live in ghettos and do not have labor protection. Domestic workers have historically been subjected to a number of exclusionary aspects such as low payment, illegal hiring, and gender and race discrimination. This article theoretically discusses articulations between gender, race and class present in domestic work. These subjetcs are understood from the concept of 'knot' that was proposed by Saffioti (2004) - which emphasized the interrelationship of the categories patriarchy-racism-capitalism - and from the intersectional perspective proposed by Lélia Gonzalez (2018) - which highlighted the relation of racism, patriarchalism, class oppressions and other discriminatory systems, recognizing these as markers of social inequality in Brazil. These concepts were used to reflect on the social devaluation of domestic workers. Through this article we intend to highlight the way how the meanings related to gender, class and race are articulated in the production of social asymmetries and in the subordination of domestic workers. That also contributes to the resistance to changes in legislation regarding domestic work.

Keywords: Domestic work; Gender-race-class; Patriarchy.


RESUMEN

En Brasil el trabajo doméstico emplea a 5,9 millones de mujeres. El 66% de las domésticas brasileñas son negras, residen en regiones periféricas y no poseen protección laboral. Las empleadas domésticas estuvieron históricamente sometidas a una serie de aspectos excluyentes como baja remuneración, contrataciones al margen de la legalidad y discriminación de género y raza. El presente artículo discute teóricamente las articulaciones entre género, raza y clase presentes en el trabajo doméstico. Se comprende estas cuestiones a partir del concepto de nudo propuesto por Saffioti (2004) que, destacó el imbricamiento de las categorías patriarcado-racismo-capitalismo y, desde la perspectiva intersecional propuesta por Lélia González (2018), que destacó la relación del racismo, patriarcalismo, opresiones de clases y otros sistemas discriminatorios, los reconociendo como marcadores de la desigualdad social en Brasil. Tales conceptos se utilizaron para pensar la devaluación social de las empleadas domésticas. A través de este artículo se pretende evidenciar cómo los sentidos relativos a género, clase y raza se articulan en la producción de asimetrías sociales y en la subalternización de las trabajadoras domésticas contribuyendo, aún, a las resistencias a las alteraciones en la legislación en lo que se refiere al trabajo doméstico.

Palabras clave: Trabajo doméstico; Género-raza-clase; Patriarcado.


RÉSUMÉ

Au Brésil, le travail domestique emploie 5,9 millions de femmes. 66% de ces employées de maison sont noires, résidentes dans les régions périphériques et n'ont pas de protection ou réglementation du travail. Elles ont été historiquement soumises à une série d'aspects d'exclusion tels que la faible rémunération, l'embauche en marge de la légalité et la discrimination du genre et de la race. Le présent article montre en theorie les liens entre genre ,race et classe sociale présents dans les emplois domestiques. Nous comprenons ces questions dans les articulations proposées par S___ qui a mis en évidence la superposition des catégories patriarcales ,raciste capitalistes ; nous les comprenons aussi du point de vue intersectionnel proposé par Leila qui a mis en évidence la relation racisme ,patriarcat ,oppression de classe et d autres systèmes discriminatoires en les reconnaissant comme des indicateurs de l inégalité sociale au Brésil. Ces concepts ont été utilisés pour réfléchir sur la dévaluation sociale des employées domestiques. Cet article propose démontrer comment les sentiments par rapport au genre, à la classe et à la race sont articulés dans la production d'asymétries sociales et dans la position subalterne des employées domestiques, contribuant également à la résistance aux changements de la Législation concernant le travail domestique.

Mots-clés: Travail domestique ; Genre-race-classe ; Patriarcat.


 

 

Introdução

"É como se ela fosse da família'". Quantas vezes já se ouviu esta expressão, recorrentemente utilizada pelos empregadores, por patroas - como são conhecidas as mulheres que geralmente contratam as empregadas domésticas - e por seus familiares ao se referirem a estas mulheres que executam os cuidados do lar? Expressão comumente utilizada para mencionar a ocupação de 5,9 milhões de mulheres brasileiras, contingente que equivale à população da Dinamarca. Contudo, ao passo que o país nórdico é classificado como aquele com a menor discrepância de renda do mundo, no Brasil, a desigualdade é diariamente enfrentada por estas mulheres que atravessam as grandes cidades, deslocando-se das zonas periféricas para os bairros mais abastados (O Globo, 2014).

Lélia Gonzalez (2018) aponta que o desenvolvimento econômico brasileiro é pautado em um modelo conservador e excludente de modernização, que deixa à margem do sistema uma gama de pessoas, uma massa fadada ao desemprego ou ao subemprego. As trabalhadoras domésticas, como tantas outras mulheres negras, representam uma grande parcela dessa massa marginal e, como salienta a autora, existe uma articulação entre sexismo e racismo que, no Brasil, funciona como um dos operadores simbólicos do modo como as mulheres negras são vistas e tratadas.

É deste modo que o trabalho da mulher negra é comumente associado a ocupações domésticas informais ou pouco valoradas. Existe no imaginário brasileiro um estereótipo que associa a mulher negra a funções subalternas. Tal condição subalterna é naturalizada socialmente e passa a ser comum ver estas mulheres negras desempenhando atividades domésticas como lavar, passar, cozinhar etc., afinal, esta ocupação estaria de acordo com as habilidades típicas da população feminina negra. Este imaginário foi historicamente construído e ancorado na "naturalização de relações de autoridade e subordinação, que são apresentadas como se fossem fundadas na biologia e/ou justificadas racialmente" (Biroli, 2018, p. 42).

Assim, o objetivo central deste artigo é compreender o modo como, no caso das empregadas domésticas brasileiras, diferentes marcadores sociais de gênero, raça e classe se sobrepõem no estabelecimento desta f unção como subalterna e, por conseguinte, na invizibilização destas trabalhadoras.

O artigo se encontra estruturado em três partes, além da introdução e das considerações finais. Na primeira, é abordada a noção de desigualdade social, como categoria que deve se referir aos vários determinantes do fenômeno; na segunda, procura-se analisar como se configura, historicamente, o quadro de desigualdades de gênero, raça e classe na sociedade brasileira, especificamente no que concerne à delimitação do trabalho doméstico; na terceira, discute-se divisão sexual e racial do trabalho no emprego doméstico. Argumenta-se, aqui, que o trabalho doméstico constitui um campo privilegiado para se refletir - no caso brasileiro, considerando-se a história do país - o modo como se entrelaçam as estruturas de gênero, raça e classe para a formação da sociedade em que se vive atualmente.

 

Para se compreender a desigualdade

Abordar o tema trabalho doméstico no Brasil, invariavelmente, é versar sobre profundas diferenças sociais. De um lado, o país que ocupa, no ranking oficial, o lugar de oitava maior economia do mundo, bem como é o segundo maior mercado mundial de jatos e de helicópteros executivos; de outro, a nação desigual em que a renda do 1% mais rico da população equivale a trinta e seis vezes a média da metade mais pobre (PNAD, 2017).

Jessé de Souza (2009), ao se referir aos trabalhadores que estão aquém do Estado Democrático de Direito (dentre estes, as empregadas domésticas), utiliza o termo ralé. Não se trata de insensibilidade ao discorrer sobre as populações historicamente estigmatizadas, mas sim do reconhecimento de que alguns cidadãos vivenciam, irremediavelmente, o abandono social e político; são indivíduos que vivem sob condições precarizadas, sendo diariamente responsabilizados por tais circunstâncias. De acordo com o ideário neoliberal, trata-se de gente "sem talento", incapaz de se adequar a um mercado competitivo que exige incorporação, cada vez maior, de capital técnico e intelectual. Sob esta ótica, é um segmento social que nada pode ofertar além de sua força física, sendo utilizado pelas classes média e alta para executar tarefas sujas, pesadas e cansativas, que podem "ser desempenhadas por qualquer um".

Os argumentos de Souza (2009) são contundentes, ao demonstrar que a ideia de que "existe gente que nasceu para ser pobre" ou que "o sistema não terá condições de absorver a todos" - aspecto do conceito básico de meritocracia, tão caro aos defensores do capitalismo - justifica as desigualdades socialmente existentes como se estas fossem naturais. A construção e articulação dessa engenhosa desigualdade é sutil, o que a faz inquestionável sob argumentos como "tem gente que não se esforça o suficiente e por isso é pobre".

A fim de complementar o pensamento de Souza (2009), é trazido o apontamento de Carlos Hasenbalg (2005) que, já na década de 1980, versava a respeito da reprodução das classes sociais, apresentando a ideia da existência de uma determinação estrutural de classes na divisão social do trabalho, ou seja, o entendimento de que determinados trabalhos devam ser direcionados a certos grupos de indivíduos. Desta forma, algumas pessoas serão naturalmente diretores de grandes empresas, enquanto outras deverão ocupar permanentemente o lugar de empregadas domésticas.

Os dados sobre o trabalho doméstico no Brasil são significativos para se refletir acerca destas e de outras questões levantadas por Souza (2009): quase toda família brasileira de classe média dispõe dos serviços de uma trabalhadora doméstica ou de uma diarista; no Brasil, o emprego doméstico é a ocupação de 18% das mulheres negras e de 10% das mulheres brancas; a diferença de rendimentos entre trabalhadoras domésticas brancas e negras é de 13% - ao passo que as primeiras ganham, em média, R$ 421,60, as segundas recebem R$ 364,80. Vale destacar, também, que 0,5% das trabalhadoras domésticas brasileiras não possuem renda própria, isso significa que mais de 30 mil mulheres em todo o país trabalham em condições análogas ao trabalho escravo (IPEA, 2014).

Os dados apresentados revelam que, mesmo131 anos após o que se chamou de abolição da escravatura, diversas trabalhadoras negras permanecem excluídas da sociedade, sofrendo discriminação e segregação - em especial, no campo do trabalho doméstico. Não se trata aqui de negar as conquistas recentes (PEC n. 66/20121 e a Lei nº 150/20152), mas sim de reconhecer que a maior parte das trabalhadoras domésticas brasileiras vive à margem de qualquer direito, sob a condição de uma servidão reinventada, que se estende até os dias atuais.

Em A Elite do Atraso: da escravidão à Lava Jato", Souza (2017), busca fazer uma revisão dos clássicos que construíram uma análise da identidade brasileira moderna. O mote central da discussão é a constituição de uma sociabilidade alicerçada em uma condição espúria: a escravidão. O autor faz uma reinterpretação do que foi apontado por Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala e também em outra obra importante, Sobrados e Mucambos. Além disso, coteja essa leitura com obras de Sérgio Buarque de Holanda e de Raimundo Faoro, dois grandes analistas da formação do povo brasileiro.

No caso de Gilberto Freyre, tomado como estudo de caso por Souza (2017), este abstrai a opinião analítica daquele e considera a vasta apreensão da realidade brasileira por ser ela rigorosa e documentada. O que importa é a análise que Souza (2017) realiza acerca da passagem do patriarcalismo colonial de Casa Grande & Senzala para a constituição da ralé brasileira e da insipiente classe média. Dessa passagem, é pertinente destacar a naturalização da crueldade do patriarca no tratamento não apenas dos escravos, mas também das mulheres e das crianças de sua própria convivência - uma condição que resvalava para a incivilidade. O que estruturava essa circunstância era a ausência de uma consistente formação civilizatória e o mandonismo de quem se considera dono de um estado que não foi ainda constituído; não havia uma noção centralizada de poder, de modo que este era exercido como totalitário pelo senhor da Casa Grande. A desumanização das pessoas escravizadas era o resultado da ausência de leis e de costumes e, portanto, de um processo civilizatório insipiente e desordenado.

A chegada da Cortê, em 1808, trouxe essa noção de centralidade do poder, haja vista que, no período dos dois Impérios (Pedro I e Pedro II), construiu-se a noção de civilidade, gerando a organização de uma sociedade brasileira. Essa é a nova realidade retratada em Sobrados e Mucambos: o desaparecimento da lei patriarcal e a organização de um mercado de trabalho. A questão central é que isso se deu sob a égide do valor - que constitui, com efeito, um desvalor - de um segmento pobre de negros libertos que constituirão o que Souza (2017) denominou de ralé, a saber: um contingente de homens e mulheres abandonados à própria sorte e desvalorizados pelo insipiente mercado de trabalho. Aqui se encontra a origem do que viria a estruturar, tempos depois, a sociedade de classes no Brasil contemporâneo.

Contudo, se esta é a origem de tal processo, conforme afirma Hasenbalg (1982), as causas das desigualdades raciais não devem ser buscadas somente no passado, pois operam também no presente. E, no caso do Brasil, verifica-se que o negro - em especial, a mulher negra - enfrenta uma estrutura social mais desfavorável do que a encarada pelo branco. Em outras palavras, não seria somente o passado escravagista o responsável pelo racismo estrutural que se vivencia na atualidade, mas, também, a persistência de oportunidades desiguais de ascensão social.

O resultado desse processo - se é que se pode dizer, civilizatório - é o que a OXFAM Brasil apresentou, em 2017, na pesquisa intitulada "A distância que nos une": Negros são 54% da população e 74% entre os 10% mais pobres e 9,9% entre os 1% mais ricos. Entre os analfabetos, 9,9% são pretos e pardos e 4,2% são brancos. O Brasil possui15 milhões de pobres com rendimento de US$1.90/dia, o que representa 7,2%dos brasileiros (aumento de 11% em relação a 2016). O rendimento dos 10% mais pobres era R$217,63 em 2016 e R$198,03 em 2017. Dos 10% mais ricos, R$9.519,10 em 2017. Renda média: brancos R$2.924,31 e negros R$1.545,30. Entre os 50% mais pobres: brancos R$965,19 e negros R$658,14. Entre os 10% mais ricos: brancos R$13.753,63 e negros R$6.186,01. A renda cresceu 17,35% para os brancos e 8,10%para os negros. (OXFAM, 2017)

Então, questiona-se: como relacionar estas informações supracitadas com a atual sociedade de classes no Brasil? A categoria sociedade de classes configura-se elemento importante para a análise da condição de vida dos trabalhadores brasileiros, mas não é suficiente para se compreender o lugar que a população negra ocupa no espectro social brasileiro. O mandonismo gerado pela sociedade patriarcal colonial no Brasil constituiu uma dimensão subjetiva (Bock & Gonçalves, 2009; Furtado, 2002, 2011) que perdura, ainda que modificada, até os dias de hoje. A população negra, objetivamente, tal como é possível inferir das informações supramencionadas, é a principal vítima da discriminação produzida pelo patriarcalismo que perdura subjetivamente nas relações de sociabilidade no Brasil.

Neste sentido, a herança deixada pela escravidão acarreta para o povo negro uma desvantagem inicial que é acrescida da contínua operação do processo de competição desigual. É desta forma que se pode compreender o racismo, isto é, não apenas como um reflexo da constituição econômica e de classes da sociedade brasileira, mas como estruturante desta, afinal, ela se desenvolveu a partir da coexistência do racismo, industrialização e desenvolvimento capitalista (Hasenbalg, 2005).

Apesar das conquistas recentes em termos legais, é preciso reconhecer que a segregação de raça e de gênero ainda se faz presente no campo do trabalho doméstico brasileiro, o que contribui para uma conotação negativa desta atividade, tendendo para uma visão da trabalhadora doméstica como herdeira direta dos serviços realizados por mulheres negras no período de escravidão. Os dados apresentados anteriormente apontam a persistência de profundas desigualdades, as quais atingem de modo cruzado mulheres pobres e negras, segregadas sob uma estrutura ocupacional perpassada pelas hierarquias de poder e pela divisão sexual do trabalho (Silva, 2017).

Biroli (2018, p. 22) salientou o fato de que "a divisão sexual do trabalho incide sobre mulheres e homens em conjunto com sua posição de classe e racismo estrutural". É preciso, portanto, refletir sobre esta questão articulando-se múltiplas hierarquias, considerando "que a produção de gênero nas relações de trabalho se faz na interseção de ao menos três fatores: gênero, classe e raça" (Biroli, 2018, p. 51). Assim, considerar conjuntamente estes elementos significa não hierarquizar as diferentes formas de opressão, reconhecendo que estas relações são dinâmicas, de maneira que produzem efeitos que não podem ser simplesmente acrescentados, agregados, pois obedecem a lógicas distintas.

Atentar para a articulação entre gênero, classe e raça é imprescindível para a compreensão do campo do trabalho doméstico; contudo, ainda se faz necessário haver a compreensão histórica. Somente por meio da articulação destas categorias com o aspecto histórico é que será possível compreender o modo como, ainda nos dias atuais, o emprego doméstico se encontra imbricado nas relações pessoais e como lhe são destinados certos espaços e rituais nos domicílios, afinal, estes espaços foram historicamente constituídos.

No que concerne ao Brasil, o fator raça é constitutivo da história do país, da desigualdade social e da formação do mercado de trabalho. Deve-se destacar, contudo, que se compreende a história não em seu aspecto longitudinal, mas como decorrente das contradições sociais e da luta de classes. Neste sentido, compreende-se que os valores, normas e relações instituídas pelos indivíduos são resultado da realidade social e histórica, que encontra no trabalho a ferramenta essencial para transformação do mundo. Adota-se, aqui, portanto, um pensamento histórico e categorial para se refletir sobre as relações presentes no trabalho doméstico (Gonçalves, 2010).

A proposta de Saffioti (2004) constitui uma dessas perspectivas de análise, que toma o patriarcado como categoria fundamental para se ponderar sobre a simbiose existente nas relações de classe, raça e gênero. Trabalhar com a categoria patriarcado significa assumir que a sociedade é efetivamente perpassada não apenas por discriminações de gênero, mas, também, de raça, etnia, classe social e orientação sexual, de forma que há um nó patriarcal-racista-capitalista. Assim, percebe-se que existe uma permanente articulação entre sexo, classe e raça na constituição dos processos de dominação e de produção da desigualdade social; ou seja, uma relação dialética, que não pode ser pensada em termos de sobreposição e associação, mas, de fusão, simbiose.

Outra dessas propostas assume a imbricação das relações de classe, raça e gênero presentes no trabalho doméstico por meio do conceito cunhado e difundido por feministas negras nos anos 1980 - o de interseccionalidade. Tal perspectiva foi adotada no Brasil, dentre outros, pela filósofa Lélia Gonzalez (2018).

Gonzalez (2018), filósofa, antropóloga e professora, já discorria sobre a tripla discriminação, considerando gênero, classe e raça - antecipando algumas abordagens que, posteriormente, denominar-se-iam interseccionais -, evidenciando as fortes heranças escravistas presentes no Brasil, bem como a associação entre racismo, sexismo e exploração capitalista. A filósofa teceu uma crítica radical à cultura nacional, ao constatar que, "em virtude dos mecanismos da discriminação racial, a trabalhadora negra trabalha mais e ganha menos que a trabalhadora branca que, por sua vez, também é discriminada enquanto mulher" (Gonzalez, 1982).

Na prática, ao se pensar no contexto do trabalho doméstico a partir da assertiva de Gonzalez (1982), pode-se afirmar que neste campo também se encontram mulheres brancas pobres, que vivem sob condições de classe semelhantes às das mulheres negras pobres; contudo, ainda que vivenciem tal realidade, não são constantemente evocadas acerca de sua condição racial. Em outras palavras, as mulheres brancas pobres compartilham com mulheres negras pobres uma precariedade semelhante no campo do trabalho doméstico, entretanto, "os constrangimentos materiais e ideológicos que se impõem às mulheres variam e são vivenciados de maneiras diversificadas, de acordo com a classe social e com a raça" (Biroli, 2018, p. 37). É a partir de tal lógica que se pode compreender a razão de 66% das empregadas domésticas no Brasil serem negras (IPEA, 2014), afinal, subjaz na dimensão subjetiva da realidade (Furtado, 2002, 2011; Bock & Gonçalves, 2009), como fruto do racismo estrutural, a ideia de que a mulher negra é "uma doméstica melhor".

Faz-se fundamental, ainda, trazer à baila a teoria da branquitude, que conceitua o indivíduo branco também como racializado. Assim, não se pensa na questão racial apenas ao se mencionar o indivíduo negro, mas, também, ao se referir ao branco, salientando sua posição de privilégio em uma sociedade ordenada pela relação de poder entre as raças. Tal teoria, trazida ao Brasil pela psicóloga social Maria Aparecida da Silva Bento e Carone (2002), destaca o privilégio vivenciado por indivíduos brancos, fruto de uma construção sociohistórica das relações de poder. Neste contexto, o lugar destinado a mulheres igualmente pobres não será o mesmo quando uma delas for branca e, a outra, negra. Bento e Carone (2002, p. 27) conceitua: "mesmo em situação de pobreza, o branco tem o privilégio simbólico da brancura ... entre os explorados, entre os pobres, os negros encontram um déficit muito maior em todas as dimensões da vida". A autora fez um levantamento - durante 20 anos, tanto no campo da saúde, quanto da educação e do trabalho - de dados que demonstram como a manutenção da ideia de privilégio branco e sua naturalização se dá de forma massiva, seja por meio da mídia, dos livros didáticos ou das relações cotidianas, nas quais indivíduos negros estão notoriamente em situação de desvantagem.

Deste modo, o presente artigo aborda estas questões assumindo o conceito de nó - proposto por Saffioti (2004) - e a perspectiva interseccional apresentada por Gonzalez (2018), a fim de refletir como, no campo do trabalho doméstico, imbricam-se patriarcado-racismo-capitalismo e outros sistemas discriminatórios, que têm contribuído à manutenção da desigualdade social no Brasil.

 

Classe, raça e gênero na história do trabalho doméstico no Brasil

Koffes (2001) aponta que o pensamento colonial produziu a relação entre raça e desenvolvimento de determinadas atividades. Assim, a imagem da mulher e do homem negros se encontravam intrínsecamente associadas aos trabalhos manuais e servis, naturalizando-se a ideia de que haviam nascido para executar tais funções. Neste sentido, quando uma mulher negra exercia funções como ama de leite, quituteira ou mucama, tal trabalho era tido como um dote inato. Por outro lado, o elemento fenotípico era utilizado para demarcar poder sobre os corpos racializados, justificando opressões e subjugações.

O racismo, como articulação ideológica que toma corpo e se realiza através de um conjunto de práticas ..., é um dos principais determinantes da posição dos negros e não brancos dentro das relações de produção e distribuição. Uma vez que o racismo (de forma similar ao sexismo) transforma-se em uma parte da estrutura objetiva das relações ideológicas e políticas do capitalismo, a reprodução da divisão racial (ou sexual) do trabalho pode ser explicada sem apelar para os elementos subjetivos como o preconceito. (Gonzalez, 2018, p. 42)

A abolição da escravatura não rompeu com tal lógica. Ao se referir à experiência abolicionária em seu país, Angela Davis (2016) assevera que o espaço que o trabalho ocupa na vida das mulheres negras seguiu o padrão escravagista. Guardadas as devidas proporções, a afirmação de Davis é aplicável também ao caso brasileiro, afinal, a figura da empregada doméstica constitui um dos ícones significativos que, indubitavelmente, pode ser considerada como uma relação direta com o passado colonial do Brasil. É assim, que no caso nacional, desenvolve-se - sob estereótipos e construções de gênero e raça - a naturalização de elementos que inferiorizam a mulher negra.

Gonzalez (2018) entende o racismo brasileiro como uma construção ideológica, sendo sustentado e reinterpretado pelo interesse da classe por ele beneficiada. A autora compreende que o papel reservado à mulher negra na sociedade atual é fortemente influenciado pelos resquícios do período escravagista, em que a mucama era a responsável pelos afazeres domésticos, atividades compreendidas como femininas, mas não realizáveis por mulheres brancas, caracterizando-se, logo, a divisão sexual e racial do trabalho. Tendo sido assinada a Lei Áurea, o mercado de trabalho formal passou a ser preenchido pela mão de obra de origem imigrante, trazida inicialmente da Europa, processo este que levou algum tempo para se estabelecer e se estruturar, juntamente com a transformação do mercado de trabalho e a industrialização.

O projeto imigrantista se iniciou em São Paulo, em 1840. Há de se destacar que tal projeto se fez acompanhar de sofisticadas teorias raciais que, travestidas de cientificidade, justificavam uma suposta inferioridade do negro, bem como a necessidade de renovar a população brasileira a partir da imigração branca. Assim, sob a justificativa de que a inferioridade do povo africano havia sido testada cientificamente afirmava-se que "os males vivenciados no país" advinham do negro, este seria o responsável pelo atraso da nação, a sua presença havia impedido o aparecimento da indústria no Brasil durante todos os séculos da colonização (Azevedo, 1987).

O racismo científico contribuiu para a manutenção da associação da mulher negra às atividades do lar e para criação de uma política de embranquecimento que assegurava "condições favoráveis à imigração europeia" (Azevedo, 1987, p. 69). Assim, mesmo após a abolição da escravatura, sob a justificativa racista travestida de cientificismo, a mulher negra segue desenvolvendo atividades domésticas, uma vez que estas eram fundamentais para o funcionamento da família tradicional brasileira. Desta forma, enquanto o homem negro era excluído do mercado de trabalho, sendo substituído pelo imigrante, tanto na agricultura quanto nas diversas atividades urbanas (Azevedo, 1987), a mulher negra seguia como "viga mestra de sua comunidade", sendo responsável por arcar com o sustento de sua família (Gonzalez, 2018).

Deste modo, a abolição constitui-se "como uma emancipação precária e incompleta para mulher de cor" (Saffioti, 2013, p. 253). As estruturas sociais não foram alteradas, hierarquicamente o modo como a sociedade brasileira se organizava manteve-se: primeiro o homem branco, depois a mulher branca, finalmente, o homem negro e a mulher negra, estes últimos impossibilitados de trabalhar nas indústrias manufatureiras que se instalavam nas grandes cidades brasileiras, mantiveram-se nas fazendas em que anteriormente viviam, de forma que seu trabalho era negociado em troca de alimentação e moradia.

A despeito da larga entrada de mulheres brancas e imigrantes no Brasil, as negras eram preferencialmente escolhidas para realizar as atividades domésticas, como aponta Koffes (2001), pois, apesar de existir uma preferência estética pela empregada branca, as negras permaneciam predominantemente nesta atividade em decorrência do fato de sua imagem remeter à submissão e à servilidade.

Gonzalez (2018) salienta que, por vezes, a servilidade constituía uma forma de resistência passiva da mulher negra, que acabava por se submeter a tal condição visando garantir sua sobrevivência e a de seus familiares. Desta forma, historicamente, a construção social da mulher negra como trabalhadora servil foi sustentada pela permanência destas trabalhadoras em atividades precárias e desvalorizadas, tal como o emprego doméstico, originando o termo "mãe preta", um dos estereótipos atribuídos à mulher negra que cuidava das famílias brancas e de seus filhos, muitas vezes, sendo a referência mais próxima para as crianças desses núcleos familiares brancos, mas, tendo violado o direito de ensinar e educar seus próprios filhos.

Outro ponto a ser considerado é que a busca da mulher branca por emancipação ao longo da história se dá, de acordo com Gonzalez (2018), às custas da mulher negra. Ao lutar por seus direitos e buscar uma colocação similar à do homem (branco) no mercado de trabalho, a mulher branca explora, muitas vezes, a mão de obra da mulher negra, que segue ocupando a função de mucama. O fato de a mulher negra cuidar dos afazeres domésticos de responsabilidade da mulher branca garante que esta vá para o mercado de trabalho em busca de liberdade e de direitos, mantendo, contudo, as mulheres negras na mesma posição histórica.

A este respeito, Biroli (2018) afirma que o trabalho remunerado não é vivenciado da mesma forma pelas mulheres trabalhadoras: enquanto para as mulheres brancas significa autonomia, para as mulheres negras, que ganham, na maior parte das vezes, muito menos que o salário mínimo, significa a continuidade da exploração de classe. Assim, o trabalho doméstico exercido majoritariamente por mulheres negras é vivenciado, muitas vezes, como trabalho alienante, haja vista não conter o mesmo sentido que tem o acesso ao trabalho pelas mulheres brancas, as quais podem trilhar carreiras profissionais.

Dados apresentados pelo IPEA (2014), por meio da pesquisa intitulada "Retratos da desigualdade de gênero e raça", corroboram tal perspectiva, ao apontar que, no Brasil, os domicílios chefiados por mulheres brancas possuem renda per capita 47,3% superior àqueles chefiados por mulheres negras. Tal aspecto reflete, nitidamente, a correlação existente entre o acesso das mulheres brancas a posições de prestígio e a consequente presença da mulher negra em atividades precárias. Afinal, é justamente no trabalho das empregadas domésticas que as mulheres brancas se apoiam para galgar uma carreira profissional.

É assim que o passado histórico brasileiro acompanha seus indivíduos e se naturaliza na sociedade. O modo como atualmente são estabelecidas as relações de dominação e de exploração no mercado de trabalho encontra mais similitudes do que distanciamentos em relação ao passado colonial brasileiro. Conforme Saffioti (2013, p. 258) esclarece, "a manutenção desse estado de coisas é, sem dúvida, o complexo de macho, que ainda integra o ideal de personalidade masculina no Brasil. Sobrevivência do patriarcalismo da família colonial".

Nesta perspectiva, verifica-se que a história do Brasil, desde o seu princípio, foi fortemente marcada por distinções sociais de raça e de gênero, que se entrelaçaram com a formação das diferentes classes. Isto é, a sociedade brasileira constituiu-se, desde os seus primórdios, como uma sociedade desigual. Por mais que sejam observáveis mudanças sociais e políticas nas últimas décadas, as profundas marcas destas múltiplas desigualdades ainda estruturam a sociedade atual. A existência de uma divisão sexual e racial do trabalho evidencia a tripla discriminação sofrida, ainda nos dias de hoje, pela mulher negra, assim como o lugar destinado a ela na força de trabalho.

 

A divisão sexual e racial do trabalho no emprego doméstico

Federici (2017) aponta que a divisão sexual do trabalho é intrínseca ao capitalismo, de maneira que se encontra presente desde os seus primórdios, na forma como o sistema se organizou. Neste sentido, a autora destaca que a acumulação primitiva do trabalho, ao contrário do que havia proposto Marx, não se deu tão somente sob o ponto de vista do proletariado industrial assalariado, mas,

Foi também uma acumulação de diferenças e divisões dentro da classe trabalhadora, em que as hierarquias construídas sobre o gênero, assim como sobre a 'raça' e a idade, se tornaram constitutivas da dominação de classe e da formação do proletariado moderno. (Federici, 2017, p. 119)

Ademais, a autora indica que, historicamente, a acumulação capitalista não representou uma libertação dos trabalhadores, sejam estes homens ou mulheres; ao contrário, sob a imagem de um pretenso progresso, o sistema estabeleceu medidas brutais e traiçoeiras, implantando "divisões profundas que servem para intensificar e ocultar a exploração" (Federici, 2017, p. 119). Em outras palavras, a desvalorização da mão de obra dos trabalhadores não se deu da mesma maneira para todos. O capitalismo reconfigurou o modo como se explicita a divisão do trabalho, construiu princípios objetivos e implementou técnicas de poder e de dominação que, com efeito, contribuíram para a divisão sexual do trabalho, que historicamente destina às mulheres o trabalho reprodutivo.

Para abordar o trabalho reprodutivo, Federici (2017) indica que, assim como as mulheres pobres na Europa, as mulheres negras nas plantations3 eram forçadas a gerar novos trabalhadores. O corpo feminino era, recorrentemente, transformado em máquina para a reprodução da atividade e para a expansão da força de trabalho. Invisibilizadas, essas mulheres viram seus corpos serem explorados em todos os sentidos, seja por meio do trabalho forçado ou da gestação de novos trabalhadores e escravos para o capitalismo. De um modo ou de outro, mulheres paupérrimas e/ou negras favoreceram a ascensão do capitalismo, em um processo de naturalização da associação do gênero feminino a atividades domésticas, especialmente aquelas relacionadas aos cuidados com a casa, com os filhos e com o marido.

Apesar de Federici (2017) não ter realizado qualquer estudo específico sobre a sociedade brasileira, seus achados são de extrema valia para se refletir acerca da realidade das empregadas domésticas no país. Afinal, no caso do Brasil, tal como a autora aponta, a "feminização da pobreza" surge como um dos primeiros impactos do desenvolvimento do capitalismo. Desta forma, "o capitalismo, enquanto sistema econômico-social está necessariamente ligado ao racismo e ao sexismo" (Federici, 2017, p. 37).

Considerando-se o cenário brasileiro, é necessário enfatizar a divisão racial do trabalho, visto que o serviço doméstico é realizado, majoritariamente, por mulheres negras. A luta do movimento feminista por emancipação e por direitos não garantiu a igualdade de condições entre mulheres brancas e negras. O conceito de interseccionalidade evidencia a violência sofrida pela mulher negra, não levada em consideração pelo movimento feminista tradicional que, ao lutar pela inclusão da mulher no mercado de trabalho, esqueceu-se que há séculos a mulher negra já trabalhava, sob condições similares aos homens negros. Como aponta Gonzalez (2018), o sistema não suavizou o trabalho para as mulheres escravizadas, pois estas ocupavam todas as frentes de trabalho existentes à época - plantação de açúcar, de café, de algodão, mineração, entre outras atividades -, além dos serviços domésticos e de cuidados na casa grande.

Ao conquistarem emancipação e inclusão no mercado de trabalho, as mulheres brancas passam a ser beneficiadas pela divisão racial do trabalho. Ainda conforme explicita Gonzalez (2018), na década de 1950, acompanhando o crescente processo de urbanização, diferentes setores industriais iniciaram sua expansão, desenvolvimento e modernização, dando origem a novas oportunidades de trabalho para as mulheres, oportunidades estas majoritariamente voltadas às mulheres brancas.

Havia, ainda, para as mulheres, a chance de ingresso em setores burocráticos, tais como: prestação de serviços em escritórios, bancos, entre outros. Contudo, essas atividades exigiam um grau de escolaridade, grande parte das vezes não acessado pela mulher negra. Além disso, muitos outros "motivos foram criados no sentido do reforço da discriminação: o contato com o público exige 'educação' e 'boa aparência'" (Gonzalez, 2018, p. 44). Tais exigências recorrentemente excluíam as mulheres negras no processo de seleção. Afinal, quando as ofertas de emprego eram anunciadas, sempre ressaltavam expressões como "boa aparência", "ótima aparência", o que significava implicitamente que candidatas negras não deveriam se apresentar para aquelas vagas (Gonzalez, 2018).

Saffioti (1978), brasileira e pesquisadora do tema emprego doméstico, corrobora tal perspectiva, enfatizando que as opressões não são vivenciadas da mesma maneira por todas as mulheres, pois,

A consciência de classe suplanta a consciência que eventualmente uma categoria de sexo possa alcançar de sua situação. Se as mulheres da classe dominante nunca puderam dominar os homens de sua classe, puderam, por outro lado, dispor concreta e livremente da força de trabalho de homens e mulheres da classe dominada. A solidariedade entre os elementos de uma categoria de sexo subordina-se, pois, à condição de classe de cada um. Mesmo a relação entre os sexos varia em função, pelo menos parcialmente, da classe social a que pertencem os elementos envolvidos. (Saffioti, 2013, p. 133)

A autora salienta que as divisões recorrentemente utilizadas - de gênero, classe social e raça/etnia - são meramente teóricas, constituem uma metáfora, haja vista que estas três subestruturas não podem ser consideradas separadamente. Assim, Saffioti enfatiza que estas condições estão enoveladas, enlaçadas, não de maneira rígida e fixa, mas de modo dinâmico, manifestando-se consoante as circunstâncias históricas, ganhando relevos distintos conforme a situação. Estas condições se apresentam de modo diverso e contraditório no seio da sociedade patriarcal-racista-capitalista historicamente constituída. (Saffioti, 2004, p. 125).

As proposições de Saffioti (2004) podem, facilmente, ser identificadas nos estudos de Koffes (1994), quando esta autora configura a relação entre patroas e empregadas como ambígua e permeada por múltiplas contradições. Por um lado, a patroa deseja que a empregada desempenhe as funções concernentes à unidade doméstica, por outro, ela não deseja ser substituída em seu papel de dona da casa. Portanto, mantém o controle e o poder mobilizando inúmeros mecanismos, explícitos ou velados, que "caminham no sentido de afirmar uma das mulheres como empregada (no feminino) e a patroa como mulher" (Koffes, 1994, p. 138).

Nos estudos realizados por Koffes (1994, 2001), verifica-se, em termos práticos, no cotidiano da maioria das residências brasileiras, o desvelar da luta de gênero, classe e raça. Uma luta marcada por contradições, em que a emancipação de um polo significa o aprisionamento de outro, mas, também, uma luta que sintetiza as funções que secularmente são atribuídas às mulheres: a atividade reprodutiva que, desde os primordios do capitalismo, coloca-se como um trabalho do gênero feminino.

É fundamental adicionar à perspectiva trazida por Koffes (1994) o apontamento de que os estereótipos gerados pelo racismo e pelo sexismo aprisionam a mulher negra no mais baixo nível de opressão. E que o trabalho doméstico, da forma como é compreendido na sociedade contemporânea brasileira, acaba por reforçar a internalização do sentimento de inferioridade das mulheres negras, pois, por vezes, para elas, o trabalho doméstico constitui a única forma possível de inclusão no mercado de trabalho.

 

Considerações finais

Verifica-se que, no Brasil, assim como na maior parte dos países que constituem o mundo globalizado capitalista, atribui-se às mulheres o trabalho reprodutivo. Tal fato já apontado por Federici (2017), a despeito de aparentemente estar superado, contribuiu historicamente para que se associasse a atividade masculina à produção mercantil e, a feminina, à atividade familiar doméstica.

Quando se enfatiza que a atribuição de atividades domésticas a mulheres foi superada apenas aparentemente, revela-se que a emancipação feminina não se efetivou para a totalidade de mulheres. Ao passo que para as mulheres brancas foi possível sair de casa e galgar posições no mercado de trabalho, a situação das mulheres negras não sofreu alterações significativas no imaginário social. O que se observa é, cada vez mais, a transferência do trabalho doméstico sob responsabilidade das mulheres brancas, socialmente abastadas, para as mulheres negras e periféricas. Em outras palavras, constata-se que a atribuição do trabalho doméstico à mulher não deixa de existir, é apenas transferida entre mulheres.

Nesta transferência, mesmo a mulher branca das classes economicamente privilegiadas não deixa de ser a responsável pela execução do trabalho doméstico. Ao sair de casa, deixa explícita a lista de afazeres, transmite os detalhes relativos ao cuidado com os filhos, especifica o cardápio do jantar, etc. Comemora ingenuamente sua autonomia, a libertação da obrigação referente à execução das tarefas de casa, quando, na realidade, ainda lhe cabe socialmente a responsabilidade pelo âmbito doméstico. Em outros termos, a divisão sexual do trabalho produz o gênero, mas este não é experienciado da mesma forma por todas as mulheres. Enquanto as mulheres brancas social e economicamente privilegiadas vivenciam o trabalho assalariado como possibilidade de emancipação, uma grande maioria de mulheres - brancas e negras - pobres experimenta este enquanto exploração.

Vale ressaltar, contudo, que a esta exploração de classe é adicionado, no caso da mulher negra, o fardo do racismo estrutural, afinal, no tocante a estas mulheres, a divisão sexual do trabalho se encontra profundamente articulada com o racismo.

A articulação de gênero-raça-classe que subjaz na dimensão subjetiva cotidiana (Furtado, 2002, 2011; Bock & Gonçalves, 2009) foi social e historicamente constituída, havendo um ditado comumente utilizado no Brasil colonial como um de seus maiores expoentes: "Branca para casar, mulata para foder e negra para trabalhar" (Freyre, 2005, p. 48). Por meio desta expressão, percebe-se a existência de um ideário de mulher enquanto objeto útil: no caso das mulheres brancas da casa grande, úteis como mãe, donas de casa, relevantes para fornecer à família um status oficial; quanto às mulatas, em especial aquelas bonitas e dóceis, cabiam-lhes o papel de mucamas, submetidas aos desejos sexuais do senhor ou iniciadoras das práticas sexuais dos filhos destes; já no que concernia às mulheres negras, competiam-lhes exercer o papel de animais de carga, suportando as tarefas extenuantes das fazendas e dos engenhos.

As trabalhadoras domésticas, herdeiras da tradição "branca para casar, mulata para fornicar, negra para trabalhar" (Freyre, 2005, p. 48), não enfrentam o mesmo racismo sofrido pelos homens negros, uma vez que, para além de serem negras, são mulheres; ou então o machismo experimentado pelas mulheres brancas, pois, além de mulheres, são negras. É preciso que se compreenda a realidade destas trabalhadoras sob uma perspectiva específica e única, que evidencie os diferentes marcadores sociais que as caracterizam como indivíduos marginais, subcidadãs; ou, em outros termos, que se compreenda como, neste caso, articula-se a realidade capitalista-racista-patriarcal.

Neste sentido, pensadoras como Gonzalez (1982, 2018) e Saffioti (1978, 1987, 2004, 2013), por meio de suas diferentes perspectivas, oportunizam uma reflexão sobre o lugar reservado às trabalhadoras domésticas no Brasil contemporâneo. Ainda que lancem mão de diferentes linguagens e exemplos, ambas as autoras versam sobre como o cruzamento de diferentes marcadores sociais (classe, raça e gênero) atuam na perversa subalternização de determinados indivíduos na sociedade. As teóricas compreendem que não há, portanto, hierarquia entre os marcadores supracitados, afinal, estes obedecem a lógicas distintas, configurando diferentes sistemas de opressão.

Conforme abordado neste artigo, no caso do trabalho doméstico, estes marcadores se articulam de tal forma que tanto a trabalhadora quanto a atividade são percebidas como servis e subalternas. Ressalta-se, contudo, que tal percepção se deu ao longo da história, sendo, portanto, o aspecto histórico fundamental para a compreensão destes marcadores, bem como da subalternidade atribuída ao serviço doméstico. Além disso, ao se imbricar estes marcadores de forma histórica, percebe-se a razão de o reconhecimento dos direitos trabalhistas destas profissionais ter ocorrido de forma tardia. É por ter ocorrido de tal forma que as legislações e os avanços trabalhistas não foram suficientes para erradicar as desigualdades e a desvalorização do trabalho doméstico, visto que nas dimensões subjetivas e objetivas sociais sempre subjaz a visão do trabalho doméstico como "não trabalho", da empregada doméstica como "não trabalhadora", como "quase cidadã"; afinal, esta é, tão somente, uma extensão da patroa e de suas atribuições.

A partir da realização dessa análise, o presente artigo pretende contribuir para salientar a relevância do trabalho doméstico na sociedade brasileira, de modo a buscar uma minimização da desvalorização e da discriminação socialmente construídas em relação às empregadas domésticas. Acredita-se que uma atitude coerente com o ponto de vista assumido neste trabalho não seria a de um pretenso abolicionismo que declarasse o fim do trabalho doméstico, haja vista que suprimir esta atividade significaria acabar com a única ocupação disponível para milhares de mulheres, relegando-as, deste modo, à indigência. A atitude cabível seria a manutenção constante da luta pelos direitos destas trabalhadoras, bem como pelo reconhecimento destas como importantes agentes na sociedade brasileira. Esta luta não deveria ser a de um gênero, de uma raça ou de uma classe, mas sim a de todas as mulheres - e, claro, de todos os homens - no reconhecimento de que uma sociedade mais justa e democrática.

Como psicólogas(os) seguidores da tradição transmitida por Silvia Lane (1984), acreditamos que nossa prática deve se comprometer social e politicamente. A partir do legado de Lane, entendemos que a psicologia deve romper com a ideia de neutralidade e, com efeito, comprometer-se socialmente. Nessa perspectiva, a(o) psicóloga(o) não seria um profissional que atua somente com problemas ou em situações de caráter individual ou grupal; mas, primordialmente, um profissional que atua ciente de seu papel social, histórico e político.

Ao afirmar que "toda psicologia é social", Lane adverte que o social não é um acréscimo ao fazer da psicologia, mas constitui o próprio campo em que se dá o seu trabalho, seja este clínico, organizacional, social, etc. Assim, é preciso que a psicologia sempre caracterize cada pessoa, cada evento, cada situação, no âmbito de seu contexto social, que é intrínseco. Lane (1984) oferta como legado uma psicologia compromissada com o social - e, por isso, política.

Encarar a psicologia enquanto política é, destacar a importância deste campo interdisciplinar, ainda jovem no Brasil, mas, fundamental para a compreensão e interpretação dos processos sociais. É assumindo o fazer da psicologia como político que nos propusemos a refletir sobre o trabalho doméstico, analisando seus meandros e o modo como estrutura a sociedade atualmente. Ponderar sobre tais questões não é prerrogativa de áreas como a sociologia, antropologia ou serviço social; é preciso que mais e mais psicólogas(os) se impliquem em tais questões, que sejam capazes de pensar crítica e teoricamente sobre a sociedade em que vivem, a qual atravessa cotidianamente sua prática.

 

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Recebido em: 04/02/2019
Aprovado em: 18/06/2019

 

 

1 Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 66, de 2012, comumente conhecida como a "PEC das domésticas". Tal dispositivo legal altera a redação do parágrafo único do art. 7º da Constituição Federal, estabelecendo igualdade de direitos trabalhistas entre os trabalhadores domésticos e demais trabalhadores urbanos e rurais.
2 Lei que dispõe sobre o contrato de trabalho doméstico, alterando as leis anteriores e estabelecendo igualdade de direitos trabalhistas entre os trabalhadores domésticos e demais trabalhadores urbanos e rurais.
3 Sistema utilizado na colonização da América. Para o cultivo de gêneros tropicais, empregavam mão de obra escrava. Especificamente no Brasil, este sistema se destacou pela monocultura de café e de cana de açúcar, mas também por empregar largamente a mão de obra escrava.

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