INTRODUÇÃO
Ademocracia pode ser definida como um formato de governo no qual a soberania é exercida pelo povo, tendo em vista os interesses e a igualdade de participação, de poder e de expressão de todos os indivíduos (Michaelis, s/d). Tendo os regimes democráticos se estabelecido pela primeira vez nas civilizações grega e romana por volta do século V a.C. (Dahl, 2001), destaca-se a democracia participativa da cidade grega de Atenas, que buscava “dar aos cidadãos as mesmas possibilidades, sem olhar à categoria social, aos meios de fortunaou àcultura”(Ferreira, 1989, p. 172). Contudo, existiamcondições paraquealguémfosseconsiderado um cidadão em Atenas, de forma que esse regime foi marcado por fortes elementos de exclusão em relação a metecos (estrangeiros domiciliados emAtenas),escravos,mulheres ejovens comidadeinferior adezoitoanos (Cabral, 1997). Neste contexto, a democracia traz em si um conjunto de contradições que ocasionou em maior ou menor incorporação da população ao jogo democrático desde a antiguidade até os dias atuais (Cabral, 1997), havendo diferentes níveis e formas de livre expressão da pluralidade e do convívio da diversidade. Essas con-dições são essenciais para que a democracia seja exercida em sua plenitude e o mesmo ocorre com a retórica.
Tal relação entre democracia e retórica é destacada por Jean-Marie Klinkenberg (2001), que afirma que a arte do discurso surge para substituir a força física que costumava ser usada para administrar disputas de interesse por uma força simbólica: a do domínio sobre as ferramentas linguísticas, garantido adesão da coletividade. Segundo Lineide Mosca (2001), Aristóteles estabelece as bases da retórica de forma vinculada à persuasão e à sedução, mas não necessariamente à verdade. “Por essa razão, o seu campo é o da controvérsia, da crença, do mundo da opinião, que se há de formar dialeticamente, pelo embate das ideias e pela habilidade no manejo do discurso” (Mosca, 2001, p. 20). Entretanto, Klinkenberg (2001) aponta que o papel da retórica tende a oscilar entre uma concepção social e uma concepção formalista de acordo com o grau de democracia de uma determinada época.
Partindo desse pressuposto, ainda que se diferencie da democracia ateniense, o modelo representa-tivo instituído no Brasil apresenta problemas parecidos no que se refere às possibilidades de participação e à divisão equilibrada do poder entre os distintos setores da sociedade. Destaca-se na história do país o período do regime militar implementado a partir do ano de 1964, que, entre outras coisas, se preocupou em adotar medidas de censura e de controle do discurso (Fiorin, 2009). A liberdade de expressão no Brasil é recuperada e garantida constitucionalmente a partir de 1988, fazendo com que o campo da política volte a usar a retórica como ferramenta mediadora de lados opositores que buscam persuadir o interlocutor a favor de quem discursa. Já nas primeiras eleições presidenciais diretas após o fim do regime, ocorridas em 1989, o papel de destaque do discurso é percebido. Há nesse momento, segundo Carlos Fico (2015), uma intensa busca pela mudança e pela quebra com a “velha política” que se concentrou principalmente nas figuras de Luís Inácio Lula da Silva, devido ao seu discurso radical e apaixonado, e de Fernando Collor, que se destacou por seus discursos contra a corrupção e os privilégios políticos.
O discurso de Lula em prol da classe trabalhadora se manteve nas eleições de 1994 e 1998, tendo perdido ambas para Fernando Henrique Cardoso. Foi apenas em 2002 que o político, abrindo mão de suas posições mais radicais através do documento “Carta ao Povo Brasileiro”, assumiu uma fala moderada, prometendo estabilidade e respeito aos contratos do país, e conseguiu se eleger. “A simplicidade de seu discurso – que frequentemente resvalou para simplificação dos problemas – o tornou compreensível para todos os brasileiros, sobretudo os mais pobres” (Fico, 2015, p. 133). Sua sucessora, Dilma Rousseff, manteve um modelo próximo, apresentando discur-sos com temas e linguagem semelhantes na tentativa de manter o apoio do eleitorado de seu padrinho político, dando a eles a garantia de que as políticas iniciadas no governo anterior seriam mantidas (Vieira, 2017). Porém,
Seu primeiro governo foi marcado por diversas crises no plano econômico e também político. A crise econômica internacional produziu reflexos na economia brasileira, provocando a desaceleração do crescimento econômico vivenciado nos anos anteriores. Já no plano político, a ex-presidenta enfrentou escândalos de corrupção e dificuldades para negociar com o Congresso Nacional e os partidos aliados. (Vieira, 2017, p. 7)
Portanto, é nesse contexto que ocorrem os eventos que culminam na destituição de Dilma Rou-sseff da presidência em agosto de 2016, sendo seu vice, Michel Temer, empossado como Presidente da República. Com isso, as eleições de 2018 são marcadas pela fragmentação política e partidária, tendo ocorrido o aumento das manifestações contra a corrupção e a intensificação do antipetismo após o pro-cesso de impeachment (Almeida, Barros, & Macedo, 2021; Parzianello, 2019). Tais eventos, somados aos avanços da operação de combate à corrupção, Operação Lava-Jato, enfraqueceram diversos partidos políticos, em especial o Partido dos Trabalhadores (PT), oportunizando a ascensão do candidato Jair Bolsonaro (Almeida et al., 2021).
De acordo com Lindijane Almeida, Terezinha Barros e Jaylan Macedo (2021), o cenário político brasileiro era, até então, polarizado pelo PT e pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), que agrupavam a maior parte dos votos desde 1994. Contudo, o PSDB tornou-se coadjuvante na disputa presidencial das eleições de 2018 ao não ir para o segundo turno da corrida eleitoral. Dessa forma, a polarização política vista nas últimas eleições presidenciais “foi substituída pelo embate entre o candidato da esquerda progressista Fernando Haddad contra o político de direita, que se apresenta como liberal na economia e conservador nos costumes, Jair Bolsonaro” (Santos, 2019, p. 192). Embora tenha existido polarização no decorrer das eleições, o Relatório do Latinobarómetro (2018) aponta que o eleitorado brasileiro não confia nos partidos políticos e têm pouca identificação partidária na hora de votar. Frente a isso, o Horário Eleitoral Gratuito desempenha um papel relevante para aumentar a visibilidade das campanhas eleitorais ao favorecer a intensificação da cobertura jornalística e as discussões sobre as eleições entre o eleitorado (Menezes & Panke, 2020).
Analisando os estilos comunicativos das propagandas veiculadas no Horário Eleitoral Gratuito, Afonso de Albuquerque (1999) propõe nove tipos de mensagens presentes na construção dos discursos eleitorais. Dentre elas, Raimunda Duarte e de Célia Macêdo (2006) destacam quatro que são aplicáveis aos materiais de cunho textual: (a) construção da imagem do candidato; (b) discussão de problemas sociais; (c) ataque a adversários; e (d) pedagogia do voto. Ainda que nenhum desses autores tenha feito uso do método da Análise de Conteúdo, é possível encontrar relações entre o que ambos observaram e as categorias terminais derivadas das falas de cada candidato analisadas no presente trabalho, havendo a presença dos quatro tipos de mensagens citados acima na construção dos discursos analisados.
Além disso, enquanto as propagandas veiculadas na televisão funcionam como meios de comunicação de massa, as redes sociais possibilitam a conexão entre as pessoas e o contato direto do eleitor com o seu candidato (Silva & Kerbauy, 2019). Os impactos desse fenômeno já podem ser vistos no resultado das eleições presidenciais de 2018, tendo a vitória de Jair Bolsonaro com 55,13% dos votos (Folha de São Paulo, 2018) ocorrido com uma trajetória atípica, visto que o candidato com maior tempo na televisão e o maior fundo eleitoral não teve uma votação expressiva nas urnas.
Por outro lado, com “apenas nove segundos no horário eleitoral gratuito de TV e rádio, o [então] deputado federal aproveitou sua rede de distribuição de notícias pela internet, onde vídeos caseiros já virali-zavam sua opinião há cerca de dois anos” (Pacheco, 2019, p. 11). Além de sua desvantagem na distribuição do horário eleitoral gratuito, Cristina Pacheco (2019) também destaca que Jair Bolsonaro não compareceu a grande parte dos debates, praticamente não concedeu entrevistas e não conseguiu apoio de nenhum dos grandes partidos, construindo quase toda sua campanha baseado no que Letícia Cesarino (2019) chamou de “populismo digital”. Para a autora, o termo abrange tanto um instrumento midiático digitalizado, nesse caso, especialmente o aplicativo de mensagens instantâneas WhatsApp, como também os recursos discursivos que visam mobilização em massa e uma estratégia política de construção de hegemonia (Cesarino, 2019).
A partir dessa conjuntura de instabilidade e de intensa polarização política surge a preocupação e a necessidade de se analisar a forma como cada candidato estrutura seu discurso e quais temas são abordados na tentativa de mobilizar a população, visto que é na retórica que os conflitos são mediados em busca da decisão mais democrática. Para tanto, o estudo buscou analisar de que forma os principais candidatos à presidência das eleições de 2018 construíram seus discursos durante suas campanhas, com-parando as diferentes plataformas de comunicação dos candidatos e também comparando-os entre si. Através disso, objetivou-se analisar a construção e os principais temas e ideias articulados nos discursos dos três candidatos à presidência das eleições de 2018 com os maiores percentuais de votos recebidos após a apuração do primeiro turno das eleições (Folha de São Paulo, 2018), sendo eles: Ciro Gomes, candidato pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT); Fernando Haddad, candidato pelo Partido dos Trabalhadores; e Jair Bolsonaro, candidato pelo Partido Social Liberal.
MÉTODO
Para realizar a análise a qual se propõe o presente estudo, foi escolhido o método da Análise de Conteúdo proposta por Laurence Bardin (2011). Esse método de análise contém uma técnica adequada para a identificação das unidades de sentido, a chamada análise categorial, que ajudará na discriminação e contextualização dos temas mais abordados por cada candidato. Além disso, segundo Bardin (2011, p. 169), “a análise de conteúdo constitui um bom instrumento de indução para se investigarem as causas (variáveis inferidas) a partir dos efeitos (variáveis de inferência ou indicadores; referências no texto)”, possibilitando, assim, o levantamento de hipóteses sobre as intenções que se manifestam nos discursos analisados.
A análise de conteúdo proposta por Bardin (2011) envolve três fases, sendo elas: (a) a pré-análise, (b) a exploração do material e o (c) tratamento dos resultados, tratamento este que implica a codificação, a inferência e a interpretação.
DESCRIÇÃO DA AMOSTRA
Na fase de pré-análise foi realizada a seleção do material que formaria o corpus da pesquisa, levando em consideração as regras da representatividade, da homogeneidade e da pertinência. Dessa forma, foram selecionadas amostras de materiais que pudessem representar o grupo geral, que não apre-sentassem tantas singularidades entre si e que fossem fontes de informação coerentes com os objetivos da pesquisa (Bardin, 2011).
Partindo disso, o corpus, visando abranger possíveis mudanças de postura ao longo da campanha eleitoral, foi formado a partir das falas de cada um deles em suas primeiras e últimas participações em debates televisionados. Para o candidato Ciro Gomes, foram colhidas suas falas nos debates da Rede Bandeirantes, transmitido no dia 03 de agosto de 2018, e da Rede Globo, transmitido no dia 04 de outubro de 2018. Os discursos de Fernando Haddad foram retirados dos debates transmitidos pela TV Aparecida no dia 20 de setembro de 2018 e pela Rede Globo no dia 04 de outubro de 2018. Por último, o então candidato Jair Bolsonaro, com falas transcritas dos debates realizados pela Rede Bandeirantes no dia 03 de agosto de 2018 e pela Rede TV! no dia 17 de agosto. Além disso, também foi formado um segundo corpus de pesquisa complementar seguindo as mesmas regras, cujo conteúdo foi formado por duas propagandas políticas exibidas no horário eleitoral gratuito de cada candidato, sendo escolhidos o primeiro e o último material divulgados durante o período de campanha.
COLETA E PREPARO DOS DADOS
Para ambos os corpus de pesquisa utilizados, foi feita a coleta dos conteúdos referentes a cada can-didato a partir dos vídeos disponibilizados na conta oficial das redes televisivas, dos próprios candidatos ou de seus partidos na plataforma YouTube. Sendo feita a transcrição completa das perguntas e respostas dos debates e das falas e mensagens das propagandas selecionadas, todo o material pode ser analisado enquanto texto escrito. Com isso, formaram-se tanto categorias terminais comuns aos candidatos quanto categorias apresentadas unicamente por um deles. É importante ressaltar que, nos debates utilizados, há momentos em que candidatos questionam uns aos outros e momentos em que terceiros fazem perguntas para os candidatos, podendo essas serem questões de tema livre a escolha de quem pergunta, bem como de temas selecionados por sorteio.
ANÁLISE DE DADOS
Em seguida, na fase de exploração do material foi realizado o procedimento de codificação, que se refere a uma transformação dos dados brutos do texto. Seja “por recorte, agregação e enumeração, [essa fase] permite atingir uma representação do conteúdo, ou da sua expressão, susceptível de esclarecer o analista acerca das características do texto, que podem servir de índices” (Bardin, 2011, p. 133). Desta maneira, foram identificados e registrados os temas mais pontuais abordados pelos candidatos ao longo de suas falas, sendo eles os enunciados, ideias constituintes ou proposições mais significativas no discurso e que possuem significados isolados (Bardin, 2011, p. 135).
Por fim, na fase de tratamento dos resultados houve a categorização, definida como “uma operação de classificação de elementos constitutivos de um conjunto, por diferenciação e, seguidamente, por rea-grupamento segundo gênero (analogia), com os critérios previamente definidos” (Bardin, 2011, p. 147). Deste modo, o reagrupamento progressivo das pré-categorias identificadas na segunda fase do processo resultou em categorias terminais, as quais têm uma generalidade mais forte, permitindo uma interpretação e comparação dos assuntos mais presentes nos discursos de cada candidato, das questões implícitas e do tipo de público a que aquele discurso se destina. As duas primeiras fases foram realizadas com um dos autores ficando responsável pela análise dos textos de um único candidato, sendo essas análises poste-riormente revistas e discutidas com o restante dos autores durante a fase de tratamento dos resultados ou categorização, permitindo chegar às categorias discursivas terminais utilizadas na construção das falas dos candidatos e que serão apresentadas a seguir.
RESULTADOS
As categorias apresentadas a seguir se referem tanto a assuntos abordados espontaneamente pelos candidatos quanto a assuntos escolhidos através de sorteio, seja em suas perguntas ou respostas. Como pode ser observado na Tabela 1, foram levantadas trinta categorias de análise, sendo seis delas comum aos dois corpus, dezesseis exclusivas dos discursos nos debates e oito exclusivas das propagandas.
Categoria | Ciro Gomes | Fernando Haddad | Jair Bolsonaro | Corpus |
---|---|---|---|---|
Autopromoção | Sim | Sim | Sim | Ambos |
Busca por votos | Sim | Sim | Sim | Ambos |
Cenário mundial | Sim | - | - | Principal |
Chapa eleitoral | Sim | Sim | Sim | Complementar |
Conservadorismo | - | - | Sim | Ambos |
Cordialidade | Sim | - | Sim | Principal |
Crise política | Sim | - | Sim | Principal |
Críticas políticas | Sim | Sim | Sim | Ambos |
Defesa de acusações | - | - | Sim | Principal |
Democracia | Sim | Sim | Ambos | |
Desemprego e dívidas | Sim | - | - | Complementar |
Desigualdade social | Sim | Sim | Principal | |
Direitos sociais | - | Sim | - | Complementar |
Educação | Sim | Sim | Sim | Principal |
Ética e corrupção | - | Sim | - | Principal |
Família | - | Sim | - | Principal |
Governos petistas | - | Sim | - | Principal |
Manipulação de notícias | - | Sim | - | Complementar |
Meio ambiente | Sim | Sim | - | Principal |
Migração | - | Sim | - | Principal |
Militarismo | - | - | Sim | Principal |
Mudança política | Sim | - | Sim | Complementar |
Perseguição política | - | Sim | Sim | Complementar |
Plataformas Alternativas de Campanha | Sim | - | Sim | Complementar |
Problemas econômicos | Sim | - | - | Principal |
Projetos econômicos | Sim | Sim | Sim | Principal |
Projetos Estruturais | Sim | - | - | Principal |
Projetos sociais | Sim | Sim | Sim | Ambos |
Relação com Lula | - | Sim | - | Complementar |
Sistema carcerário | Sim | - | - | Principal |
Ainda segundo a Tabela 1, é possível notar que, dentre as vinte e duas categorias do corpus principal, seis delas foram comuns aos três candidatos: projetos econômicos, projetos sociais, educação, críticas políticas, autopromoção e busca por votos. Para além dessas, há também categorias terminais comparti-lhadas por dois dos candidatos analisados, sendo elas: desigualdade social, meio ambiente e democracia, comuns a Ciro Gomes e Fernando Haddad, também as categorias cordialidade e crise política, comuns a Ciro Gomes e Jair Bolsonaro. Os candidatos Jair Bolsonaro e Fernando Haddad não tiveram categorias comuns nesse corpus. Por fim, as categorias específicas de cada candidato são: projetos estruturais, pro-blemas econômicos, sistema carcerário e cenário mundial para Ciro Gomes; ética e corrupção, migração, família e governos do Partido dos Trabalhadores para Fernando Haddad; e militarismo, conservadorismo e defesa contra acusações para Jair Bolsonaro.
De forma semelhante, a partir do corpus complementar, foram formadas duas categorias comuns aos três candidatos dentre as catorze categorias terminais, sendo elas: chapa eleitoral e busca por votos. Já as categorias mudança política e plataformas alternativas de campanha estão presentes nas propagandas de Ciro Gomes e de Jair Bolsonaro, enquanto as categorias perseguição política e democracia se apresentam nas propagandas de Fernando Haddad e Jair Bolsonaro e a categoria autopromoção nas propagandas de Ciro Gomes e Fernando Haddad. Como categorias terminais exclusivas, estão presentes: desemprego e dívidas e projetos sociais nas propagandas de Ciro Gomes, relação com Lula, direitos sociais, críticas políticas e manipulação de notícias nas propagandas de Fernando Haddad e, por fim, conservadorismo nas propagandas de Jair Bolsonaro.
DISCUSSÃO
As estratégias de construção da própria imagem foram colocadas em uso nos discursos analisados e apareceram principalmente através da categoria autopromoção, se relacionando com uma tentativa de fabricar e solidificar uma imagem positiva e confiável para si mesmo. De acordo com Welisson Marques (2013), essa construção da própria imagem ocorre a partir da omissão das falhas e da evidenciação dos acertos relacionados a si e seus aliados, buscando firmar uma imagem de único detentor de um conhe-cimento e de uma experiência que lhe dão credibilidade para gestão do cargo. Apesar de estar presente nos três candidatos, há importantes diferenças na forma como tais categorias são construídas por cada um. Para Ciro Gomes, essa categoria se constrói a partir de suas falas sobre sua carreira política e suas conquistas, especialmente enquanto governador do estado do Ceará, havendo uma preocupação do can-didato em apontar projetos bem-sucedidos e também suas participações em ações conhecidas de outros governos. O candidato também constrói sua imagem apresentando seus conhecimentos através das categorias projetos econômicos, projetos estruturais e cenário mundial, articulando saberes específicos da área que demonstram sua perícia, mas que o distanciam do eleitor comum. Isso pode ser visto emsua réplica ao comentário de Álvaro Dias após pergunta do jornalista Rafael Colombo durante o debate transmitido pela Rede Bandeirantes:
Só o Brasil e a Estônia, um pequeno país do leste europeu, não cobram o lucro sobre os dividendos empresariais. O imposto perante as grandes heranças de grandes fortunas no Brasil é 4%, porém, no mundo afora é no mínimo 29%. E o Brasil tem 364 bilhões de renúncias fiscais para o baronato brasileiro enquanto falta educação, saúde, segurança para o conjunto da sociedade.
Já para Fernando Haddad, para além de seus feitos políticos enquanto Ministro da Educação, há o uso de argumentos morais para essa construção de imagem, mencionando ser um homem de família. O candidato também se apoia nas conquistas anteriores de seu partido, articulando a categoria de auto-promoção com as categorias governos do Partido dos Trabalhadores e ética e corrupção. Esses pontos obtêm destaque durante a tréplica do candidato a Marina Silva no debate transmitido pela Rede Globo:
Eu sei o que foram os 12 anos do governo do PT. Eu sei o que foi gerar 20 milhões de empregos e eu tenho duas obsessões na vida, só duas. Eu vivo de salário, Marina. Eu sou professor universitário, eu e minha esposa, com quem eu sou casado há 30 anos. Eu tenho ética, eu tenho uma história, eu tenho uma vida pública sem nenhum reparo, posso te garantir isso. Estou olhando aqui no olho do eleitor e dizendo que não existe nada que não seja, na minha vida, produzir o bem, trabalho e educação.
Por fim, de forma semelhante, Jair Bolsonaro vai além das menções à sua carreira política e mili-tar, usando argumentos morais para construir sua imagem e se defendendo de acusações feitas por outros candidatos, havendo assim uma articulação com a categoria defesa contra acusações. Ainda que não seja o único candidato a se defender de ataques de concorrentes, Jair Bolsonaro o faz um maior número de vezes e com uma maior variedade de temas, sendo o suficiente para que fosse formada uma categoria específica para tal. No trecho abaixo, durante sua participação no debate exibido pela Rede Bandeirantes, o candidato se defende de acusações sobre fazer da política “um negócio de família” e reforça seus aspectos morais:
Quanto a filhos, eu tenho moral para indicar filhos meus e o povo acredita em mim e vota neles. E meus filhos fazem um trabalho a contento na política. Nunca estive metido no poder executivo, nunca fui ministro ou secretário, sou uma pessoa humilde como outra qualquer e me orgulho sim da minha honestidade.
A categoria chamada ‘críticas políticas’ reflete o empenho dos candidatos em desconstruir e desqua-lificar a imagem dos adversários, abordando especialmente o abuso de privilégios políticos e críticas aos governos de outros partidos. Marques (2013, p. 442) afirma que a desconstrução dos oponentes ocorre a partir do “recrudescimento de erros e debilidades, bem como o apagamento de acertos, conquistas ou vitórias desses adversários”, ou seja, pretende-se “associar os seus adversários a valores negativos, tencionando descredenciá-los perante o eleitor” (Duarte & Macêdo, 2006, p. 1084). Contudo, as categorias manipulação de notícias de Fernando Haddad e perseguição política do candidato petista e Jair Bolsonaro trazem ataques que vão além de seus concorrentes e direcionam-se também à mídia e ao “sistema” de forma geral.
Ainda assim, há nos discursos de Ciro Gomes e de Jair Bolsonaro a presença da categoria cordia-lidade, expressada na forma de cumprimentos e elogios aos concorrentes e que se relaciona com uma estratégia de defesa da própria imagem através da manutenção de uma aparente relação amigável com os adversários, visto que, ao atacar os adversários, é preciso evitar se contaminar com o conteúdo negativo de seus ataques (Albuquerque, 1999). Aprofundando-se mais nas questões envolvidas em atacar seus adversários, Felipe Borba (2015) aponta que, enquanto o único possível benefício do ataque seja o ganho de votos, os malefícios podem incluir a perda de tempo de televisão devido ao direito de resposta, a perda de potenciais eleitores que não veem as críticas com bons olhos, o beneficiamento indireto de candidatos terceiros e, por fim, a diminuição da lista de potenciais aliados para o segundo turno e/ou para o exercí-cio de governar. Portanto, um sistema eleitoral multipartidário de dois turnos como o que usamos “têm o potencial para constranger tanto o volume de ataques quanto o seu conteúdo” (Borba, 2015, p. 277).
Também cabe destacar as categorias ‘crise política’, presente nos discursos de Ciro Gomes e Jair Bolsonaro, e ‘desigualdade social’, presente nos discursos de Ciro Gomes e Fernando Haddad, sendo ambas categorias um reflexo direto do contexto sociopolítico das eleições. Tais temas acabam por servir muitas vezes como pano de fundo para que candidatos fora do eixo polarizado construam uma imagem de serem a única e a nova solução para o problema, como visto nos discursos veiculados por Ciro Gomes e Jair Bolsonaro em suas propagandas através da categoria mudança política. De acordo com Ednaldo Ribeiro, Yan Carreirão e Julian Borba (2016, p. 631), “os impactos da atual crise política podem vir a modificar significativamente os sentimentos dos eleitores em relação a esses partidos [mais consolidados] e podem mesmo levar ao fim dessa polarização nas eleições presidenciais.”
Aprofundando-se nessa questão, um conflito central que pode ser notado como pano de fundo quase constante nos discursos analisados foi a dicotomia entre “petismo” e “antipetismo”, ponto central para compreender a polarização política existente no país durante o período eleitoral. Almeida et al. (2021), apontam que o contexto sociopolítico que circunscreve as eleições de 2018, permeado pela destituição de Dilma Rousseff e por avanços da Operação Lava-Jato, favoreceram a intensificação do antipetismo e enfra-queceram o Partido dos Trabalhadores. Ao responder o candidato Ciro Gomes durante o debate exibido pela Rede Bandeirantes sobre a quantidade de pessoas com dívidas no Serviço de Proteção ao Crédito (SPC), Jair Bolsonaro afirma que “muita gente honesta entrou no SPC acreditando na política do PT, acreditando que emprego viria ou que não perderia o seu emprego.” Em réplica a Jair Bolsonaro, Ciro Gomes diz:
Eu não estou muito preocupado, nesse assunto, com quem foi o responsável por essa tragédia. De fato, da Dilma para cá o Brasil está descambando todo dia e eu tomei uma decisão muito clara, embora tenha defendido o mandato dela contra o golpe na medida em que um presidente deve ter a estabilidade do seu mandato a não ser que seja ladrão e nem sequer a oposição mais violenta acusou a Dilma de ser ladra.
Segundo André Borges e Robert Vidigal (2018), no que diz respeito ao eleitor, a identificação com um partido se relaciona com a facilidade dos seres humanos em formar grupos e é possível que haja também fortes sentimentos partidários que podem estar relacionados com a existência de divisões ideológicas entre classes. Assim, uma disputa polarizada na qual são defendidas posições nitidamente opostas “aumenta a probabilidade de os eleitores conseguirem se identificar, se posicionar e desenvolver preferências claras em relação às agremiações políticas” (Borges & Vidigal, 2018, p. 57).
Além disso, os autores também apontam que, em um cenário de polarização no qual os eleitores possuem uma identificação partidária intensa, é comum a existência de fortes sentimentos negativos, especialmente de rejeição, em relação ao grupo oposto, sendo eles os principais causadores da divisão entre os lados. Para os autores Ribeiro, Carreirão e Borba (2016) é notável que, especialmente a partir de 2014, o petismo tem declinado em relação ao aumento da rejeição ao Partido dos Trabalhadores, fenômeno que já trouxe impactos significativos para as eleições presidenciais de 2018. Apesar de ter conseguido alcançar o segundo turno, o candidato Fernando Haddad apresentava 52% de rejeição de acordo com pesquisa do Datafolha divulgada no dia anterior à votação (G1, 2018), sendo esse um dos motivos que explicam a ascensão de Jair Bolsonaro ao cargo de Presidente da República.
Contudo, conforme comprovado pelo resultado das eleições, houve não apenas uma rejeição ao Partido dos Trabalhadores, mas também uma rejeição histórica ao processo de eleição, com a soma de nulos, brancos e abstenções do segundo turno chegando a 42,1 milhões de eleitores, cerca de um terço do contingente total (Grandin, Oliveira, & Esteves, 2018). Tais fenômenos podem ser relacionados ao descrédito social em relação aos agentes políticos devido aos diversos casos de corrupção e a falta de punição para os culpados (Marques, 2013) de forma que podem ser levantados questionamentos sobre a validade do modelo representativo de democracia, especialmente em um país de proporções continen-tais. De toda forma, analisando outras possíveis variáveis para o resultado das eleições, Borges e Vidigal (2018, p. 80) apontam que ainda é cedo para saber se a grande quantidade de votos em Jair Bolsonaro foi reflexo de “um crescimento do eleitorado conservador ou se trata apenas de resultado conjuntural da fragmentação da centro-direita e da ausência de um candidato tucano sólido.”
Analisando mais um dos tipos de mensagem presente nos discursos eleitorais, as categorias ‘pro-jetos sociais’, presente no discurso dos três candidatos, e ‘desigualdade social’, presente nas falas de Ciro Gomes e Fernando Haddad, sintetizam a discussão de problemas sociais, que possui a função de apresentar o candidato como um político sério e competente, além de servir como uma tentativa de apelo à consciência do eleitor através da discussão de questões sociais (Albuquerque, 1999). Dessa forma, para abordar tais questões, Ciro Gomes, além de discutir sobre outros temas pertinentes através das categorias meio ambiente e sistema carcerário, tratou especialmente de assuntos envolvendo geração de empregos, dívidas da população e previdência social, como pode ser visto durante o debate exibido pela Rede Globo, no qual o candidato afirma que
o que está em jogo aqui, meu irmão e minha irmã brasileiros, são 13 milhões e 700 mil pessoas desempregadas, 32 milhões de brasileiros saindo de manhã e de madrugada para viver de “bico”, desprotegido de qualquer lei, o que está em jogo aqui são 63 milhões de brasileiros com o nome humilhado no SPC [Serviço de Proteção ao Crédito]
Representando esse pilar, o candidato Fernando Haddad teve em seus discursos categorias como migração, família e direitos sociais e traz majoritariamente, em suas falas que compuseram a categoria desigualdade social, temas como garantia de direitos trabalhistas, geração de emprego e o acesso da população mais pobre às políticas públicas de inclusão e assistência. Isso pode ser visto em sua fala no debate transmitido pela TV Aparecida, quando, em resposta ao candidato Henrique Meirelles, afirma:
Se nós não olharmos para o sofrimento do povo nesse momento, para quem está faltando creche, para quem está faltando remédio, como disseram aqui Ciro [Gomes] e Marina [Silva], para quem está faltando casa a preço justo, para quem está faltando renda para terminar o mês. Se nós não olharmos para esse trabalhador brasileiro agora, nós vamos colher frutos muito ruins.
Jair Bolsonaro, por sua vez, trouxe posicionamentos especialmente sobre segurança pública e defesa da mulher, apoiando a castração química e alterações nas permissões de armamento da popula-ção como medidas a serem tomadas, como demonstra em sua réplica a candidata Marina Silva durante debate na Rede TV:
Eu defendo a mulher, inclusive eu defendo a castração química para estupradores [...] E no tocante à arma de fogo, eu defendo sim que a mulher, inclusive, caso queira, a mulher de bem, preparada, que tenha a posse de arma de fogo dentro de casa pra se defender, se assim ela o desejar.
Por fim, relacionando-se ao último tipo de mensagem proposta por Albuquerque (1999) e discutida também por Duarte e Macêdo (2006), as categorias ‘chapa eleitoral’e ‘busca por votos’estão presentes de forma ostensiva nos discursos de todos os candidatos através de pedidos diretos aos eleitores ou slogans dos partidos, buscando “apelar ao eleitor, com a intenção de induzi-lo a votar em determinado candidato” (Duarte & Macêdo, 2006, p. 1084).
Na comparação entre as categorias apresentadas pelos candidatos durante os debates e aquelas derivadas de suas propagandas é possível notar um certo grau de repetição de categorias entre as duas plataformas de discurso, havendo nas propagandas uma extensão de temas abordados. Tal fenômeno indica um uso das propagandas como ferramenta de complementaridade e de extensão dos temas abordados pelos candidatos durante os debates, buscando assim aumentar a amplitude do apoio conquistado em um ambiente no qual o candidato possui maior controle sobre o que e como falará, planejando-se com antecedência e adequando seu discurso ao seu público alvo.
Com isso, as propagandas podem ser analisadas da mesma forma que Marques (2013, p. 441) ana-lisa os discursos políticos veiculados em mídias impressas: “A única ‘voz’ é a do sujeito enunciador e sua manifestação impossibilita a interpelação do candidato, a indagação, o questionamento. Certos espaços enunciativos construídos até criam a ilusão de diálogo, de se fazer ouvir a voz do outro, todavia, o enunciador, obviamente, é o único ‘regulador’ desses discursos.” Sendo assim, abre-se a possibilidade de se abordar assuntos mais contundentes e controversos sem o risco de ter a legitimidade de sua fala questionada por um terceiro ou sem a interferência de filtros jornalísticos (Menezes & Panke, 2020), como pode ser visto no uso das categorias ‘manipulação de notícias’, perseguição política e relação com Lula por Fernando Haddad, que constrói suas propagandas acusando a existência de uma conspiração política contra seu partido e o ex-presidente Lula e afirmando que trará de volta ao país o cenário positivo que havia nos governos ante-riores do Partido dos Trabalhadores. De forma similar, Jair Bolsonaro apresenta a categoria ‘perseguição política’, alegando ser alvo de ataques injustos por parte de seus concorrentes, da mídia e do “sistema”.
Outro aspecto importante que distingue os discursos apresentados pelos candidatos nos debates com aqueles utilizados em suas propagandas é a complexidade dos assuntos abordados. Como as propa-gandas são uma plataforma de curta duração, a estratégia que parece ter sido adotada consiste em abordar diversos temas de forma direta, ainda que superficial, ao invés de buscar se aprofundar em algum deles durante o breve intervalo de tempo que se tem disponível, tarefa que poderia ter um resultado de difícil compreensão para os eleitores que assistem. A divisão desigual de tempo das propagandas é outro fator que também afeta a questão da complexidade e do aprofundamento de temas, visto que há uma nítida diferença entre os discursos de Jair Bolsonaro e Ciro Gomes, que têm como foco não mais do que duas categorias terminais em cada propaganda, e os discursos de Fernando Haddad, que apresentam múltiplas categorias devido ao maior tempo disponível para suas propagandas.
O tempo disponível para passar sua mensagem é, inclusive, um importante ponto que diferencia os discursos apresentados nas propagandas de cada candidato. Enquanto debates apresentam divisões igualitárias de tempo e mecanismos que se certificam de que as regras sobre quem possui a palavra serão seguidas, como intervenção de moderadores ou ainda o silenciamento de microfones, as propagandas têm uma distribuição desequilibrada de tempo. Nessa plataforma, 90% do tempo disponível é repartido de forma proporcional ao número de cadeiras ocupadas pelo partido na Câmara Federal, sendo apenas os 10% restantes divididos de forma igualitária (Tribunal Superior Eleitoral, 2016). Com isso, partidos com maior representação possuem uma vantagem sobre partidos de menor representação, sendo esse o caso, por exemplo, do Partido dos Trabalhadores.
Todavia, embora haja essa desvantagem para alguns candidatos, estudos que analisaram aspectos do contexto sociopolítico das eleições de 2018 enfatizam que o tempo de propaganda eleitoral não foi uma variável decisiva para o resultado da disputa, visto que o candidato com menor tempo de televisão foi eleito em detrimento do candidato com maior tempo de propaganda e maior fundo eleitoral, Geraldo Alckmin (Santos, 2019; Silva & Kerbauy, 2019). Dessa forma, a categoria terminal plataformas alter-nativas de campanha, presente nas propagandas de Ciro Gomes e Jair Bolsonaro, serviu como forma de compensar o tempo reduzido que possuíam, divulgando redes sociais e sites nos quais os eleitores podem encontrar informações que não conseguiram ser passadas nas propagandas.
Como apontado por Sérgio Braga e Márcio Carlomagno (2017), o crescimento do uso de mídias sociais por parte dos candidatos vem ocorrendo desde 2010, quando foi permitida através da legislação eleitoral que candidatos usassem recursos digitais além de seus próprios sites para realizarem suas cam-panhas. Nas eleições presidenciais brasileiras de 2018, as redes sociais se apropriaram de parte do espaço consolidado pelos debates televisivos e propagandas, ao possibilitar campanhas eleitorais nas quais os candidatos podiam controlar como e o que seria exposto ao público e nas quais não havia um tempo limite a ser respeitado, permitindo inclusive a superação de desvantagens como tempos curtíssimos de televisão. Além disso, o ambiente digital permitiu uma maior horizontalidade para as campanhas e os debates em oposição a uma “verticalidade” representada pela influência da mídia tradicional, o que pode trazer tanto benefícios quanto malefícios, como visto nas diversas denúncias de notícias falsas. Por um lado, abriu-se espaço para que eleitores debatessem entre si ou diretamente com os candidatos acerca dos diversos temas que mobilizaram as eleições e expandiu-se o número de agentes com capacidade de influenciar a tomada de decisão dos eleitores e, por consequência, o resultado das eleições. Dessa forma, “longe de estarem ‘pregando para os convertidos’esses candidatos usariam essas mídias para ‘pregar através dos convertidos’ disseminando informações e mensagens em redes de apoio que potencializam enormemente suas estratégias de comunicação política” (Braga & Carlomagno, 2017, pp. 41-42). Contudo, por outro lado, o crescimento desenfreado de “agentes influenciadores” em espaços digitais nos quais a fiscalização e o controle da vera-cidade das notícias compartilhadas não são garantidos se mostrou um problema, como visto pelas inúmeras denúncias de notícias falsas que permearam todo o período de campanha dos candidatos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do quadro de instabilidade política que permeou as eleições presidenciais de 2018, este estudo se propôs a compreender de qual forma e com qual intuito os candidatos a esse cargo construíram seus discursos. Por meio da ‘Análise de Conteúdo’ de Laurence Bardin (2011), foram identificadas as categorias terminais empregadas nas falas dos principais candidatos e, partindo disso, foi possível analisar divergências e semelhanças presentes em seus discursos, bem como investigar se havia mudanças no discurso de um mesmo candidato em plataformas de comunicação distintas.
Desde as civilizações gregas, o discurso tem sido uma ferramenta fundamental para o exercício da democracia. Por meio dele, é possível que a resolução de conflitos seja realizada num âmbito de força simbólica, e não física, sendo essa capacidade de manejar as palavras o que garante a adesão do coletivo. Conforme explorado na discussão, as falas dos candidatos apresentaram diversos elementos similares, uma vez que os discursos eleitorais fazem uso de temas comuns, como democracia, educação, saúde e economia, objetivando conquistar a confiança do eleitorado. Todavia, a forma como esses elementos são abordados muda a depender de outros fatores, como o alinhamento político e/ou econômico do candidato e de seu partido, permitindo, por sua vez, a diferenciação de a qual público seu discurso pretende atingir.
Ciro Gomes apresentou uma visão mais focada em projetos pontuais e específicos para recupera-ção da economia e em um plano de desenvolvimento nacional pautado nos modelos bem- sucedidos de outros países. É possível notar que o candidato concebe a desindustrialização do Brasil como o principal problema a ser enfrentado, a partir de um projeto com foco em uma aliança entre os diversos setores da população (Balthazar et al., 2018). Essa aliança almejada por Ciro Gomes se reflete em seus posicio-namentos frente à polarização política presente nas eleições, tendo o candidato ressaltado em diversas de suas falas a importância do voto consciente e sem extremismos e sobre representar uma “terceira via” para aqueles que não se identificavam com Fernando Haddad ou com Jair Bolsonaro. Também faz diversas referências ao projeto “Nome Limpo”, que se refere a um dos pilares de sua campanha que, ao mesmo tempo em que promete recuperar o fluxo econômico e o crescimento do país, também apela para as faixas mais pobres e com restrições ao crédito em uma possível tentativa de conquistar votos que antes pertenciam ao ex-presidente Luís Inácio.
O candidato Fernando Haddad construiu seus discursos principalmente com defesas das acusa-ções contra o Partido dos Trabalhadores e contra o ex-presidente Lula, buscando empregar a estratégia populista geralmente utilizada pelo partido e tentando criar uma imagem de moralidade e conformidade com os costumes, questões que tiveram importante papel para a disputa à presidência. Além disso, o candidato também buscou em diversas oportunidades conectar sua imagem com a da emblemática figura política de Lula e construir “uma identidade que não se estruturava em oposição a qualquer um dos candidatos, mas focava a convergência concreta entre Lula e Haddad, em uma oposição generalizada contra o golpe, contra as elites, contra o Brasil do atraso” (Balthazar et al, 2018, p. 79). Foi através desse pareamento constante que o candidato buscou conquistar o contingente de eleitores que antes apoiavam a candidatura do ex-presidente. Ainda seguindo nesse alinhamento com o discurso “lulista”, o candidato colocou como base do desenvolvimento e do combate ao desemprego o investimento em organizações e serviços públicos. Dessa forma, assumindo a ausência de políticas públicas eficazes e a perseguição às classes mais pobres como dois dos principais problemas do país, o candidato pretende recuperar a paz, retomar a inclusão social e o crescimento da economia, com promessas de priorizar a educação, a justiça e a democracia (Balthazar et al., 2018).
Para Jair Bolsonaro, seus discursos apresentaram coesão com a imagem construída pelo candidato, que busca sempre mencionar questões referentes ao patriotismo, à falta de moral nas instituições sociais, aos princípios cristãos, à família tradicional e a importância de ações policiais intensivas para resolver as falhas na segurança pública. Em suas falas, é possível observar a questão da desvalorização das polícias e o apelo à moral ao usar o termo “cidadãos de bem”, que se tornou uma forma característica de se referir a população com a qual buscava dialogar. A estratégia de trazer o debate político para a dimensão moral observada no discurso do candidato, apelando para os “cidadãos de bem”, que geralmente apresentam perfis conservadores, religiosos e/ou autoritários (Balthazar et al., 2018), demonstra a forma com que as eleições de 2018 foram marcadas por um ativismo político conservador que tende a avançar pela América Latina, com o objetivo de restaurar uma ordem moral e social tradicional tida como sob ataque (Mariano & Gerardi, 2019). Por fim, é perceptível em seus discursos a construção de um claro inimigo que precisa ser combatido para que o país possa se desenvolver e para que a vida dos indivíduos possa melhorar, criando assim uma estratégia de acentuação da polarização entre os dois grupos criados durante seus discursos, estando do seu lado uma população injustiçada e prejudicada por seus governantes e que devem depositar sua confiança na figura de um novo político que irá salvá-los.
Em relação à exposição do discurso em plataformas distintas, observou-se através da análise do corpus complementar que as propagandas eleitorais são utilizadas para expandir os temas abordados nos debates, além de permitirem que temas mais polêmicos possam ser citados sem a presença de críticas imediatas dos opositores e com total controle do candidato sobre o que será divulgado. Ainda assim, as propagandas possuem importantes limitações em relação ao tempo disponível, especialmente para par-tidos com menor representação na Câmara Federal, tendo as redes sociais desempenhado um importante papel na superação de tais limitações.
Além disso, a partir das análises feitas, é possível hipotetizar sobre a crise de efetividade dos dis-cursos eleitorais e da retórica política frente aos eleitores e seu papel como potencial barreira ao exercício da democracia, especialmente ao se considerar a renúncia de parte da população frente ao seu poder de decisão e às questões políticas de forma geral. Antônio Cabral (1997, p. 307) afirma que “as especifi-cidades brasileiras se traduzem na edificação de uma sociedade com pouca ou quase nenhuma tradição democrática”, de modo que o modelo representativo instituído no Brasil apresenta problemas no que se refere às possibilidades de participação e à divisão equilibrada do poder. No cenário atual, a internet surge como potencial problema ou solução para a participação efetiva da população na tomada de decisões políticas (Gomes, 2005), visto que, se por um lado, ela pode proporcionar instrumentos e alternativas para dar voz ao eleitorado, por outro, o acesso à internet, por si só, não assegura o incremento da atividade política argumentativa ou sequer garante que o feedback do eleitor terá influência nas decisões políticas.
Sendo assim, diante da relevância da situação política brasileira em tempos de mudança, o pre-sente artigo buscou analisar a forma como os principais candidatos à Presidência do Brasil em 2018 construíram seus discursos durante suas campanhas, evidenciando que uma sociedade polarizada tende a apoiar discursos antidemocráticos. Contudo, destaca-se que o estudo apresenta algumas limitações no que se refere à quantidade limitada de material de análise e a ausência de outras fontes de discurso, como, por exemplo, publicações feitas pelos candidatos em suas redes sociais durante o período oficial de campanha. Neste contexto, é preciso que mais estudos sejam realizados buscando melhor esclarecer as funções do discurso político e, em específico, do discurso eleitoral no exercício da democracia na era contemporânea e em tempos de mídias digitais. Dessa forma, haverá a possibilidade de estabelecer o papel que as redes sociais e os discursos propagados através delas desempenham para o sucesso ou o fracasso de uma candidatura e desenvolver parâmetros ainda mais precisos quanto às distintas estratégias de construção de discurso utilizadas pelos candidatos em relação aos mais variados temas, condições e plataformas. Ademais, um volume maior de material dará a chance de buscar pelas mudanças de temas abordados ou de posicionamentos ao longo da campanha política, aspecto que não pode ser avaliado em detalhes no presente trabalho.