INTRODUÇÃO
Iniciamos esses escritos afirmando a força revolucionária das memórias na luta contra as tentati-vas de apagamento das violências que ferem as existências dos indivíduos, mas não só, na medida em que as violações de direitos humanos produzem rasgos no tecido social e convocam à construção de um pensamento crítico, engajado com uma historicização radical, por meio da costura de passado, presente e futuro, conforme nos propõe Frantz Fanon (2020) acerca da união dos elementos do tempo para a compreensão das experiências; e Margareth Rago (2013), em alusão à importância do passado para a construção de novos futuros. Assim, consideramos a transmissão dos testemunhos das denominadas “feri-das sociais traumáticas”, teorizadas por Grada Kilomba (2019), como parte de um processo de “escuta do impossível”, como analisa Márcio Seligmman-Silva (2008): uma ação necessária dentro dos esforços de transformação social, com destaque para seu caráter político, o que torna esse debate pertinente ao campo de produção de conhecimentos da Psicologia Política.
Nesse sentido, buscamos reconstruir as memórias sobre os manicômios da região de Sorocaba/SP, por meio do testemunho de mulheres que neles trabalharam, nos aproximando de cicatrizes que marca-ram a história dessa “terra rasgada”1: a presença massiva dos espaços denominados por Franco Basaglia (2010) como “instituições da violência”. Acreditamos que as recordações que estruturaram esses escritos, costuradas ao presente a partir da combinação dos elementos traduzidos em oralidade, como nos ensinou Maurice Halbwachs (1980), podem nos mover numa linguagem que se constitua, nas palavras de Viviane Mendonça, como “o sentido da comunidade como resistência, fundada na palavra própria” (2020, p. 25).
A região composta por Sorocaba, Salto de Pirapora, Piedade e Pilar do Sul, no final do século XX e início do XXI, foi reconhecida como o maior polo manicomial da América Latina e se tornou alvo de denúncias de violações de Direitos Humanos, dentre as quais destacamos a pesquisa realizada por Marcos Garcia (2012) em bancos de dados públicos (DATASUS), que apontou para os altos índices de mortalidade das pessoas privadas de liberdade nesses hospícios. A ação do movimento social antimanicomial local, em parceria com a universidade federal e com familiares de pessoas internadas, trabalhadores, parlamentares, dentre outros atores sociais, resultou no processo de fechamento do polo manicomial, que se completou em 2018, sob vigência de um Termo de Ajustamento de Conduta pactuado em 2012 por Ministério Público do Estado de São Paulo, Ministério Público Federal, Governo Federal, Governo do Estado de São Paulo e prefeituras de Sorocaba, Salto de Pirapora e Piedade (Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, 2013).
Em função da dificuldade de acesso aos dados históricos, fontes primárias, prontuários e mesmo de pesquisas in loco durante o pleno funcionamento das instituições, por se tratarem de hospitais psiquiátricos privados, em sua maior parte (Garcia, 2012), buscamos analisar alguns pontos dessa complexa trama social da qual fizeram parte os hospícios, a partir das memórias das trabalhadoras ouvidas por pesquisa de doutorado em desenvolvimento, conduzida pela primeira autora do presente artigo e orientada pelo segundo autor. A pesquisa obedece aos Critérios da Ética em Pesquisa com Seres Humanos e foi apro-vada pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da UFSCar (CAEE 66084917.0.0000.5504).
A ‘História Oral’ foi a nossa escolha para a construção do percurso metodológico, numa aposta que se voltou para a multiplicidade de vozes e olhares presentes no encontro intersubjetivo descrito por Alessandro Portelli (2016) e Daphne Patai (2010), como forma de resistência às lógicas positivistas da Ciência Moderna. A denominada “arte da escuta” (Portelli, 2016) nos guiou na busca pelos relatos sub-jetivos das entrevistadas, mas não só, na medida em que as reflexões produzidas pelas “recordadoras”, seguindo a nomeação proposta por Ecléa Bosi (1994) para os colaboradores de suas pesquisas, trouxeram elementos importantes para analisarmos a institucionalidade e a função social dos manicômios.
Entrevistamos quatro mulheres que trabalharam nos manicômios da região de Sorocaba (quadro que será expandido para a conclusão do estudo), que se encontram numa faixa etária entre 45 e 60 anos, cujos nomes reais foram substituídos por nomes fictícios e seguem apresentadas: Geni é uma mulher cisgênero, branca, heterossexual e atuou como psicóloga em dois manicômios masculinos; Yolanda é uma mulher cisgênero, branca, heterossexual e atuou como terapeuta ocupacional em um manicômio misto e em outro masculino; Nair é uma mulher cisgênero, negra, heterossexual e atuou como psicóloga em um manicômio masculino; Cristina é uma mulher cisgênero, branca, heterossexual e atuou como auxiliar de enfermagem em um manicômio feminino e no manicômio masculino que, à época de sua atuação, foi transformado em polo de desinstitucionalização. A média de tempo de trabalho das entrevistadas nos manicômios foi de dez anos e três meses, correspondeu ao período compreendido entre os últimos anos da década de 1980 e o ano de 2013. Juntas, elas trabalharam em quatro dos sete manicômios da região de Sorocaba, sendo que todas trabalharam no maior hospital psiquiátrico do território.
Os encontros para a (re)construção das memórias foram presenciais apenas no caso de uma entre-vistada, a primeira mulher ouvida, e ocorreram em ambiente virtual com as outras três (via plataformas digitais, a saber, reunião pelo Google Meet e chamada de vídeo pelo WhatsApp), em função do contexto da pandemia de Covid-192, entre setembro de 2019 e novembro de 2020. Todas as entrevistas foram gravadas e o número de encontros dependeu da disponibilidade e da sugestão das próprias entrevistadas, de acordo com os processos de rememoração de cada uma. A pesquisa foi afetada pela necessidade de adoção do distanciamento social, tendo sido desafiadora a realização dos encontros virtuais, tanto por algumas falhas na conexão, como pelo contato limitado às imagens de corpos “planos” e enquadrados por telas (celular e computador), trazendo as preocupações de ser vista (“me vê?”) e de ser ouvida (“me ouve?”) como atravessamentos na construção do vínculo, tão caro ao “encontro entre olhares”, como Portelli (2016) conceituou as “entre-vistas”.
Ouvir mulheres fez parte de nossa tentativa de construção de uma pesquisa feminista, crítica à presença da dominação patriarcal no modo como nos contam as histórias, que são marcadas por um arca-bouço conceitual forjado pela racionalidade moderna, que exclui as subjetividades e a heterogeneidade das experiências, negando emoções e afetações inerentes, assim, ao ato de produzir ciência: uma Ciência Positivista que exclui as mulheres das narrativas históricas (Rago, 2013). Assim, buscamos investir na construção de histórias vivas ancoradas em memórias encarnadas, que marcam e produzem os corpos através das experiências, memórias e afetações, segundo os ensinamentos de bell hooks (2017).
Nas conversas com as recordadoras, inserimos algumas temáticas no contexto das reflexões que estavam sendo produzidas – superficialmente ou de modo mais elaborado – pelas próprias entrevistadas: com relação às pessoas privadas de liberdade nos manicômios, os questionamentos abarcaram assuntos relacionados à desumanização, constituição étnico-racial, questões de gênero e sexualidade, castigos físi-cos, medicalização, infantilização, mortes, controle das experiências das pessoas internadas e resistências; no tocante à condição das trabalhadoras dos manicômios, questionamos sobre as diferenças intragênero, institucionalização do trabalho, divisão sexual do trabalho, constituição étnico-racial, ações desalienantes e efeitos subjetivos das experiências vividas.
As histórias com as quais nos conectamos trouxeram muitas “imagens de vida”, que foram cons-truídas pelas recordadoras por meio de revelações de verdades que a elas importavam e que, inclusive, passaram pelas suas escolhas de responderem ou não aos questionamentos que lhes dirigimos (Patai, 2010). Buscamos construir algumas análises em ato, nas entrevistas, sobre os temas que se sobressaíram na oralidade das entrevistadas, e observamos que, o modo como responderam às intervenções e provo-cações, teve relação direta com seus processos de exploração e elaboração das memórias, com maior ou menor abertura ao reconhecimento de pontos invisibilizados nas experiências vividas, numa relação constante entre o pessoal e as marcas coletivas (Halbwachs, 1980).
Em nosso processo de interpretação, o olhar para o singular coexistiu com a análise horizontal sobre uma “costura” das narrativas – um relacionamento entre as entrevistas pareceu ser incontornável –, “impregnados” que ficamos pela leitura repetitiva das transcrições e pela escuta das gravações, para nos utilizarmos de uma expressão de Guy Michelat (1982), que nos levou à imersão em uma trama profunda, marcada por “detalhes” que ecoaram na oralidade das entrevistadas. Os temas que emergiram ora se complementaram, ora se contradisseram, mas sempre se cruzaram, o que demonstra que as experiências individuais se constituem como memórias sociais (Halbwachs, 1980). Pudemos, até o momento, construir interpretações e análises provisórias sobre o conjunto do material, tanto pelo fato de a pesquisa estar em desenvolvimento, como por uma interessante analogia que tomamos de Michelat (1982), quando este propõe uma relação entre o conceito de elaboração psíquica da psicanálise – “teoricamente, a análise não tem fim” (Michelat, 1982, p. 209) –, e os elementos que estruturam as entrevistas não-diretivas no campo social: assim como ocorre com o processo analítico, na entrevista não-diretiva, a construção do esquema de significações parece não ter fim, apesar de ser factível o momento de parar, em ambos os contextos, quando se atinge uma determinada estabilidade.
Feitas essas considerações, nos ateremos, nesteartigo, àinterpretação dos temas quenos “impregnaram” deformadiretaeapresentaramumaestabilidadenocampo:as relações quesustentaramainstitucionalização das pessoas privadas de liberdade nos hospícios pesquisados, considerando o racismo, o cisheterossexismo e o classismo como processos eprodutos das violências psiquiátricas. Buscamos contribuir paracomplementar o que já era conhecido em termos de violações de Direitos Humanos nos manicômios, para fortalecer os processos de elaboração das experiências associadas a essas “memórias rasgadas”.
Consideramos pertinente sinalizarmos, junto com Melissa Pereira e Rachel Gouveia Passos (2017), que uma perspectiva não deve sair de nosso horizonte: o acirramento das opressões, manicomializações, encarceramentos e mortificações, ocorrem especialmente em momentos de crise do capital e afetam prin-cipalmente corpos negros, pobres e periféricos, excluídos em nome de um falso equilíbrio da sociedade. Parafraseando Franca Ongaro Basaglia (1986), destacamos ainda que as faces da fome, da miséria, das pestes, das violências e de outras mazelas sociais não diferem muito da face da loucura.
MEMÓRIAS RASGADAS
A região de Sorocaba é marcada por uma reforma psiquiátrica tardia – o tratamento de caráter asilar e violador de Direitos Humanos teve um fôlego extra na região, em desacordo ao previsto pela legislação brasileira, desde a promulgação da chamada “Lei da Reforma Piquiátrica”, em 2001 (Lei n. 10.216/2001) –, o que ainda necessita ser problematizado; bem como se faz necessário um investimento na elaboração das marcas sociais traumáticas (Kilomba, 2019) produzidas pelas violências praticadas, não como uma experiência de virar a página da história dos hospícios, mas, sim, para a elaboração de um conhecimento crítico sobre essas experiências.
Erving Goffman (2007) conceituou os manicômios como instituições totais – locais de moradia e trabalho de grande número de indivíduos em situação semelhante, submetidos a uma vida institucio-nalmente administrada – destacando que os mesmos utilizavam o recurso da privação como principal instrumental técnico: privações da liberdade, dos pertences pessoais, da identidade, dos direitos de cidadania, da nutrição adequada, da sexualidade e da possibilidade de se relacionar em qualquer nível. O manicômio, portanto, privava o indivíduo de qualquer relação que o colocasse, por menor que fosse a experiência, no lugar de sujeito, caracterizando-se, conforme apontado por Franco Rotelli (2001, p. 61) como o “lugar zero da troca”. E os pavilhões, as grades, os muros, as paredes, os cadeados deixavam muito explícita, por meio da segregação espacial, essa impossibilidade de relação:
As pacientes chegam agressivas, não adianta a gente falar que não. ...Essas, que não podiam ir para o refeitório, elas ficavam no (local utilizado para contenção), que era assim..., ele tem toda uma grade, ele tem vidro, mas tem uma grade por fora, então as pacientes que chegavam, elas já entravam ali, porque tinha risco de fuga. ... Elas tinham que ficar nuas, depois iam pro banho e a gente já fazia a higiene todinha, a gente verificava se tinha escabiose, sarna, piolho, fazia tudo, olhava tudo, sabe. E aí elas tomavam o banho e colocavam a roupa nossa. (Cristina)
Sempre, olha desde sempre, eu fiquei 10 anos no (nome do manicômio misto) e 2 anos no (nome do manicômio masculino) e sempre, sempre tinha alguma coisa reformando. Sabe, o espaço físico. Uma lógica mesmo de construção de parede, de construção de portas, de fechar mesmo e de cadeado... assim, todos os tipos de violência. (Yolanda)
Naquela época era permitido camisa de força, eletrochoque e o Amplictil e Fenergan era água com açúcar. ... A gente tinha muitos pacientes com sequela de medicação, com paradas cardíacas por conta de excesso de medicação ... Não sei se você sabe que flufenazina injetável é a camisa de força química. Você já viu? O paciente trava mandíbula, trava os membros superiores e inferiores. ... Ele anda de quatro, ele engatinha porque todos os músculos travam, inclusive a mandíbula. Ele não consegue abrir a boca pra morder. Então quando o paciente ficava agressivo, agitado, era usado como punição física sim ... Tinha uma psiquiatra que tinha o lado dela, porque ela fazia pesquisas e tinha contratos com laboratórios pra testar medicações. ... Ela podia fazer isso porque eles eram as cobaias, né. (Geni)
Os testemunhos das recordadoras evocam acontecimentos que tiveram um lugar na vida da socie-dade sorocabana, são fortes e necessitam pautar o debate social acerca do que se compreende como “tratamento” em saúde e como projeto de sociedade. Desse modo, apostamos no potencial dessas recor-dações, inspirados pelas teorizações de Steve Stern, em entrevista para Mariane González Le Saux e Marcela Sandoval (2012), acerca das “memórias soltas” e das “memórias emblemáticas”: as memórias individuais, nomeadas pelo autor como “memórias soltas”, ao serem publicizadas e costuradas com outras narrativas, mantém as questões históricas socialmente vivas, sendo reconstruídas no âmbito coletivo e ressignificadas como “memórias emblemáticas”, configurando-se como memórias disruptivas, que podem contribuir para a transformação social (Le Saux & amp; Sandoval, 2012; Rago, 2013).
Perdia-se muitos pacientes nos hospitais. Um dia, por exemplo, eu cheguei na sala de psicologia do hospital, aquele que eu comentei com você que foi o primeiro a fechar por denúncia de maus tratos e era realmente o que era pior, e lá tinha um corpo... paciente tinha falecido. ... Esse homem era um senhor branco. ... Então perdia-se muitos pacientes com tuberculose no meio do ano, muito, muito de tuberculose na época do inverno. Já no outro hospital que trabalhei, teve o caso de um paciente que eu lembro que tinha epilepsia, ele tinha uns 17 anos e ... não tinha funcionário suficiente pra cuidar de 700 pacientes ..., então esse paciente teve uma crise convulsiva e caiu de boca numa poça d´água e morreu afogado. ... Esse rapaz tinha a pele clara, mas ele tinha um olho bem puxado, acho que tinha descendência indígena. (Geni)
Para a compreensão do quadro social forjado pelos manicômios, na perspectiva de construção de “memórias emblemáticas” (Le Saux & amp; Sandoval, 2012), acionamos os trabalhos desenvolvidos por Rachel Passos (2017, 2018a) e as análises dos autores Abdias Nascimento (2016) e Antônio Bispo dos Santos (2019) para problematizarmos as marcas da formação social daquilo que nos foi nomeado como Brasil. Tais marcas revelam que o processo de colonização como sinônimo de civilização, fundante da sociedade brasileira, foi responsável pela implantação de políticas brutais que resultaram em grandes extermínios e no aniquilamento subjetivo dos não-brancos, numa lógica que levantou fronteiras para as existências tratadas como a antítese do colonizador. Assim, a visão “mono” referente a um padrão único de sociedade, herdeira do monoteísmo imposto pela ‘Igreja Católica’ – grande aliada dos colonizadores europeus nos processos de exploração dos territórios, expropriação das riquezas e escravização dos corpos nomeados pelos colonizadores como indígenas e negros – tentou matar as cosmovisões e diferentes experiências dos povos que representavam essa antítese do homem branco europeu (Santos, 2019; Nascimento, 2016). As memórias também foram submetidas ao poder histórico da branquitude e do patriarcado, afetadas por representações racistas e pelas políticas de matabilidade herdadas do processo de colonização (Fanon, 2008; Kilomba, 2019).
Os privilégios concretos e simbólicos das populações brancas se constituem como aspectos centrais na história da formação social brasileira, sendo produtores e distribuidores dos padrões segregacionistas, racistas e patriarcais desde a colonização (Fanon, 2008; Passos, 2018a, 2018b). Essa questão se apre-senta, portanto, como uma das questões “chave” para a compreensão da função dos manicômios, que necessitam ser analisados como instituições que sustentam a sociedade colonial-capitalista. O processo de manutenção das vantagens sociais da branquitude, conforme análise de Lia Schucman (2020), deixou marcas perpetuadoras de opressões e exclusões, cujo resultado foi nomeado por Maria Aparecida Bento (2014) como “exclusão moral” daqueles que não faziam parte do seleto “clube da humanidade”, para nos utilizarmos de uma expressão de Ailton Krenak (2019), aqui aplicada aos manicômios:
70 ou 73% dos pacientes eram negros e pardos, que ainda era utilizado o nome na época. ... Os prontuários tinham a foto dos pacientes e eles eram identificados, apesar da precariedade, todos eram identificados por nome, por mais que fosse só um nome como os que vieram para a gente da FUNABEM, com nada, só aquele papel de abandono e um nome que provavelmente foi criado por eles lá. Não era necessariamente um nome real porque as pessoas não tinham certidão de nascimento, tinha apenas uma ficha, não vinha mais nada e era só aquilo. (Geni)
O silenciamento e o ocultamento das existências pelos muros dos manicômios refletem um ima-ginário construído sobre o louco como o “outro”, especialmente marcado pela divergência do modelo do “homem universal”, que é masculino, heterossexual, branco, proprietário e sem deficiência. Esse “outro” do “homem universal” é relegado à “zona do não ser”, de acordo com Fanon (2008), análise que nos ajuda a problematizar a desumanização e dominação, especialmente dos corpos e comportamentos negros, como questão fundamental para a compreensão dos desdobramentos do processo de colonização que forjaram a sociedade capitalista e suas instituições (Passos, 2020). O enclausuramento no manicô-mio, portanto, representa a execução de um “trabalho que sujaria as mãos” da sociedade, protegendo-a da revelação de “sua face violenta abertamente” (Basaglia, 2010, p. 94), o que demonstra a centralidade destas instituições na organização social e espacial dos territórios, sendo que o hospício emerge como uma tecnologia de homogeneização e invisibilização das tensões sociais, ao afastar do olhar da sociedade as mazelas e desigualdades estruturais (Scarcelli, 2011).
Quando eu entrei ainda era assim, então pegava o andarilho, tinha a ambulância psiquiátrica. Isso era 88, 89... a polícia pegava o sujeito na rua e largava lá na porta do hospital e o hospital se virava com a burocracia da internação. ... Virou uma coisa meio como saída pra tudo, não tinha CREAS POP, não tinha CRAS, não tinha Resi dência Terapêutica, não tinha nada. Então o que fazer com o andarilho? Manda para o hospital. Era isso. ... O motivo de internação de crianças e adolescentes era por qualquer coisa, era por abandono, assim aqueles que estavam nos albergues. Sabe, onde tinha vaga para mandar? No hospital psiquiátrico. Vinham dos orfanatos. (Geni)
Eu até falei brincando que a gente tem que ficar muito esperto porque hoje em dia tá assim, se você tá na rua fora de hora, se tá descalça e com o cabelo bagunçado, a polícia te pega e te leva pra psiquiatria. Porque era assim que eles definiam, porque eles achavam que o paciente, o paciente não, que a pessoa tá ali, se eles não sabem qual é a história dela, então já pega e acha que tem que levar direto pra psiquiatria. (Cristina)
O contexto dainstitucionalização dos sujeitos sebaseavano apagamento desuas histórias, produzindo o que Goffman (2007) denominou como “mortificação do eu”; conceito que dialoga com a produção de uma “morte-em-vida” a determinados grupos sociais, análise que o filósofo camaronês Achille Mbembe (2018) atribuiu às marcas produzidas pela escravização, como cerne para a compreensão das desigual-dades contemporâneas nos países colonizados, o que acreditamos ser adequado para compreensão dos contextos brasileiros. Assim, a condição de sujeito sem história, habitante da “zona do não ser” (Fanon, 2008), produziu a cronificação das pessoas privadas de liberdade nos manicômios, reduzindo-as aos seus corpos biológicos (Agamben, conforme citado por Mbembe, 2018), por meio de um violento processo de alienação e desumanização. As pessoas institucionalizadas estavam aprisionadas a um quadro cotidiano de destruição humana, que se constituía como a condição da aceitabilidade social de um verdadeiro “fazer morrer” (Mbembe, 2018).
Eu me deparei com situações de crueldade e desumanidade absurdas. Era um lugar realmente horrível, tinha o cheiro de urina e de fezes que impregnava no cérebro. Os pacientes nus, os gritos, a higiene péssima. No refeitório, a gente via então os pacientes nus, comendo com as mãos. Ala 8 abre, então abria e a enfermagem tocava [pausa]. Parecia gado. A primeira vez que eu vi um banho foi em (nome do munícipio), lá é muito frio, não sei se você conhece ..., mas é mais frio que aqui. O pátio era de barro, de terra e os pacientes nus tirados as 5 da manhã dos leitos, os que ficavam em pé, lógico, tomavam banho de mangueira. (Geni)
Todo mundo tinha que tomar banho, então pavilhão 5, por exemplo, qual era o horário do banho? Quatro e meia da manhã. Então ia todo o pavilhão, ficava nu numa fila, esperando pro banho. Igual campo de concentração. (Yolanda)
No enfrentamento a essa lógica desumanizante, destacamos as contribuições de Fanon (2008, 2020), que, seguindo as tendências críticas do pós-guerra à Psiquiatria Positivista, contribuiu com a sua análise sobre a “sociogênese” do adoecimento mental. Em sua crítica à Psiquiatria, o autor considerou a centralidade dos fenômenos sociais na produção dos quadros de alienação e sofrimento mental, denun-ciando, desse modo, a vacuidade dos conceitos etnopsiquiátricos coloniais do pré-guerra que, segundo suas análises, naturalizavam como transtornos mentais os fenômenos que poderiam ser determinados por fatores sociais e culturais. As teorizações e a história vivida deste importante pensador negro descorti-naram a naturalização da doença mental com base racial, trazendo para o debate a crítica à manutenção de estruturas impostas pela cultura da dominação colonial-capitalista, tendo a Psiquiatria Moderna se constituído historicamente como processo e produto do racismo científico.
Voltando nosso olhar agora para a denominada “indústria da loucura” brasileira, da qual a região de Sorocaba fez parte, que se valeu da política de exclusão de parcelas cada vez mais significativas da população, é possível inferirmos, a partir das contribuições de Pereira e Passos (2017), que a loucura que foi (e ainda é) prioritariamente encarcerada é a loucura marcada pelos determinantes de raça/etnia, gênero, identidade de gênero, classe, sexualidade, geração, religião, território, dentre outros condicionantes sociais. A psiquiatrização da sociedade, portanto, não ocorre de forma homogênea, conforme nos apontam Maria Clementina Cunha (1989), Marcos Garcia e Amana Mattos (2019), o que se configura como análise indispensável para compreendermos as especificidades relacionadas aos processos de admissão e o “tratamento” conferido às pessoas privadas de liberdade nos hospícios.
A “ZONA DO NÃO SER”: RACISMO COMO ESTRUTURANTE
O Paulinho “urubu” que eu falei pra você, ele era preto, preto, preto e o apelido já diz, entendeu? Era “urubu” porque ele era muito preto. Eu não sei quem deu esse apelido, não sei se foi entre eles mesmos, porque quando eu cheguei já tinha. Esse apelido do Paulo “jacaré”, por exemplo, por que “jacaré”? Porque ele era banguelo, então ele não tinha os dentes, então a turma... porque jacaré é aquele com os dentes, mas tem uns que não tem, né. ... Então o Paulinho que era o “urubu”, ele tinha os dentes maravilhosos, branquinho, branquinho, só que ele era preto, preto, preto, aí o “urubu” eu acredito que seja por isso. (Nair)
O diagnóstico psiquiátrico, conforme mencionado nas recordações das entrevistadas como cen-trais para a caracterização dos corpos encarcerados nos manicômios, pareceu conferir a eles o caráter de propriedade da própria instituição (Basaglia, 2010): não se sabia mais quem havia nomeado aquela sub-humanidade, caracterizada por um “eu” esfacelado (Goffman, 2007; Kilomba, 2019), que passou a ser aquilo que lhe foi atribuído, donde “Paulo jacaré” e “Paulo urubu” se apresentam como símbolos de um processo de objetificação e animalização, representando a omissão sobre a seletividade do sistema manicomial, que segregava predominantemente corpos negros (Passos, 2018b).
Sobre a constituição étnico-racial dos manicômios, o campo demonstrou a existência de uma divisão racial dos corpos: nos dois manicômios masculinos e no manicômio misto, predominava a população negra entre as pessoas privadas de liberdade; enquanto que entre as equipes que trabalhavam nessas instituições, predominavam pessoas brancas, especialmente entre os técnicos com formação de nível superior, havendo a presença de pessoas negras prioritariamente entre as profissões mais subalternizadas.
Predominava a população negra, muito mais, tanto em mulheres quanto nos homens, muito marcado. Eu acho que a mesma proporção dos orfanatos, porque a lógica da exclusão é a mesma, né. Mas como todos tinham que ter um diagnóstico psiquiátrico, quando não era assim uma doença mental específica, então vinha como retardo mental. (Yolanda)
Eu era a única negra no grupo e só depois entrou uma outra mocinha. Negra na parte técnica, né. Tinha uma outra que trabalhou lá, só que ela é mais clara de pele do que eu, então tá naquele meio a meio... como eu falei pra você, hoje não existe mais essa coisa de mulato. Então ela é mais clara. ... Então, eu até comento isso com você... não existe isso, mas eu vou falar pra você, os pacientes eram do mulato pro negro. ... O hospital tinha bastante negro, mas tinha branco também. ... E daí tinha os alcóolatras também, tinha de pele clara, tinha mulatão e negro. (Nair)
Entre as auxiliares de serviços gerais tinham algumas negras, mas tinham brancas também e eram mais mulheres; os auxiliares de enfermagem também, tinham brancos e negros, mulher e homem. Os médicos... não tinha nenhum negro e eram mais homens. ... Nos funcionários de nível superior predominava o branco, na verdade a gente só tinha uma funcionária negra, ela era a única, é, só ela... As monitoras eram mais afrodescendentes, mas não eram negras, entendeu? Eu sei que não usa mais o termo, mas era mais pra parda, eram mais claras. Na cozinha era predominantemente mulher e todas eram brancas. (Geni)
A ex-trabalhadora do manicômio exclusivamente feminino, afirmou, sobre a constituição étnico-racial das mulheres privadas de liberdade e da equipe:
Eu não via muito a questão, porque parecia assim que, entre pacientes brancas e negras, era a mesma quantidade, parece assim que não tinha mais de um, mais de outro, é, não havia. Era meio dividido, sabe. Eu acho que era metade branca e metade negra, acho que não tinha muita diferença. Tinha só um médico que era negro que eu me lembro. ... Agora a parte de enfermagem, a gente tinha, não eram muitos, eu acho que dava pra contar nos dedos quantos eram negros. O (nome do manicômio), se eu não me engano, ... dos cem funcionários, eu acho que uns vinte ou trinta eram de cor, se a gente for estimar em números, né. Na terapia ocupacional, no serviço social, na psicologia, só tinha pessoa branca. Na parte da cozinha ..., das doze funcionárias, acho que apenas umas duas ou três eram negras. Na limpeza, auxiliar de serviços gerais tinha poucos negros também, tinha pouco. Era aquela coisa de ter entre quinze e dezesseis funcionários, de quatro a cinco era de cor. Na lavanderia, não tinha nenhuma pessoa de cor. (Cristina)
O manicômio feminino, diferentemente do que foi levantado nos dois masculinos e no misto – em que havia prevalência de pessoas negras entre as pessoas privadas de liberdade –, tinha a presença equivalente de mulheres negras e mulheres brancas entre as internadas, de acordo com a narrativa de Cristina; dado que necessita de maiores investigações. Algumas suposições nos ocorrem quando pensamos que a questão étnico-racial está tramada com gênero, classe, idade e sexualidade de mulheres e homens internados nos hospícios, elementos que ainda necessitam ser mais explorados no desenvolvimento do campo da pesquisa.
As pessoas que compunham as equipes, por sua vez, eram predominantemente brancas em todas as instituições analisadas, especialmente entre os cargos com formação de nível superior, havendo a presença de pessoas negras principalmente nos cargos mais subalternizados na hierarquia institucional. Três das entrevistadas (Geni, Nair e Cristina) afirmaram, quando questionadas sobre essa divisão racial dos corpos – pessoas internadas e equipes –, que não havia racismo estruturando as relações nos manicômios. Destacamos inclusive o uso da expressão “de cor” por uma das recordadoras (Cristina), que se constitui como termo estigmatizante no Brasil, diferentemente do uso corrente daexpressão no cenário estadunidense, por exemplo.
Não existia a discussão sobre o racismo até porque no tratamento, no empenho que a gente tinha, isso não era relevante. Eram todos taxados de psiquiátricos e não havia essa questão, não. (Geni)
Entre eles tinha uma maior concentração de pacientes negros, mas não tinha discriminação, também ninguém se xingava de macaco, nem nada. E cabia a nós também corrigirmos se acontecia de algum deles xingar o outro. ... Mas não tinha preconceito, não tinha. (Nair)
Mas não tinha essa coisa de racismo, tava ali e a gente cuidava de todas com muito carinho. ... Mas lá dentro, não tinha essa coisa, de funcionário ter preconceito com paciente, essas coisas não. (Cristina)
A suposta inexistência de racismo nos manicômios, de acordo com as reflexões das recordadoras, pode ser um indício da ocorrência do que Abdias Nascimento (2016) denominou como “círculo vicioso de discriminação”, onde predominam as condições desfavoráveis para a população negra em todos os espaços por elas ocupados, o que naturaliza as violências cometidas contra seus corpos. A realidade de omissão do racismo constitui um problema de ordem estrutural, portanto não deve ser entendido como algo restrito às experiências das mulheres entrevistadas, mas como o processo que se encontra entranhado na sociedade, produtor de uma fratura histórica forjada sobre a falácia da ficção de raças, conforme análises de Michel Foucault (1999), Fanon (2008) e Kilomba (2019). Essa ficcionalidade da raça possibilita aos sistemas de poder operar por dicotomias – raças superiores e raças inferiores –, que se desdobram em outras experiências definidas por dualismos, como o normal versus o patológico ou a alienação versus a razão –, produzindo marcas inconciliáveis, que inviabilizam o contrato social entre aqueles que são considerados sujeitos e aqueles que são violentamente rebaixados em seu status de humanidade.
O racismo estrutural, na visão da socióloga Lélia Gonzalez (2019), seria o sintoma que não é visto, nomeado ou discutido. A historiadora aponta que não há espaços de discussão sobre as memórias da colonização, sobre a escravização e sobre seus impactos e reproduções nas dinâmicas sociais e culturais, o que revela a força dessa ferida por ela denunciada e conceituada como a “neurose cultural brasileira” que, em articulação com sexismo, produz efeitos violentos sobre a mulher negra (Gonzalez, 2019). Essa análise pode ser associada ao “mito da democracia racial”, forjado pelas teorias da miscigenação, embranquecimento e aculturação (Santos, 2019), o que produz o apagamento do apartheid “à brasileira” que, embora não esteja na legalidade, produz a realidade social, representando uma política de genocídio que opera por um “racismo mascarado” (Nascimento, 2016).
Outro ponto que consideramos importante destacar faz alusão ao processo de infantilização das pessoas privadas de liberdade nos hospícios:
Porque elas também eram muito infantilizadas, né. Acho que, no tratamento, também uma grande violência é a infantilização do paciente. ... Então quer dizer, era uma violência moral, no sentido de desqualificação do sujeito, né. (Yolanda)
Tinha uma ala que a gente falava a ala das crianças... trinta tinha essa ala, mas eles não eram crianças, já eram adultos. (Nair)
Conheci a ala infantil, que a gente falava infantil porque assim, tinha uma faixa etária menor ... A gente tinha uma Kombi, que era a Kombi das meninas, inclusive na Kombi tinha o desenho de umas menininhas. Eu não lembro bem a cor, não me lembro se eles chegaram a pintar a Kombi de cor de rosa. (Cristina)
Consideramos de grande importância as recordações sobre a infantilização das pessoas internadas nos manicômios, por tratar-se de uma questão produtora e reprodutora da dependência das mesmas. O sequestro do tempo da pessoa privada de liberdade, cuja existência permanecia fixada em um tempo--espaço que não possibilitava qualquer mudança e que se repetia cotidianamente, impunha dificuldades para a construção de condições autônomas de vida, modulando, desse modo, comportamentos cada vez mais regredidos e cronificados. A ocorrência de uma ruptura total entre o público e o privado, de acordo com Ianni Scarcelli (2011), resulta na produção de comportamentos comprometidos no sentido das representações, da aparência, do modo de comer, do ato de urinar e defecar em qualquer lugar; e, associada à infantilização e desumanização dos corpos, pode resultar no desenraizamento do tempo e no não-pertencimento a outro lugar que não o próprio hospício.
Basaglia (2010) afirmou,sobre o doente mental, que este carregava a marca de alguém sem poder, o que pode ser associado à crítica de Fanon (2020) sobre como a psiquiatria de aparência científica aliada ao racismo, assim como a medicina moderna, de modo geral, infantilizaram e desumanizaram os corpos negros. Fanon (2008) refere que a condição vivida do negro é fixada pelo olhar do branco, o que produz em sua existência as marcas da tentativa de infantilização e enquadramento destes a uma condição de “primitivos”; sendo essa atitude do branco perante o negro considerada uma atitude humilhante e paternalista (Fanon, 2008).
A partir do relato das recordadoras, pudemos inferir que, sobreposta à condição de desumanização que era naturalizada para indivíduos em sofrimento mental, a infantilização dos corpos aprisionados nos hospícios era mais pungente, no caso dos homens, frente à ocorrência de alguma deficiência – física, mental ou sensorial – e, no caso das mulheres, como uma questão essencializante atribuída ao gênero feminino. Esses aspectos de desumanização e infantilização pareceram produzir, no contexto dos manicômios pesquisados, um cenário de maior privação e de maior controle dos corpos e comportamentos das mulheres institucionalizadas.
GÊNERO, SEXUALIDADE E PEDAGOGIAS MANICOMIAIS
Buscamos analisar as histórias construídas pelas recordadoras por meio de lentes que nos ajudaram a delimitar os conceitos de gênero, raça/etnia e classe, como estruturantes, inseparáveis e tramados nas relações sociais, conforme apontam Lélia Gonzalez (2019) e María Lugones (2020), dentre outras pensadoras que construíram os feminismos negro e decolonial. Compreendemos que racismo e cishete-rossexismo não apenas criam as exclusões na intersecção das relações, mas engendram todas as relações sociais e todos os padrões específicos de subjetividade, atuando como dimensões decisivas na organização dos cenários de igualdades e desigualdades, de acordo com Angela Davis (2016) e Françoise Vergès (2020). A partir dessas lentes, tentamos construir uma escuta sensível às marcas indeléveis produzidas nos corpos submetidos às segregações dentro dos manicômios.
Citamos ainda a importante contribuição de bell hooks (2017) para a construção de um pensamento crítico sobre gênero, atentos às armadilhas da homogeneização e universalização do gênero, na tentativa de não reproduzirmos argumentos essencialistas sobre o que o patriarcado nomeou como a “natureza” feminina, o que estaria ancorado na ideia de “a mulher universal” como sinônimo da mulher branca, típico do que Vergès (2020) denominou como feminismo branco civilizatório. Desse modo, bell hooks (2017) e outras autoras dos feminismos críticos construíram reflexões fundamentais para problematizar a categoria gênero, na luta contra a política de apagamento das diferentes localizações sociais das mulheres, com destaque para o uso do termo “interseccionalidade”, que foi cunhado pela advogada, acadêmica e autora negra estadunidense Kimberlé Crenshaw (2020), no final da década de 1980, como desdobramento de um contexto de lutas das mulheres negras, indígenas e do “terceiro mundo”, inseridas nos movimentos sociais e nos espaços acadêmicos (Pereira & amp; Passos, 2017). Assim, a busca por “descrever as várias maneiras com que raça e gênero interagem formando uma dimensão múltipla das experiências das mulheres negras” pode ser expandida, segundo Crenshaw (2020, p. 26), quando também se consideram as questões de classe, orientação sexual, idade e cor.
As análises dos feminismos críticos sobre as opressões produzidas “pela matriz Estado, patriarcado e capital, que fabrica a categoria ‘mulheres’ para legitimar as políticas de reprodução e de categorização, ambas racializadas” (Vergès, 2020, p. 51), nos ajudam na compreensão de que as mulheres não repre-sentam espontaneamente uma categoria política, sendo imprescindível o delineamento de um campo de lutas articuladas para a libertação das mulheres em suas diferentes experiências, que considere a categoria gênero numa perspectiva combativa e interseccional, como defende Patricia Hill Collins (2017).
De volta à problematização dos testemunhos, uma das entrevistadas, que trabalhou por dez anos em um manicômio misto, identificou importantes aspectos relacionados aos marcadores de gênero e sexualidade:
Os homens, principalmente os homens com dependência química, eles viravam trabalhadores do hospital: pintavam o hospital, participavam da reforma. Em um dos hospitais era a horta, sabe. A horta era a atividade mais importante pros dependentes químicos. ... Eles desciam lá na horta, que era longe, um pouco mais longe do pavilhão ... Então não precisava viver com aquele controle o tempo todo. As pacientes, principalmente as mulheres, elas eram postas pra dormir as 5 horas da tarde. ... Assim, todos os dias tinha quebra-quebra, elas se cortavam, quebravam a janela, quebravam o vidro, era um horror. E aí ficavam nos quartinhos presas, em situação de castigo mesmo. A maioria desses castigos era ficar trancada no quarto, porque dependendo, por exemplo, teve briga e uma machucou a outra, ou se teve rela ção sexual, era reprimida, inclusive com medicação. ... Elas até podiam ficar no pátio de mãos dadas, alguma coisa assim ... Então se elas falavam que estavam namorando fulano, ciclano, tudo bem, mas que não passasse disso. (Yolanda)
Os corpos das mulheres, segundo os relatos de Yolanda, pareciam mais sujeitos ao controle insti-tucional, inclusive pela via da repressão da sexualidade feminina. Esse controle, porém, era permissivo aos casos de estupros cometidos contra essas mesmas mulheres privadas de liberdade:
Tinha também o caso do abuso sexual cometido pela equipe. Os homens cometiam os abusos e os alvos eram mais as mulheres. Mas geralmente, quando era denunciado, por exemplo, daí o auxiliar, geralmente era o auxiliar ou técnico de enfermagem, mas tinha caso de médico também. Então era mais assim, a pessoa recebia uma repressão da administração, uma coisa mais verbal, mas nada muito sério, sabe? Uma outra coisa, os homens, os pacientes homens que estavam em melhores condições, até poderiam estar de alta, mas ainda permaneciam no hospital. ... Eles tinham as chaves dos pavilhões, então eles tinham acesso como se eles fossem funcionários do hospital, entendeu? Então eles também cometiam os estupros contra as mulheres que estavam trancadas nos pavilhões. (Yolanda)
As questões apontadas por Yolanda nos fazem pensar que, mesmo os homens que ocupavam um lugar mais baixo nas relações sociais, tiveram acesso a alguns privilégios do patriarcado, fossem eles auxiliares e técnicos de enfermagem que ocupavam os cargos mais subalternizados na hierarquia insti-tucional entre os funcionários, ou os próprios homens internados. Esses privilégios configuravam uma assimetria das relações de poder relacionadas ao gênero, especialmente caracterizados nas cenas acima descritas pela permissão de acesso aos corpos das mulheres, tanto pelos homens internados como pelos trabalhadores, sem qualquer consequência; e, no caso dos homens institucionalizados, pela possibilidade de permanecerem menos controlados no interior dos hospícios, pela via da prestação de serviços.
Abrimos um parêntese para destacarmos a questão da utilização da mão-de-obra das pessoas internadas, referida no relato de Yolanda, que também esteve presente nos processos de construção das memórias das outras recordadoras, marcados por uma diferença entre as atividades desenvolvidas por homens e mulheres, ficando a cargo das mulheres as atividades relacionadas ao trabalho reprodutivo:
Ali no (nome do projeto), ela vinha, ela limpava, porque ela tinha esperança de que um dia ela ia sair dali que ela poderia voltar na sociedade, né. A gente ensinou pra elas... que era o recomeço na sociedade, né. ... Então elas aprendiam a arrumar sua cama, tinha algumas que ajudavam na limpeza do bloco, algumas ajudavam na limpeza do refeitório, tinha algumas que já iam até ajudar na cantina que havia no hospital. ... era mais ou menos assim, as que recebiam alta eram aquelas que ficavam muito agitadas ou as drogaditas, que chegavam na triagem e já saíam. Nos outros pavilhões, não tinha paciente que recebia alta e era isso mesmo que você comentou, era uma “alta celestial”, infelizmente. (Cristina)
Sobre esse ponto do trabalho, Goffman (2007) descreve a “laborterapia” praticada nos hospitais para doentes mentais como a realização de atividades inferiores relacionadas às necessidades do estabe-lecimento, mas que eram apresentadas aos sujeitos como tarefas que, quando assumidas voluntariamente, comprovariam a melhora de seu quadro psiquiátrico e representariam uma possibilidade de alta que não necessariamente acontecia. Vale destacar ainda que o trabalho forçado, relacionado à privação de liberdade de quem o executa e à ausência de pagamento, fere o Artigo 149 do Código Penal brasileiro (Decreto-lei n. 2.848/ 1940) e tratados internacionais de que o país é signatário, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (Assembleia Geral da ONU, 1948) e a Declaração de Caracas (Organização Pan-A-mericana de Saúde & amp; Organização Mundial de Saúde, 1990).
Retomando as memórias que articularam as questões de gênero e sexualidade das pessoas priva-das de liberdade, compartilharmos a visão de Cristina, que pareceu diferir das reflexões elaboradas por Yolanda no tocante ao contexto dos abusos sexuais cometidos contra as mulheres, o que segue narrado de acordo com o curso das reflexões da entrevistada:
Lá no nosso hospital, até 2012 mais ou menos, era mais tudo mulher, sabia? Pra você ver, até a motorista nossa era mulher, depois de um certo tempo eles pegaram um motorista também e aí dividia a função, então a mulher levava as pacientes para as consultas ... pra alguma coisa, assim, mais aproximada com as pacientes, e o homem era mais pra fazer o serviço administrativo. Eu creio que faz sentido, sim, pensar nessa questão de evitar que acontecesse algum abuso, creio que seja por conta dessa parte ... mas eu vou falar também que elas eram terríveis, as pacientes. Elas não podiam ver um funcionário homem que elas davam em cima, elas pegavam e falavam e aquela coisa. Quando a gente pensa assim “ah ele foi lá e acabou violentando a paciente”, então a gente precisa ver o lado também das pacientes. ... A gente sabe que não é certo um homem vir e violentar uma paciente, mas você precisa ver também até que ponto que vai ... porque o homem é um instinto, o homem é um animal, então você vai estar aguçando aquele instinto dele, né. (Cristina)
Acionamos as análises de Franca Basaglia (1986) para pensarmos a relação tecida entre distúrbio psíquico, diagnóstico, gênero e sanções relacionadas aos desvios que ameaçariam a normalidade e, portanto, seriam passíveis de aprisionamento nos manicômios. A autora se refere a uma repressão da sexualidade e a uma margem de erro menor para as mulheres, em função da rigidez das regras sociais baseadas em convenções morais estereotipadas, naturalizadas e essencializantes acerca dos papéis sociais de gênero. O comportamento “anormal” feminino, especialmente relacionado à vivência da própria sexualidade e ao comportamento de agressividade – atributos considerados naturais para os homens –, estava relacionado, no caso das mulheres, às raízes daquilo que estas eram para si, portanto, o que era punido, medicalizado e controlado, era o “ser mulher” (Basaglia, 1986).
Sobre o hospício exclusivamente feminino, destacamos as histórias de duas mulheres:
Tinha muito disso, da paciente ser internada depois de ter cometido algum crime, mas muitas vezes era assim, depois de algum abuso que ela tinha sofrido, né. Tem uma lá que ela foi internada porque ela tinha mais filhos e ela matou o bebê recém-nascido dela. E assim, ela chegou a ficar bem prejudicada mesmo, na patologia, bem esquizofrênica mesmo. ... Um dia também ela me relatou que ela foi estuprada por uma pessoa e ela teve aquele filho, que não era um filho que ela queria, porque ela e a família dela é toda branca, então a preocupação era com a cor da criança. A criança nasceu negra, então ela achou que a família não ia aceitar. Ela sentiu uma revolta muito grande e matou o bebê.
Essa paciente, quando eu li a história dela no prontuário, que ela... ela era uma mulher negra, não vou recordar agora com quantos anos ela foi internada, mas eu vi que ela foi internada por causa de uma ordem judicial porque ela matou o esposo dela. ... Um dia eu perguntei pra ela, (nome da mulher privada de liberdade), por que você matou seu esposo? E ela falou assim pra mim “eu tinha a minha casa, meus filhos e o meu esposo, ele chegava todo dia bêbado, ele me pegava a força e ele me estuprava todos os dias. E eu pensei, hoje eu vou botar um basta nisso. ... a polícia me prendeu e depois eles disseram que eu era doida da cabeça, começaram a me dar medicação e me internaram.” (Cristina)
Pensando o poder como modo de relação que constrói as perspectivas de mundo, recorremos ao conceito de colonialidade, trabalhado por Vergès (2020) e Lugones (2020), para reforçarmos os aspectos já mencionados da formação social, por meio da manutenção de uma sociedade forjada sobre aspectos coloniais, racistas e patriarcais, onde a psiquiatria se inseriu como uma espécie de instrumento de inter-venção, pautada pela ideologia de uma missão civilizatória protetiva do corpo social (Foucault, 2001). Essas reflexões nos auxiliam na análise do caso das duas mulheres acima mencionadas, respeitada a historicização e localização social de cada uma, tendo como experiências em comum as marcas produzidas na intersecção entre racismo e sexismo convertidos em violência: a mulher branca e a mulher negra foram alvo das manicomializações relacionadas a esses marcadores sociais perpetuadores de opressões.
As subjetividades forjadas por meio de uma transmissão histórico-cultural do lugar relegado ao feminino na sociedade são analisadas por Franca Basaglia (1986) sob a perspectiva da construção de uma imagem ideal do que se espera das mulheres, considerando não apenas os denominadores comuns, como também as diferenças que compõe o “ser mulher”, a partir dos diferentes níveis de opressão a que são submetidas (raciais, de classe, etárias, dentre outras): um “cuerpo-para-otro” (p. 47) que não é corpo próprio. A construção social de um “cuerpo-para-otro” é naturalizada como se houvesse uma essência feminina cuja missão seria nutrir e dar suporte ao outro, sejam filhos ou maridos; e ainda se estrutura pela ideia de uma constante disponibilidade dos corpos femininos ao desejo masculino, sendo as mulheres objetificadas e sexualizadas pelo patriarcado, porém interditadas para uma sexualidade que lhes seja própria.
Toda vez que ela ficava grávida, ela ia internada. ... Era branca. ... Ela teve oito internações e as oito internações dela era porque ela tinha engravidado. Ela ficava até perto de ter, aí ela ia melhorando, aí ela tinha o neném e depois voltava pra casa. Depois ela ficava grávida de novo e voltava pro hospital. ... E todas as crianças dela vão pra adoção. ... Seria bom se aquela paciente e, de um modo geral, essas drogaditas, que ficam fazendo uso de drogas, que fizesse uma cirurgia, que essas leis, não vou tocar nesse assunto porque eu não sei essa coisa de lei. (Cristina)
O conceito de “cuerpo-para-otro” de Franca Basaglia (1986), o de “interseccionalidade” proposto pelos feminismos negros (Crenshaw, 2020; Collins, 2017; Davis, 2016) e o da “zona do não ser” de Fanon (2008) se constituem como importantes ferramentas para analisarmos as condições das mulheres privadas de liberdade nos hospícios como corpos que se distanciavam do ideal de mulher, sendo, por isso, menos próprios, menos humanos e mais punidos. Como exemplo, recordamos os estudos sobre as mulheres internadas no hospício paulista Juquery no século XX, desenvolvido por Cunha (1989), que identificou diagnósticos e intervenções médico-psiquiátricas mais brandos para mulheres brancas e de classes mais altas, como histeria e anestesia sexual; enquanto que as mulheres negras e pobres recebiam diagnósticos que as colocavam num quadro de maior gravidade, associados, em sua maioria, à degene-rescência e idiotia, sofrendo, consequentemente, maiores efeitos das práticas iatrogênicas associadas à institucionalização nos manicômios (Cunha, 1989).
Os relatos das recordadoras da pesquisa apresentada, embora nos despertem o questionamento sobre o que poderia ser compreendido como “proteção” às mulheres internadas dentro dos manicômios, apontam para uma tentativa de naturalização das mulheres como assexuadas e/ou passivas sexualmente. As memórias ainda resgatam, tal como descreveram Cristiana Facchinetti, Andréa Ribeiro e Pedro Muñoz (2008), que os fatores essencializantes da condição feminina se desdobraram na repressão sexual femi-nina nos manicômios, o que reforça a representação social da “anormalidade” ou do avesso do modelo ideal de mulher.
A gente fazia confraternizações, então os hospitais alugavam o clube do centro (nome do clube), fazia-se festas de carnaval ..., havia uma grande confraternização psiquiátrica e lá os pacientes se encontravam com as pacientes dos outros hospitais. E assim, por conta da repressão histórica feminina, quando a mulher enlouquece, minha filha, ela enlouquece mesmo. Então era muito difícil de controlar porque elas iam pra cima dos pacientes mesmo, era uma liberação da sexualidade absurda. Tanto que tinha médicos, que trabalhavam nos hospitais mistos, que não atendiam as mulheres sem ter a enfermagem junto. (Geni)
Não era permitido as pacientes se relacionarem, mas infelizmente tinha uma porcentagem muito minúscula, era muito pouco, mas a gente chegou a internar pacientes é... não sei o termo correto, é lésbicas que fala, eu acho.
Tinha umas que queriam ter aquela outra paciente como namorada dela. Houve caso que eu precisei, no caso eu não, que nós precisamos mudar a paciente de bloco, separar, pra não ficar essa coisa muito junto. Então tinha essa, como que eu posso dizer, essa homossexualidade? (Cristina)
Abordando a mesma temática das festas promovidas entre os hospitais psiquiátricos, outra recorda-dora referiu se surpreender com o fato de as pessoas internadas apresentarem desejos afetivos e sexuais, o que denuncia a desumanização a que eram submetidas:
Bailinho que eles vinham, né... punha homem e mulher junto, por causa do hospital que tinha mulher e homem, tinha um hospital que era só mulher... então fazia assim os bailes. Nossa, eles se beijavam, se abraçavam, falavam que tavam namorando. E era muito engraçado isso, porque a gente se surpreendia e falava “olha, eles têm amor por eles.” (Nair)
A intervenção da psiquiatria na sociedade, sob a justificativa de proteção generalizada contra os degenerados e anormais (Foucault, 2001), conforme já descrito, esteve associada, de acordo com Cunha (1989), à proteção da família: uma família civilizada e higiênica, constituída a partir das práticas eugêni-cas de controle social, que funcionava como parâmetro para a distinção dos corpos marcados por classe, gênero, raça e anormalidade pela via da hereditariedade (Cunha, 1989). Assim, o manicômio como lócus do saber psiquiátrico, se incumbiu da tarefa de evitar a desorganização social que ameaçava a socie-dade e o fazia também “através do reforço ao padrão familiar higiênico, entendido como uma forma de profilaxia social” (Cunha, 1989, p. 134). Desse modo, as festas e os bailinhos promovidos pela direção dos hospitais psiquiátricos do território pesquisado – é importante destacarmos que estes pertenciam ao mesmo grupo, num esquema de sociedade entre algumas famílias (Garcia, 2012) – pareceram reforçar essa organização social familista e cisheterossexista, por meio desse encontro pontual entre as pessoas privadas de liberdade, onde era “até permitido” a formação de casais heterossexuais para danças e beijos.
Nós tivemos um caso em que internou um... era um paciente, que ele foi um dos primeiros, acho que quando começou a sair aquela coisa de... eu não sei se ele já tinha conseguido a carteirinha dele, não sei se era RG, já com nome social. [Pausa]. Isso, era uma pessoa transexual e era branca ... Na hora de levar pra triagem tudo pra poder tomar um banho e se trocar, menina, foi uma surpresa muito grande [Risos], ... ninguém desconfiou que era homem. Então paciente pernoitou sozinho nesse quarto e quando foi de manhã, aí veio a enfermeira RT, a assistente social e aí ele foi encaminhado até o (nome do manicômio masculino). Não podia ficar ali porque, assim, se a gente for analisar, praticamente era um homem, né. Ele só tava com a documentação, mas como ... era hospital feminino [ênfase na palavra feminino], ele não podia ficar ali. (Cristina)
As identidades de gênero que escapam aos binarismos estruturados pela ideia do sexo biológico se tornaram alvo das violências físicas e simbólicas perpetradas pela aliança entre sociedade, Estado e Ciência, numa configuração em que as instituições atuam como reguladoras das existências dissidentes, conforme apontam Stephanie Gutierres e Sílvia Lordello (2020). Nas diferentes sociedades, o patriarcado, enquanto estrutura, assume feições próprias, contextuais, o que nos fez pensar, junto com Vergès (2020), que o patriarcado brasileiro se caracteriza como “grosseiro, vulgar, brutal, racista, misógino, homofóbico, transfóbico” (Vergès, 2020, p. 22); análise que consideramos fundamental para a compreensão do cenário das desigualdades entre as mulheres, especialmente atentas às violências impostas às mulheres racializadas, às mulheres lésbicas e às mulheres transgênero em nossa sociedade. Avtar Brah (2016) e Angela Davis (2016) também nos ensinam que o universo feminino é marcado pela heterogeneidade da condição social das mulheres, coexistindo com outras opressões além do sexismo, os já citados fenômenos do racismo, do classismo, do etarismo, da lbtfobia e, apontamos, o estigma da loucura feminina ou do “orgânico louco feminino” (Pereira & amp; Passos, 2017). Nesse sentido, a loucura deve ser analisada como uma condição social tramada com as questões de gênero, raça/etnia, sexualidade e classe, o que marca a produção de assimetrias também no campo das intervenções médico-psiquiátricas (Showalter, 1987).
CONCLUSÃO
Transformar em palavras escritas a oralidade das recordadoras, as quais também atribuímos a autoria desse estudo, por meio dos agenciamentos produzidos no encontro com elas, tem sido uma tarefa muito desafiadora. O reconhecimento do valor de cada voz e a construção de um compromisso partilhado pelas experiências trocadas (bell hooks, 2017), deve produzir a compreensão de que a voz sempre pertence a quem contaahistóriae, quemaescuta,participadessapartilharespeitando eamplificando essavoz(Portelli, 2016).
Assinalamos que as análises propostas por esse exercício de pesquisar, ainda provisórias, dado o contexto de pesquisa em desenvolvimento, foram costuradas a partir do desejo de questionarmos as diversas formas de aprisionamentos em instituições e relações de “mortes-em-vida” (Mbembe, 2018), inclusive forjadas sob o pano de fundo do silenciamento das memórias. Entendemos que, para que as palavras que codificam os horrores manicomiais se transformem em “memórias emblemáticas” (Le Saux & amp; Sandoval, 2012), amplificando-se como gritos de resistência contra o ocultamento da função social dos manicômios, elas precisam estar em movimento e encontrar aberturas no presente para sua multiplicação.
Compreendemos que as palavras das recordadoras, em seus relatos de vivências singulares que constituem uma memória social, carregam as várias contradições sociais mascaradas pelos manicômios e pelas relações de poder que os constituíam e que necessitam ser ouvidas pela sociedade: desde a função social de segregação dos denominados “corpos abjetos” como uma produção do capitalismo moderno colonial-patriarcal-racista, até a oferta de um “tratamento” que simplesmente não acontecia, pelo fato de que uma das violências operadas pelos manicômios era justamente o não reconhecimento da humanidade das vidas segregadas, tornando qualquer “cuidado”, de acordo com as análises realizadas por esse estudo até aqui, como algo da ordem do impossível dentro das “instituições da violência” (Basaglia, 2010).
Em sociedades marcadas pela violência de Estado, por crises econômicas, pelo “racismo estrutural e estruturante” (Passos, 2018b) e pela violência do patriarcado, o “trabalho da memória” (Portelli, 2016) e a escuta de depoimentos são fundamentais para a (re)construção das memórias sociais e, portanto, representam a possibilidade de união dos elementos do tempo como força revolucionária (Fanon, 2020). Os escombros de memórias não processadas coletivamente refletem a realidade da formação social de um povo, o que nos fez acionar algumas análises sobre os contextos sociais brasileiros, historicizadas a partir da consciência do impacto da negação de nossas memórias sociais, que ficam eclipsadas pela força e brutalidade das tecnologias de poder reproduzidas pela coexistência dos fenômenos da colonização, do patriarcado e do racismo (Gonzalez, 2019; Kilomba, 2019).
As tramas engendradas por racismo, cisheterossexismo e loucura, produziram condições que vulnerabilizaram as mulheres – especialmente as mulheres negras no contexto das violências sexuais descritas como frequentes no hospício misto, onde a recordadora identificou a prevalência de pessoas negras entre as mulheres internadas – de forma específica no contexto dos manicômios, como um ponto extra no cenário dos horrores vividos pela população internada: a violência sexual. Encerramos esses escritos reforçando ser fundamental seguirmos na luta contra o apagamento das histórias, como uma das formas de sustentação dos caminhos que conduzem às mudanças sociais. Nesse sentido, esse artigo buscou contribuir com algumas reflexões para darmos continuidade ao processo de expurgo da ferida social traumática representada pelos manicômios, para que nos aproximemos cada vez mais, enquanto sociedade, da responsabilização e reparação da dívida histórica que Sorocaba/SP tem com as/os sobreviventes de seus hospitais psiquiátricos.