INTRODUÇÃO
A proposta de investir na temática dos grupos a partir da perspectiva das afecções parte de reflexões críticas construídas no encontro entre o contexto atual em que vivemos e o modelo tradicional de cuidado e atenção frente ao sofrimento ético-político (Sawaia, 2017). Sobre o primeiro, observamos a cada dia a cristalização da tristeza e do ódio enquanto afetos dominantes na produção dos “modos de individuação” (Barros, 2007), assentados sobre a exploração do medo como afeto determinante da adesão a discursos e figuras autoritárias (Lima, Jannuzzi, Moura, & Segundo, 2020). Concomitantemente, nos deparamos com a intensa polarização de ideias, com ameaças à democracia e com a experiência de viver em um contexto de crise sanitária e econômica (Macário & Reis, 2020; Mello, Oliveira, Guidolin, Caso, David, Nascimento, Gonçalves, & Seixas, 2020), marcada pelo curso de uma pandemia que nos coloca em situação de isolamento social. Sobre o segundo, a crítica se refere às metodologias habituais utilizadas na atuação de profissionais das políticas públicas que, por diversas limitações, acabam por entender o trabalho social a partir de um modelo reducionista-individualista.
Neste sentido, destacam-se como problemáticas: a inadequação de modelos teóricos e técnicos importados para a realidade das demandas atuais das políticas de assistência social, saúde e educação, que enfrentam pobreza estrutural, violências e vulnerabilidades (Pereira & Sawaia, 2020); a presença de lógicas biopolíticas e necropolíticas amalgamadas ao fazer nas políticas públicas, que sustentam ações dirigidas à moralização, adaptação e disciplinarização da diferença (Mbembe, 2016); e o descolamento entre o plano político constitutivo do real e a ação frente a problemáticas que aparecem de modo singular para cada usuário da rede.
Outras situações obstaculizantes à práxis coerente com o que as políticas sociais se propõem são: a construção de intervenções não processuais e descoladas da produção de experiências, gestadas através da ausência de planejamento, compromisso e interesse (Pereira & Sawaia, 2020); a impossibilidade de mobilizar transformações sociais por meio de intervenções centradas no indivíduo e pela dicotomização criada entre política e desejo, público e privado, individual e coletivo (Barros, 2012; Sawaia, Albuquerque, & Busarello, 2018); e ainda, o desafio da busca por perspectivas que foquem no território e nas problemáticas coletivas, sem reduzir a atenção às formas de sofrimento à lógica biomédica, ao intrapsíquico e ao assistencialismo.
Considerando o cenário apresentado, torna-se urgente multiplicar as vias para potencializar a práxis psicossocial na atenção territorializada, em políticas públicas, a partir de concepções que mobilizem processos de singularização, buscando o aumento da potência de agir. Com esta intenção, o artigo articula as concepções ontológica e ética espinosistas e a perspectiva grupal esquizoanalítica, considerando que tal relação apresenta significativa potência ao enfrentamento dessas problemáticas. O grupo, aqui, é compreendido como dispositivo maquínico de desterritorialização e singularização. Por esta via, entende-se que ele não é intermediário da relação indivíduo e sociedade. O grupo é possibilidade de extração das variações, pelo corte de fluxos, pela bifurcação e multiplicação dos modos de ser e existir (Barros, 2007), permitindo o encontro entre distintas vidas singulares em acontecimentos coletivos que impulsionam a experimentação, oferecendo visibilidade, criando formas de enunciação coletiva e vias de percepção e transformação das marcas do contexto político e econômico.
Desta forma, exploraremos a potência do dispositivo grupal esquizoanalítico à constituição de processos de singularização e de movimentos coletivos nas políticas públicas, identificando fazeres que mobilizam tais processos e discutindo contribuições do investimento na experiência ética para a construção de uma práxis psicossocial que privilegia o protagonismo, a autonomia, a corresponsabilização, a transversalização (Política Nacional de Humanização, 2015) e a participação social (Política Nacional de Assistência Social, 2004), oferecendo recursos ao enfrentamento dos processos macropolíticos ligados à dialética exclusão/inclusão (Sawaia, 2017).
Compreendemos a contradição capital-trabalho, regulada pelo Estado e que engendra a questão social, objeto das políticas públicas empreendidas por este mesmo Estado (Neves, 2004). Neste sentido, reconhecemos as incompatibilidades possíveis em se pensar esta perspectiva de grupo nas políticas públicas reguladas pelo Estado, o que nos demanda um posicionamento ético-político: não se trata de combater as políticas públicas em um país cuja distribuição de renda é uma das mais desiguais do mundo, mas ao invés disso, intervir nas políticas públicas no sentido de favorecer a vida e a produção desejante, fortalecendo o processo de “formação de um corpo coletivo comum cuja potência de invenção, agindo em direções singulares e variáveis, possa vir a ter força suficiente para conter o poder das forças que prevalecem em outras constelações - aquelas que se compõem de corpos que tentam cafetinar a pulsão vital alheia” (Rolnik, 2018, p. 39)
Ainda, busca-se investir em uma perspectiva klínica1 em práticas grupais que desafie o consenso sobre um cuidado voltado à adaptação, higienização e ao controle social, com intervenções protocolares delineadas por concepções científicas que enaltecem o saber-poder biomédico e excluem a produção de vida em seus múltiplos encontros (Lancetti, 2006). A articulação com a teoria espinosista permitirá privilegiar a transversalidade dos encontros, a ética e a produção de afecções como principais alicerces aos movimentos de singularização e ao enfrentamento do sofrimento ético-político (Sawaia, 2017). Cabe destacar aqui, a partir de Bader Sawaia (2009), a concepção espinosista de afeto em suas duas dimensões: afeto é a transição de intensidade, passagem da potência do corpo de um estado para outro, enquanto afecção diz respeito à relação entre corpos, à relação do corpo com o exterior. O afeto se refere à variabilidade do corpo, efeito da afecção, sem que necessariamente se estabeleça uma fronteira exterior-interior de um corpo, visto que nesta perspectiva nada existe separado das relações que compõem com o mundo: todo corpo é uma composição que varia no encontro.
Como propõem Sawaia, Renan Albuquerque e Flávia Bussarelo (2018), apostar no nós, no encontro com o outro que nos permite sermos outros, e nas afecções, refere-se à sociabilidade ética e política, que somente é possível através da ruptura estética com os modos de ser e existir dominantes e excludentes, e da gênese de novas visibilidades e audibilidades. O contexto das políticas públicas, nesta direção, engendra-se com potência política, entretanto, ainda carece de práticas coerentes com seus princípios emancipatórios. Frente a isso, defendemos a perspectiva dos dispositivos grupais como propulsores de transformações micropolíticas. Tal perspectiva atua impulsionando a valorização das pluralidades e coletividades na produção de subjetividade, compreendendo a potência da experiência grupal como capaz de permitir reinvenções de si pelo compartilhamento da vida e pelo sentimento de reciprocidade, através da possibilidade de entrelaçar as singularidades e de (re)existir no hiato que marca o encontro das vidas pulsantes (Sawaia et al., 2018).
METODOLOGIA
O saber que incide sobre esta produção teórica é localizado, com um nome, uma data e um contexto específico. Não poderíamos deixar transcorrer pelos ares aquilo que torna um sujeito pesquisador, as especificidades de um tempo histórico que demarca a produção científica. Portanto, interessa o conceito de visão, assim como exposto por Donna Haraway (1995), quando está a discutir a concepção de que “todas as fronteiras internas-externas do conhecimento são teorizadas como movimentos de poder, não movimentos em direção à verdade” (p. 9). Ver, neste prisma, diz respeito ao aspecto mais transformador do saber. É na singularidade do olhar que o poder se torna passível de mutações. O caráter perceptivo do pesquisar é a possibilidade do reconhecimento de modos de vida que se expressam na escrita, na leitura, na tradução, na interpretação, tanto da realidade, quanto de ficções que tocam a realidade e a produzem. Nesta perspectiva, optamos por um método parcial, mediado por “instrumentos de visão” (Haraway, 1995) que evocam posicionamentos políticos, enquanto plano estruturante da construção deste saber-poder.
A mesma premissa que move o olhar sob o processo grupal e o contexto que esta produção acadêmica se propõe a investir, insere-se sobre o desenho deste método: lançar-se ao voo, fazê-lo através do desejo ao qual nada falta, pois, a escrita configura realidades com potência e força, permitindo tocar conectividades, semelhanças e diferenças, densidades, arranjos e desarranjos, composições e decomposições, encontros... Estes são os ares a que nos lançamos, concebendo a pesquisa como a possibilidade de “internarse y perderse para volverse a encontrar o para encontrar algo, lo que sea, un libro, un gesto, un objeto perdido, para encontrar cualquier cosa, tal vez un método, con suerte: lo nuevo, lo que siempre ha estado allí” (Bolaño, 2003, p. 58).
O pesquisar aqui empreendido, não é então, apegado a rígidas definições quanto ao tema, objetivos, critérios de escolha das cenas e dos referenciais bibliográficos a serem analisados. Não é nada que advenha de uma confiança à estabilidade. Também não o é a fragmentação, nem a organização, tampouco o desenvolvimento. Afinal, o que poderia ser o pesquisar? Evidentemente, não nos permitiríamos afirmar o infinitivo do ser sobre o pesquisar, sem considerar sua preocupação com as processualidades, as multiplicidades e a composição (Deleuze & Guattari, 1997). Desta forma, pesquisar só poderia ser inscrito como hecceidade, um plano de afecções, de intensidades, definido pelo conjunto de relações de movimento e repouso, velocidade e lentidão (Deleuze & Guattari, 1997).
A composição deste artigo, amparada pela perspectiva metodológica cartográfica em articulação com a experimentação afetiva, permitirá investir na compreensão da potência das afecções no processo grupal esquizoanalítico à constituição de processos de singularização em contextos de atuação das políticas públicas. A cartografia pode ser compreendida como o acompanhamento de processos, a implicação do sujeito que pesquisa no contexto pesquisado e a pesquisa como indissociada da intervenção. Cartografar é, portanto, rizomar caminhos, tecer um mapa com múltiplas entradas, móvel e transmutável, no qual, não há “qualquer pretensão à neutralidade ou mesmo suposição de um sujeito e de um objeto cognoscentes prévios à relação que os liga” (Passos & Barros, 2009, p. 30).
As afecções, assim como objeto de análise, são também o que impulsionam a composição. Elas conduzirão a experimentação, estabelecendo múltiplas conexões e permitindo a abertura ao inédito. Sendo a pesquisa de caráter bibliográfico, a escolha pelos referenciais teóricos se deve aos autores que traçam uma concepção crítica das políticas sociais com foco nos processos grupais desenvolvidos pelos trabalhadores sociais (Oliveira & Amorim, 2012; Yamamoto & Oliveira, 2010); aos autores que discutem o processo grupal através da perspectiva esquizoanalítica (Barros, 2009; Cavagnoli 2018; Hur, 2012; Guattari, 1980) e aos autores que abordam a leitura ontológica e etológica oferecida por Baruch Espinosa (Deleuze, 2002; Chauí, 2016). Esta última está compreendida como a possibilidade de transdução dos corpos e das ideias, a partir das afecções sofridas: “Espinosa reitera em sua ética que a potência para a produção de afecções, para a criação de ideias e corpos inéditos reside nas possibilidades que acontecimentos singulares são capazes de erigir” (Cavagnoli, Granella, Prime, & Backes, 2020)
Portanto, as afecções experimentadas possibilitarão traçar conexões entre pesquisadores e referenciais teóricos, mobilizando composições múltiplas e agenciando corpos e pensamentos em direção à escrita. As obras serão tomadas “por seus movimentos, engendrando cortes (que não representam fragmentação), explorando o modo como as ideias e definições se relacionam com múltiplos objetos e como posicionamentos distintos em obras distintas resultam em diferentes leituras” (Cavagnoli, 2018). Ainda, a perspectiva metodológica em questão permitirá tecer agenciamentos que articulam a noção de leitura rizomática aos gestos propostos por Virgínia Kastrup (2007) no funcionamento da atenção cartográfica.
A cartografia, nesta perspectiva, mostra-se potente à condução da pesquisa. Ela se constitui como um método construtivista de pesquisa que concebe a construção do pesquisar e a produção do conhecimento como responsáveis pela composição do real (Kastrup, 2007). Torna-se possível compreender que a pesquisa bibliográfica, sustentada pela perspectiva cartográfica, solicita ao pesquisador que ele habite às bibliografias, que reconheça o campo intensivo e rizomático através do acompanhamento de processos inventivos (Kastrup, 2007). Com isso, o objetivo não está na busca por movimentos interpretativos, mas compositores. Neste sentido, a leitura e a escrita estão conectadas com o fazer cartográfico e com o próprio vir-a-ser cartógrafo.
O funcionamento da atenção cartográfica é a impulsão estratégica ao deixar-se afetar, permitir-se aterrissar e lentificar as experiências dos encontros (Bondía, 2002, 2011), fazendo com que encontros e conexões entre leitor e texto, construam múltiplas direções, rizomáticas, mobilizando a própria atenção à inventividade. A definição de leitura rizomática apresentada por Daniel Lins (2010), demonstra-se potente recurso à aterrissagem nos dispositivos bibliográficos. A gênese de uma leitura rizomática parte da perspectiva de composição de novos sentidos, em direção ao sofrer afecções, experimentar. O objetivo não seria então, sufocar o texto com signos e significâncias. O leitor mais se colocaria ao embaralhamento de códigos e à produção de linhas de fuga e visibilidade, permitindo a gestação de um novo sem parentalidade, órfão (Lins, 2010).
A atenção cartográfica, por ser flutuante, concentrada e aberta (Kastrup, 2007), permite que o próprio objetivo desta pesquisa seja levado à guisa de experimentação. O contágio entre subjetividades, contextos e conceitos, permitirão a variabilidade das afecções e então, a gestação desta pesquisa. A partir destes princípios, sustenta-se uma possibilidade de pesquisa qualitativa cartográfica que potencializa a produção de agenciamentos bibliográficos. As conexões entre todos os elementos desta pesquisa constituirão um dispositivo de elaboração discursiva e teórica de tais experiências. Estas articulações, conectivas e disruptivas, permitirão dar consistência à perspectiva em desenvolvimento, proposta no transcorrer desta produção textual.
POLÍTICAS PÚBLICAS E POTÊNCIA POLÍTICA
Na esfera de um sistema neoliberal se encontram configurações que recriam e intensificam as conexões entre forças que estratificam e segmentarizam o socius no regime de produção capitalística (Deleuze & Guattari, 1997). Pautados em uma perspectiva esquizoanalítica, convidamos o leitor a pensar a realidade atual enquanto efeito provisório de jogos de poder, agenciamentos e composições de forças heterogêneas. O plano de imanência, superfície lisa, não marcada, compreendida enquanto corpo sem órgãos primeiro, produz vida (Deleuze & Guattari, 2010).
Contudo, esta constante produção, frente à intensidade de acontecimentos dos mais diversos, pode ser organizada, estabilizada em seus agenciamentos, instituída, sustentando diagramas e linhas de subjetivação que limitam a produção de existências a certos modos hegemônicos de ser, pensar, sentir e agir. Segundo Domenico Hur (2020), o capital contemporâneo sobrecodifica este plano de imanência, constituindo-se ele próprio como corpo pleno sem órgãos, “corpo cheio”, capaz de naturalizar condições existenciais marcadas por desigualdades afirmadas na percepção, na significação e na ação coletiva, reiteradamente. Ainda para Hur (2020), “o Corpo sem Órgãos é o campo de imanência do desejo, o plano de consistência próprio do desejo” (p. 09). Se o plano comum de experimentação da vida encontra-se totalmente capturado por uma lógica produtiva e desejante maquinada pelo capitalismo, as possibilidades de produção de outras potências de agir se encontram limitadas, o que contribui à reprodução de binarizações entre humanos capazes e humanos sem capacidades, ampliando a precariedade de vidas2 que não tomam a forma exigida pela velocidade e pela axiologia do capital.
Dentre os efeitos de subjetivação e organização derivados da ascensão do capitalismo neoliberal, produz-se a dicotomização e o distanciamento entre público e privado, impulsionando o pensamento neoliberal que sustenta a ideia de liberdade sob o ideal da privatização (Sawaia, Albuquerque, & Busarello, 2018). Estamos cada vez mais individualizados e valorizando menos o contato com o outro, e isso é consequência de uma produção que mantém os processos de subjetivação, o desejo e as relações submersas e reféns do capital que constrói e naturaliza as desigualdades sociais (Sawaia, Albuquerque, & Busarello, 2018).
As capturas contemporâneas do plano de produção de vida enclausuram “a duração e o múltiplo por meio da lógica e funcionamento da estrutura [...], o território sofre uma redução, pois é apreendido somente pela lógica do significante e pelos processos da racionalidade reinante” (Hur, 2019, p. 39). Frente ao condicionamento do neoliberalismo ao ordenamento e à segmentarização do real, produz-se sensação de caos e um ideário de que somos livres à medida em que as coisas são privatizadas, delimitando os espaços públicos, bem como direcionando quem pode e quando pode entrar, dicotomizando o nós e o eles (Sawaia, Albuquerque, & Busarello, 2018).
Este caminho hegemônico, reducionista e linear que percorre os planos macro e micropolítico, produz o que Regina Barros (2009) cunhou como “modo-indivíduo de subjetivação”, caracterizado pelo fortalecimento do processo de individualização e pela captura e enfraquecimento das coletividades. Barros (2009), ao nos falar em um modo-indivíduo de subjetivação, sustenta sua posição na leitura que Gilbert Simondon (2003) nos oferece sobre o processo de individuação. Para o filósofo, um indivíduo existe não como átomo único e indivisível, mas sim enquanto existência “metaestável” que está sujeito a variações e estabilizações, pois é indivisível do que o compõe, sendo estas forças constitutivas da individuação, mutáveis. A individualidade contemporânea, com suas marcas, é efeito de conexões entre corpos, subjetividades e diagramas de forças dominantes. Este funcionamento está retratado pela episteme positivista de ciência, presentificada no ideal de homogeneidade dos corpos, por ideias universais e totalizantes; na sobreposição do sujeito em relação ao objeto; na desconsideração da processualidade dos acontecimentos em detrimento de uma concepção naturalista; na dissociação entre o ser de razão e o ser dos afetos, supervalorizando o primeiro e tornando a racionalização um princípio idealizado (Barros, 2009). Este modo de produção não somente desvaloriza, como também desvia o caráter ético-político da práxis psicossocial esperada no contexto das políticas públicas, operando efeitos na (re)produção de discursos e dos modos de subjetivação (Benevides, 2012; Reis & Zanella, 2015).
Em direção contrária a este paradigma binário e dicotômico, Espinosa, filósofo do século XVII, oferece uma leitura ética-ontológica que não aceita conceber o sujeito fragmentado, cindido (Chauí, 2016; Deleuze, 2002). Para ele, corpo e pensamento estão compreendidos como indissociáveis, como elementos que se compõem simultaneamente. Sua concepção teórica parte da seguinte afirmação: por sofrerem as manifestações das afecções sem hierarquias ou relações causais, ambos, corpo e pensamento, engendram-se como propriedades axiomáticas integrantes de uma mesma substância, a natureza. Nesta mesma perspectiva, Gilles Deleuze (2002) afirma não existir movimento de sobreposição na relação entre corpo e pensamento, pois o corpo experimenta as afecções no encontro com outros corpos, e, simultaneamente, o pensamento constrói ideias destas afecções. Assim, estaria equivocado declarar que a mente controla as ações do corpo, ou inversamente.
Na perspectiva da imanência de Espinosa, o humano é compreendido como uma combinação afetivo-reflexiva que afeta e é afetado nas relações (afecções), sendo que estas, efetuam sua potência de existir e agir em graus variáveis a depender dos efeitos destas relações. É neste sentido que compreendemos o grupo dispositivo, ou seja, como um campo relacional de base afetiva que produz modos de existir variáveis em suas potências, por isso ético. Encontros entre corpos que produzem potência de agir e existir, ou seja, que ampliam ao mesmo tempo as possibilidades de afetar e ser afetado, e de, paralelamente, produzir reflexões, tendem à emancipação dos corpos individuais e coletivos. Encontros que diminuem esta potência de existir produzem vulnerabilidade às relações de servidão, assujeitamento e domínio de uns sobre os outros - e deste modo, na ética também se verifica uma política.
Tomando a ontologia espinosista como importante recurso de reflexão crítica frente à compreensão de sujeito e, concebendo a composição social tal como se apresenta para a Esquizoanálise, torna-se necessário investir em uma práxis que sustente a potência política que mobiliza o tensionamento de lógicas tirânicas, e que realize o enfrentamento ao sofrimento ético-político (Sawaia, 2017). Este último é compreendido como produzido e mediado pelas injustiças sociais, vivido pelo sujeito a partir das afecções que corpo e pensamento experimentam na relação com as múltiplas formas de mutilação e esterilização da vida. “Portanto, o sofrimento ético-político retrata a vivência cotidiana das questões sociais dominantes em cada época histórica, especialmente a dor que surge da situação social de ser tratado como inferior, subalterno, sem valor, apêndice inútil da sociedade” (Sawaia, 2017, p. 104).
O conceito de sofrimento ético-político está diretamente associado ao conceito de exclusão, e este é compreendido como polissêmico e complexo, pois está engendrado a partir do “processo sócio-histórico, que se configura pelos recalcamentos em todas as esferas da vida social, mas [que] é vivido na sociedade como necessidade do eu, como sentimentos, significados e ações” (Sawaia, 2017, p. 8). Com isso, constitui-se a ideia de inclusão perversa, que mobiliza os sujeitos ao caráter ilusório da inclusão, considerando a inserção da humanidade por meio da participação nas atividades econômicas, isto é, produzindo, reproduzindo, desejando e consumindo, mas obliterando a perversidade situada na produção de subjetividades permeadas por desigualdades legitimadas consensualmente. Assim, a exclusão está intimamente ligada à inclusão, e pensar estratégias que discutam esta relação na perspectiva que este artigo propõe, defendemos, pode mobilizar rupturas micropolíticas a estigmas dominantes e transformações macropolíticas.
Quando recorremos às contribuições de Sawaia (2017) a respeito do sofrimento ético-político, cabe situar o termo história, utilizado pela autora, em diálogo com o pensamento esquizoanalítico. A história, na Esquizoanálise, não pode ser lida como construção dialética teleológica, que teria em seu próprio percurso uma finalidade, ou serviria a determinado projeto político em sua efetivação. A história, segundo Deleuze (1992), designa apenas um conjunto de condições através das quais uma duração atual existe e pode devir:
O que a história capta do acontecimento é sua efetuação em estados de coisas, mas o acontecimento em seu devir escapa à história. A história não é a experimentação [...], sem a história, a experimentação permaneceria indeterminada, incondicionada, mas a experimentação não é histórica (Deleuze, 1992, p. 121)
Esta diferença entre história e acontecimento, compreendemos, tem potência política para que as coletividades, no contexto de ação das políticas públicas, possam lançar-se a experimentação e devir outros, efetuando seus próprios acontecimentos micropolíticos como vetor de produção de liberdade e do comum, no encontro com a alteridade.
No Estado contemporâneo, as políticas sociais são paradoxais, formam um conjunto de instituições, metodologias e práticas gestadas pelo Estado capitalista, na intenção de reduzir a própria produção de danos (Yamamoto & Oliveira, 2010). Elas estão previstas pela Constituição Federal (1988) e pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, e se configuram como marco da trajetória popular, na luta pelo acesso a serviços que garantam as mínimas condições de vida, de forma universal e igualitária (Oliveira & Amorim, 2012). As políticas sociais são estratégias de supressão das violências e de redução do risco de adoecimento e estão à frente na produção e promoção de saúde, educação e assistência social. Ainda, exercem papel elementar na diminuição das desigualdades sociais, garantia de acesso aos direitos fundamentais, considerando a integralidade, a equidade, a descentralização e a participação social. Contudo, nem mesmo as políticas sociais escapam da teia viscosa do sistema, pois o que acaba ocorrendo é a suavização e o enfraquecimento das tensões sociais (Oliveira & Amorim, 2012; Yamamoto & Oliveira, 2010) enquanto a máquina capitalista continua a exercer, vorazmente, domínio sobre os corpos, as instituições e em seu funcionamento mais perverso, submete também a vida desejante, controlando a existência, os modos de subjetivação e de produção (Barros, 2009).
Através do controle e da produção de desejo, a lógica capitalística modula, forçadamente, as práticas e o ordenamento das políticas públicas, capturando-os à supervalorização do capital (Barros, 2009). Por esta via, sujeitos e instituições são compreendidos a partir de uma cultura mercadológica, com modelos de gestão verticalizados; acolhimento e atenção aos sujeitos usuários dos serviços através de perspectiva produtivista; e forte interferência político-partidária que provoca a redução das políticas públicas a programas de governo (Oliveira & Amorim, 2012; Romagnoli, Lima, & Pastana, 2019; Yamamoto & Oliveira, 2010). Além disso, muitas estratégias utilizadas para o enfrentamento das desigualdades sociais e garantia de direitos, voltam-se para lógicas individualistas, biologizantes e patologizantes.
As políticas públicas devem ser pensadas através de seu caráter político produtor de devir, isto é, para além de mera intervenção do Estado em busca de adaptação e funcionalidade. Contudo, o próprio conceito de política, carrega consigo caráter conflitivo. Em direção contrária à complexidade na compreensão da política, destaca-se sua restrita associação, nas políticas públicas, à noção de policy3, isto é, à ideia de construção de formas administrativas e sistemáticas de atuação (Di Giovanni, 2009). Compreendemos que as políticas públicas exercem esta função de governança e garantia de acesso aos equipamentos e serviços do Estado. Contudo, sua redução à gestão das vidas é problemática quando sua práxis é capturada pela lógica neoliberal. A criação de estratégias de ação que toquem o plano político de composição e recomposição do real, gestadas entre trabalhadores das políticas públicas e comunidades, e com potência para problematizar e transformar cenários desiguais, é uma necessidade, e solicita a criação de recursos teóricos e metodológicos à psicologia.
Em Jacques Rancière (1996), o conceito de política é compreendido como o processo de emancipação através da verificação e do tratamento de um dano causado pela organização consensual que sustenta, de forma harmoniosa e hierárquica, lugares, funções e capacidades. A política, portanto, tensiona a lógica consensual, provocando litígios capazes de reorganizar a disposição sensível dos corpos, as experiências e a apresentação do real. Os processos de subjetivação política são gestados a partir do tensionamento mobilizado pela própria política, que perturba a ordem estabelecida, demonstrando a insustentabilidade da naturalização da desigualdade afirmada pela configuração partilhada. As políticas públicas, neste sentido, podem se constituir como contextos de experimentação, podem produzir atos políticos quando conectadas a ações que provocam rachaduras no instituído, quando permitem a produção de desidentificações às identidades assujeitadas e mobilizam a constituição de excedentes, criações singulares que ressignificam as formas coletivas de perceber sujeitos e lugares. No entanto, quando estão associadas a lógicas neoliberais, acabam estando a serviço de um projeto de manutenção da configuração desigual, atuando de forma a reduzir o dano, ou mesmo atenuá-lo, para torná-lo suportável, mas não inexistente.
As metodologias e práticas grupais, nas políticas públicas, frequentemente acabam sendo reduzidas ao funcionamento informativo e de orientação, isto é, ao trabalho técnico, com atividades voltadas a oficinas de conscientização, caracterizada pela ausência de sentidos e marcadas por relações hierarquizadas (Barros, 2007; Sawaia et al., 2018). Sobretudo, a perspectiva de trabalho em grupo é situada como estando a serviço da artimanha da redução da fila de espera (Pereira & Sawaia, 2020) e acaba sendo utilizada como estratégia de formação de corpos úteis, na qual, orientam-se os sujeitos quanto a seus direitos e deveres de forma individual e culpabilizante.
Ainda, utilizam-se as práticas grupais através de uma noção de grupo permeada por características binárias e dicotômicas, situando o grupo como intermediário na relação indivíduo e sociedade (Barros, 2007). Além disso, o privilégio dado à conscientização sustenta a lógica de que os sujeitos deveriam ser submetidos à tomada de consciência sobre comportamentos inadequados (Barros, 2007), ou ainda, representa o processo de tornar supostamente conhecidos os direitos e deveres dos sujeitos através da informação e suposta captura pela razão. Jorge Bondía (2011) nos ajuda a refletir que o excesso de informações que circula pode nos tornar sujeitos informados, contudo, “vemos o mundo passar diante de nossos olhos e nós permanecemos exteriores, alheios, impassíveis. [...] Temos o conhecimento, mas como algo exterior a nós, como algo útil ou uma mercadoria” (Bondía, 2011, p. 12), o que acaba por nos impedir de, verdadeiramente, experimentarmos transformações.
Portanto, não basta a tomada de consciência, é preciso engendrar potência de ação coletiva, e este movimento necessita uma abordagem que não descole reflexão e afeto na construção de processos coletivos e comunitários. Estes, não podem estar voltados à conservação da noção de identidade inflexível, imutável e individual sustentada e difundida pelo neoliberalismo (Sawaia, 1999). Quando a discussão está amparada na defesa e proteção de valores individualizados, legitimam-se regimes de poder excludentes e o viés da conscientização toma forma de etiqueta para cristalizar modos de ser e perceber o real. Por consequência, “a proposta do reencantamento do mundo é aprisionada pelo sentimento dominante do ser feliz comigo mesmo e por mim mesmo” (Sawaia, 1999, p. 23). O efeito disso é a consolidação de modelos sistemáticos de reprodução de um determinado modo de subjetivação hostil às diversidades e impassível às desigualdades.
Nesta esfera, tem-se a diminuição da potência de agir e de sentir frente ao sofrimento e a esterilização de movimentos políticos coletivos: “O exercício político se transforma em busca de estéticas existenciais particularistas, que sustentam o ‘eu’ narcísico e a intimidade se transborda, afogando o público, esvaziando o sujeito político e eximindo o Estado e a ordem social excludente de responsabilidades pela existência” (Sawaia, 1999, p. 23). Em direção contrária, a proposta de investir na potência de ação amplia as possibilidades de uma práxis comprometida com o enfrentamento e superação do sofrimento ético-político, inserindo uma perspectiva ética que valoriza os encontros e a afetividade no contexto político, demonstrando que ação, emoção e significados não estão descolados dos afetos (Sawaia, 2017). Potencializar também pressupõe a problematização do excesso de racionalidade e normatização presente nas ideias de conscientização e educação, tornando importante a consolidação de perspectivas de atuação em grupos que ampliem a potência política e afetiva das políticas públicas (Sawaia, 2017).
GRUPO E POLÍTICAS PÚBLICAS: DO GRUPO-INSTITUIÇÃO AOS MOVIMENTOS INSTITUINTES
A ideia de que o grupo exerce função intermediária da relação indivíduo-sociedade é uma produção histórica e representa o que as classes dominantes, ardilosamente, intentam com esta relação, afinal, é a partir do interesse e demanda por controle das massas que surgem os primeiros estudos sobre grupos, coletivos e multidões (Barros, 2007). Quando o grupo está situado nesta lacuna, acaba sendo referido à produção de processos de subjetivação marcadamente individualizados e sua função é a de reunir pessoas com o interesse de atuar sobre os indivíduos, ou sobre a sociedade (Barros, 2007). Ao ser atribuído o caráter de instituição, no século XX, o grupo se torna objeto de atenção e campo de conflitos teórico-políticos, nos quais, de um lado, tem-se a sociedade como princípio e finalidade, e a teorização de uma consciência coletiva que produz a consciência individual. E de outro, o indivíduo toma esse lugar privilegiado, e a sociedade e os grupos se tornam meras expressões individuais (Barros, 2007). Em suma, esta lógica produz a noção de que indivíduo e sociedade são instâncias segregadas uma da outra, dicotomizadas e, em última análise, caberia ao indivíduo adaptar-se à ordem social.
Estas discussões explicitam o dualismo e a dicotomia na compreensão de organização do mundo e no esforço de encontrar explicações para solucionar problemas de conduta e produzir aparelhos de punição e correção. Ainda, mesmo que filósofos, sociólogos e psicólogos buscassem intervir com boas intenções, acabavam mantendo os dualismos e as dicotomias e fortalecendo a estrutura de oposição e complementaridade entre indivíduo e sociedade (Barros, 2007). Esta lógica opera a serviço do capital, à medida em que não torna a sociedade menos ameaçada, mas sim, ocupa-se em docilizar os corpos e fazê-los se adequaram às exigências do sistema, isto é, à superprodutividade, ao desenvolvimento da economia, à difusão de saberes e práticas moralizantes que cercam e cerceiam a liberdade (Foucault, 1997).
Com o passar dos anos e o aumento na quantidade de estudos sobre estratégias de uso de práticas grupais, o impasse nunca completamente resolvido gerado pela tentativa de articular indivíduo e sociedade com viés teleológico, tornou-se alvo de diversas experiências, nas quais emerge a ideia de trabalhos coletivos normativos e, supostamente, harmoniosos e cooperativos (Barros, 2007). Apesar de assumirem roupagem de um progresso dirigido ao benefício individual e social, estes funcionamentos acabam por enaltecer os especialismos e privilegiar relações verticalizadas e hierarquizadas. Autores de vertentes teóricas que se dedicaram a estudar a constituição dos grupos, acabavam voltando suas atenções a aspectos intrapsíquicos, investindo na ideia de analisar e compreender o inconsciente, as individualidades, as partes que compõem o grupo (Barros, 2007). Ainda, encontravam algumas respostas, na tentativa de amenizar o esgarçamento da questão indivíduo versus sociedade, tomando o grupo como totalidade, unidade ou estrutura. Ou seja, mais discussões antagônicas são incorporadas ao grupo como se ele, supostamente descolado dos processos históricos, pudesse solucionar problemáticas envolvendo as disputas construídas entre individual e social.
Neste campo de batalha em que o grupo é tomado como instituição, o que entra em conflito é sua posição intermediária, estando ora a serviço do indivíduo, favorecendo aspectos particulares como história privada, identidade e conflitos individuais, ora a serviço da sociedade, valorizando mitos, cultura, identidade e história grupais (Barros, 2007). Pode-se então, compreender que o grupo enquanto instituição, refere-se à
composição de linhas que ao se atravessarem produzem campos de saber, redes de poder, especialismos. Linhas que marcam territórios, produzindo tanto objetos, como sujeitos. Objetos que precisam ser inseridos dentre os códigos existentes ou criarem outros, de tal forma que nada escape, nada fique fora. Objetos que ao se tornarem instituição se naturalizam e se apresentam como déjà lá. Objetos que, ao se naturalizarem, se descolam dos processos históricos, sociais, econômicos e políticos que os produziram. Objetos datados pelas forças em luta que contam sua história, marcados pelos sulcos, tremores e rupturas que compõem sua geografia, mas que por sua própria existência tentam apagar esses rastros. Instituições que passam a exigir respostas teórico-técnicas a serem dadas por especialistas, os quais novamente as instituem, cada vez mais afastadas do que pulsa, do que flui, ascetizando as disputas e vontades que as constituíram. (Barros, 2007, p. 95)
É, portanto, a partir do dilaceramento e da compreensão do grupo instituição, que se torna possível construir questionamentos sobre a quem e a quê ele está servindo, quais são seus compromissos e seus efeitos e a qual ética se propõe a investir (Barros, 2007). Tais questionamentos permitirão restituir o caráter histórico-político à noção de instituição e possibilitar compreender que, mesmo o grupo instituição estando sustentado pelo modo-indivíduo e cristalizado em seu lugar de intermediário, ainda em Barros (2007), podemos ver que o instituído pode ser tensionado e decomposto:
As instituições são como estátuas de areia: mostram-se fixas e desistorizadas, mas os grãos que as compõem estão, ainda que imperceptivelmente, se movimentando, os fluxos não param de se agitar; o mar está adiante, podendo, a qualquer momento, levar os grãos de areia que compõem essas estátuas, fazendo com que elas desapareçam. (Barros, 2007, pp. 95-96)
Nesta metáfora, o mar representa movimentos instituintes, comprometidos com a ruptura de relações hierarquizadas, dos tecnicismos e especialismos. Ele também anuncia a necessidade em traçar desvios, construir alternativas de composição de grupos que não estejam amparados em perspectivas naturalistas, individualistas e totalizantes. É neste sentido que defendemos a noção de grupo proposta pela perspectiva esquizoanalítica, que o concebe como construção processual e sustenta a urgência em rachá-lo, tecer linhas de fuga.
GRUPO E AFECÇÕES: DOS DISPOSITIVOS DE CONTROLE AOS DISPOSITIVOS DE EXPERIMENTAÇÃO E SINGULARIZAÇÃO NAS POLÍTICAS PÚBLICAS
A perspectiva esquizoanalítica, ao associar o grupo a um dispositivo de produção de subjetividades, oferece recursos para a superação dos paradoxos, dicotomias e capturas no trabalho com coletivos e territórios, nas políticas públicas. A concepção de um movimento maquínico de produção de processos de subjetivação evidencia o enlace das forças econômicas do capital na própria construção de subjetividades capitalísticas, concatenadas à lógica do consumo, do desejo imediatista e de individualidades aprisionadas em si. Guattari e Suely Rolnik (2006) oferecem esta leitura, elucidando que tal produção não está contida somente na transmissibilidade de significações, ou arquétipos de identidades e identificações com objetos especificados, mas que, para além desta compreensão, “trata-se de sistemas de conexão direta entre as grandes máquinas produtivas, as grandes máquinas de controle social e as instâncias psíquicas que definem a maneira de perceber o mundo” (Guattari & Rolnik, 2006, p. 27). Nesta direção, tão só poderiam ser gestadas subjetividades serializadas, modeladas e dispostas a produzir e reproduzir valores e relações sociais ordenadas pelas formações macropolíticas próprias ao capital. No entanto, em vias de contradição em que movimentos micropolíticos maquinam, brechas de escape são construídas para abrir passagens a linhas de fuga que permitem inaugurar “subjetividades delirantes” (Guattari & Rolnik, 2006), que extrapolam os modos de percepção e afetação dominantes e engendram singularidades plurais, heterogêneas e heterogenéticas. Caberia, então, questionar quais são os agenciamentos maquínicos postos a funcionar na produção de dispositivos que modulam processos de subjetivação homogeneizantes e, a possibilidade de entrada de outros dispositivos, gestados em uma práxis micropolítica capaz de mobilizar o enfrentamento das forças dominantes do capital. Tais dispositivos são arranjos heterogêneos que podem ser compreendidos por duas leituras: a primeira, foucaultiana, que corresponde a dispositivos disciplinares. E a segunda, deleuziana, referente a dispositivos de resistência e criação.
Em Michel Foucault (1984), a noção de dispositivo é associada a lógicas disciplinares, que produzem modos de ser e agir determinados por perspectivas naturalizantes e normatizantes. A composição destes dispositivos perpassa por distintos elementos concretos que capturam instituições, práticas, conhecimentos, formações arquitetônicas, moralidades, enfim, tudo o que está contido no dito e no não dito, dando forma a diagramas de modelização das subjetividades e dos corpos (Cavagnoli & Maheirie, 2020; Fanlo, 2011). Para compreendê-los, é necessário reconhecer sua multiplicidade, as condições históricas (espacial e temporal) de sua presença e os efeitos de sua ação disciplinar nas relações de saber/poder e na relação dispositivo e sujeito (Fanlo, 2011). Nesta perspectiva, portanto, os dispositivos estão atuando na manutenção consensual das forças dominantes para que permaneçam em seu domínio, articulando em sua rede, processos de encarceramento e docilização de corpos e pensamentos, e impedindo a variação nas formas de apresentação e percepção do real. Além de organizar e produzir processos de subjetivação identitários e normativos através dos arranjos materiais e simbólicos disciplinares.
Deleuze (1990), compreendendo a noção de dispositivos disciplinares, irá traçar outra leitura, que pode ser considerada como complementar à de Foucault. Neste sentido, Deleuze sustentará a necessidade de compor dispositivos outros, que engendram movimentos de resistência frente aos dispositivos disciplinares que atuam na submissão e esterilização dos modos de existência. Assim, os dispositivos, na perspectiva deleuziana, são percebidos através de sua potência criadora, capaz de produzir um campo relacional inédito, potencializando a compreensão do processo grupal enquanto máquina de produção de encontros não determinados e dados ao devir coletivo (Cavagnoli & Maheirie, 2020). É neste sentido que vemos a invenção astuciosa de dispositivos grupais, que possibilitam a emancipação das singularidades coletivas e suas transformações frente à condição de assujeitamento.
O grupo compreendido como dispositivo é, portanto, uma máquina que produz agenciamentos, um conjunto de linhas heterogêneas e heterogenéticas, que ora se cruzam, ora se afastam (Deleuze, 1990). Sua composição articula processos históricos, agenciando afetos e perceptos, visibilidades e dizibilidades, que configuram a realidade e a situam como produzida por “modos de iluminação e de regimes discursivos” (Barros, 1996, p. 100). Neste sentido, o dispositivo produz o corte de fluxos, a extração de formas de expressão e de conteúdos em cada estrato histórico. A relação entre saber, poder e processos de subjetivação se dispõe nas linhas de composição, possibilitando compreender o sujeito como sendo visto e falado a partir das condições dispostas em cada extração (Barros, 1996, p. 100). Assim, propõe-se que a configuração de processos grupais, no campo das distintas políticas públicas, considere, por uma atitude investigativa, relacional e cartográfica, a presença territorializada de múltiplas disposições de dispositivos de controle e sujeição, das formas de sofrimento ético-político e de redução da potência de ação coletiva que se vivencia frente às capturas. É a experimentação que pode oferecer condições à criação de dispositivos de resistência inéditos, capazes de mobilizar outros arranjos e encontros entre os corpos que habitam certo território, tensionando as forças instituídas. O grupo, neste sentido, é a emergência de um dispositivo de resistência, que ao gerar visibilidade às forças que constrangem a potência de vida, pode também mobilizar tais vidas à configuração de encontros outros, capazes de sustentar singularizações.
Espera-se que o grupo, enquanto dispositivo, seja um composto tetravalente, com dois eixos, horizontal e vertical, que se transversalizam e estão situados num plano imanente da constituição e desenvolvimento (Hur, 2012). A tetravalência é o próprio agenciamento entre as linhas de composição do processo grupal. Em cada eixo há dois polos que variam em sua intensidade. No eixo horizontal, o primeiro polo diz respeito ao conteúdo, à relação entre corpos, afecções e contexto, que permite a construção de um sistema em que “cada disposição espacial distinta é pensada no âmbito da teoria dos dispositivos como forma de mobilizar determinados efeitos e processos” (Hur, 2012, p. 22). O segundo, refere-se ao sistema semiótico, à produção de processos, sempre coletivos, de expressão e enunciação. Neste polo, a relação entre signos e produção discursiva permite a composição de conteúdos e expressões próprias ao grupo. No eixo vertical, um de seus polos corresponde a processos de territorialização, fixação, estabilidade e constância. É, através desse polo, que os modos de ser hegemônicos, suas formas de enunciação, seus afetos possíveis se apresentam. Por fim, o eixo vertical ainda possui outro polo que desterritorializa, dando abertura à diferenciação e processos de singularização, produzindo linhas de fuga, movimentos de transmutação, de experimentação e de criação (Hur, 2012). Ainda, “o dispositivo pode ser entendido como uma máquina de produção de discursos e de ações-relações, em que se faz ‘falar’ e se faz ‘ver’, produzindo enunciações, visibilidades distintas, acontecimentos e modos de ser” (Hur, 2012, p. 21).
Desta forma, o dispositivo, tomado pela sua tetravalência, é máquina que produz corte de fluxos para extrair deles regimes semióticos, permitindo criar intensidades e efeitos em seus processos maquínicos. A noção de máquina, é entendida como diferente da noção de estrutura e de mecânica, pois foge à tentativa de organização e de descolamento da temporalidade (Barros, 2007). A máquina atua sempre acoplada em outra máquina, podendo se agenciar de diversas formas. No entanto, ela não está a compor uma totalidade que impede a produção de sentido em cada peça separada, a máquina nem sequer é uma peça de um todo, ela é uma energia que produz movimento entre os fluxos heterogêneos que não cessam de passar, e o que ela quer é fazer funcionar, produzir efeitos. Frente a isso, torna-se necessário questionar qual é seu funcionamento e quais são os efeitos produzidos. E é neste sentido, que o grupo-dispositivo deve ser pensado como máquina que pode mobilizar a construção de uma práxis que não seja disciplinar, possibilitando a abertura de vias de ressignificação e impulsionando a criação pela sua capacidade de erigir um contexto que permite afetar e ser afetado, na composição coletiva de experimentações em torno do que já se encontra territorializado. A relação entre os eixos, na constituição do plano de imanência, permite que as formas territorializadas possam se atualizar e devir territórios outros, formas expressivas, discursivas e afetivas outras, que recusam e enfrentam a extorsão dos modelos hegemônicos e excludentes.
O grupo como dispositivo é sustentado pelas processualidades, pelo emaranhado de linhas que o compõe. Nesta perspectiva, não há intenção de cristalizar posições identitárias e interpretar sujeitos a partir de apriorismos pautados por uma racionalidade dominante, também não há hierarquias. O grupo, plano de composição contínua da individuação do singular e do comum, investe na acontecimentalização, na atualização de territórios existenciais. Trata-se de experimentar e não de interpretar (Barros, 1996; Rolnik, 2018).
Enquanto território existencial outro, o processo grupal esquizoanalítico possibilita tramar conexões entre as vidas que nele habitam. O grupo é ethos que permite, na intensidade dos encontros, a configuração de pensabilidades inéditas, de regimes outros de percepção e afecções. Nele não se suprimem as singularidades. Maquinam-se agenciamentos para conectá-las e criar um comum. Em distintos contextos de atenção ao coletivo nas políticas públicas, quando amparado na atitude cartográfica e na transversalização de territórios existenciais singulares, o processo grupal esquizoanalítico pode ampliar a potência de ação frente às violências e formas de sofrimento mental geradas pelo cisheteropatriarcado, pelo racismo, pelo capitalismo, pelo individualismo, sem perder de vista a vivência individual que se materializa como vulnerabilidade, violação de direitos e adoecimento. O cartografar, movido por uma bussola ética (Rolnik, 2018), permite o agir com, sem que as necessidades daquele que compõem o grupo sejam sobrecodificadas por especialismos, situando os distintos saberes em dialogia e impulsionando a criação de formas de resistir às condições que precarizam a vida.
Nesta perspectiva, o que há num grupo-dispositivo é a lógica do terceiro incluído, que rompe com a regra de um regime de oposição, furtando-se do “ou” que dualiza e anunciando o “e” que multiplica (Barros, 1996). O dispositivo grupal pode ainda permitir rastrear as linhas que o compõem e que transversalizam os acontecimentos, para extrair delas conteúdos e enunciações, percepções e afecções, capazes de modificar as estruturas e os modos de ser e existir instituídos. A transversalidade é o efeito da composição de encontros, enunciados e conexões que estão continuamente acontecendo, sempre em devir. O objetivo, portanto, é, justamente, o aumento do coeficiente de transversalidade. Neste prisma, o grupo é suporte de diversos modos de expressão e, transversalizar, é situá-lo como protagonista (Guattari, 1984), é superar verticalizações e horizontalizações, remetendo “a uma dimensão mais conectiva, colocando em análise estratos diversos e descontínuos a atravessar um determinado sujeito ou grupo” (Simonini & Romagnoli, 2018, p. 919). A dimensão transversal irá incluir na trama complexa de análise, elementos históricos, sociais, políticos, econômicos e estéticos, dando consistência à percepção dos arranjos que configuram os processos de subjetivação (Guattari, 1984; Simonini & Romagnoli, 2018). É em função desta leitura, capaz de situar uma práxis de atenção psicossocial que parte dos determinantes da desigualdade e do sofrimento ético-político, que o processo grupal, quando compreendido desta forma, pode superar a mera verificação dos danos sofridos pela parte da população excluída, permitindo tratar as condições reais de experiência de cada um de seus integrantes, por meio da transversalização, como um solo para outros modos de subjetivação, para a resistência e criação.
O grupo-dispositivo, pensado na perspectiva esquizoanalítica, não é isso, nem aquilo, identidades fixas, imutáveis, outro Um. Ele é o entre, o que está no meio, desviando de toda e qualquer totalização substancializadora, fugindo das capturas identitárias e coisificantes (Barros, 2007). Ele é rizoma, que se diferencia do modelo arborescente, pois não busca enraizar e binarizar entre um início e um fim, mas sim, proliferar, fazer conexões e agenciamentos com a multiplicidade, compor uma rede de devires: “O devir é aquilo que é sem ser um, sem ser identidade, sem ser indivíduo. O devir está no plano do incorporal, do invisível, das virtualidades. É aquilo que se insinua entre as dicotomias, se afirmando como um dos modos de ser” (Barros, 2007, p. 207). O grupo-rizoma, portanto, somente poderia ser composto por linhas, que ao se cruzarem, traçam mapas, “desenhos que se montam em experimentação no real” (Barros, 2007, p. 206), em direção à potencialização do coletivo. O grupo, ainda é movimento, é campo de experimentação, de transbordamento (Barros, 2007).
A experimentação é o principal alicerce às conexões inéditas, aos agenciamentos maquínicos que interseccionam os processos de subjetivação à política desejante e à práxis ética (Barros, 2007). O desejo, nesta perspectiva, não está compreendido pela falta, ou mesmo como algo natural, pois ele é produzido em zonas de intensidades, que constituem um plano de consistência. Este plano difere de qualquer tentativa de organização, pois sua configuração é montável pela intensidade dos fluxos, pelas linhas que transversalizam qualquer estratificação (Deleuze & Guattari 1996). O plano de consistência diz respeito a processualidades infinitas e sempre inacabadas, pois não há sujeitos e objetos individuados. O que há são “corpos informes”, “objetos incorporais”, “modos de existencialização”, que estão sempre em movimento, em transformação (Barros, 2007). A política desejante que transversaliza os processos de subjetivação e o plano de consistência, em um grupo, refere-se à ausência de um funcionamento teleológico, pois ocorre “pelo encontro com fluxos heterogêneos que, em sua diferença, exigem a transformação” (Barros, 2007, p. 216). O desejo então, é potência criadora quando associado a dispositivos que permitem experimentação de novos pensares e fazeres, compondo modos de vida resistentes às modelações hegemônicas (Cavagnoli, & Maheirie, 2020).
O processo grupal esquizoanalítico está comprometido, então, com a possibilidade de construção de um movimento que seja capaz de problematizar as formas de captura, de diminuição da potência de vida, investindo na multiplicação de modos de perceber, de afetos possíveis e de sentido em torno da experiência comum. Neste viés, para que realmente exista uma transformação radical frente ao sofrimento ético-político, e um movimento que seja capaz de impulsionar processos de singularização, torna-se necessário também, atuar através de uma ética que não esteja fundamentada em premissas moralizantes e em preceitos apriorísticos e dicotômicos. Ou seja, necessita-se abandonar a suposição naturalista do bem ou do mal e a separação entre sujeito e objeto, corpo e pensamento, desejo e política, singularidade e coletividade. Nesta direção, a compreensão ontológica e etológica espinosista nos ajuda a pensar o grupo como contexto ético-político capaz de provocar tensionamentos na lógica instituída. A concepção ética de Espinosa (Chauí, 2016), diferentemente da tradição teológica metafísica, considera a imanência como premissa à compreensão das causas e dos efeitos de toda Natureza. Espinosa também não considera a ideia de criação divina, separada dos seus efeitos e ordenadas por qualidades humanas. Além disso, ele concebe os sujeitos como um grau de potência, cuja propriedade, manifesta o poder de ser afetado e de afetar. Com isso, Espinosa nos oferece a compreensão da ética dos encontros (Chauí, 2016; Deleuze, 1994). Tal concepção diz sobre um éthos, um campo de acontecimentos pulsantes, um plano de experimentação em que as variações singularizantes rasgam qualquer modelização serializada. A ética, portanto, se refere aos modos qualitativos de existência engendrados nos encontros entre os corpos (Deleuze, 1994). O grupo-dispositivo, compreendido como este éthos, é o que permite a construção de encontros que potencializem processos de singularização.
Os encontros, nesta perspectiva, ocorrem na superfície. No entanto, não é uma superfície que se opõe à profundidade, mas ao desvelamento e à interpretação de algo supostamente oculto, nos permitindo compreender que, justamente nesta superfície, é onde se desenham as relações. (Barros, 2007). Assim, “trabalhar na superfície é positivar as múltiplas direções que os agenciamentos podem imprimir aos corpos, é explorar, na multiplicidade pré-individual, devires outros que se insinuem entre as dualidades” (Barros, 2007, p. 296). Além disso, são nos encontros, nas afecções, que se produzem afetos e ideias. A capacidade de sofrer afecções influi no aumento ou na diminuição da potência de existir e agir (Sawaia, 2009). Os afetos que emergem nos encontros, configuram-se pela transição de intensidade e uma de suas dimensões é a transformação que corpo e mente realizam, expressa em diferentes estados. Ainda, a variação de intensidades de cada ser na afecção não diz apenas sobre intersubjetividades, pois o real tem agência sobre sua própria configuração, de modo que as mudanças (variações na composição dos corpos e ideias) não necessariamente ocorrem apenas no encontro restrito à relação entre uma subjetividade e outra, mas dependem também, do encontro entre corpos não humanos, entre corpos humanos e outros corpos, entre instituições e coletividades humanas. Há, portanto, um plano de composição permanentemente móvel, constitutivo dos humanos e do mundo, oferecendo elementos pré-individuais à individuação singular, e elementos transubjetivos que dão forma ao próprio plano de imanência, por meio de seus agenciamentos, sustentando equipamentos coletivos de enunciação e agenciamentos maquínico afetivos.
O afeto, então, é sentido e experimentado pelos sujeitos e esta capacidade, isto é, de experimentar as afecções, lhe confere propriedade criadora, no entanto, o afeto em si não poderia ser concebido como próprio ao sujeito, pois ele é pré-pessoal. Ele existe porque a relação existe e a relação não está no indivíduo, ela está nos encontros, ou seja, nas afecções. Não é possível, portanto, depreender a presença de pontos que fixam origem ou destino em um grupo voltado a produzir potência de ação, pois o afeto é polivalente, difuso, atmosférico, contudo, percebê-lo se torna possível através da “existência de limiares de passagem e de transformações polares” (Guattari, 1989/2019, p. 384). Ainda, o afeto é o que Guattari denomina como proto-enunciação, isto é, afetar e ser afetado oferece condições de possibilidade à gênese de regimes de pensamento inéditos, constituídos em sua forma e conteúdo pela conexão afetiva entre subjetividades e plano comum de experimentação. Os componentes que transversalizam o grupo, modulam a disposição discursiva e afetiva, a fim de fazer o afeto falar através dos corpos, dos “Territórios Existenciais”, das cenas que compõem o real. Desta forma, é na própria experiência de afetação, no plano imanente dos dispositivos grupais, que ocorre a gênese de movimentos que mobilizam o contágio entre os corpos e a produção de ideias como movimento constante e capaz de produzir ação, pensamento e desejo (Sawaia, 2009).
É nesta direção que a criação de um campo de experiências coletivo mobiliza a gênese de enunciados, ideias, relações e corpos sustentados pela proto-enunciação, por aquilo que está no âmbito dos afetos e que mobiliza a reciprocidade e a ressignificação de experiências, signos, lugares e sentidos instituídos e consensuais. As dimensões ética e política percorrem os planos de inteligibilidade e sensibilidade do real e os faz também devir, através da potencialização da atividade criadora que permite a reflexão e problematização de estigmas que delineiam processos de subjetivação. Assim, o impulso à objetivação de expressões simbólicas, semióticas e performáticas do coletivo, possibilita a vasão de sentidos e afetos que permitem a emancipação das singularidades e a ruptura de movimentos regulatórios associados a dispositivos biopolíticos e disciplinares. Compreender o paradigma ético-estético-político na práxis psicossocial das políticas públicas pode ser associado à escolha por investir em encontros que permitam a ressignificação da condição compulsória de ser e existir, que proporcionam modos de expressão singulares e que acreditam nas multiplicidades, na polifonia e na mutabilidade dos processos de subjetivação. E essa escolha, diante do violento avanço das forças neoliberais, é um ato de coragem frente ao desafio de superação das desigualdades, do sofrimento ético-político e da queda abissal ao individualismo.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Buscar a compressão da potência do dispositivo grupal esquizoanalítico, à constituição de processos de singularização e de movimentos coletivos nas políticas públicas, é um desafio diante do cenário atual. O desmonte das políticas sociais tem feito parte de um projeto de desenvolvimento da sociedade, cujo objetivo se aprofunda na naturalização das desigualdades e dessensibilização frente às diferentes formas de sofrimento. O que se evidencia neste percurso é a reinvenção das estratégias de dominação, controle e aprisionamento das vidas, principalmente daquelas julgadas como inferiores. A perspectiva esquizoanalítica de criação de dispositivos grupais, neste contexto, tem se mostrado enquanto potente para a insurreição e fortalecimento de processos contra-hegemônicos, que permitem a gênese de linhas de visibilidade a estas formas de captura e, de forma concomitante, oferecem um rico plano ético, estético e político que pode ser coletivamente habitado, na busca por experiências emancipatórias. Compreendemos, portanto, que movimentos sensíveis podem ser gestados, que a potência política e afetiva pode ser aumentada e que, em consequência, pode haver o fortalecimento de processos que tensionam a lógica hegemônica, que questionam as cristalizações e que enfrentam as forças dominantes. É nesta via que defendemos a experiência ética das afecções no processo grupal como propulsora de processos de singularização, ou seja, na via dos afetos e da potência política.
Quando nos propomos a refletir e problematizar criticamente as práticas grupais nas políticas sociais, nos deparamos com a necessidade de questionar o que a máquina capitalística insiste em reproduzir no âmbito dos processos de subjetivação e da produção de desejo. Compreendemos que o que ela faz é serializar, tentar homogeneizar, excluir as diferenças, explorar e oprimir cada vez mais. Portanto, construir dispositivos de resistência e intervenção que envolvem o plano político de composição e recomposição do real, que denunciem a exclusão e a inclusão perversa e que sejam capazes de constituir contextos de experimentação dos afetos, torna-se urgente. Neste sentido, defendemos que os dispositivos grupais, na perspectiva esquizoanalítica no contexto das políticas públicas, são potentes recursos teórico-práticos capazes de rachar a estrutura consolidada, permitindo a produção de desidentificações às identidades subalternas e mobilizando a constituição de excedentes, criações singulares que ressignificam as formas coletivas de perceber sujeitos e lugares. No entanto, ressaltamos que, toda teoria e toda prática, como indissociáveis, devem estar em constante movimento reflexivo-crítico-afetivo, pois o que se sabe também sobre a máquina capitalística é que, sua força inventiva, às custas da exploração, é ampla e constante. Então, buscando sempre capturar os sujeitos e os dispositivos com potência singularizante, quando consegue, novamente os modula em direção à sua própria manutenção e reprodução.
A partir da tetravalência e do aumento do coeficiente de transversalidade nos dispositivos grupais, é possível mobilizar a constituição de um ethos ético-político capaz de compor vias de ressignificação e impulsionar a criação pela sua capacidade de erigir um contexto que permite afetar e ser afetado, na composição coletiva de experimentações em torno do que já se encontra territorializado. Ou seja, permitir que as formas já territorializadas possam se atualizar e devir territórios outros, formas expressivas, discursivas e afetivas outras, que recusam e enfrentam a extorsão dos modelos hegemônicos e excludentes. E este movimento depende da gênese de afecções no coletivo que estejam comprometidas com a transformação dos corpos e das ideias em direção ao aumento da potência de existir e agir.