INTRODUÇÃO
O artigo reflete suposições conceituais procedentes de uma discussão pautada pela teoria psicossocial da identidade humana (Ciampa, 1987), correlacionada a fatos objetivos da pandemia da Covid-19, que impactou de maneira inevitável a história do século XXI.
Inicio estas reflexões em março de 2021, há exato um ano após a divulgação oficial da primeira morte por coronavírus no Brasil (12/03/2020); até o momento chegamos ao calamitoso número de 270.000 mortes, sem nenhuma expectativa, a curto ou médio prazo, de redução do drama. (Após o consequente trâmite editorial para a publicação deste artigo, e revisão feita pelo autor em agosto de 2022, infelizmente os números corroboraram a dramaticidade dos fatos, pois, apesar de mais bem controlada, a pandemia no Brasil chegou ao número de mais de 682.000 óbitos causados pela infecção viral. Ou seja, o ano de 2022, assim como os seus antecessores, 2020 e 2021, segue tragicamente afetado pela Covid-19).
Em meio a uma disputa de narrativas político-ideológicas, sanitárias e econômicas, o consenso propalado é de que o “mundo nunca mais será o mesmo”. A pandemia global desencadeada pelo novo coronavírus, agente biológico altamente eficaz em sua dinâmica infecciosa, abalou a estrutura do planeta.
Àquela época do decisivo e necessário distanciamento social para evitar a propagação da Covid-19, (principalmente entre meses de 2020 e 2021), em muitos ambientes físicos de trabalho se encontravam inertes os materiais e inativas as máquinas, projetos e ferramentas. Vimos também que no acirramento da pandemia diminuiu-se de forma inesperada e abrupta os encontros e interações sociais entre as pessoas nos mais diversos espaços, para além dos ambientes tradicionais de trabalho: igrejas, bares, sindicatos, barracões, academias, comércios, shoppings, estádios e praças, dentre outros, não eram mais os mesmos. Quando não fechados completamente, esses ambientes operavam de forma atípica. A vida foi regida por protocolos de segurança e regras biosanitárias, rearranjando-se de formas até então inimagináveis.
Seria esse forçado distanciamento social vivido, que mudou sobremaneira os comportamentos coletivos, capaz de afetar decisivamente a construção da identidade humana?
Defendemos a hipótese de que sim. O distanciamento somado às outras implicações da pandemia, trouxe consequências marcantes para as identidades humanas em seus mais variados aspectos. Dada a indissociabilidade entre o psicológico e o social, torna-se evidente o impacto irrefutável de se viver tempos excepcionais em que o tecido social forçosamente se modificou por conta das contingências da pandemia.
Em momentos atípicos como esses vividos, a teoria psicossocial da identidade humana, apresenta-se como capaz de propiciar entendimentos e reflexões, haja vista, sua própria corroboração prática, à medida que, de fato, percebeu-se “na pele” como esse rearranjo macrossocial, político e sanitário, imprimiu mudanças e reposicionamentos sociais, subjetivos e comportamentais na vida de todos que tiveram de se reorganizar diante dos acontecimentos.
Ressalta-se que a apreciação aqui proposta é parcial e inacabada, pois restringe-se a entendimentos específicos de uma situação extremamente ampla e complexa, procedendo analiticamente com um recorte teórico específico que permite um aprofundamento reflexivo, mas abarcando apenas alguns pontos dos fenômenos humanos e sociais advindos do distanciamento social entre as pessoas.
Com base na psicologia social e o entendimento da identidade humana, a ideia é abordar aspectos que à primeira vista têm passado despercebidos da maioria das análises psicológicas. Mormente tais discussões teóricas e técnicas têm se preocupado com a questão da saúde mental da população, mas, grosso modo, não debatem as causas-bases de tanto desconforto psicológico, atendo-se mais aos sintomas vividos e às possíveis medidas de prevenção.
Vale lembrar que, depois do primeiro ano de pandemia, enquanto muitos países, em ritmos distintos e com desafios próprios, a bem da verdade, discutiam a vacinação e a retomada gradual das atividades, com idas e vindas nas políticas de distanciamento e nos índices de contaminação e mortes, o Brasil ainda lidava desesperadamente, e aparentemente de forma pouco organizada, com as inseguranças causadas pelo contágio e pelo risco iminente da sobrecarga no sistema de saúde. Infelizmente, somou-se a isso, o aparecimento de novas cepas do vírus, a falta de medicações, o esgotamento dos profissionais de saúde e o atraso e dificuldades no planejamento para iniciar a vacinação da população.
INTRODUÇÃO À TEORIA DA IDENTIDADE
O artigo propõe que o acirramento dos influxos da pandemia incidindo nas identidades humanas trazem repercussões psicossociais irrefutáveis, considerando ser um equívoco, qualquer análise da conjuntura que fuja dessa conjugação. A premissa é de que o ser humano não poderá ser devidamente compreendido como se fosse uma mônada independente e sem repercussões a partir da vida social e política.
Substancialmente pode-se dizer que o homem está entre a natureza e a cultura, pois seus elementos biológicos e o dado orgânico são elementos irrefutáveis; contudo, seu corpo se humaniza dentro de um espaço contingencial, mediado pela linguagem, que permite sua inserção sócio-histórica e cultural (Jacques, 1998).
Portanto, coerente com esse escopo teórico, o conceito de identidade aqui prescrito, sistematizado enquanto categoria de análise, parte dessa base epistemológica da psicologia social materialista dialética que transcende o substrato biológico.
Compreende-se que essa delimitação teórica se faz importante “porque o uso comum do termo identidade, quase sempre, tem apresentado uma variabilidade conceitual que torna difícil seu uso sem uma devida contextualização” (Lima & Ciampa, 2012, p. 11).
Um dos pilares de compreensão da identidade, enquanto categoria de análise, advém de sua aproximação, mas principalmente de sua diferenciação em relação a um termo clássico e caro à psicologia, o conceito de personalidade.
Ao longo da história da psicologia, de acordo com Silvia Lane (1981) e Ana Bock (1997), o conceito - personalidade - foi tratado em uma perspectiva médico-organicista, devido principalmente às influências preceituais do positivismo metodológico, basilares da ciência contemporânea. Ou seja, costumeiramente a personalidade é percebida como algo “dado previamente” em um aspecto determinístico. Prevaleceria sobremaneira, nesse sentido, às questões hereditárias e biológicas do indivíduo, cabendo à psicologia, enquanto ciência, “apenas” analisar os comportamentos e categorizá-los enquadrando-os nos princípios constitutivos da personalidade, que seriam normais ou patológicos, de acordo com as classificações vigentes.
Segundo Lane (1981), distintas vertentes psicológicas tradicionais discutiram a personalidade em outros termos, predominantemente através de um entendimento essencialista (em que uma essência inata ao sujeito deveria ser desenvolvida) ou maturacionista (em que fases específicas do desenvolvimento deveriam ser cumpridas sucessivamente). O problema, para a autora, é que independentemente da visão utilizada para compreender a personalidade humana, seja a determinista, a essencialista ou a maturacionista, tais entendimentos sempre implicaram em uma grave cisão do indivíduo com a sociedade, instaurando assim uma dicotomia.
Diante desse imbróglio teórico, o conceito de identidade tentará superá-lo preposicionalmente, valendo-se sobretudo da compreensão do homem em movimento, um ser histórico e social, como demarcados por Ciampa (1987), Sílvia Lane e Wanderley Codo (1984).
De acordo com Ciampa (2009), a identidade não poderia mais ser percebida daquela forma, como estática, mas sim dinâmica, em constante mutação, uma metamorfose permanente; surgia, assim, uma categoria psicossocial; um novo modelo de entendimento sobre a personalidade. Ciampa sugere que a identidade (em demarcação à personalidade) seria ao mesmo tempo, diferença e igualdade (em relação aos outros), resultando da subjetividade do indivíduo entrelaçada à objetividade social. “Sem essa unidade, a subjetividade é desejo que não se concretiza, e a objetividade é finalidade sem realização” (p. 145).
Retomando o mote do artigo, percebemos a proficuidade analítica de tais proposições teóricas, pois de forma concreta, passamos por um momento social e político extremamente conturbado com implicações subjetivas imanentemente severas.
Aos moldes de Erving Goffman (1959/1995), na obra, A representação do eu na vida cotidiana, Ciampa (2009) também partiu de uma abordagem conceitual proveniente da dramaturgia (analogia à capacidade expressiva) para teorizar sobre as relações humanas e as representações sociais em uma perspectiva intersubjetiva e psicossociológica, procurando compreender o impacto da vida interativa na constituição identitária dos sujeitos.
Para Ciampa (2009), a identidade humana poderia ser compreendida como composição de diferentes personagens, que assumiríamos de acordo com as expectativas da sociedade no decorrer de nossas experiências. Cabe lembrar, que os papeis sociais são impostos desde o nascimento, e que, à medida que vivemos nos adequamos às expectativas “do outro”, pois sempre haverá um script que nos antecede com roteiros previamente determinados. Ou seja, para sermos reconhecidos enquanto sujeitos merecedores de transitarmos em determinados espaços coletivos, em alguma medida, teremos de nos adequar àquelas condições precedentes, interativas e modulares de tais ambientes e papéis, através de personagens, que seriam a expressão empírica da identidade.
Portanto, para Ciampa (2009, p. 198) “as personagens são momentos da identidade, degraus que se sucedem, círculos que se voltam sobre si em um movimento, ao mesmo tempo, de progressão e de regressão”.
Ou seja, nossa identidade seria configurada por diversas combinações de personagens, já que não conseguimos nos apresentar integralmente diante do outro (interações sociais); sendo assim, sempre haverá personagens precisando da pressuposição em sua expectativa de integralidade, pois para Ciampa (2009) somos totalidade una, mas contraditória, múltipla e mutável. A articulação desses personagens seria a expressão do eu, sínteses de múltiplas determinações.
Quando dizemos que fulano é professor, não estamos falando do total de sua identidade, mas de uma de suas personagens. Também é possível dizer que ele é psicólogo, pai, marido, colecionador de moedas, deficiente físico. Caso represente esses papéis em determinados contextos sociais, podemos reconhecê-lo dessas maneiras e esses predicados o podem ser atribuídos. Mas em sua história ele já representou o filho mais velho, o continuador do negócio do pai, o estudante preguiçoso, o artilheiro de futebol, o rapaz namorador. Vemos, assim, que a identidade pode se expressar por diversas personagens, que elas dão uma certa estabilidade à identidade, mas que mudam ao longo do tempo à medida que as condições de vida também mudam. Por conseguinte, com o conceito de personagem, Ciampa fundamenta que identidade é metamorfose. (Gonçalves & Lima, 2009, p. 3)
Adiante retomaremos tal discussão teórica, pois percebemos que alguns de nossos principais personagens foram diretamente afetados pelo distanciamento social imposto pela pandemia, com consequentes repercussões identitárias.
Esse escopo analítico apresentado tem em sua base epistemológica uma importante referência à contribuição da teoria do filósofo pragmatista e psicólogo social norte-americano, da Escola de Chicago, George Herbert Mead (1863–1931), um dos pioneiros em pressupor a ideia de um self construído socialmente.
Algumas pesquisas, tais como, Odair Sass (2004), Renato Souza (2011), Lima (2010, 2015), dentre outras, já demonstraram a proficuidade da teoria psicossocial de George Mead, principalmente ao estabelecer a irrefutabilidade correlacional entre a construção da identidade humana mediada pela linguagem com os processos intersubjetivos de significação social. O eminente filósofo alemão, Jürgen Habermas, por exemplo, chega a dizer que:
G. Mead será o primeiro a tomar o enfoque performativo da primeira pessoa em relação à segunda – e principalmente a relação simétrica tu-me – como chave para a sua crítica ao modelo do espelho, isto é, a auto-relação do sujeito que se objetiva a si mesmo. (Habermas, 1988, p. 197)
G. Mead foi o primeiro a refletir sobre esse modelo intersubjetivo do Eu produzido socialmente. Ele lança fora o modelo da reflexão da autoconsciência, de acordo com o qual o sujeito cognoscente refere-se a si mesmo como um objeto, a fim de apoderar-se de si-mesmo e, através disso, tornar-se consciente de si mesmo. (Habermas, 1988, p. 204)
Alguns conceitos meadianos são didáticos ao entendimento do social self e consequentemente à teoria de identidade, por exemplo, a ideia do “outro generalizado”, pois, para Mead, (1934/1972), somente na medida em que o indivíduo puder seguir as atitudes genéricas de todos os outros envolvidos nos processos sociais de sua comunidade, assentindo com a totalidade das relações experienciais das instituições e grupos de seu ambiente, é que ele poderá edificar um self estruturado adaptativamente.
Podemos dizer que o “outro generalizado” é uma espécie de influência da socialização na constituição do self, ou seja, na individuação identitária do sujeito.
É na forma do outro generalizado que os processos sociais influenciam na conduta dos indivíduos envolvidos neles e que os levam a cabo, i é, que a comunidade exerce controle sobre a conduta de seus membros individuais; pois dessa maneira o processo ou comunidade social entra como um fator determinante no pensamento do indivíduo. No pensamento abstrato o indivíduo adota a atitude do outro generalizado. (Mead, 1934/1972, p. 155)
Parece evidente a confluência entre as proposições de George Mead e a teoria da identidade proposta por Antonio Ciampa.
Mead (1972) pensa o self dividido em duas instâncias, as quais denominou, “mim” e “eu”. O autor ressalta que essa divisão do self tem um caráter didático, pois em última instância, não poderíamos compreender o self compartimentalizado (a não ser psicopatologicamente), já que se presume a sua integralidade.
O Mim seria a instância responsável pela adaptação e orientação do self à sua comunidade, à medida que o guiaria abalizando-o através de um roteiro internalizado que mapeia as possibilidades interativas compreendidas intersubjetivamente pelos sujeitos.
O Mim possibilita a internalização das regras sociais, na identificação do sujeito com sua comunidade cultural. É a presença do outro na consciência do indivíduo. O sujeito, para se reconhecer, precisa perceber a “existência do outro em si”, possibilitado pela comunhão do mim em ressonância espectral.
O “Eu” seria a emergência do novo, da espontaneidade e da criatividade. Reação inusitada do self às ações da sociedade/coletividade; surge como resistência às atitudes da massa, tendo condições de modificar a própria sociedade por sua excentricidade e originalidade. O “eu” é a fase do self que se exterioriza, ancorado no “mim”, mas reagindo singularmente à atitude dos outros.
Enquanto o “mim” exprime a convencionalidade, a tradição e a adaptação, o “eu” indica a novidade e o futuro. “O ‘eu’ é a reação do organismo às atitudes dos outros; o ‘mim’ é o conjunto organizado das atitudes dos outros que o indivíduo adota para si mesmo. As atitudes dos outros constituem o ‘mim’ organizado e então o indivíduo reage a elas como um ‘eu’”. (Sass, 2004, p. 265)
Atento a esses aspectos, Lima (2010) aprofunda a discussão ao perceber a confluência teórica entre as proposições. Destaque dado à correlação do (“personagens”) conceito caro à teoria de identidade de Ciampa, com o self: (“Mim” e “Eu”) de George Mead.
Se em nossas interações humanas precisamos do reconhecimento social que se dá de modo intersubjetivo pela possibilidade de internalização dos influxos sociais (outro generalizado), engendrados nos espaços que habitamos, claro está que meus personagens só serão efetivos dentro de espectros que o validem. Ou seja, premissa do personagem é ser reconhecido dentro de um fim possível por conter em si mesmo o respaldo do “Mim” internalizado. Os outros generalizados nos habitam subjetivamente predicando parte de nós mesmos enquanto componentes identitários indissociáveis de nossos personagens que confluem em busca de uma identidade.
Será exatamente nessa confluência múltipla de personagens, constituídos em consonância com os predicados dos outros generalizados (Mim) que o “Eu” terá sua plenitude e respaldo psicossocial para se organizar proclamando-se identitariamente de forma singularizada e, quem sabe, emancipada, ao se contrapor reivindicando autonomia dizendo-se eu-de-si-mesmo.
Análise interessante, pois demonstra que mesmo diante do imprescindível processo de socialização, mediado pelos influxos sociais que nos habitam, nesse processo histórico intersubjetivo, também teremos a possibilidade de nos proclamarmos detentores de uma identidade autônoma na medida em que teremos a possibilidade de integrar essas experiências de forma particular.
Evidente está que a identidade se constitui em processos relacionais intersubjetivos mediados pela linguagem dentro de um contexto político-histórico específico que permite a composição do substrato orgânico com significados e sentidos. Nesse processo identitário a questão do reconhecimento social aparece como premissa basilar, pois inerente a sua dinâmica constitutiva. O self envolve a consciência de si a partir do reconhecimento do outro; não resulta de uma experiência individualizada, mas de uma vivência experiencial coletiva.
Aceito isso, manifesta se torna a importância do reconhecimento, enquanto pressuposto vívido das relações humanas e, consequentemente, aporte teórico para todas as conjecturas científicas que versam sobre as questões da identidade em uma perspectiva psicossocial.
A teoria de identidade engloba um entendimento que necessariamente deverá compreender os processos de socialização e individualização, percebidos como etapas indissociáveis de um procedimento abrangentemente dialético. Pensando psicopoliticamente, Axel Honneth (2003) aprofundará a discussão sobre o reconhecimento social salientando sua importância e necessidade para a composição identitária.
Honneth (2003) ressalta em sua obra a importância do reconhecimento nesse processo de constituição da identidade, pois para ele, o ser humano só se vê como ser humano se os outros assim o reconhecerem, agregando valor ao entendimento de George Mead (social self) e Antonio Ciampa (identidade-metamorfose), acerca da indissociabilidade entre a identidade social e a pessoal, superando a falsa dicotomia entre essas duas instâncias.
Como ressalta Ciampa (2009), o indivíduo necessita repor sua identidade cotidianamente para que possa apresentar-se de fato com o que está sendo almejado; ele repõe no presente o que tem sido até então, confirmando sua imagem diante dos outros, o que possibilita assegurar subsequentemente em um futuro imediato o próprio reconhecimento constitutivo de si. Ou seja, é importante realçar que a necessidade de reconhecimento (Honneth, 2003) faz parte do desenvolvimento da identidade humana, e a ausência ou distorção desse reconhecimento tem como consequências diretas o impedimento da concretização do sentido emancipatório da identidade. “Em nenhuma outra teoria, a ideia de que os sujeitos devem sua identidade à experiência de um reconhecimento intersubjetivo foi desenvolvida de maneira tão consequente sob os pressupostos conceituais naturalistas como na psicologia social de George Herbert Mead” (Honneth, 2003, p. 125).
Para Honneth, Mead deixará evidente que a consciência de si surgirá somente à medida que se percebe sua própria ação pelo prisma de uma segunda pessoa, ou seja, seria a partir do reconhecimento do outro, e somente assim, que haveria a possibilidade da autoconsciência. “A identidade, portanto, é concretizada a partir de um processo de significações estabelecidas com outros indivíduos, no jogo do reconhecimento” (Lima & Ciampa, 2012, p. 24).
Tal tipo de entendimento também é incorporado por Habermas (1988) em suas análises, o qual assume, que no desenvolvimento da identidade humana, a subjetividade compõe-se com a objetividade da natureza mais a normatividade da sociedade, em um processo mediado intersubjetivamente pela linguagem.
Infere-se dessa conjuntura que aborda a identidade e o reconhecimento enquanto aporte teórico, a indissociabilidade da psicologia, enquanto ciência e profissão, do social. Se não há como separar as instâncias psíquicas e subjetivas do entrelaçamento coletivo sócio-histórico, evidente se torna, a vocação política da psicologia, pois percebe-se que as questões macrossociais estruturantes, econômicas e ideológicas se fazem inscritas nos processos constitutivos psicológicos / identitários dos sujeitos que buscam serem reconhecidos nos espaços sociais que habitam com seus personagens.
CONTRIBUIÇÕES DE JÜRGEN HABERMAS À PSICOLOGIA SOCIAL CRÍTICA
Juntamente à essa base teórica conceitual sobre a identidade humana, que concebe indissociável a interlocução entre sociedade e indivíduo, aos moldes de Mead (1972), mind, self and society, faz-se oportuno, aditarmos elementos da teoria habermasiana, que nos propiciarão subsídios para refletirmos com acuidade alguns aspectos do impacto causado pelo distanciamento social decorrente da pandemia de coronavírus.
Para arregimentar tal discussão, inicialmente traz-se uma teoria importante para as ciências humanas, a Teoria da Ação Comunicativa (Habermas, 1987), em que se prediz, dentre outras coisas, que as relações sociais conduzidas por indivíduos linguística e interativamente competentes, através de processos intersubjetivos, seriam capazes de viabilizar uma verdadeira “reprodução cultural, integração social e socialização” (Habermas, 1987, p. 196), enquanto bases características e até mesmo fundantes das sociedades humanas.
À vista disso, o autor delimita um conceito caro à sua teoria da ação comunicativa, a ideia de mundo da vida. Para tal, recorre à inspiração fenomenológica de Edmund Husserl, que assim define o conceito:
O “mundo-da-vida” é o terreno a partir do qual tais abstrações [da ciência] derivam, é o campo da própria intuição, o universo do que é intuível, ou ainda, um reino de evidências originárias, para o qual o cientista deveria se voltar para verificar a validade de suas idealizações, de suas teorias, posto que, a ciência interpreta e explica o que é dado imediatamente no “mundo-da-vida. (Habermas, 1987, p. 196)
É exatamente esse interesse pelo saber do dia a dia, do senso comum, que farão Habermas atentar-se sobremaneira para o impacto decisivo que o mundo da vida [Lebenswelt] exerce sobre a sociedade e suas dinâmicas relacionais. O mundo da vida seria o solo seguro por onde andamos em nossas vidas cotidianas, local de guarida que fornece solidariamente sentidos válidos de forma espontânea para nossas ações.
Por isso, Habermas irá considerar a importância do mundo da vida para a estabilização e perpetuação da sociedade em suas diretrizes histórico-culturais, regimentais e jurídicos formais, pois será pelos processos de socialização e inscrição cultural que se oferecerão os primeiros passos para a formação dos cidadãos e consequentemente de suas identidades.
Lima (2012) nos lembra que o “mundo da vida” se orienta pela “razão comunicativa” no afã de produzir sentidos com pretensões de validade das sentenças proferidas, através do reconhecimento intersubjetivo. Ou seja, a ação comunicativa é entendida como “um processo cooperativo de interpretação, em que os participantes se referem simultaneamente a respeito de algo no mundo objetivo, no mundo social e no mundo subjetivo” (Habermas, 1987 p. 171).
A ação comunicativa se efetiva no mundo da vida, espaço contínuo de possibilidades intermináveis, à medida que, em sua formatação não há limites, pois impera o poder transcendente das subjetividades, que em interação poderão produzir consensos. Por isso, o mundo da vida e a ação comunicativa se efetivam nos espaços genuínos de trocas e compartilhamentos “desinteressados”, como, por exemplo, nas relações amistosas, familiares, comunitárias, dentre outras, como na ciência e na arte, em que a princípio deveria imperar a necessidade do entendimento capaz de propiciar a própria organização subjetiva e social cotidiana.
Tal espaço, o mundo da vida, seria uma espécie de palco inaugural onde nos inscrevemos enquanto integrantes e representantes de um grupamento social buscando protagonismos pela via da ação comunicativa. O mundo da vida é “uma espécie de pano de fundo (background) compartilhado intersubjetivamente” (Lima, 2012, p. 257).
Exatamente nesse espaço validado pelas interpretações linguísticas que a própria cultura se valida ao produzir e propiciar uma reserva de sentidos e conhecimentos permitindo certa estabilidade para os processos de socialização e individualização, que em última instância, tornam-se característicos da própria sociedade, resultando nos processos constitutivos das formações identitárias.
A ideia de Habermas faz-nos perceber que a ação comunicativa imprimida no mundo da vida, “serve à tradição e à renovação do saber cultural; sob o aspecto de coordenação da ação, serve à integração social e à criação da solidariedade; e, finalmente, sob o aspecto da socialização, serve à formação de identidades pessoais”. (Habermas, 1987, p. 196)
Contudo, no mundo da vida também se instaura um importante problema. Habermas percebe que a crescente burocratização e racionalização advindos da ordem sistêmica, que opera signatária das questões econômicas e produtivistas, acabam interferindo sobremaneira sobre os indivíduos.
Lima (2012), discutindo as patologias da modernidade, recorre à teoria habermasiana que destaca que muitos problemas humanos advêm do fato de que os indivíduos teriam sua esfera do mundo da vida colonizada pela ordem sistêmica, que traz consigo de forma inerente o poder de distorcer as ações comunicativas, dificultando possíveis consensos. Essa lógica diversa imprime uma instrumentalização das relações humanas voltadas a fins específicos, através de uma intervenção que distorce a comunicação, corrompendo o mundo da vida para seus interesses produtivistas.
Para Habermas, a intervenção sistêmica “desconecta a coordenação da ação da formação linguística comunicativa”, (Habermas, 1987, p. 258), neutralizando-a ao torná-la contrária à integração social, que proporciona aos participantes o alcance do consenso.
O autor reforça que o sistema pode ser compreendido como o locus das esferas econômica e burocrática, cuja característica principal é ter como meios de controle o dinheiro e o poder, dois elementos que tomam o lugar da linguagem nos processos de entendimento, sendo responsáveis pela tecnicização do mundo da vida, a qual, de acordo com a análise realizada por Habermas, seria hegemônica na atualidade. (Lima, 2012, p. 258)
Como visto, esses dispositivos discursivos exercem enorme influência na sociedade, pois sua lógica compreende quanto é possível e válido, se for necessário, sobrepujar questões éticas e morais ao voltar-se eminentemente para o interesse produtivo em sua finalidade sistemática. Ou seja, há uma espécie de conluio entre a ideologia dominante no sistema capitalista que presume o mercado, a produção e o capital enquanto base motriz de todas as coisas, e o discurso que preconiza essa ideia, como a forma ideal a ser seguida e valorizada na sociedade contemporânea.
Para Habermas, haveria aqui uma violência estrutural que desencadeia patologias, pois o ataque se efetiva na esfera intersubjetiva através da mediação da linguagem instrumentalizando tal espaço insinuando uma lógica individualista, competitiva e interesseira. Seria uma forma de “racionalização unilateral ou de uma coisificação da prática comunicativa cotidiana” (Habermas, 1987, p. 502). Essa forma de razão instrumental se daria por conta “dessa colonização que dominaria as interpretações cognitivas, as expectativas morais, as expressões de valores, as organizações comunitárias e solidárias” (Lima, 2012, p. 258).
Interessante perceber que, para Habermas, essa colonização se potencializa ainda mais à medida que transcende a relação entre sujeitos, efetivando-se principalmente através das relações macrossociais que implicam governos e instituições, pois “abandonados uns dos outros” (os indivíduos) “tornam-se susceptíveis de serem doutrinados e postos em movimento por chefes plebiscitários e ser movidos a ações de massa” (Habermas, 2000, p. 161).
Para Lima (2012), é exatamente nos espaços públicos, no mundo da vida, que a força colonizadora sistêmica imprimirá uma semiformação aos indivíduos ao distorcerem os mecanismos de comunicação de forma ideológica e/ou perversa.
REPERCUSSÕES IDENTITÁRIAS DO DISTANCIAMENTO SOCIAL
Diante da discussão que procurou demonstrar a importância do mundo da vida, e a forma pela qual ele sofre constantemente abalos à medida que sua razão comunicativa perde espaço para a lógica instrumental, em um processo engenhosamente sutil, tentaremos refletir essa conjuntura psicossocial atrelada ao cenário vivido de distanciamento social.
Nossa suposição é de que as possíveis patologias decorrentes desse processo, como bem descritas por Habermas, foram agravadas nesse período de excepcionalidade, consequência da pandemia do coronavírus.
Ao nosso ver, o mundo da vida sofreu dois duros golpes por conta da pandemia e do consequente isolamento social. Primeiro, evidentemente o distanciamento obrigou-nos a afastarmos das pessoas mais próximas e queridas com as quais convivemos. Ou seja, nossas relações sociais mais genuínas, a princípio, descomprometidas de uma lógica produtivista, e por isso mesmo, mais carregadas de afetos, diminuíram drasticamente. À medida que os encontros com as pessoas que fazem parte de nossas relações mais cordatas e espontâneas, como, por exemplo, os familiares, amigos, vizinhos, colegas de trabalho ou de outros círculos sociais perderam espaço, o mundo da vida esfacelou-se em sua genuína originalidade.
Fomos impossibilitados, recorrendo a Baruch Spinoza (1677/2007), dos espaços relacionais, “facilitadores” do conatus, que aumentariam nossa potência de ação expandindo-a de forma repercussiva. Assim, parte importante de nossas interações sociais ficaram extremamente prejudicadas, incidindo em questões afetivas, subjetivas e identitárias.
Pressupomos, de acordo com as proposições de Ciampa (2009), Habermas (1987) e Honneth (2003), que os processos incessantes de formação identitária sofreram impactos significativamente negativos e prejudiciais, pois faltou-nos um substrato germinal de sua base motriz, os encontros, que propiciam a possibilidade do reconhecimento intersubjetivo se efetivar, dificultando consequentemente vislumbres emancipatórios; ou como diria Mead (1972), impactado pela falta do ato social, pereceram os processos constitutivos de formação psicossocial do self.
Nosso estoque de sentido ficou reduzido à medida em que aquelas interações que se davam de forma genuína e espontânea de modo “pré-cognitivo” e “pré-reflexivo” ficaram sem ancoragem no dia a dia, pois não havia “papo” na esquina, na festa de família, nos bancos das igrejas e nas mesas dos bares. Nesse sentido, pela falta de sentido, naquele momento de distanciamento social o mundo da vida foi feito de reminiscências constituindo-se de vazios.
Não bastasse tal constatação e suas implicações, parece-nos que algo mais danoso teria ocorrido no mundo da vida embaraçando ainda mais a constituição subjetiva das pessoas e consequentemente prejudicando as relações humanas e a formação identitária, implicando em questões de saúde mental.
A pandemia afetou drasticamente a ordem sistêmica. Esse novo e imprevisível cenário colapsou o poder econômico em decorrência dos entraves produtivos, da estagnação do capital, da queda das bolsas de valores, da redução da circulação de bens, produtos, negócios e pessoas, trazendo consequências nefastas para o status quo ante.
Exatamente aqui, apareceu um ponto a ser refletido. Diante dos inevitáveis danos, o sistema redobrou suas apostas na colonização do mundo da vida utilizando-se para isso da intensificação e massificação da razão instrumental em uma jogada extremamente estratégica e calculada. Esse seria o segundo problema que tem nos afetado, para além das questões práticas sanitárias da pandemia.
Somos e fomos bombardeados diuturnamente pelo governo federal, principalmente na figura de seu líder, presidente da república, chefe do Estado brasileiro e por várias mídias e canais de comunicação que nos colocavam em posição de xeque-mate. “Vá para a rua. A economia não pode parar”. “Morrerão mais CNPJs do que CPFs”. “Gente morre todo dia”! “A fome também mata”. “É apenas uma gripezinha...”. “Vai faltar dinheiro para pagar o servidor público”. “O maior remédio para qualquer doença é o trabalho!” “E daí?” Não sou coveiro”. “Tem de deixar de ser um país de maricas!” “Tem idiota que diz para comprar vacina. Só se for na casa da sua mãe!”.
Se já sofríamos pelo distanciamento das pessoas próximas de nosso mundo da vida, agora também sofríamos pela invasão de uma tropa que chegou arregimentada até os dentes pela lógica instrumental para minimamente tentar reestabelecer uma ordem de produção e giro do capital, mesmo que para isso, tenha deixado em segundo plano as orientações médicas, sanitárias e científicas sobre a gravidade e os perigos da pandemia do Covid-19.
Evidentemente se reconhece as problemáticas objetivas advindas da situação que transcendem a questão da saúde. Os problemas econômicos desencadeiam o aumento do desemprego, da miséria e da vulnerabilidade das pessoas, principalmente dos trabalhadores informais e precarizados, que em nosso país, estruturalmente são a maioria dos cidadãos. Mais do que isso, reconhecemos os avanços advindos da ordem sistêmica produtivista, como, exemplo, o desenvolvimento tecnológico e científico que trouxeram melhorias para a qualidade de vida das pessoas; contudo, ressaltamos que tais ganhos, sempre ocorreram de forma secundária em decorrência das demandas advindas do mercado; ou seja, não queremos meramente malsinar o sistema capitalista de produção, mas sim, despojar seu modo de funcionamento que verdadeiramente se orienta ao e pelo capital.
Vejamos que a ordem sistêmica ao longo da história, grosso modo, pouco se importou com esses aspectos humanitários por si mesmos, pois o enfrentamento da fome, a falta de emprego, a má distribuição de renda, a pobreza e a miséria nunca foram prioridades das “mãos invisíveis do mercado”. Por mais que o discurso seja compreensível e validado moralmente, no fundo, o objetivo era retomar a produção, mesmo com o risco da infecção. Diante de uma crise sem precedentes em que a maioria dos trabalhadores (mão de obra) não deveriam sair de casa, perversamente essas questões ganharam notoriedade com ares dramáticos de genuína preocupação com a dignidade humana e o bem comum.
Percebe-se de acordo com as discussões identitárias encaminhadas, que no período de distanciamento social, além da escassez dos encontros, fomos bombardeados de forma estratégica pela lógica produtivista que sinalizava diuturnamente o mercado, a produção e o capital como arrimo e promessa de salvação terrena. Supomos que, em tal enredo, os contínuos processos de configuração identitários viveram situações extremamente complexas, pois foram refreados em seu genuíno fluxo, mas empurrados ao acaso da sorte, diante da loteria pandêmica. Muito além das implicações subjetivas e psicológicas da situação, de fato, indiscutivelmente sabemos que inúmeras vidas se foram nesse processo.
Por fim, outro aspecto relativo à ordem sistêmica merece destaque. Exatamente por conta de seu modo de funcionamento ideologicamente instituído e consolidado socialmente, o trabalho tem um papel de enorme destaque, pois é o local por excelência da produção de bens e geração de renda, de acordo com os interesses de quem detém o poder político e econômico. Aqui, pensamos a categoria trabalho compreendida de forma crítica na perspectiva marxista, como fundante e central para a atividade humana, mas também como prática alienada que enseja o trabalhador, alheio ao produto de seu esforço.
Pois bem, pensando as questões identitárias nesse contexto, torna-se factível perceber que o nosso personagem atrelado ao mundo do trabalho é o mais valorizado e estimado, pois necessário e requisitado em nossa sociedade pela própria ordem vigente. Podemos inferir que esse personagem (que trabalha) é apreciado sobremaneira por essa lógica, pois em última instância, toda pessoa/trabalho é importante se produz algum valor para a ordem sistêmica.
Assim sendo, esse personagem atrelado à atividade, que exerce trabalho, geralmente toma conta de grande parte de nossa identidade, pois seu próprio desenvolvimento tende a gerar notório reconhecimento. Lembremos que “a concretização de uma pretensão identitária de um indivíduo, como expressão de autonomia, pressupõe o seu reconhecimento por outros indivíduos” (Lima & Ciampa, 2012, p. 15). Assim, para Habermas, o sujeito “precisa partir da perspectiva de outros [...]. Neste caso, eu não dependo do assentimento deles a meus juízos e ações, mas do reconhecimento por parte deles, de minha pretensão de originalidade e de insubstitubilidade” (Habermas, 1988, p. 220).
Nossos personagens precisam de uma reposição que os faça ungidos de reconhecimento, pois somente assim, serão capazes de compor nossa formação identitária.
E no distanciamento social, como teria sido a vida desse personagem tão importante, que exerce trabalho?
Crê-se que de algum modo, perdemos referências e reposições identitárias por conta da pandemia, pois muitos não transitaram mais em seus espaços físicos de ofício, deixando seu personagem com pouca ou nenhuma reposição, pois faltou-lhes o reconhecimento advindo desses espaços relacionais, além da iniludível pressão sistemática que ameaçou o emprego, extinguiu cargos e funções, reduziu ordenados e flexibilizou os direitos trabalhistas.
Ou seja, àquela época do distanciamento social rigoroso, além de não haver espaços relacionais como antes, para ancorar nossas genuínas interações (mundo da vida), substrato basilar de nossos constitutivos processos identitários, gravemente, somou-se a isso, que o sistema produtivo sentindo-se acuado rebelou-se ferozmente em seus propósitos, incitando que as pessoas produzissem como antes, mas sem considerar que as condições físicas, sanitárias e materiais necessárias, não eram mais as mesmas, culminado sobretudo, em problemas identitários com repercussões subjetivas e psicológicas.
Essa reflexão apoiada na teoria da identidade serviu-nos para perceber que muitos problemas psicológicos vividos em época de crise político-sanitária, só poderão ser devidamente compreendidos se dialeticamente buscarmos as raízes dos problemas nas questões estruturais que regem nossa sociedade, e que, consequentemente impactam a identidade de cada um de nós.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A situação humanitária calamitosa pela qual ainda passamos, em que morreram milhares de brasileiros, colocou-nos diante de imensos desafios e impasses nas mais variadas áreas, técnicas, científicas e operacionais.
Percebemos, por exemplo, a despeito da abnegação dos profissionais de saúde, e principalmente da comprovada eficiência do SUS, que através de seus servidores, conseguiu organicamente atender prontamente à população brasileira em todo o território nacional, minimizando o impacto da tragédia, que ainda faltam a devida valorização e o reconhecimento da importância estratégica de tal política pública de Estado. Situações críticas como as vividas na pandemia, deveriam culminar, dentre outras coisas, em incrementos de insumos para o SUS, capacitações constantes e melhorias nos planos de carreiras e condições de trabalho dos seus profissionais, além da conservação e desenvolvimentos nas estruturas físicas de seus espaços operacionais.
Enfrentamos também difusamente, além da pandemia, uma polissemia de discursos, nos quais alguns, de forma completamente alienada negavam a gravidade da situação. Além do negacionismo, encaramos ainda, mentiras e boatos (fake news) espalhados despudoradamente com intenções político- ideológicas. No período de distanciamento social rigoroso, em um país atônito, nossos processos identitários se constituíam em meio a morte e imposturas.
À psicologia, enquanto ciência e profissão, coube e sempre caberá o papel crítico de se posicionar e auxiliar efetivamente nossa gente. Seja através do trabalho de cada profissional no suporte às dores e angústias existenciais, seja na reflexão conceitual que busque entendimentos das questões que afligem nosso povo, pois as penosas repercussões emocionais, subjetivas e identitárias foram e têm sido constantes e evidentes, principalmente em período histórico tão difícil.
Diante do exposto, parece-nos possível afirmar que em tal cenário as pessoas têm sofrido intensamente, pois com o mundo da vida esfacelado e o agravamento da colonização subjetiva pela ordem sistêmica, reestruturamos abruptamente nossas identidades em busca de sentidos e orientações, diante de conexões novas e reconhecimentos efêmeros em um cenário extremamente atípico e complexo. Ou seja, os impactos objetivos da pandemia e do distanciamento social repercutiram subjetivamente em nossos processos identitários, pois com as relações sociais comprometidas, somados aos medos, perdas e angústias inerentes ao período, mais o eco ressonante do discurso produtivista que prioriza o mercado em detrimento das singularidades, nos vimos imersos em custosos arranjos psicossociais que compeliram difusamente nossa identidade ao mal-estar.
Antes de tudo, no período de distanciamento social sofremos por falta de reconhecimento e indeterminação identitária.