INTRODUÇÃO
A justiça restaurativa (JR) nas sociedades contemporâneas tem se consolidado como uma das propostas mais bem aceitas em um processo de transformação da forma de se abordar e responder aos conflitos sociais. Atualmente, talvez seja a proposta mais promissora em termos de possibilidades de mudança efetiva do sistema de justiça tradicional ocidental, considerado em crise, frente a sua ineficiência no enfrentamento da criminalidade e violência (Gavrielides, 2019).
No Brasil, a crise de legitimidade do sistema de justiça criminal tem sido caracterizada pela dificuldade de acesso à justiça, à morosidade do sistema, sua formalidade (Penido, Mumme, & Rocha, 2016; Secco & Lima, 2018; Silva, Lima, & Costa, 2020), à centralidade de juízes(as) na tomada de decisões, ao silenciamento das vítimas, ofensores(as) e comunidades, principais interessados(as) no processo; à descontextualização histórica, social e política dos marcos legais que orientam as tomadas de decisões; à falsa neutralidade de seus(suas) operadores(as) nos julgamentos (Achutti, 2016), aos altos custos humanos e financeiros, à violação dos direitos humanos das pessoas privadas de liberdade, de seus familiares e dos próprios agentes de segurança (Andrade, 2018).
Adiciona-se a estas condições, as políticas criminais repressoras que promoveram desde os anos 1990, a ampliação e severidade das penas já existentes, culminando com o aumento exponencial das taxas de aprisionamento como estratégia frustrada no combate à violência e à criminalidade no país (Monteiro & Cardoso, 2013; Secco & Lima, 2018), promovendo uma cultura punitivista. Vale ressaltar que essas políticas foram direcionadas a um grupo muito específico da sociedade brasileira, configurando-se no que tem sido denominado de seletividade penal, direcionada aos jovens, negros, pobres, com baixíssima escolaridade e moradores das periferias das cidades (Borges, 2019; Monteiro & Cardoso, 2013; Wacquant, 2001). Trata-se de uma contradição das permanências autoritárias e inquisitoriais de uma herança histórica da racionalidade colonial. Mantém-se, ao mesmo tempo, a presença de um Estado punitivo que impede a consolidação da democracia frente à possibilidade de um Estado efetivamente de Direito, que deveria promover a democracia ao enfrentar as violências estruturais históricas que se reproduzem nos discursos institucionais (Cruz, 2021; Serra, 2013).
Nesse sentido, qualquer tentativa de mudança do sistema de justiça que não dialogue com as questões historicamente instituídas na sociedade brasileira, não contribuirá para a construção de formas efetivamente alternativas de justiça. Muito pelo contrário, serão apenas estratégias alternativas dentro da mesma lógica intrínseca da racionalidade moderna penal (Achutti, 2016).
Entretanto, a proposta da JR busca compreender o crime de uma maneira diferente, ou seja, como um conflito social, um rompimento das relações sociais que geram danos para todas as pessoas envolvidas e sua comunidade. Sendo assim, não se trata de identificar culpados(as), processá-los(as) e imputar uma pena, geralmente, a de privação de liberdade, sob a autoridade de representantes do Estado. Busca-se a construção de um processo dialógico entre as pessoas envolvidas e interessadas naquele conflito, sejam as vítimas, ofensor(a), suas comunidades, de forma democrática para que, juntos, encontremos meios de reparar e curar danos e sofrimentos causados, e, assim, ao olhar para o futuro, estejam todos(as) aptos(as) a resolver suas questões conflituosas, de maneira que tenham como intenção o bem comum e a coletividade. Para Daniel Achutti (2016), estas características apontam para um novo paradigma em justiça.
No entanto, esta perspectiva sobre justiça não é algo inédito e próprio das sociedades contemporâneas. Os(as) autores(as) que têm estudado as origens da JR concordam que sua história se confunde com a própria história da humanidade (Boyes-Watson, 2019) como abordagem predominante e mais antiga na resolução de conflitos e de danos causados pelos relacionamentos humanos do que o próprio sistema de justiça criminal vigente nos países ocidentais (Liebmann, 2007).
Sob tal aspecto, os(as) autores(as) descrevem que há vestígios de práticas restaurativas desde as civilizações gregas e romanas; as tradições das primeiras nações do Canadá e dos Estados Unidos; os Maori da Nova Zelândia; e as comunidades tradicionais africanas. Tais tradições, ainda presentes nas últimas três comunidades mencionadas, adotavam estratégias de compensação, restituição e conciliação para lidarem com os conflitos entre os membros da comunidade, os protagonistas do processo. O equilíbrio da vida em comunidade era o objetivo maior quando um conflito ocorria. Segundo os autores, o que hoje entendemos como crime era visto, por estas comunidades, como uma ofensa contra a vítima e a família da vítima; assim, era fundamental que os ofensores e seus familiares assumissem suas obrigações junto às vítimas e suas famílias para evitar um ciclo de revanche e violência. Estas culturas, ao longo da história, esperavam que os ofensores e suas famílias deveriam não apenas reparar a vítima e suas famílias, mas restaurar a paz na comunidade (Braithwaite, 2002; Gavrielides, 2011; Omale, 2006; Van Ness & Strong, 2015).
Assim, o comportamento dito ofensivo era compreendido como responsabilidade, não apenas do membro considerado ofensor(a), mas de uma responsabilidade compartilhada por toda a comunidade, visto que aquele acontecimento de alguma forma afetava a convivência comunitária. Enfim, estas comunidades compartilhavam e algumas continuam compartilhando uma concepção comunitária de justiça que considera os conflitos sociais como responsabilidade de todos(as) que fazem parte da vida em sociedade (Gavrielides, 2011).
Além do comunitarismo como inspiração para as práticas restaurativas, conforme descrito acima, dois movimentos sociais foram fundamentais para a JR: o movimento pela reforma da justiça criminal tradicional ocidental e o movimento feminista pelo direito das vítimas. O primeiro movimento é o mais influente na JR, iniciado nas décadas de 1960 e 1970, continuando até o momento com novas agendas. Fazem parte deste conjunto, os movimentos de alternativas ao encarceramento como os de restituição e de penas alternativas, o movimento da justiça informal como ‘Resolução alternativa à disputa’, e o principal deles, o ‘Movimento abolicionista penal’ (Boyes-Watson, 2019).
O movimento abolicionista penal faz parte de uma das correntes da criminologia crítica em que seus ativistas se posicionam teórica e metodologicamente críticos em relação ao paradigma criminológico dominante ocidental (criminologia positivista), por considerarem que “o sistema penal opera na ilegalidade; atua a partir da seleção de seus clientes [...]; afasta os envolvidos no conflito e os substitui por técnicos jurídicos [...]; produz mais problemas do que soluções; dissemina uma cultura-punitiva [...]” (Achutti, 2016, p. 96). A JR, inicialmente, esteve alinhada aos ideais abolicionistas, ao propô-la como alternativa ao fim do encarceramento. Porém, esta proposta tem se transformado e a JR tem sido, na maior parte dos países em que é utilizada, uma abordagem complementar ao sistema de justiça convencional (Achutti, 2016).
O movimento pelos direitos das vítimas foi considerado precursor da JR, emergiu nos anos 1970, reivindicando reformas no sistema, como: compensação da vítima, acessos a serviços de suporte social e emocional e segurança. Destaca-se, neste contexto, o movimento feminista, que foi o primeiro a assegurar programas de assistência à vítima nos crimes de estupro e violência doméstica (Boyes-Watson, 2019).
A noção de justiça na JR não é algo definido a priori, estática, imutável, mas deve ser negociada, mediada e vivida em nosso cotidiano, em nossas relações, nos espaços em que a vida acontece e em que é possível construir coletivamente, a partir de processos dialógicos, participativos e democráticos, em que necessidades individuais e coletivas sejam atendidas (Bava & McNamee, 2019; Elliot, 2018; Salm & Leal, 2012). Busca-se, nos processos relacionais, o potencial transformador, não apenas dos conflitos, mas também das formas de convivência, a partir de uma ética comunitária e emancipatória que convida à responsabilidade coletiva (Salm & Leal, 2012). São nos contextos dialógicos propostos nas práticas restaurativas que as pessoas envolvidas no conflito e sua comunidade são convidadas a construírem os sentidos de justiça, uma justiça relacional, produzida no encontro das necessidades, da experiência e da perspectiva de futuro (Bava & McNamee, 2019).
Para que um processo restaurativo se inicie é necessário assegurar a voluntariedade da participação das pessoas envolvidas, seja da vítima, ofensor(a), bem como de todas as pessoas interessadas no conflito. Se, por algum motivo, qualquer uma das partes interessadas não tiver interesse no processo, ele não ocorrerá. Da mesma forma, se durante o processo houver desistência de alguma das partes, o processo restaurativo será interrompido, retornando para o rito processual jurídico tradicional, visto a JR ser um método de resolução de conflitos extrajudicial. Importante destacar que o(a) ofensor(a), ao aceitar participar do processo restaurativo, deve assumir a responsabilidade pelo conflito que gerou o dano. Entretanto, se houver a suspensão do processo restaurativo, devido à desistência da vítima ou do ofensor(a), a responsabilidade, inicialmente assumida pelo(a) ofensor(a), não significará confissão de culpa no processo tradicional (Achutti, 2016).
Considerando a responsabilidade como uma condição intrínseca ao processo restaurativo por parte do(a) ofensor(a), seria importante questionar de que forma ela tem sido abordada ao longo do processo: circunscrita a um ato individual isolado ou problematizada a partir de uma perspectiva relacional que possibilita o reconhecimento de corresponsabilidades. Neste ensaio, propomos, então, uma reflexão sobre estas questões, que são fundamentais para avançar na construção de uma sociedade democrática a partir desta possibilidade apresentada pela JR: de se fazer e construir justiça para não corrermos o risco de sustentarmos a cultura punitivista, disfarçada em práticas democráticas.
Para tanto, consideramos que o conceito de responsabilidade relacional, desenvolvido por Sheila McNamee e Kenneth Gergen (1999), sob a perspectiva epistemológica do construcionismo social, no campo da Psicologia Social, pode contribuir para ampliara noção de responsabilidade individual, sustentada pela tradição individualista para uma concepção de corresponsabilidades que se constrói nos vários domínios dos intercâmbios sociais.
Sendo assim, este ensaio tem por objetivo analisar as contribuições do conceito de responsabilidade relacional para o desenvolvimento das práticas restaurativas, e, consequentemente, contribuir para uma nova inteligibilidade de justiça que efetivamente seja capaz de transformar a cultura punitivista. Com isso, esperamos contribuir para o desenvolvimento de práticas restaurativas que promovam novas formas de se relacionar e de conviver que não estejam pautadas apenas na responsabilização individual, mas em uma ética relacional e comunitária proposta pela JR.
Para tanto, o texto foi dividido em três momentos. No primeiro, descrevemos as principais práticas restaurativas. Em seguida, apresentamos uma análise sobre as contribuições de cada domínio do conceito de responsabilidade relacional para as práticas restaurativas em termos de suas potencialidades e limitações. Finalizamos com as considerações em que apontamos os desafios a serem superados neste processo.
AS PRÁTICAS RESTAURATIVAS
As práticas restaurativas são as estratégias metodológicas distintas utilizadas na justiça restaurativa com o objetivo de restaurar relacionamentos, reparar danos materiais e simbólicos causados pelo conflito e transformar as relações na comunidade. Estas práticas facilitam processos dialógicos a partir do encontro, preferencialmente, presencial, entre as pessoas envolvidas direta ou indiretamente na situação conflituosa a qual gerou violência, dor, sofrimento, perdas e danos em todos os âmbitos da vida social, seja com maior ou menor intensidade e magnitude (Zehr, 2017).
Destacamos as três principais práticas mais utilizadas em diversos contextos, principalmente, no Brasil (Conselho Nacional de Justiça, 2018): (a) a conferência vítima, ofensor(a) e comunidade (VOC); (b) a conferência de grupo familiar (CGF) e (c) o círculo de construção de paz (peacemaking ou¨peacebuilding em inglês). Elas estão fundamentadas em processos grupais denominados na linguagem da JR de processos circulares que privilegiam a circulação da palavra entre os participantes, ao serem dispostos em círculo, representando, de certa maneira, a igualdade nas relações e a ausência de hierarquia de poder de fala (Pranis, 2010).
Em geral, o processo restaurativo se inicia a partir da solicitação da vítima, ofensor(a) ou dos próprios representantes do sistema de justiça criminal. Identificado o interesse por qualquer uma das partes, bem como a instituição que irá coordenar a atividade, o(a) facilitador(a) e co-facilitador(a) são definidos para dar início ao processo. Geralmente, são voluntários(as) da comunidade, mas podem também ser profissionais do Poder Judiciário que receberam formação.
Inicia-se então, a etapa de preparação do encontro, também denominada de pré-encontro, em que facilitador(a) faz os primeiros contatos com os(as) participantes centrais do processo, vítima e ofensor(a). O tipo de prática pode ser definido a priori ou então ser escolhido durante esta fase, de acordo com as informações que serão obtidas e trabalhadas junto aos(as) participantes. A participação é voluntária e o(a) ofensor(a) deverá assumir a responsabilidade pelo ato cometido; do contrário, o processo restaurativo não acontece. Desta forma, o aceite de qualquer uma das partes não garante que o encontro será realizado (Amstutz, 2019).
No encontro, de preferência presencial, com cada participante em separado, o(a) facilitador(a) esclarece sobre o processo restaurativo, ajuda a decidir se o encontro é adequado, escuta a história de cada um deles, conversa sobre expectativas e preocupações sobre o encontro, o que gostaria de falar e escutar, as condições de segurança, e explica sobre o processo do encontro escolhido.
É importante que o(a) facilitador(a) assegure que as seguintes questões sejam respondidas durante esta etapa, pois orientarão todo o processo restaurativo: quem sofreu o dano? quais são suas necessidades? de quem é a obrigação de reparação? quais as causas? qual o processo adequado para envolver os interessados num esforço para consertar a situação e lidar com as causas subjacentes? Por mais que se destaque a centralidade das necessidades das vítimas neste processo, ofensores(as) e comunidade também são contemplados(as) em suas demandas, almejando restaurar, além dos relacionamentos pessoais e interpessoais, a rede de convivência social e comunitária (Zehr, 2017).
Desta forma, o(a) facilitador(a) assegura que os(as) participantes estejam seguros para participar do encontro. Se necessário, podem acontecer encontros denominados pré-círculo, em que participam mais de uma pessoa para, por exemplo, esclarecer sobre alguma informação sobre a ofensa. Além disso, o(a) facilitador(a) busca identificar as pessoas de apoio para cada um deles(as), também denominadas de comunidade de apoio, quais sejam: familiares, amigos(as), mentores, religiosos, entre outras pessoas da comunidade. Os(as) apoiadores(as) serão contatados pelo(a) coordenador(a) para, presencialmente ou por telefone, explicar o processo restaurativo, a indicação feita sobre a participação do(a) apoiador(a) e o papel de cada um. Finalizada esta preparação, o encontro poderá acontecer. Não há um número mínimo ou máximo de participantes para o processo.
Cabe também aos(as) facilitadores(as), a organização operacional do encontro, como a preparação da sala, disposição das cadeiras, seguindo uma separação entre vítima e ofensor(a) e seus familiares, preparação de lanche a ser servido, bem como o deslocamento dos (das) participantes. A etapa de preparação dos encontros pode durar de seis meses a dois anos, dependendo da gravidade da ofensa e das condições dos participantes (Amutz, 2019).
A seguir, descrevemos cada uma das três principais práticas restaurativas a partir de sua história, seus participantes, papel do(a) facilitador(a) e os recursos conversacionais utilizados.
CONFERÊNCIA VÍTIMA-OFENSOR-COMUNIDADE (VOC)
A conferência vítima- ofensor e comunidade (VOC) talvez seja a primeira prática caracterizada como restaurativa, utilizada em 1974, no Canadá, com o objetivo de que dois jovens pudessem reparar os danos causados a vinte e duas casas. Tal procedimento também foi utilizado entre 1977 e 1978, nos Estados Unidos da América, se espalhando para outras localidades, ampliando a participação para familiares e comunidade de apoio (Zehr, 2015).
A presença da vítima nem sempre é possível fisicamente. Nestes casos, são utilizados outros recursos como: a carta, vídeo, ou mesmo a presença de alguém que a represente. Em outras situações em que a vítima não deseja participar do processo, pode ser utilizada a vítima emprestada ou substituta, a qual foi vítima de uma ofensa semelhante e que se dispõe a contar sua história para o(a) ofensor(a) e o impacto que teve na sua vida (Zehr, 2015).
A conferência é coordenada pelo(a) facilitador(a) e o(a) co-facilitador(a), que têm papel fundamental para garantir um espaço seguro aos(às) participantes e facilitar o processo dialógico. O(a) facilitador(a) inicia com o acolhimento dos participantes, apresentação de cada um, expõe o objetivo do encontro sobre conversar com relação ao que aconteceu, como as pessoas se sentiram, como foram afetadas e como o dano poderá ser reparado. Também é explicado o funcionamento do grupo em relação aos diferentes momentos e as condições para que se tenha um diálogo respeitoso, seguro, sigiloso e de compreensão mútua para se chegar a um acordo, cada um tendo um tempo de fala e de escuta, sendo proibida qualquer forma de agressão, física ou verbal (Zehr, 2017).
O principal recurso conversacional nesta prática são as perguntas. Em um primeiro momento, o(a) facilitador(a) utiliza um roteiro pré-definido com questões para o(a) ofensor(a) sobre: o que aconteceu, em que ele(a) pensava naquele momento, o que tem pensado desde o ocorrido, quem considera ter sido afetado pelas suas ações e de que modo considera que as pessoas foram afetadas. Para a vítima, as questões permitem que ela narre sua experiência, como se sentiu e o que foi mais difícil neste processo. Para os participantes da comunidade de apoio de ambas as partes, as questões se referem às percepções sobre o que aconteceu e o que consideraram importante sobre o que as pessoas falaram no processo. Em um segundo momento, o(a) ofensor(a) pode ser questionado se gostaria de falar algo sobre o que ouviu até o momento e, em seguida, abre-se a palavra para qualquer participante. Então, segue-se para o momento da definição do acordo, em que a pergunta é dirigida à vítima, com relação a o que ela gostaria de pedir como reparação do dano. Os(as) participantes podem contribuir. Após definido o acordo, este é redigido e lido pelo(a) facilitador(a) e uma data é escolhida para um novo encontro, a fim de acompanhar o processo, que será coordenado pela mesma equipe (Smull, Wachtel, &Wachtel, 2013).
CONFERÊNCIA DE GRUPO FAMILIAR (CGF)
A Conferência de Grupo Familiar foi desenvolvida como uma estratégia sensível culturalmente à população maori, tendo a família no centro do processo para a tomada de decisões sobre os conflitos envolvendo jovens e a proteção de crianças. Foi desenvolvida durante a década de 1980 na Nova Zelândia (Zehr, 2015). Tradicionalmente, esta prática é utilizada no contexto da justiça juvenil e proteção da infância, porém, tem sido adotada em outros contextos, como nas prisões, não apenas para lidar com a situação conflituosa, como para fazer o processo de transição entre a privação de liberdade e o retorno à comunidade. A questão central a ser trabalhada na CGF é definida ao longo das entrevistas pré-encontro realizadas pelo(a) facilitador(a) com os membros da família do(a) ofensor(a), assim como com os(as) outros(as) participantes do processo, indicados(as) pelo grupo familiar.
Trata-se de um processo focado na família e em seu poder de decisão, característica que a distingue das outras práticas restaurativas. Profissionais de serviços, amigos(as), representantes de serviços públicos, entre outros, são convidados(as) a participar deste processo, porém, na condição de compartilhar informações que ajudarão no processo de construção do plano de ação elaborado pela família (Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo, 2019).
ACGF pode ser dividida em três momentos distintos. No primeiro momento, o (a) facilitador(a) realiza o acolhimento dos(as) participantes com as apresentações individuais, apresentação do objetivo do encontro e explicação sobre o processo da conferência. Solicita, então, aos(às) participantes que compartilhem as informações sobre a situação conflituosa, em termos de informações, necessidades, recursos disponibilizados pelos serviços de assistência e proteção. Também serão apresentadas orientações para a elaboração do plano de ação pela família. Em alguns contextos, os(as) facilitadores(as) promovem, além do compartilhamento de informações, o diálogo com a família (Smull, Wachtel, &Wachtel, 2013).
O segundo momento se refere ao tempo privado do grupo familiar em que o(a) facilitador(a) e demais convidados não participam. Trata-se de um momento particular do grupo familiar não limitado no tempo. O objetivo é elaborar o plano de ação para atender as necessidades geradas pela situação conflituosa. O grupo familiar deve ocupar uma sala diferente da utilizada para o processo, que garanta privacidade. É aconselhável que os demais participantes permaneçam no local, em outra sala, disponíveis para esclarecer qualquer dúvida. Ao finalizar a elaboração do plano, um membro avisa o(a) facilitador, que então reúne todos(as) participantes para iniciar o terceiro momento da conferência.
Este momento é definido pela apresentação do plano de ação pela família, apreciação dos participantes, e quando necessário, reformulações, as quais serão realizadas pela família para a aprovação. É necessário também identificar as entidades públicas ou privadas que possam ser responsáveis ou que precisam de aprovação, assim como identificar os recursos necessários, como obtê-los, e identificar quem se responsabilizará pelo monitoramento do plano. Desta forma, são estabelecidas reuniões de acompanhamento, bem como um plano de contingência, caso haja necessidade de alterações (Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo, 2019).
Não há um modelo ou roteiro de perguntas a ser seguido durante o encontro, devido a sua peculiaridade. O principal recurso conversacional utilizado nesta prática é o processo de elaboração do plano de ação pelo grupo familiar. Desta forma, todo o potencial desta prática está centrado na dinâmica estabelecida pelos próprios membros da família, sem nenhuma interferência do(a) facilitador(a) e demais participantes (Smull, Wachtel, &Wachtel, 2013).
CÍRCULOS DE CONSTRUÇÃO DE PAZ
Os círculos de construção de paz se referem a uma abordagem circular utilizada pela primeira vez na justiça criminal no Canadá, no início da década de 1990. Esta prática origina-se das tradições indígenas dos povos da América do Norte, que utilizam os círculos de diálogo para discussão de questões relativas à comunidade. Há várias denominações para os círculos, de acordo com sua função, não se restringindo a situações conflituosas. Participam do círculo todos(as) aqueles(as) envolvidos(as) na situação, podendo incluir profissionais do judiciário, porém, os membros da comunidade são partes fundamentais (Pranis, 2010).
O funcionamento dos círculos se fundamenta na presença de determinados elementos estruturantes e em uma sequência de etapas que tem como objetivo “criar um espaço onde os participantes se sentem seguros para serem totalmente autênticos e fiéis a si mesmos” (Pranis, 2010, p. 26). Para tanto, os participantes são convidados a se sentarem em círculo sem nenhuma mesa no centro. Utiliza-se, no centro do círculo, um tapete, uma toalha ou qualquer outro material em forma de círculo em que podem ou não serem colocados, sobre este material, objetos que tenham algum significado compartilhado pelos participantes daquele grupo. Os elementos constituintes da prática do círculo, então, são: cerimônia de abertura e fechamento, em que se busca um centramento inicial em que os participantes são convidados a se colocarem diante de si e dos outros, assim como no final da atividade. Esta cerimônia pode ser uma atividade de relaxamento, a leitura de um poema, uma música, uma meditação. O outro elemento é denominado objeto de fala ou bastão de fala: um objeto escolhido pelo(a) coordenador(a), e que possa ter algum significado definido para aquele encontro. O bastão ou objeto passa por cada participante para que todos tenham a oportunidade de falar, um de cada vez, na ordem em que estão sentados, não significando obrigatoriedade da fala, já que o(a) participante pode escolher se eximir e passar o bastão para outra pessoa, na sequência. Este recurso tem como objetivo, além do(a) participante poder se expressar sem interrupções, promover uma escuta qualificada da parte dos(as) outros(as) participantes. Tem-se um ou dois(uas) facilitadores(as) que têm como objetivo promover e manter o espaço grupal seguro para que todos(as) participem sem serem desrespeitados(as). O(a) facilitador(a) também tem a função de facilitar a reflexão a partir de perguntas ou pautas definidas a priori segundo os objetivos do círculo. Orientações se constituem em outro elemento fundamental dos círculos e se referem aos valores e diretrizes discutidos e acordados entre os participantes no início do encontro para garantir que o espaço grupal seja protegido, seguro, de escuta qualificada para o diálogo sobre assuntos difíceis. Trata-se do compromisso que todos(as) participantes assumem coletivamente e que serão supervisionados pelo(a) facilitador(a). E, por fim, o último elemento, o processo decisório consensual, em que se elabora um acordo sobre a reparação dos danos e de como as pessoas se relacionarão no futuro. O consenso sobre o acordo não significa necessariamente que todos(as) concordam com a decisão, mas que estão dispostos(as) a viver segundo ele e apoiar sua execução (Moratelli, 2018) *.
Resumidamente, a sequência de um círculo de construção de paz compreende: cerimônia de abertura; check in, ou seja, como as pessoas estão chegando para o círculo, e apresentação: valores e diretrizes, em que se estabelece quais valores os(as) participantes desejam compartilhar para assegurar um ambiente seguro para o diálogo, bem como a construção das regras de funcionamento, perguntas orientadoras, questões preparadas pelos(as) facilitadores(as) para promover o diálogo sobre o conflito; consenso, acordo ou plano; check out, como as pessoas estão se sentindo ao final do encontro, e cerimônia de fechamento (Moratelli, 2018)*1. Kay Pranis (2010) ressalta que neste tipo de prática a construção de relacionamentos no espaço grupal é fundamental para facilitar os processos conversacionais sobre os conflitos, sugerindo que o(a) facilitador(a) utilize metade do tempo do encontro para esta finalidade, a fim de construir um espaço relacional para os(as) participantes expressarem suas alegrias, dores, lutas, conquistas e vulnerabilidades.
RESPONSABILIDADE RELACIONAL E PRÁTICAS RESTAURATIVAS
Responsabilidade relacional é definida como: “um processo dialógico com duas funções: primeiro, em transformar o entendimento dos interlocutores da ação em questão (a falta, a falha, o crime etc.) e, segundo, em alterar as relações entre os próprios interlocutores¨. (McNamee & Gergen, 1999, p. 5). Trata-se de uma perspectiva teórica e interventiva desenvolvida por McNamee e Gergen (1999), a partir dos pressupostos epistemológicos do construcionismo social no campo da Psicologia Social.
A perspectiva construcionista social na Psicologia Social se caracteriza como um movimento teórico. Ele adota um posicionamento crítico e reflexivo sobre a noção de conhecimento como verdade absoluta, imutável e descontextualizada dos processos sociais, como algo que preexiste e que necessita ser desvelado (Burr, 2015). Desta forma, a proposta é um questionamento contínuo, crítico e reflexivo sobre o discurso da Psicologia enquanto campo do saber, que não se encontra como entidade desconectada de um contexto datado, histórica, social e culturalmente (Rasera & Japur, 2005).Trata-se de um discurso no campo da Psicologia Social que versa sobre práticas psicológicas comprometidas social e politicamente, que produzam formas de convivência pautadas em uma ética relacional e comunitária (Bava & McNamee, 2019; Gergen, 2019).
Da perspectiva epistemológica, o construcionismo tem suas raízes na filosofia pós-moderna; fundamenta-se em uma epistemologia social caracterizada pelos processos de construção social que são viabilizados nos intercâmbios sociais, constituindo subjetividades e a própria realidade. Neste sentido, a linguagem é fundamental, tanto como mediadora das interações sociais, na medida em que possibilita a construção de sentidos, sua negociação e mudanças, quanto para a constituição das formas de interação e das tradições culturais. Destaca-se que nos constituímos em relação; nossas singularidades se configuram a partir da multiplicidade de nossas interações, e são estas mesmas interações que possibilitam a construção e ressignificação de sentidos de reprodução de nossas tradições culturais, seja no âmbito dos discursos institucionais ou nos discursos informais, pessoais e interpessoais, os quais são contingenciados sócio e historicamente (Rasera & Japur, 2005).
É neste contexto que McNamee e Gergen (1999) desenvolveram a proposta do conceito de responsabilidade relacional, em busca de deslocar a compreensão da responsabilidade do domínio individual para o domínio relacional e, desta forma, promover o rompimento com um modo de se relacionar orientado pela tradição individualista, a qual tem gerado a deterioração dos relacionamentos interpessoais, repercutindo na convivência comunitária. Para isto, McNamee e Gergen (1999) propõem compreender a responsabilidade, baseada em quatro domínios de inteligibilidade que se descolam do domínio individual (objetos internos), para distintos níveis de domínios relacionais, desde as relações interpessoais (ações conjuntas), intergrupais (relações entre grupos) até o domínio macro relacional que compreendem as contingências sócio, históricas, políticas e econômicas (os processos sistêmicos).
Consideramos, então, que estes domínios, ao serem incorporados nos processos dialógicos sobre responsabilização, criam oportunidades para a desnaturalização da culpabilização individual, ao mesmo tempo em que promovem o engajamento social e político das pessoas envolvidas, ao expor o caráter social, histórico e cultural deste tipo de racionalidade (tradição individualista) e suas repercussões na forma em que nos relacionamos socialmente, construindo condições para a transformação dialógica (McNamee, 2019).
Posto isto, a seguir, analisaremos como, a partir das práticas restaurativas, o conceito de responsabilidade relacional pode contribuir para a expansão do entendimento das ações conflituosas, previamente consideradas apenas sob a dimensão individual, para uma perspectiva relacional orientada pelos quatro domínios de inteligibilidade: os objetos internalizados, as relações conjuntas, as relações intergrupos e o processo sistêmico. Espera-se que estas racionalidades relacionais sejam potencializadas no movimento que se constrói nos processos conversacionais restaurativos, criando espaços dialógicos que favoreçam a mudança, tanto na compreensão daqueles padrões de relacionamento que se cristalizaram ao longo da história relacional dos(as) interlocutores(as), como também para a expansão de formas alternativas de relacionamentos e convivência.
Para tanto, apresentaremos cada um dos domínios a partir de uma breve exposição sobre cada um deles para, em seguida, proceder à sua análise e às contribuições para o contexto dos processos restaurativos, tendo como horizonte, o potencial deste conceito para a transformação da cultura punitivista na sociedade brasileira e no enfrentamento das injustiças sociais.
OUTROS INTERNALIZADOS
O domínio dos outros internalizados pressupõe o entendimento de que nos constituímos em relação, a partir dos intercâmbios sociais e de nossa história relacional. Desta forma, fundamentada na epistemologia social, não se trata de um indivíduo autônomo, estático em sua singularidade, independentemente de sua história relacional (Biagi & Rasera, 2018). Pelo contrário, as pessoas são constituídas por múltiplos selves, subprodutos dos intercâmbios sociais. As possibilidades são múltiplas porque, em cada troca relacional, novos sentidos podem ser produzidos e serem acessados em outros relacionamentos, e novamente transformadas por estes. Nesse sentido, o self é povoado por múltiplas vozes, ou seja, perspectivas sobre o mundo internalizadas a partir das relações com outras pessoas. O foco da análise deste domínio será analisar por que determinadas vozes internalizadas a partir das interações sociais sobressaem em detrimento do silenciamento de outras vozes possíveis. Nesta perspectiva de inteligibilidade, as pessoas não são um ¨eu¨ autônomo e unificado, mas a multiplicidade de outros(as) que nos constituem e que podem ser acessados como recursos para ampliar as conversações, identificando outras vias possíveis para manter o diálogo (McNamee, 2001; McNamee & Gergen, 1999).
No entanto, algumas vozes acabam sendo predominantes em nossas relações, por serem constantemente suplementadas de acordo com as situações circunscritas pelo contexto interacional que reproduzem determinadas tradições culturais situadas local, social e historicamente. A proposta dos autores, ao utilizar este domínio como recurso discursivo, é favorecer o reconhecimento de que voz se destaca em uma determinada ação, quais processos relacionais a sustentam, ao mesmo tempo que convida a explorar as outras vozes presentes, porém silentes que poderão ser potencializadas nos processos relacionais futuros (McNamee & Gergen, 1999).
Sheila McNamee (2001) sugere algumas perguntas para facilitar este processo: qual voz sobressaiu nesta situação? qual voz está falando através daquele indivíduo, subproduto de outros relacionamentos? a mãe, o pai, o amigo? que outras vozes podem estar presentes? de quem? de familiares? quais? como trazer estas outras vozes para a conversa?
Podemos identificar a oportunidade de utilização deste domínio como recurso conversacional nas três práticas restaurativas durante as entrevistas preparatórias para o encontro realizadas pelo(a) facilitador( a), quando solicita que o(a) ofensor(a) relate o que aconteceu, como se sentiu, o que tem pensado a partir daquele momento. São questionamentos que podem ser complementados com a tentativa de identificação de que vozes agiram naquele momento da ofensa. O reconhecimento de que foi responsável por aquela situação pode ser complementado pelas questões que exploram as causas sob a perspectiva do(a) ofensor(a). O processo de busca da justificativa do ato pode ser orientado por uma escuta curiosa do facilitador(a) para identificar quais as vozes presentes, a razão para que certa voz predomine e outras estejam silentes. Assim, a responsabilidade, que, inicialmente, está depositada na noção de indivíduo unificado, se dilui através da exploração das tradições e trajetórias relacionais que se cristalizaram ao longo do tempo em determinados padrões de comportamento. A lógica dessa conversa é abrir espaço para identificar como todas essas vozes contribuíram para o ato que demanda restauração. Assim, não se trata de pensar uma responsabilidade de um indivíduo isolado, mas observar como todas essas vozes participaram daquele ato.
McNamee sugere, para o reconhecimento das outras vozes significativas no histórico relacional, a escrita de cartas para amigos(as), familiares, vizinhos(as), pessoas de referência que geralmente estão marginalizadas nos intercâmbios sociais. Desta forma, busca-se o reconhecimento e potencialização destas vozes silentes. Nas práticas restaurativas, o aceite do(a) ofensor(a) para participar do processo restaurativo e a indicação de pessoas significativas de sua história relacional para estarem juntas durante o encontro podem cumprir o propósito de trazer as vozes silentes e potencializá-las. Espera-se, então, ao dar espaço para essas vozes em um processo relacional e dialógico protegido, criar as oportunidades de construção de novas formas de se relacionar que ampliem as possibilidades identitárias de vítima e ofensor(a) (Salm & Leal, 2012).
RELAÇÕES CONJUNTAS
Este domínio avança dos recursos individuais de responsabilidade para os do intercâmbio social, ao proporcionar um entendimento de que produzimos sentidos nas interações sociais que ocorrem de forma coordenada. Construímos sentidos e inteligibilidades juntos(as). Desta forma, McNamee (2001) sugere que, da perspectiva da responsabilidade relacional, a pergunta deve ser direcionada a como juntos(as) produzimos um contexto específico no qual determinadas ações são favoráveis.
McNamee e Gergen (1999) exemplificam este domínio de inteligibilidade ao mostrarem que, muitas vezes, alguém que agiu agressivamente não agiu independente de uma complementaridade de sua ação, qual seja, em um determinado cenário relacional, esta ação é honrada como tal para que seja possível.
No campo das práticas restaurativas, a exploração desse domínio da responsabilidade relacional possibilitará buscar qual cenário relacional tem permitido que determinada ação, no caso, ofensiva, seja possível. O que se deseja compreender é quais são as circunstâncias relacionais que legitimam tais ações para esta comunidade. Não se trata de colocar o foco da pergunta no indivíduo e sim na relação: qual a relação que sustenta esta ação? (Camargo-Borges & Mishima, 2009).
Além disso, identificar no processo restaurativo os cenários que propiciaram essa ação conjunta contribui para transformar seu entendimento e favorecer novos arranjos relacionais menos prejudiciais à convivência social. Novamente, os encontros pré círculos são fundamentais neste domínio de inteligibilidade, no qual as perguntas exploram as causas, as necessidades que cada participante tem a partir do que aconteceu, no momento do encontro, mas também para a convivência futura. Outras possibilidades são as questões dirigidas às pessoas que formam a rede relacional dos participantes centrais do processo; por exemplo, ao trazer para a entrevista pré círculo questões sobre como outras pessoas de sua rede relacional percebem o que aconteceu. As entrevistas com estas pessoas também podem proporcionar uma investigação sobre quais os processos relacionais que têm favorecido a ação ofensiva. Conversar sobre estes contextos relacionais de produção de sentidos sobre a ofensa clarifica quais processos têm sustentado tais ações e, assim, possibilita criar espaços para cenários relacionais alternativos, como o que é proposto pelos encontros restaurativos.
Desta forma, por mais que o enfoque das práticas restaurativas esteja nas relações microssociais, das interações aqui e agora do encontro, há um entendimento de que essas ações estão permeadas por um contexto situado local e socialmente que favorece determinadas ações prejudiciais. Assim, convidar representantes de vários segmentos das instituições públicas e particulares relacionadas à questão da ofensa, para conjuntamente conversar sobre o que aconteceu, é um recurso conversacional potente que favorece o entendimento da responsabilidade relacional e possibilita a construção de novos arranjos relacionais de convivência comunitária (Orth, Bourguignon, & Moreira, 2019).
RELAÇÃO ENTRE GRUPOS
O domínio da relação entre grupos nos convida a investigar a partir de quais grupos de pertença nos posicionamos no processo dialógico e como isso impacta nas formas de nos relacionarmos. Ao identificarmos suas origens, podemos expandir o entendimento da responsabilidade para outros âmbitos e perceber como se engajar em processos dialógicos que favoreçam também a estes grupos entendimentos alternativos (McNamee & Gergen, 1999). Neste domínio, a perspectiva é a do pertencimento a grupos sociais com formas de se relacionar e de construção de inteligibilidade distintas para questões semelhantes. Esclarecer estas condições possibilita construir alternativas para romper com este padrão relacional entre os grupos sociais distintos.
No campo das práticas restaurativas, o convite aos representantes da rede de apoio e a profissionais que têm algum tipo de relação com vítima e ofensor(a) pode ser entendido como uma possibilidade de exploração sobre a pertença a um determinado grupo social e como isto se faz presente nos processos relacionais. Desta forma, pode ser uma estratégia para aproximar inteligibilidades distintas dos grupos de pertença entre vítima e ofensor(a). Esta pertença pode se dar por outros critérios de categorização, pertencer a grupos rivais dentro de uma comunidade, uma instituição escolar ou uma organização.
Entender que determinadas ações para um grupo específico têm um sentido singular e, para outro, talvez, um completamente antagônico, permite vislumbrar formas alternativas de relacionamento (McNamee, 2001). Por exemplo, em uma situação conflituosa que envolve um jovem negro na condição de ofensor, convidar para o encontro restaurativo uma representante de um movimento social que tenha esta questão como inteligibilidade pode contribuir para o entendimento de como é ser jovem e negro sob a perspectiva da interseccionalidade e da história de exclusão e expropriação em nossa sociedade, e como esse pertencimento impacta nas formas como o conflito se constituiu.
PROCESSO SISTÊMICO
O quarto domínio no contexto da responsabilidade relacional se refere ao processo sistêmico que nos convida a entender que nossos relacionamentos situados no âmbito microssocial têm profunda conexão com as questões macrossociais. Nós, de alguma maneira, sustentamos discursos que mantêm e proliferam violência, injustiça e desigualdades sociais. Somos corresponsáveis pelo mundo que conjuntamente construímos, suas tradições culturais, valores, regras e convenções (McNamee & Gergen, 1999).
Este domínio nos convida a explorar, nos espaços dialógicos construídos nos processos restaurativos, as questões estruturais que permeiam os processos relacionais que sustentam a violência e a criminalidade. De que maneira é possível promover este entendimento e buscar oportunidades de transformação em um contexto conversacional demarcado por um conflito ou uma ofensa que gerou dano para as pessoas? Trata-se de um desafio recentemente questionado pelos(as) ativistas do movimento social da JR (Boonen, 2020; Stauffer & Turner, 2019).
Petronella Maria Boonen (2020) sugere mapear as condições de vulnerabilidade do(a) ofensor(a) na etapa dos pré-encontros, referindo-se a questões sobre a posição social e as condições de vida (moradia, trabalho, emprego, saúde), e como tem sido viver neste contexto marcado pelas desigualdades sociais. As práticas, ao proporcionarem espaço de fala para ofensores(as), vítimas, familiares e comunidade, se constituem como instrumentos facilitadores da exposição destas questões que atravessam as condições de vida e de trabalho das pessoas envolvidas no conflito (Amstutz, 2019; Toews, 2019).
Este domínio talvez seja o que mais nos desafia na expansão da inteligibilidade da responsabilidade relacional no campo da justiça restaurativa, visto que as questões a serem levantadas perpassam pelo conhecimento sobre a formação da sociedade brasileira com suas idiossincrasias, bem como as repercussões das políticas econômicas e sociais no cotidiano das pessoas pertencentes aos grupos sociais mais vulneráveis (Almeida, 2020). Os processos de criminalização direcionados a grupos sociais específicos da população brasileira também devem ser incluídos na análise deste domínio nos processos restaurativos. Trata-se de problematizar a noção de um sistema de justiça criminal que adota uma lógica capitalista e neoliberal que promove um sistema discriminatório, seletivo, elitista e hierarquizado para manter o privilégio de determinados grupos sociais em detrimento de outros.
De que maneira as práticas restaurativas podem viabilizar este processo? Explicitar estes processos sociais históricos e culturais talvez seja uma das possibilidades, a fim de ressignificá-los. Em qual momento das práticas restaurativas? Em todas as etapas em que seja possível, desde as entrevistas pré-encontros, nos encontros e pós-encontros. De que forma? Promovendo a participação de representantes do governo local das distintas áreas para discutir sobre como os serviços têm enfrentado por meio das políticas públicas sociais e de segurança pública os desafios da violência estrutural; bem como representantes de grupos organizados da sociedade civil que têm papel destacado no nível local no combate às desigualdades sociais e estruturais que repercutem na vida das pessoas em maior vulnerabilidade social.
Enfim, este domínio de inteligibilidade de responsabilidade relacional pode ser utilizado como importante recurso conversacional para ressignificar uma tradição individualista enquanto projeto de sociedade, para uma forma de convivência pautada em relações comunitárias e colaborativas (Salm & Leal, 2012).
No sistema de justiça criminal canadense, por exemplo, o Estado tem assumido sua responsabilidade em processos que envolvem a população indígena, ao reconhecer que determinadas políticas de Estado, ao longo dos séculos, promoveram o extermínio desta população e geraram as condições de extrema pobreza em que vive. Condições estas que têm contribuído para o envolvimento desta população em contextos de violência. Desta maneira, a corte assegura que estas pessoas, devido a esta condição e as suas tradições no que tange ao entendimento de justiça, devem ser abordadas de maneira distinta e receberem respostas restaurativas, criando formas alternativas ao encarceramento e propiciando processos de cura e reparação das relações conforme as tradições indígenas (Acorn, 2019). Este exemplo nos aponta para a possibilidade de que é possível o Estado assumir sua parcela de responsabilidade na produção dos conflitos sociais para que possamos efetivamente construir uma sociedade mais justa e menos punitivista.
Desta forma, é necessário explorar estas questões também no contexto da JR e explicitá-las enquanto um domínio de inteligibilidade relacional e, assim, utilizá-lo como um recurso discursivo para buscar espaços potenciais de mudança destas práticas. Do contrário, corremos o risco de limitar as possibilidades de transformação. Trabalhar este domínio talvez seja o maior desafio da JR e a principal contribuição do conceito de responsabilidade relacional, a partir da Psicologia Social para a transformação da cultura punitivista; ao focar nos processos históricos, sociais, políticos e econômicos.
Os quatro domínios de inteligibilidade relacional analisados nas práticas restaurativas proporcionam uma visão sobre como estas podem ser construídas em busca da transformação da cultura punitivista para que possamos conviver de forma mais democrática. Trata-se de analisar e potencializar os recursos relacionais disponíveis no contexto em que o processo restaurativo se realiza, expandindo o entendimento para além das relações individuais e intergrupais, ao explorar as questões estruturais que permeiam a violência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise das três principais práticas restaurativas sob os quatro domínios propostos pelo conceito de responsabilidade relacional nos aponta o potencial destas práticas para a construção de novos sentidos de responsabilidade e de justiça, os quais são negociados, mediados e coordenados para sustentar novas formas de se relacionar com os conflitos sociais.
Assim, as transformações propostas pelas práticas restaurativas podem ultrapassar a dimensão individual e interpessoal, tão enfatizada pela abordagem terapêutica nos processos restaurativos ao longo dos últimos quarentas anos da JR, para o domínio dos processos intergrupais e sistêmicos que então favorecem mudanças efetivas frente ao modelo hegemônico de justiça, que tem sustentado relacionamentos sociais violentos, que culpabiliza indivíduos e gera mais injustiça do que justiça social. Mais do que um convite, o conceito de responsabilidade relacional potencializa o caráter social da JR enquanto movimento pela justiça social e pela construção de uma nova forma de convivência pautada na ética relacional e comunitária.
Considerando o potencial analítico e interventivo da responsabilidade relacional nos processos restaurativos, propomos que seja incluso como conteúdo na formação de facilitadores de justiça restaurativa, no planejamento das práticas de JR, na avaliação dos processos restaurativos e como referência para a construção de políticas de segurança pública.
Desta forma, são necessários estudos avaliativos da utilização da responsabilidade relacional e seus domínios de inteligibilidade nos processos restaurativos para que seja avaliada a sua efetividade e exequibilidade, assim como investigações sobre como os(as) participantes nas práticas restaurativas compreendem a responsabilização como algo pertencente àquele(a) que assumiu a responsabilidade pelo ato, ou como parte de um processo sistêmico que extrapola o nível individual. Diversas são as possibilidades de estudos no campo da justiça e responsabilidade que poderão contribuir para a transformação da tradição individualista.
Assim, as práticas restaurativas apresentam potencial para ampliar as inteligibilidades relacionais dos domínios das relações intergrupos e do processo sistêmico no campo complexo das relações sociais, desde que as questões estruturais situadas nos distintos posicionamentos relacionais decorrentes das condições de vida sejam contempladas durante o processo restaurativo. Do contrário, corremos o risco de reproduzirmos as práticas sociais criticadas pela JR, porém, de uma forma mais perversa, pois a utilizamos a partir de um processo fundamentado em uma pretensa ética relacional e comunitária. Romper com este modelo alienante é buscar responder ao desafio de vivermos juntos(as) com nossas diferenças, de uma forma mais humana, sensível, cultural e socialmente.