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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.23 no.57 São Paulo  2023  Epub 07-Jun-2024

 

Artigo Original

A POÉTICA DO COTIDIANO: NARRATIVAS FEMININAS ANTIMANICOMIAIS EM TEMPOS DE CONFINAMENTO

La poética de la vida cotidiana: narrativas femeninas antimanicomiais en tiempos del confinamento

The poetics of daily life: anti-asylum female narratives in times of the confinement

MICHELE DE FREITAS VASCONCELOS1  , Concepção, Coleta de dados, Considerações Teórico-metodológicas, Análise de dados, Elaboração do manuscrito, Revisões críticas de conteúdo intelectual, Aprovação final do manuscrito
http://orcid.org/0000-0002-9013-6352

LINA FERRARI DE CARVALHO2  , Concepção, Coleta de dados, Considerações Teórico-metodológicas, Análise de dados, Elaboração do manuscrito, Revisões críticas de conteúdo intelectual, Aprovação final do manuscrito
http://orcid.org/0000-0002-6183-7723

SANDRA RAQUEL SANTOS DE OLIVEIRA3  , Concepção, Coleta de dados, Considerações Teórico-metodológicas, Análise de dados, Elaboração do manuscrito, Revisões críticas de conteúdo intelectual, Aprovação final do manuscrito
http://orcid.org/000-0001-6611-9969

1Doutorado em Educação (UFRGS); Professora Adjunta do Departamento de Psicologia e dos Programas de Pós-graduação em Psicologia e Educação da UFS, Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão/Sergipe. https://orcid.org/0000-0002-9013-6352 E-mail: michelevasconcelos@hotmail.com

2Mestra em Psicologia (UFSC), Doutoranda em Psicologia Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ, Brasil https://orcid.org/0000-0002-6183-7723 E-mail: lina.ferrari.c@gmail.com

3Doutorado em psicologia pela Universidade Federal Fluminense; Professora Adjunta do Departamento de Psicologia e dos Programas de Pós-graduação em Psicologia e Educação da UFS, Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão/Sergipe. https://orcid.org/000-0001-6611-9969 E-mail: sraquel.oliveira31@gmail.com


RESUMO

Analisando uma poética do cotidiano como atitude político-afetiva e de pesquisa, o artigo ensaia uma narrativa composta por rastros e restos de histórias de vida de mulheres que resistiram ao manicômio por meio da escrita e fragmentos de histórias de vida nossa, mulheres trabalhadoras e pesquisadoras formadas pela imersão no campo da saúde mental e na Luta Antimanicomial. Ensaiamos uma narrativa interessada nas miudezas e delicadezas desses restos e rastros de vida ordinária que dão corpo a uma memória feminina fabuladora de mundos a contradizer memórias e narrativas oficiais acerca e acercando-se da mulher, do feminino e do cuidado em saúde mental. Narrar-se para transmutar, eis nossa aposta diante do assombro desses tempos de exasperação da lógica de confinamento.

Palavras-chave: Luta antimanicomial; Saúde mental; Cotidiano; Mulheres; Narrativa

RESUMEN

Mirando una poética de la vida cotidiana como actitud político-afectiva y de investigación, el artículo ensaya una narrativa compuesta por rastros y restos de historias de vida de mujeres que resistieron el asilo a través de escritos y fragmentos de historias de vida nuestras, trabajadoras e investigadoras formadas. por inmersión en el campo de la salud mental y en la lucha antimanicomial. Ensayamos una narrativa interesada en las minucias y delicadezas de estos restos y rastros de la vida cotidiana que encarnan una memoria femenina que fabula mundos que contradicen memorias y narrativas oficiales sobre y acercarse a las mujeres, lo feminino y la atención de la salud mental. Narrarse para transmutar, esta es nuestra apuesta ante el asombro de estos tiempos de exasperación de la lógica del encierro.

Palabras clave Lucha antimanicomial; Salud mental; Cotidiano; Mujeres; Narrativa

ABSTRACT

Scrutinizing the poetics of daily life as a political-affective and research attitude, this article essays a narrative composed of traces and rests of women life stories who resisted the asylum through the writing and fragments of stories of our life, worker women and researchers trained through the immersion in the field of mental health and the Anti-asylum Struggle. We essay a narrative interested in the minutiae and delicacies of these rests and traces of the ordinary life that embody a fabulating female memory of worlds that contradict memories and official narratives about and regarding woman, feminine, and mental health care. Narrating oneself to transmute, this is our bet in the face of the astonishment of these exasperation times of the confinement logic.

Keywords Anti-asylum struggle; Mental health; Daily; Women; Narrative

ENLAÇAMENTO HISTÓRICO ENTRE MULHERES E ENLOUQUECIMENTOS: “DESLO(U)CAR” E DESOBEDECER

Na esteira da dicotomia moderna humano e natureza, e da sinonímia mulher e natureza, processo validado por “evidências científicas” (Decola, 2016), Phillipe Pinel, considerado o pai da psiquiatria, afirmava que as mulheres estariam mais próximas da loucura (da desrazão, da animalidade) pela sua fisiologia, sendo irrecuperáveis quando associadas ao exercício de uma sexualidade dissidente, seja pela devassidão, onanismo ou homossexualidade (Cunha, 1989; Engel, 1997). Michel Foucault, em “História da Sexualidade I: a vontade de saber” (2018), alerta acerca da histerização do corpo da mulher como uma das estratégias de produção de saber-poder acerca do sexo e do seu controle normativo. Assim, uma das primeiras teorias científicas que substituíram as explicações religiosas para a loucura das mulheres como mal ou possessão pelo diabo, foi a criação da histeria, derivada da palavra grega útero (Barbosa, Dimenstein, & Leite, 2014).

O ponto de fixação inicial da histerização da mulher e de suas manifestações sexuais foi aquele da família burguesa, sendo o dispositivo sexualidade elaborado em suas formas complexas e intensas para e pelas classes dominantes, como maneira de constituir um corpo hierarquicamente superior, “de classe”, “com uma saúde, uma higiene, uma descendência, uma raça” (Foucault, 2018, p. 135). Nessa direção, num pensamento interseccional, Maria Cunha (1989) assinala que esse processo de naturalização e articulação entre os termos mulher, sexualidade e loucura evidencia uma diferenciação entre mulheres brancas e de classe alta, que poderiam ser consideradas saudáveis, e mulheres negras, proletárias, pobres, prostitutas, distantes do “modelo de privacidade e bem-viver que a ‘boa sociedade’ criava para si” (Cunha, 1989, p. 133), por isso, mulheres tidas como doentes mentais.

Assim, o controle da sexualidade das mulheres, especialmente as pobres e negras, torna-se um elemento central na atribuição de diagnósticos e aprisionamento nos manicômios, remetendo à manutenção e implementação de uma determinada ordem social burguesa tida como civilizada, em que as mulheres consideradas loucas, degeneradas e transgressoras seriam ainda mais vigiadas pelo isolamento, como forma de não desestabilizar tal ordem. (Couto, 1994). Tais mulheres não poderiam ter o direito de reprodução para não proliferarem seres humanos degenerados, manchando uma população, como expõem as teorias importadas, a exemplo da degenerescência e eugenia. Nesse sentindo, o enlouquecimento e encarceramento de mulheres negras e pobres diz respeito a um projeto civilizatório em curso pela padronização unificadora dos modos de viver à axiomática capitalista, configurando paisagens existenciais que funcionem como ração do capital (Pelbart, 2003).

Esse caráter preventivo, próprio das estratégias de poder disciplinar, que justifica a ‘terapêutica do sequestro’, parece se atualizar e se amplificar em sua articulação com o poder pastoral. O pastor é aquele que zela, no sentido da vigilância do que pode ser feito de errado, mas, principalmente, como vigilância a propósito de tudo que pode acontecer de nefasto. É a tentativa de captura das virtualidades da ação, das possibilidades de condução, potencializando o jogo da segurança com os discursos do risco. O pastorado laico, ou de Estado, corresponde a essa intervenção preventiva, ou mesmo da gestão daquilo que as pessoas fazem, através de práticas discursivas dos novos mandatários das almas, nesse caso, das práticas psiquiátricas e manicomiais. Elas estão aí para oferecer segurança e saúde à população e, de maneira incisiva, aos corpos sobre os quais as técnicas investirão diretamente e sobre os quais potencialmente podem intervir (Foucault, 2008).

Assim, ao mesmo tempo que a condução pastoral produz uma individualização ao lidar com corpos-rebanho, trata-se de uma estratégia que é também homogeneizante e generalizante, pois estabelece maneiras de conduzir condutas que confrontam e proíbem a diversidade, a pluralidade, a multiplicidade e a diferenciação dos modos de existir. A diferença deve ser evitada, pois ameaça o rebanho enquanto rebanho, a unificação necessária ao rebanho. Coloca-o em xeque.

Ainda que sempre haja ovelhas que “escapam”, que as tecnologias disciplinares não se totalizem sobre todos os corpos, gestos e quereres, enfim que sempre haja algo que transborde, o poder pastoral age como se não houvesse, como se outros mundos de existência não fossem possíveis. Canguilhem (1982) assinala uma relação entre o normal e a norma que possibilita pensar sobre esse funcionamento pastoral não apenas como um dispositivo de gestão quase que totalitário das condutas, mas mirando um dos seus principais efeitos, que aqui entendemos como efeito das estratégias manicomiais: a produção da obediência e a relação entre obediência e possibilidade de existência num quadro de inteligibilidade/humanidade.

O normal é, ao mesmo tempo, a extensão e a exibição da norma. Ele multiplica a regra, ao mesmo tempo em que a indica. Ele requer, portanto, fora de si, a seu lado e junto a si, tudo o que ainda lhe escapa. Uma norma tira seu sentido, sua função e seu valor do fato de existir, fora dela, algo que não corresponde à exigência a que ela obedece. (Canguilhem, 1982, p. 211)

Mas, a vida pode ser mais que essa saúde comprimida entre a norma e o normal? “Saúde não se vende, loucura não se prende!”. Essa oração escrita na porta do Diretório Acadêmico de Psicologia da Universidade de Sergipe, costuma abrir a curiosidade de alunas/os para questões do campo da saúde mental e, assim, nos bastidores, iniciar um processo (trans)formativo. Desejamos falar desse processo coletivo de (des)aprendizagem que envolve cultivar uma atitude de ir se desgarrando – e o gerúndio aqui não é cacoete - do desejo razoável e arrazoado de manicômios nutrido, por sua vez, pelo desejo de conversar valores civilizatórios de uma época. Essa atitude ético-afetiva diz de ensaios de desprendimento de todo um longo histórico de aprendizagens que operam nossos corpos dopados culturais (Couto, 2009), confiando-os em determinados modos de perceber, sentir, viver e desejar entendidos como naturais. Essa moral de época que aprendemos a desejar costuma constituir os currículos e espaços da vida cotidiana. Mas, nesses mesmos espaços, ainda bem, insistem movimentos, falas dispersas, gestos disparates que operam desvios e convidam a outros itinerários.

Queremos falar de uma história, uma história coletiva. Uma história que precisa ser (re)contanda, vivida, encarnada, uma história feita de gente, gente que insiste em viver e transbordar os esquadros dessa “vida capital” apequenada (Pelbart, 2003). Anos 80. Um trabalho-arte, um trabalho-poesia, vetor de existencialização, rascunhava uma saúde, rascunhava uma vida. Respirando os ares da redemocratização do Brasil, trabalhadoras e trabalhadores de saúde, vibravam melodias, cores e odores, dando tons e notas em seus fazeres cotidianos, ensaiando possibilidades concretas de mudar a história: do lugar em que labutavam, do lugar de suas cidades, do lugar de nosso país. Seus sonhos-enxada (Fonseca, 2007) germinavam fissuras num cotidiano de violências perpetradas na vida da gente brasileira: na vida da adolescente, trabalhadora doméstica, que foi estuprada pelo patrão e dele engravidou, tendo, por isso, como destino, uma vida encarcerada no manicômio (Arbex, 2019); na história de muitas mulheres enlouquecidas porque revidaram agressões físicas cotidianas de seus esposos, como contou uma aluna na disciplina de Psicologia e Instituições de Saúde Mental (sua avó que apanhava de seu avô, quando ousava revidar, ‘enlouquecia’, sendo internada); na história dos pátios de muitos manicômios repletos de corpos, negros a vagar; na história dos corpos negros rodiziando espaços para se esticar um pouco nas celas lotadas dos presídios brasileiros. Na história cotidiana das mortes de jovens negros periféricos, grande problema de saúde pública brasileiro. Na história - da qual não se costuma falar, que tem um enredo tramado por naturalizações diárias do corpo da mulher como propriedade do homem e do capital - do aumento contabilizado de feminicídios no Brasil em tempos de pandemia1.

Histórias dispersas, fragmentos de história de vida de gente pequena que convida a desviar de um histórico de opressões generalizadas, é desses restos de vida que queremos falar. Queremos, com esses pedaços de histórias, alinhavar uma vida, operando deslocamentos. “Deslo(u)camentos”, palavra bordada por Juliana Baldasso (2021, p. 48):

A partir da perspectiva de que o feminino não é algo dado de antemão, mas sim construído através de dispositivos biopolíticos, que ao longo da história moldam e definem padrões e subjetividades, [fazemos] um trocadilho com o título do livro de Kehl (2007) “Deslocamentos do feminino”, no qual a autora discorre sobre essa construção. A palavra “deslocar” coloca em cena o movimento e transgride a ideia de uma suposta essência do ser. Deslocar possibilita ampliar mundos, criar desvios, inventar saídas. Deslo(u)car o lugar da mulher, considerada louca por tanto tempo, quando desejava mais do que lhe era permitido pela lógica patriarcal, aponta as possibilidades criativas de outros mundos com outros lugares a inventar.

Queremos contar a história de Stella do Patrocínio. Por meio de seus falatórios-poéticas, essa mulher relata seu aprisionamento por estar andando na Rua Voluntários da Pátria, Rio de Janeiro, quando de repente gritaram: “carreguem ela” e lá se foi capturada pela lógica manicomial: “onde a alimentação era eletrochoque, injeção e remédio” (Patrocínio, 2001, p. 53). Sabe-se pouco sobre a história de Stella antes de ser institucionalizada, apenas algumas informações acerca da família, que era trabalhadora doméstica, além de características corriqueiras expressas já no hospital, como o gosto por maços de cigarro, óculos de sol, Coca-Cola, leite condensado, escrever números e palavras em papelões e que costumava cuspir os psicotrópicos (Mosé, 2001). Uma mulher negra, pobre, sequestrada na rua, internada desde 1962 no Centro Psiquiátrico Pedro II, no Rio de Janeiro. Em 1966, foi transferida para Colônia Juliano Moreira/ RJ, onde permaneceu pelo resto da sua vida. Trinta anos entre os muros asilares, Stella insistia, vazava por meio de uma língua inventada que ela denominava como “falatórios”.

A partir da gravação das falas/falatórios de Stella, Viviane Mosé (2001) transcreveu em formato de poesia, tornando-se um livro: “Reino dos Bichos e dos Animais é o meu nome”. Seus falatórios/poéticas são gritos de dor, de denúncia, mas também de (re)existência. Uma produção que agarra quem lê-sente pela dureza, concretude e crueldade das suas palavras, que choca ao tratar da mortificação de um corpo que ousou nascer, que ousou percorrer uma rua, um espaço público; um corpo não branco, um corpo forma-não-homem, um corpo forma-não-burguês, um corpo-forma-não razoável; um corpo que desfaz a dicotomia humano e natureza, logo, um corpo considerado pelas normas regulatórias/civilizatórias como não vivível e não passível de luto (Butler, 2015): “Meu nome verdadeiro é caixão enterro/Cemitério defunto cadáver/ Esqueleto humano asilo de velhos/Hospital de tudo quanto é doença/ Hospício/Mundo dos bichos e dos animais/Os animais: dinossauro camelo onça/Tigre leão dinossauro/Macacos girafas tartarugas/Reino dos bichos e dos animais é o meu nome” (Patrocínio, 2001, p. 118). Viva Stella do Patrocínio! “Bem patrocinada” (Patrocínio, 2001, p. 66). Um corpo que mesmo internado, enjaulado, torturado, ousou falar, ousou insistir na produção de uma vida por meio de uma língua estranha, seus falatórios-poéticas que reverberam até os dias de hoje, como um cuidado de si, uma estética da existência (Foucault, 2004).

Queremos contar uma história dos presos políticos; de “corações militantes” (Amado, 2010), como o de Jacinta Velloso Passos, uma mulher branca, baiana, formada em pedagogia, casada com James Amado, irmão do famoso escritor Jorge Amado. Feminista, poeta, jornalista e escritora. Ousou escolher amores e amigos, assumiu posições políticas, essas coisas das quais deveriam se ocupar somente os homens. E vai além, filia-se ao partido comunista no momento em que não somente se criminalizava, mas se demonizava essa posição no Brasil. Em 1962, veio morar em Atalaia Nova, Sergipe, participando de mobilizações políticas de Aracaju, apostando que poderia organizar os pescadores tendo em vista uma revolução operária. Com o golpe militar de 1964, Jacinta foi presa. Ao ser interrogada pelo tenente Rabelo, respondeu em versos2. O que fazer? Em qual crime enquadrá-la? Surgiu a versão dela ser uma ‘desequilibrada mental’. O tenente chama o médico-psiquiatra Hercílio Cruz para examiná-la no quartel e concluíram pela loucura de Jacinta, confinada no hospital Adauto Botelho e depois na clínica psiquiátrica Santa Maria. Jacinta reagiu à internação, sendo ‘acalmada’ inúmeras vezes por eletrochoques. No prontuário, o diagnóstico: “desde 1944, comunista”. Internada por 9 anos, deixou uma ampla produção literária chamada: “Os cadernos do sanatório”. Jacinta escreveu 3348 páginas em cadernos manuscritos, com poemas, letras de música, peças de teatro, textos de história e filosofia.

Essa é uma história coletiva, que luta por ativar o que em nós ainda resiste, ainda insiste a resistir aos nossos desejos de manicômios, desejos de uma vida enclausurada nos muros desta vida pequena e individualizada, agora digitalizada, vida em tela, sem tato, sem cheiro, sem abraço. “Quando eu não for mais indivíduo, eu serei poesia/ eu não serei eu/serei poesia permanentemente/poesia sem fronteira”.

Oh a poesia deste momento que passa, a grande poesia vivida neste instante por todos os seres da terra, que palpita nas coisas mais simples como um rastro luminoso de beleza e, sem uma voz humana para eternizá-la, se perde para sempre inutilmente... Por que existo . . . quando não posso cantar? (Amado, 2010)

Viva Jacinta Passos! Está na hora de cantar: “Tá na hora de reagir, entender que somos gigantes, ocupar o nosso lugar, acolher nossas almas nunca é tarde para replantar nossa terra de amor infindo, a semente vai germinar é assim que a vida é”3. E assim, parafraseando Spivak (2010): “Pode a louca falar?”. Stella falou, assim como Jacinta e tantas outras. O que ecoa das suas palavras? Das suas línguas desobedientes que se lançam contra a domesticação e adestramento civilizatório? Talvez elas soubessem que o silêncio não as protegia. Como afirma Audre Lorde (2019), a poesia cria uma linguagem própria que registra movimentos revolucionários, libertadores. A palavra que serve na boca das passarinhas (Barros, 2016). O musgo que nasce na fissura, ou o coentro largo que brota como mato - destila aromas e sabores - e tempera, alimenta, dá “sustança” (palavra com sotaque nordestino) ao corpo. Viva àquelas, àqueles e àquilo que ousa sonhar na precariedade, sonhar por meio de seus fazeres cotidianos em expandir a vida, musgo que nasce na fresta. “Fazer com que certas coisas não sejam ditas e que certas práticas não sejam feitas sem pelo menos alguma hesitação...Participar do difícil descolamento dos umbrais da tolerância” (Foucault, 2006, p. 347). Sim, com essas mulheres, com essa gente, com esses movimentos, queremos fazer poesia por meio de nossas pesquisas científicas. Por meio de nossas pesquisas queremos insurgir, queremos brotar como musgo no cimento desses tempos:

o contemporâneo que se pode entrever na temporalidade do presente é sempre retorno que não cessa de se repetir, portanto, nunca funda uma origem e, com isso, se aproxima da noção de poesia. ... A poesia ... é sempre retorno, mas um retorno que é adiamento, retenção e não nostalgia e busca de uma origem; é um caminhar, mas não é um simples marchar para frente, é um passo em suspenso ... um olhar para o não-vivido no que é vivido, tal como a vida no contemporâneo. [...] entrever um limiar inapreensível entre um ainda não e um não mais. (Scramin & Honesko, 2010, p. 22)

Nossa política de escrita tem adubado afeição à poesia como um modo de participar do difícil descolamento dos umbrais da tolerância, de acompanhar a movência da paisagem ao percorrê-la. A vida é mais que essa saúde comprimida entre a norma e o normal, ela vaza entre Stellas, Jacintas, Joanas, Mauras e tantas outras patologizadas, sobreviventes de um sistema que controla, pune, amarra em camisas de força, dopa, aplica eletrochoques, maltrata, violenta, deixa morrer ou mesmo mata. Ainda assim, “as djaniras no campo em flor/são filhas do menor chuvisco” (França, 1979), ou são os musgos e coentro largos. Ainda assim, elas afloraram como poesia em tempestade, broto na terra árida, palavra em meio às mordaças. O que suas poéticas podem nos dizer? O que afirmam de uma lógica manicomial que está para além de muros físicos? O que os encontros dos nossos corpos com tais poéticas femininas, nessa encruzilhada da saúde mental, nos permitem criar? Quais costuras são possíveis de tecer?

COSTURANDO RETALHOS DE FALATÓRIOS: A POÉTICA DA VIDA COTIDIANA

De um percurso na Rede de Atenção Psicossocial de Aracaju/Sergipe - que se inicia em 1998, ali quando ela mesma ainda não existia, mas se labutava por ela, destacaremos cenas que compõem uma memória intempestiva, que nada tem a ver com um passado de ressentimento. A força dessa memória ativa, viva, bailarina convoca um desejo de intervir sobre o tempo, este do qual fazemos parte, em favor de um tempo em devir. Logo ali no cotidiano, abre-se um terreno afeito a descontinuidades, agitações, movimentações, ali onde as coisas acontecem: no que parece ‘pequeninho’, nos fazeres e dizeres corriqueiros, nas relações que se estabelecem e nos estabelecem, nos corroem e nos potencializam, nas coisas ‘triviais’, no que as pessoas tendem a desqualificar. Logo ali, borra-se o caminho do ‘bem’, caminho do extraordinário e do extraordinariamente reto e generalizável. Logo ali, mobilizam-se afetos, aflições, desejos, gesta-se um desejo que germina das “coisas chãs” e esse “chão berra” (Didi-Huberman, 2017, p. 28), a pele (negra) berra (porque a gente primeiro entende as coisas por meio dela, depois elas pululam sentidos): “manicômios nunca mais!”.

Logo ali, se borram os enquadramentos lineares impostos a muitas Joanas, como a do conto “No quadrado de Joana” (2016), da escritora Maura Cançado no seu livro “Sofredor do ver”. Nesse conto, Maura – mulher branca, burguesa, escritora, que tivera a vida marcada por repetidas internações no hospital psiquiátrico - retrata a realidade atordoada da personagem Joana, categorizada como catatônica. Parada no pátio de um hospício, vive a tensão entre seguir um olhar direcionado à retidão das linhas fixas, rígidas, numa realidade quadrada, no “quadrado das horas” - permeada por corpos eretos, em um “novo tempo: nascido duro, sofredor” -, e o medo ameaçador de recair nos desvios das curvas e de tudo que subverta esse ordenamento. Ao final da leitura, entre afetações e reflexões, emergem questionamentos: trata-se apenas de sintomas de uma louca “catatônica”, esvaziada como sujeita pelo diagnóstico e/ou o fazer ver um quadro clínico patológico de uma sociedade que tendeu aos enquadramentos normativos, controlando corpos, produzindo sujeitos, principalmente quando são os corpos das mulheres? Homens brancos de jaleco, autoridades dos saberes psi, manicômios mentais (Pelbart, 1990) inscrevem nesses corpos a predisposição à loucura, definem a ordem e o limiar entre normal e patológico a partir de ditames morais e colonialistas numa roupagem científica.

1998, as professoras Liliana da Escóssia e Maria Teresa Nobre do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Sergipe abrem um campo de estágio em Saúde Mental no município de Glória, três horas para ir, três horas para voltar -, onde funcionava, até então, o único Centro de Atenção Psicossocial de Sergipe. Elas farejavam ali um novo começo de vida, depois de algumas visitas a hospitais psiquiátricos, cavando campo de estágio para psicólogas e psicólogos em formação, chegaram à conclusão não apenas que aqueles hospitais não serviam como campos de estágio, mas que eles não deveriam mais existir. O trabalho delas como professoras, pesquisadoras, e, eventualmente, consultoras do Ministério da Saúde passou a caminhar nessa direção, encontrando-se nas esquinas com os movimentos da luta antimanicomial e bifurcando em muitas vidas de profissionais em formação e usuários do que viria a ser a rede de atenção psicossocial de Aracaju-Sergipe. Em 2000, por meio do estabelecimento de uma parceria entre a organização não governamental chamada Organização Luz do Sol e a Secretaria Estadual de Saúde de Sergipe, foi inaugurado o primeiro Centro de Atenção Psicossocial da cidade CAPS Arthur Bispo do Rosário.

Nesse mesmo ano, em paralelo, uma de nós autoras inicia seu primeiro estágio extracurricular em saúde mental. Tal experiência ocorrera ainda numa clínica psiquiátrica, na ala feminina destinada aos casos agudos, gradeada e trancada durante as 24 horas do dia. Ali, sob a alegação de manter as internas ‘seguras’, não se tinha luz, não se tinha colchão, ao menos um som, uma televisão, não se tinha nada. Sob a alegação de não se perturbar a tranquilidade do lugar, vetaram as estagiárias de levar um sonzinho portátil e, com ele, música à ala. Mas sob que alegação caberia o fato de não se ter sabonete nem escovas de dentes nos banheiros, que justificativa poderia se dar para as usuárias não terem acesso às suas próprias roupas? “Isso aqui é o regime militar, por isso eu moro nessa caixa de fósfros azul”, um dia uma interna disse.

De acordo com Wacquant (2001, p. 10), “as duas décadas de ditadura militar continuam a pesar bastante sobre o funcionamento do Estado e sobre as mentalidades coletivas”. A esse mesmo respeito, Cecília Coimbra e Brasil (2009, p. 56) afirmam que a lógica discriminatória e preconceituosa que deu “sustentação à violência contra aqueles que se opuseram ao regime militar”, nos dias atuais, se espraiou: “a tortura hoje é generalizada e sistemática. [...] a violência se ampliou, intensificou e compõe, como uma rede que pulsa ativamente, o conjunto das relações sociais. O medo continua se impondo e sendo um componente ativo de controle social” (Coimbra & Brasil, 2009, p. 56). Por meio desse medo, nossos desejos de segurança, pedem por mais e mais prisões.

“Bandido bom, é bandido morto”. E quem são mesmo os bandidos? Bem ali na ala, estávamos mesmo vivendo sob vestígios do regime militar, e aquela jaula cercada por azulejos azuis era mesmo do tamanho de uma caixa de fósforos. Esse tamanho, as grades, a assepsia daquele lugar misturada aos fortes odores emanados pelos corpos das internas também vestidas de azul ou nuas, essa atmosfera parecia figurar como um campo de tortura para os corpos delas, para os corpos nossos e o da faxineira que, limpando depressa o lugar, parecia ‘louca’ para dali sair. Seria um campo de concentração como afirmou Basaglia ao visitar o manicômio de Barbacena? Campo de concentração ou Navio Negreiro? (Passos, 2018). Ao elaborar essa pergunta, Raquel Passos afirma que é preciso questionar a atualização das práticas manicomiais, hoje expressas nas múltiplas ações do Estado que estão atreladas muito mais ao colonialismo do que ao holocausto.

O manicômio, para além da estrutura física, impregna as relações sociais com sua lógica, expressa pela medicalização e patologização da vida, internações compulsórias, esterilização involuntária e higienização urbana (Passos, 2018). É necessário, a partir da provocação de Passos, elucidar a estrutura herdada do colonialismo que se anuncia pelo manicômio, não só diante dos hospitais psiquiátricos, mas de sua lógica de normalização social atravessando os processos de subjetivação. Assim, produz-se gestos e corpos desviantes das normas como sujeitos perigosos, doentes, “degenerados”, pois que ameaçam o ideal de humano civilizado – forma-homem, branco, cisgênero, heterossexual, empreendedor de si. A colonialidade está impregnada nos manicômios e demais espaços sociais, se fazendo presente no Brasil atual, perpetuando estruturas de poder colonial-moderno, inclusive no que se refere a um ideal de raça e um sistema sexo-gênero-desejo (Lugones, 2014).

Em 2001, um ano depois, a mesma autora que adentra a “caixa de fósfros azul”, como requisito da disciplina ‘Psicologia e Práticas de Saúde’ lecionada pela Maria Teresa Nobre, desenvolve a parte ‘prática’ num serviço substitutivo de saúde mental, qual seja: visitar o serviço, acompanhar, mesmo que pontualmente, sua rotina e entrevistar uma profissional de psicologia do lugar. Foi, então, ao CAPS Arthur Bispo do Rosário, o único existente na cidade até então. No decorrer da entrevista com a psicóloga, observa usuários do serviço conversando num pátio em frente a um portão sem cadeado. Logo em seguida, um usuário chamado de ‘Gigante’ – de ‘fato’ ele era enorme – adentra a sala com “cara de louco” – a cara que se tinha construído até então, cara de perigoso - e vai chegando perto e: “boo!”, um sorriso estampado no rosto e uma vida nos olhos, almejava conversar alguns assuntos de vida com a psicóloga, sua técnica de referência.

Tal situação mostrara ‘outra’ loucura, fora da agudez da crise, fora do hospital e de seus efeitos cronificantes, iatrogênicos. No lugar dos jalecos brancos e das camisas de força químicas e morais que faziam, na clínica supracitada, de todos – profissionais e internos – qualquer um, ou seja, que tendiam a enrijecer, amortizar e homogeneizar os encontros que por ali se davam, no CAPS, um mundo de possibilidades e de afetos parecia tilintar, alguns ali pulsando, prestes a se territorializar em nós, no Gigante, na psicóloga. Essa loucura, até então, ainda não se conhecia.

Em meio à altura, o sorriso, o encontro entre o Gigante e Amanda Pires, uma escrita de si tem início com o apaixonamento pela loucura desinstitucionalizada, pelo menos pela possibilidade que ali se anunciava, pelo que nela havia de potência disruptiva, pelo que nela havia daquela saúde frágil, literária, fabuladora de mundo (Deleuze, 1997), de alianças monstruosas, ofertadora de devires que a saúde da moral da vida normal tornaria impossíveis.

Em 2003, novamente como requisito da disciplina ‘Psicologia e Práticas de Saúde’ - agora lecionada pela professora Liliana da Escóssia, que insistia em levar o SUS e a luta antimanicomial para as salas de aula -, um convite agora endereçado para outra autora deste texto: acompanhar o cotidiano de um dos serviços substitutivos de saúde mental. As atividades em dupla incluíam visitar o serviço, frequentar, mesmo que pontualmente, sua rotina, participar de algumas atividades - especialmente a assembleia dos usuários (ainda era difícil se referir assim aos até então ‘pacientes’ ou ‘internos’ dos hospitais) com a família e a equipe. Também se indicava acompanhar um profissional, que nesse caso foi a psicóloga e coordenadora do serviço, egressa do mesmo curso de Psicologia.

O CAPS era o Liberdade. Ele ficava a poucos metros do rio Sergipe. Uma casa de muro baixo, com o portão sem tranca. A maioria dos usuários estavam chegando dos hospitais Garcia Moreno e Adauto Botelho, alguns bastante comprometidos, cronificados. Uma lembrança salta: uma mulher engatinhava e usava os cabelos presos como o de uma criança. Ela catava tudo que achava no chão e levava à boca. Chamava a psicóloga de tia que, por sua vez, sempre tentava marcar seu lugar de técnica chamando a usuária pelo nome. Aquela equipe parecia ter um trabalho hercúleo. E tinha. Pensava: como essa mulher vai levantar? E se ela levantar? Será que o hospital cai das suas costas?

A participação na tão esperada assembleia era tudo que jamais se poderia imaginar. Às vezes parece que ir lá e fazer é mais simples. Imaginar é mais trabalhoso, envolve memórias e afetos que se colocam, muitas vezes, como entulhos que devemos retirar, ou pelo menos, mover do lugar. Imagine imaginar, se colocar numa reunião ao lado de um/a louco/a, quando a memória mais iminente que se tem da loucura é a de correr em bando de crianças (muito! Sem olhar para trás) para não receber pedrada do/a doidinho/a da rua, depois de muito importuná-lo/a chamando-o/a por um apelido que ele/a não gostava? Assembleia é um dispositivo de, acima de qualquer coisa, produzir horizontalidade. Como fazer isso entre equipe (de técnicos, profissionais de saúde diplomados) e usuários que até bem pouco tempo não tinham direito a suas próprias vestes? O hospital estava muito perto. Podia sentir a respiração agonizante dele nas costas.

Mas, de costas para ele, segue a assembleia, com coordenação pontual da psicóloga e de um usuário com diagnóstico de esquizofrenia crônica, como ele sempre insistia em se apresentar. As falas passavam, principalmente, pela construção de uma pactuação de funcionamento do próprio serviço e de como ia se estruturar o cuidado. Como aquilo era possível? E doido tem querer, é? “Eu não quero mais tomar aquela dose de remédio quando entrar em mania” – dizia um usuário bipolar. E completa: “Prefiro que me tranquem ali naquela salinha e só me soltem quando passar. Porque vai passar. E quando tomo esse tanto de remédio não consigo trabalhar a semana toda. Estou falando sério, nem que precise me amarrar”. A técnica de enfermagem indignada comenta que parece que o muro do CAPS está crescendo e ela está vendo o hospital se atualizar para dentro do serviço. É, doido parecia ter querer. E sabia planejar seu Projeto Terapêutico Singular - dispositivo que põe em funcionamento da diretriz da Clínica Ampliada Brasil.

Eles também pareciam saber de coisas bem importantes sobre o funcionamento das assembleias. “Não seja prolixo, seja conciso! Se não, nunca vai chegar a hora do lanche”, dizia sempre um usuário idoso, branco, de voz bonita e timbre forte, que se divertia passeando pelo CAPS enquanto as estudantes mais receosas, evidentemente amedrontadas, conheciam os serviços e falava alto ao passar bem atrás de alguma, arrancando um sobressalto. Ele sempre procurava olhares de cumplicidade para rir junto com ele. E encontrava. Diziam que ele foi preso no período da ditadura militar. Este senhor morreu em 2020. Mais uma lembrança, agora de saudade do que ele sabia causar: sobressaltos. Em 2007, uma de nós, na recém função de apoiadora institucional4 do CAPS, estava receosa e ele solta: “Tão bonitinha, tão legalzinha, mas não sei se é competente”. A memória dos encontros com ele e uma senhora negra que, vez por outra, ao sair das tardes enfurnadas em sala em reunião técnica com profissionais do serviço, sempre lhe recebia com a seguinte assertiva: “Vocês passam a tarde inteirinha aí falando da vida dos outros”.

Reparem, não estamos querendo dizer que os serviços CAPS possibilitam, todos os dias e em todas as suas ações, o emergir de paisagens prenhes de vida. Estamos apenas relatando momentos de resistência, em que um processo de singularização entrou em cena, afetou nossos corpos, desestabilizando crenças, valores, modos de entender, experimentar, perceber, sentir a loucura e com a loucura, modos tão articulados com uma certa configuração coletiva que tende a capturar processos como esses supracitados, mesmo dentro dos CAPS, pois nossos corpos e serviços foram constituídos atravessados pela lógica manicomial, por práticas terapêutico-pedagógicas interessadas na prescrição de uma vida razoável, capitalizada, ração do capital.

Mas, naquele momento, quando o Gigante abre a porta com um sorriso largo nos lábios, quando o senhor de timbre forte impõe um certo ritmo ao serviço e retém a atenção de muitos com suas “memórias do cárcere”, quando a senhora convida a pensarmos no que estamos fazendo ali na função de trabalhadores de saúde responsáveis diretos por governar condutas experimentou-se na pele a desinstitucionalização como contágio cultural (Amarante, 1996) como transvaloração (Paulon, 2006). Desinstitucionalização pelo cultivo coletivo de outras formas de vida, como um movimento de desestabilização de formas, de virada do avesso de valores brancos, europeus, razoáveis, norte-americanos, capitalísticos, consumidores do mundo e de si, valores civilizatórios, midiáticos que nos fazem tão humanos/as, demasiadamente humanos/as.

No cotidiano da rede de saúde mental em que nos constituímos como profissionais de psicologia e da saúde coletiva, trabalhadoras e pesquisadoras, também sentimos na pele alguns efeitos do processo de institucionalização do Movimento Antimanicomial que, ao ser tomado de assalto pelo Estado, tende a se desprender dos fluxos que justificariam seu valor de institucionalidade e a se burocratizar. Tais efeitos são sentidos no cotidiano dos serviços substitutivos de saúde mental: em prontuários, ao lado do diagnóstico, ainda se observa, como que compondo o quadro da “doença mental”, a palavra homossexualismo e tudo que ela faz operar. A seguir, algumas cenas retiradas de diários de campo.

Dois técnicos chamaram as pesquisadoras (éramos duas) para participar de uma abordagem que iriam realizar junto a um usuário recém-inserido que havia feito uso de ‘substância’ dentro do CAPS. A abordagem traduziu-se em penalização do usuário, alegando que ele havia sido influenciado por uma “alma sebosa” (termo que utilizaram para se referir a outro usuário do serviço), que “no CAPS não se deve confiar em ninguém”. Um desses técnicos, inversamente, em momento anterior de assembleia com usuários, havia dito que o CAPS era “uma grande família”, que, por isso, “devemos ser solidários uns com os outros”. Destaquem-se relatos de dois usuários que, na ocasião da pesquisa5, também se referiam a intervenções culpabilizadoras e individualizantes, avesso do convite à ‘solidariedade’ feito na assembleia:

Me chamaram pra direção e me orientaram, né? Eu não andar com colegas que fazem parte aqui do, do CAPS, usuários, pra eu evitar de andar com usuários que frequentam aqui o CAPS também, né? Fui chamado atenção.

Não sabe que a pessoa é viciado, e vê que a pessoa vacilou? Acho que poderia mais... conversar numa boa sem tá olhando com olho feio, sem tá, sem tá humilhando, desfazendo, né? Deveria ter outra forma dele se expressar, conversar, né? Sem humilhar, sem tá olhando com a cara feia, sem desfazer da pessoa.

A próxima cena fez pousar a atenção no tema ‘relações de gênero e sexualidade’, mais precisamente, masculinidades e heteronorma. Um profissional de um CAPS Álcool e Outras Drogas perguntou à pesquisadora se é melhor ser amado ou odiado. Ele prosseguiu relatando que um usuário, sempre que bebe, chega lhe fazendo declaração de amor, de admiração. Ele diz: “Ainda por cima, na frente de [verbaliza o nome de um outro profissional]. Minutos depois, ele levanta a camisa e, mostrando o peito para um usuário, pergunta-lhe: “Você acha que devo depilar ou prefere peito cabeludo?”. O usuário irrita-se, diz que não é do “babado” e sai resmungando. O técnico fica, então, cochichando com outra profissional. Eu lhes indago sobre o que estão conversando e ele responde: “Não é nada não, é a perversidade desses usuários ... Este aí, quando está bêbado, a traseira é de todo mundo”. De quem é a perversidade mesmo?

As cenas narradas parecem apontar para a conformação de uma determinada paisagem de cuidado. Nela, o cuidado participa de um processo mais amplo de marcação e organização de corpos como indivíduos, de patologização e individualização do desejo, nesse caso particular, daqueles que fazem usos entendidos como ‘indevidos’: uso ‘indevido’ de álcool e outras drogas como também uso ‘indevido’ de gênero. Nela, o cuidar parece articular-se com a necessidade de formatar corpos, de culpabilizar sujeitos e seus corpos, corrigir/(re)abilitar suas condutas, trazê-los para a claridade do mundo humano, um mundo regulado por normas regulatórias de gênero, um mundo supostamente sem drogas, num tempo de banalização do uso das mesmas. Nesses nossos tempos, a moral sanitária atualiza-se em moral da vida ativa e da corrida pelo corpo e comportamentos perfeitos. Uma saúde que amplia suas órbitas carcerárias, biomédicas e mercadológicas pelo autopoliciamento, uma saúde que tem a ver com contagem de calorias para empreender o corpo perfeito, mesmo que para isso se precise de corpos dopados culturais (Couto, 2009), de cérebros hiper conectados, de indivíduos empreendedores de si, cansados que precisam administrar as peripécias do cotidiano dopando-se. Socorro, não estamos mesmo sentindo nada6?

Humanos, nós todos constituídos pela naturalização da forma-Homem da onipotência, que se basta por si mesmo, que conhece para controlar a natureza, inclusive associando mulher à natureza. Forma-homem que, por exemplo, autoriza estupros de ontem e de hoje, matança de mulheres e de pessoas trans. Mais retalhos, costuras de histórias de mulheres brasileiras cuidadas por nós. O corpo da usuária de droga e da mulher em situação de rua, que tem seus filhos levados por operadores de políticas públicas porque mulher de pele negra precisa ser mãe boa, mãe preta. Mãe brasileira, solteira, tem que ter teto, se responsabilizar pela educação dos futuros cidadãos de bem da pátria mãe gentil, amada Brasil. Essa mãe, para aguentar o tranco dessa labuta, tem que fazer uso controlado de drogas lícitas: benzodiazepínicos. Mulher que é mulher, mãe que é mãe jamais seria usuária de CAPS ad. Jamais poderia desviar de um corpo higiênico, da mulher eugênica, não degenerada. Esse ideário mulher-feminino também constitui a maioria corpo profissional dos serviços de saúde mental, afinal, quem deve cuidar se não as mulheres? (Paraíso, 2011).

Esse rastros pulsantes do cotidiano revelam um histórico em que mulheres que desviam desse modelo devem ser aprisionadas e até mesmo questionadas quanto ao ser ou não uma mulher, como grita Sojourner Truth (2019) “E eu não sou uma mulher?”. O rompimento com o modelo normalizado de comportamento feminino tende a ser patologizado. Resistir à sina mulher-bela-esposa-mãe representaria o fracasso do modelo idealizado da família, contra a pureza da saúde moralizadora (Cunha, 1989). Assim, a resistência precisa ser contida, confinada. Assim, nas ciências médicas e psis, o modelo de gênero feminino manteve a essência mítica herdada do colonialismo, mesclando-se com a visão científica eugênica. A relação entre a moral e o corpo feminino representava - e ainda representa - simbolicamente a Pátria: “A trindade somática-física-moral que caracterizava a mulher ideal, sendo sinônimo de normalidade era o reflexo do que deveria ser a nação, não só orgânica como moralmente, em prol da eugenia” (Couto, 1994, p. 53). E assim racismos e machismos científicos veiculam e naturalizam maneiras de ver, conhecer, pesquisar, cuidar, (con)viver, manicômios sociais e mentais persistem aqui, ali e acolá.

No livro “Delírios da Razão” (2001), Magali Engel aborda a questão da apropriação da loucura pelo saber médico psiquiátrico no Rio de Janeiro, subsumindo-a à doença mental. A autora relata histórias reais de mulheres e homens que foram presas/os em manicômios no processo de consolidação da institucionalização da loucura. Nessas histórias de mulheres consideradas “degeneradas”, loucas, que foram internadas, nos diagnósticos psiquiátricos de todas elas havia referências aos aspectos fisiológicos, à maternidade e expressões sexuais consideradas “anormais” e influenciadoras da loucura, como o fluxo da menstruação e exercício da sexualidade sem fins reprodutivos.

A partir do livro citado acima, a história de Bárbara de Jesus, portuguesa, 67 anos, viúva e doméstica que decidiu casar-se novamente com um homem de 52 anos, 15 anos mais jovem, evidencia a influência dos padrões morais que permeavam as construções dos diagnósticos psiquiátricos e a necessidade de controle desse corpo supostamente doente porque desviante, a partir da sua interdição e posteriormente institucionalização. “Barbara revelaria não apenas uma sexualidade anormal – manifestando interesse sexual numa idade em que já não mais podia procriar -, mas também uma afetividade distorcida, apaixonando-se por um homem incapaz de sustentá-la” (Engel, 2001, p. 86). Pode uma mulher classificada como idosa expressar seus desejos? Namorar um homem mais jovem? Fazer sexo sem fins reprodutivos? As morais de gênero e de faixa etária indicam o absurdo, só pode ser uma degenerada, louca, destino: hospital psiquiátrico.

Mas, e quando a louca escapa do hospital? Para onde ela vai? Quais os caminhos possíveis de uma mulher que, mesmo tendo sido “agraciada” com marido e filhos, renuncia-os e vai viver em outra cidade, estabelecendo outras relações de amizade, conjugalidade e filiação? Mulher de origem incerta. Uns dizem indígena, outros, cigana. Os que ainda lembram dela, concordam apenas que tinha olhos da cor de mel e a voz tranquila. Uma família grande, com uma matriarca de memória afiada, a filha da tal cigana indígena, casou-se muito jovem, nem gostava de falar com quantos anos, mas ainda menina, com um homem mais velho, viúvo e pai de cinco filhos. Pariu mais quinze, perdeu alguns, criou 20. Quase nunca menstruou. Não tinha tempo, mas gostava de ler. Para não irritar o marido com essas coisas fúteis, sempre lia escondido as revistas que o vizinho emprestava. Mesmo assim, não parecia ter uma vida conjugal especialmente difícil, falava com ternura do marido e até com um certo desdém do seu imenso carinho com os filhos e seu péssimo hábito de chorar, quando emocionado. Já ela, não se via chorar. Ela lembrava da data de nascimento, dia da semana e hora de todos os filhos e dos mais de 60 netos, mas não lembrava da mãe. Sabia de cabeça o santo de cada dia do ano, decorou boa parte da bíblia, mas não lembrava e nunca falava da mãe. E se alguém perguntava, desconversava. Poder-se-ia dizer que a falta de memória seria natural, afinal a mãe havia ido embora quando ela e a irmã ainda eram jovens, deixando-as aos cuidados de uma tia paterna.

Mas seus filhos lembram muito bem das visitas da avó por toda a infância deles, lembram que ela morava em outra cidade, com outra família, talvez. Certa vez, contam que uma neta foi a essa outra cidade buscar as origens da avó, mas não encontrou muita coisa. Não se sabe muito. É uma não-história. Não tem fotos. Só uns fragmentos de lembranças interditadas. Interditadas sem nenhum grande esforço, sem raiva, uma interdição não-violenta, talvez para que não suscitasse nenhuma curiosidade, tampouco indignação. Talvez isso despertasse alguma admiração das netas e das bisnetas. Talvez elas começassem a duvidar do que diziam para elas o que era ser mulher. Por isso Francisca desertou de uma missão que não era sua e devia continuar sendo uma não-avó. Não-mãe. Não-esposa. Não-mulher. Na ausência do hospital, o esquecimento.

NA LUTA, A GENTE SE ENCONTRA

A análise dos compassos da Luta Antimanicomial deve ser realizada levando-se em consideração as maneiras como estamos habitando o contemporâneo, as novas formas de poder, as novas políticas de subjetivação que nele se engendram. Não se pode perder de vista a mirada da desinstitucionalização, sem seu sentido radical: um movimento de transvaloração, tendo sua radicalidade, de produção de modificações substanciais em nossa tábua de valores e, por isso, não a restringindo à mera desospitalização (Paulon, 2006). Afinal, estamos lidando com uma lógica institucional, um modo de funcionamento e de exercício de poder que fabrica corpos desviantes como corpo doentes.

Corpos infames. Lilia Lobo (2008) usa uma categoria notadamente criada por Michel Foucault para nortear uma vasta pesquisa documental da história do Brasil a partir de vidas que ela definiu como sem notoriedade, obscuras, como milhões de outras desapareceram e desaparecerão sem deixar rastro. Foram vidas detidas por uma instituição, aprisionadas pelas condições que lhe foram impostas, maldição das relações de poder. Segundo ela, sua lenda é invertida, turva, interrompida, perdida no fundo do baú das coisas inúteis. Foram corpos apagados, esquecidos, que só aparecem - quando aparecem -, nos registros e embates da captura desse poder e que não para de desdobrar para além e aquém do hospital. Ou não encontramos existências que nunca foram alcançadas por esse estabelecimento, mas que são marcadas pela lógica da tutela, da patologização e do apagamento?

Assim, abrimos mão do objetivo de produzir uma cidadania da sujeição (Carvalho, 2009) operada pelos técnicos de saúde mental: incluir socialmente os loucos e os drogadictos, fazendo-os participar e performar a tábua de valores civilizatórios. Assim, não queremos seguir incluindo para excluir, incluindo socialmente os diferentes de nós ‘civilizados’ nessa sociedade e em sua tábua de valores decadentes. Queremos trabalhar fazendo durar as perguntas: “Em que mundo queremos nos inserir”? (Rauter, 2000, p. 268). Seríamos usuários do cuidado em saúde mental que a gente oferece7?

Abrindo fissuras no mandato técnico-político de reabilitação/inclusão social, pensamos desinstitucionalização como “um processo social amplo e complexo, construído graças ao trabalho de centenas de protagonistas” (Yasui, 2010, p. 18); “uma luta pela transformação do campo da assistência, porém que se estende e compreender a luta pela transformação da sociedade” (p. 18 ); “uma luta política pela transformação social” (Yasui, 2010, p. 21); uma transformação radical nos âmbitos epistemológico, teórico, cultural, jurídico e da ação cotidiana, relativa aos modos de pensar, perceber, viver, sentir a loucura e com a loucura. Também sentimos na pele e não esquecemos: “em tempos autoritários, as condições de vida cotidiana aparecem como campo de luta” (2010, p. 29), sendo preciso “não apenas negar o manicômio, mas produzir e inventar espaços de encontro para a problematização do cotidiano” (2010, p. 71). “Mudar o mundo é nosso devir. [...] Fazer acontecer pequenas revoluções cotidianas que ousam sonhar com uma sociedade diferente” (Yasui, 2010 p. 180). Lutemos, pois, inclusive por meio de nossas pesquisas, com os pés no chão do cotidiano, olhando para baixo, para os problemas do nosso tempo, por entre espantos e encantos, como nos ensina o professor amigo Luiz Antonio Baptista. Tomemos essa posição ético-afetiva: a de onirizar a política. Com sonhos-enxada (Fonseca, 2007), desejamos a poética do cotidiano, desejamos mais realidade, viver uma realidade suplementar (Moreno, Blomkvist, & Rützel, 2001) desse nosso pindorama.

Nenhum passo atrás, ninguém vai voltar ao manicômio e se conformar com uma vida trancafiada, essa nossa vida pandêmica sem abraços, com sorrisos amarelados por trás das máscaras, em que caem as máscaras das extremas desigualdades sociais deste país. Ousemos insistir na vida...em abundância...na alegria...e alegria é sempre compartilhada. Deliremos outros mundos, por meio das frases nas paredes e na boca de usuários que pinçamos de 2021, num encontro entre telas e o chão do CAPS Jael Patrício com trabalhadoras e usuários da Rede de Atenção Psicossocial de Aracaju e com graduandos e pós-graduandos em Psicologia da UFS: “Não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade doente”; “a pior doença do mundo é a falta de amor à humanidade”. Insistimos em viver, não só em sobreviver. Na possibilidade de fins de mundos que nunca nos coube e aspiração de mundos outros, é preciso, perdoem-nos o tom panfletário, lançar-nos em abismos que nos levem para fora do império da razão ocidental, da razão que coloniza, que homogeneiza, explora e mata, é preciso inventar nossos paraquedas coloridos em meio aos abismos desses fins de mundos (Krenak, 2019).

Num país e num momento histórico-político em que se exasperam múltiplas formas de violência contra a mulher (entendida como natureza a ser controlada, explorada, conquistada), em que vivemos o colapso da naturalização de um modo de vida demasiadamente humano, pautado na dicotomia homem e natureza e numa micropolítica mortífera de produção em série de subjetividades privatizadas, os fios desse texto tentam um modo de respiro por compartilhamento: dividir o peso desses tempos mesmo que pra aliviar, tais fios germinam como um convite para “imaginar o inimaginável” (Didi-Huberman, 2017): a humanidade da vida de mulheres que vivem na rua, da vida de mulheres que não têm casa própria (espaço privado da família nuclear, privada) e desejam criar seus filhos, na rua; a humanidade da vida de mulheres que não desejam criá-los, bifurcando-se da sina mulher-mãe; a humanidade da vida de mulheres das cracolândias de cada esquina; a humanidade da vida de mulheres que não têm vagina; a humanidade das mulheres trancafiadas; a humanidade das mulheres que sujaram seus rostos do sangue de seus filhos, companheiros e irmãos mortos por uma política de extermínio da população negra e periférica; a humanidade da vida de mulheres marisqueiras que, em pleno século XXI, produzem a energia de que precisam no agenciamento de seus corpos com a lama viva no que ainda resta dos manguezais sergipanos sendo poluídos, cercados, privatizados. A humanidade das mulheres, todas e cada uma, em seus devires singulares.

Nesses tempos de brutalismo (Mbembe, 2020), os fios desse texto insistem em viver, ousando imaginar, desejando uma realidade suplementar brasileira, sonhando com mais realidade a esboçar por meio de nossas práticas de cuidado e pesquisa, com certeza e firmeza, a chegada de um tempo da delicadeza8, firmando uma posição ética-estética-clínico-político-afetiva diante dos ares desses tempos. Mbembe (2020) assinala que precisamos “responder por nossa vida com outros (incluindo o vírus) nessa terra e por nosso nome em comum”, que estamos compondo a carniça de um momento patogênico, mas também catabólico.

Na era da digitalização do mundo, não importa quanto tentemos nos livrar dessa topologia implacável (Foucault, 2013) tudo remete ao corpo e “um corpo não cessa de ser submetido aos encontros, com a luz, o oxigênio, os alimentos, os sons e as palavras cortantes – um corpo é primeiramente encontro com outros corpos (Pelbart, 2003, p. 46). Mas, parecem não importar os danos causados pelo Homem aos pulmões da terra (mata e oceanos) e ao seu próprio organismo, seguimos tentando descartar essa zona fronteiriça que é o corpo nosso de cada dia em sua condição vivente. Para tomar fôlego parece ser preciso dar passagem ao corpo, pensando-o como algo mais radical: um corpo que assume e se constitui “com os traços do outro e, com isso, às vezes até diferente de si, desprender-se da identidade própria e construir sua deriva inusitada” (Pelbart, 2019, p. 174).

Essa luta envolve, pois, abandonar, definitivamente, as estratégias biopolíticas de individualização dos corpos, pois se as críticas a esses projetos de vida capital não foram suficientes, o mundo pandêmico as derreteram, impondo uma realidade em que o indivíduo pode até sobreviver com seus cuidados pessoais, mas sem coletivizar o cuidado, não há saída. Assumir essa topologia: humano, corpo vivente, que se constitui no encontro com outros viventes, não só humanos. “Com que sangue foram feitos nossos olhos” (Haraway, 1995, p. 25) de pesquisadoras da subjetividade? Imaginar um mundo delicado, afeito aos encontros; com os olhos de um perspectivismo cosmológico, respirar-pensar-cultivar-cuidar esse um mundo outro, pelo revolver dessas terras do presente: “perdemos a conexão por ouvir a voz da falsa razão” (Ferro & Queiroga, 2019), é chegada a hora de ouvir a grande razão do corpo, e corpo é primeiramente encontro com outros corpos: com o ar, os cheiros, os sabores, as palavras, eu, corpo do mundo.

Financiamento

Financiamento CNPq.

Consentimento de uso de imagem

Não se aplica.

Aprovação, ética e consentimento

Não se aplica. Pesquisa desenvolvida por meio de fragmentos de memórias (das autoras) do vivido no campo da saúde mental.

2Alguns fios dessa história foram costurados também por meio do texto de Antonio Samarone, contemporâneo de Jacinta, “Os subterrâneos da Psiquiatria em Sergipe, minha homenagem tardia a Jacinta Passos”, que circulou no WhatsApp em 2020.

3Música composto por Flaira Ferro e Ylana Queiroga, que se encontra no álbum de Flaira “Virada da Jiraya” de 2019.

4Mais detalhes sobre Apoio Institucional, ver Vasconcelos e Morschel (2009).

5Grupo de pesquisa do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia. Projeto de pesquisa “Articulando experiências, produzindo sujeitos, incluindo cidadãos: um estudo sobre as novas formas de cuidado em saúde mental na Bahia e em Sergipe”, aprovado no edital MCT – CNPq/MS-SCTIE – DECIT/CT – Saúde 2005.

6Inspiradas na composição de Alice Ruiz e Arnaldo Filho, que compõe o álbum Um som de Arnaldo Antunes (1998).

7Pergunta feita por Emerson Merhy, numa mesa redonda, não nos lembramos em que ano, mas que era momento de educação permanente na Secretaria de Saúde de Aracaju.

8Todo sentimento, composição de Chico Buarque: “Depois de te perder, te encontro com certeza, talvez no tempo da delicadeza”.

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Recebido: 09 de Agosto de 2021; Revisado: 25 de Julho de 2022; Aceito: 16 de Julho de 2022

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