Cógito
ISSN 1519-9479
Cogito v.3 Salvador 2001
EDITORIAL
O que é um pai? A clínica psicanalítica, desde Freud e cada vez mais, nos traz as interrogações de pais sobre o melhor modo de educar seus filhos, remetendo-nos a uma certa vacilação que permeia o exercício eficaz da função paterna. Ser um pai não se confunde com ser o pai. O pai biológico aqui só conta na medida em que assume essa função. E isso não acontece como efeito da modernidade.
“O nascimento de um romano não é apenas um fato biológico. Os recém-nascidos só vêm ao mundo, ou melhor, só são recebidos na sociedade em virtude de uma decisão do chefe de família;... Em Roma um cidadão não “tem” um filho: ele o “toma”, “levanta” (tollere); o pai exerce a prerrogativa, tão logo nasce a criança, de levantá-la do chão, onde a parteira a depositou, para tomá- la nos braços e assim manifestar que a reconhece e se recusa a enjeitá-la.” ( Philippe Ariès e Georges Duby, – História da Vida Privada – São Paulo: Companhia das Letras,1989, pág. 23)
Entretanto, olhando a evolução histórica da família e da sociedade percebemos uma mudança cada vez mais acelerada dos padrões das relações familiares, que evolui no sentido de uma indefinição de funções cada vez maior. Neste percurso podemos discernir um declínio do poder do pai que faz o exercício dessa função cada vez mais problemático, na medida que as figuras que a encarnam (pais, governantes, etc...) são destituídas de seu valor de eficácia.
Efeito direto do remanejamento da posição da mulher a partir das conquistas feministas, a indiscriminação das funções parentais pode ser um dos fatores aí implicados.
A ciência criou a “mãe primeva”, a “mãe gozadora”, – numa aproximação ao pai de “Totem e Tabu” – dando à mulher o lugar do Um, quando elimina o pai da concepção, quando inaugura a reprodução assexuada na espécie humana. A encarnação da “mãe fálica”, não barrada. Se antes a autoridade paterna encarnada no homem era investida de insígnias masculinas, fálicas, pela mulher, hoje com muita facilidade elas o questionam, disputam com ele a função e lhe usurpam o lugar, sempre que ele torna isto possível. A ciência colabora na criação das produções independentes.
Esta revolução causada pelo discurso da ciência nos coloca várias questões. A palavra da mãe e seu lugar nesse discurso estão preservados e ainda sofrem um destaque. E o do Pai?
Quem ou, como poderá produzir-se o contraponto a esse desejo da mãe – tão importante na constituição da subjetividade, – a partir de uma “mãe toda” poderosa? Que lugar haverá nesse discurso para o desejo de um pai? Ou ainda, que lugar pode haver nesse discurso para qualquer outro desejo que não o da mãe? Como se construirá a metáfora paterna, se não há fenda que permita relativizar a lei do gozo materno? Provavelmente com, no mínimo, uma facilidade a mais para franquear o caminho rumo à psicose, ou pelo menos ao da perversão e das adições.
Esse enfraquecimento do exercício da função paterna, sua diluição e declínio, tem sido apontados pela psicanálise como a origem do sintoma da civilização de nossos tempos: a toxicomania, assim como poderíamos ver também aí a explicação para uma série de fenômenos sociais de fundo perverso.
Sabemos com Freud que a perversão está no rastro da civilização assim como o mal estar, mas talvez possamos, com vistas à clínica e a partir mesmo destes pontos cruciais, situar um pouco o dilema do pai em sua função nos nossos dias.
Os trabalhos desta edição concentram-se, em sua maioria, nessa temática que foi explorada pelos membros do Círculo em seminários e palestras ao longo do ano e na XII Jornada realizada em dezembro de 2000.
Cibele Prado Barbieri