Cógito
ISSN 1519-9479
Cogito v.3 Salvador 2001
FUNÇÃO PATERNA
O lugar do pai na teoria freudiana*
José Euclimar Xavier de Menezes**
Faculdade Ruy Barbosa
Universidade Católica
Que lugar ocupa a representação do pai na Teoria freudiana? Seu espaço é central, determinante, articulador de toda a reflexão que a psicanálise freudiana articula. Senão vejamos.
Comecemos do marco zero desta Teoria, da famosa pré-história da psicanálise, datada nos fins do século XIX. Nesse momento, Freud desenvolve uma série de reflexões que nomeia de Teoria da Sedução. O que isso quer dizer?
Sabemos bem que o fenômeno patológico que ocupa de forma privilegiada a mente de Freud nesse período é a histeria. E sua grande inquietação é a seguinte : é lógico compreender a repressão psíquica da dor. Qualquer organismo vivo foge da dor como o diabo da cruz. Porém, como compreender a repressão do prazer? Afinal, é com esse mecanismo que a histeria se instaura.
Emmy von N . Lucy R., Katarina, Elizabeth von R., Emma: todos esses casos clínicos constitutivos dos esforços teórico-clínicos de Freud põem, num primeiro plano, a representação psíquica de um tio que se transmuta em pai gradativamente, como figura real desencadeadora de uma experiência sexual que ira traumatizar a criança. Vale a pena seguir a constatação constrangedora que Freud é forçado a fazer a propósito do núcleo da histeria: seriam todos os pais sedutores dos seus filhos? A experiência erótica de prazer que as histéricas escamoteiam com as suas lembranças encobridoras, foi de fato inauguradas por seus pais?
Sabemos hoje o quanto foi sofrível para o próprio Freud realizar esse percurso. As cartas dirigidas a Fliess se constituem num bloco de documentos que nos oferece o inventário de sua solidão e do seu constrangimento frente às sucessivas aproximações da verdade que a histeria ia lhe apresentando.
Na angustia daqueles dias, parecia absurdo que o trauma psíquico que determina a histeria tivesse um estofo sexual e que isto, do ponto de vista da realidade, fosse engendrado pelos pais. No final das contas, nos idos de 1896, Freud postula :
“Até conjeturo que as tão freqüentes invenções de atentados a que costumam se entregar as histéricas são inventos compulsivos que partem da marca mnêmica do trauma infantil.”1
No esforço para solucionar o problema teórico da histeria que diz respeito à repressão ao prazer2 , Freud esboça na carta de 6 de Dezembro de 1896 a idéia de complexidade psíquica. É o nuançamento desta idéia que vai encaminhar a solução para o problema do valor atribuído ao discurso histérico. Acompanhemos os movimentos da carta que, por si, dão conta dos novos caminhos que estão se abrindo para o objeto psicanalítico, o psiquismo, dando-lhe cidadania enquanto fator causador das doenças nervosas.
No texto, a complexidade psíquica é apresentada por meio de uma metáfora extraída da arqueologia, a saber, a estratificação:
“... estou trabalhando na hipótese de que o nosso mecanismo psíquico tenha se formado por um processo de estratificação: o material presente sob a forma de traços mnêmicos fica sujeito, de tempos em tempos, a um rearranjo, de acordo com as novas circunstâncias – a uma nova retranscrição.”3
O que revela esse trecho? Recordemos que na Teoria da Sedução, o trauma psíquico era um compósito que se desdobrava no mínimo em duas cenas (naquele contexto aludia-se que a multideterminação do sintoma estaria colada a uma sucessão de ocorrências justapostas no interior do psiquismo).
Nestes novos ventos teóricos, esta possibilidade torna-se uma exigência e pode ser tripartida do seguinte modo: 1. A memória não se faz de um só golpe, mas de uma sucessão de registros; 2. Tais registros são passíveis de sofrer uma reordenação temporal (ou seja, começa a ganhar corpo a idéia de fases psíquicas pelas quais o sujeito humano passa); 3. Esses arranjos temporais são realizados a partir de circunstâncias, ou seja, a partir das aquisições realizadas por cada fase psíquica.
Essa guinada na perspectiva da atribuição de valor ao discurso histérico e, em última instância, da legitimidade do psiquismo como uma realidade competente na instauração de estados psíquicos inova na medida em que centra a sua atenção não mais exclusivamente na facticidade ou historicidade das experiências narradas no espaço da clínica. Muito simplesmente: não é a fidelidade factual da cena que mais interessa agora4 .
Em contrapartida se acentua o valor atribuído às elaborações que resultam dos arranjos constantes dos extratos psíquicos, mesmo que nestes arranjos a transparência5 dos fatos não seja a resultante e, portanto, se afigure como distorção de ocorrências, mesmo assim elas encerram uma verdade. E mais que tudo: na nova hipótese metapsicológica essa produção intestina não é um corpo estranho internalizado (como o era na teoria da sedução), mas uma derivação do desejo, parte integrante da própria estrutura psíquica humana.
Como se afigura o psiquismo, nesta nova concepção, mediante a qual a complexidade dos processos psíquicos pode ser concebida em sua plenitude? Na trilha do fio condutor que perseguíamos, como justificar que as neuroses resultem da repressão ao prazer?
A saída freudiana é supor uma estrutura complexa do psiquismo. De acordo com ela, y teria ao menos três registros diferentes:
1. Um primeiro que se ordena de elementos derivados da percepção, caracterizado pelo predomínio da lei da simultaneidade. Vale dizer, é a instância psíquica que recebe os impactos como aparecem: mesmo díspares, alheios, diferentes, ao se apresentarem para esta instância ao mesmo tempo, aí se inscrevem como parceiros. Outra característica é a absoluta inacessibilidade da consciência a este “caldeirão” das derivações psíquicas;
2. Freud nomeia Unbewusstsein a segunda instância psíquica. Ela se ordena mediante relações causais, o que significa estabelecer no interior de y um topos no qual a intenção, a despeito das aparências do sintoma, por exemplo, é o elemento privilegiado para engendrar os processos psíquicos6. Nessa medida eles são o efeito ao qual corresponde uma causa. Não são ocorrências aleatórias, mas obedecem a uma deliberação causal. Esse sistema também é inconsciente.
3. O terceiro registro é o Vorbewusstsein. Ele se caracteriza por estar vinculado à representação de palavra. A esta instância corresponde o “eu”. Suas produções não são conscientes a priori, mas são passíveis de consciência se certas regras são obedecidas. Neste ponto, Freud indica o que a nós cabe pôr em relevo:
“... e essa consciência secundária do pensamento é posterior no tempo e, provavelmente, está ligada à ativação alucinatória da representação de palavra, de modo que os neurônios da consciência sejam também neurônios perceptivos e desprovidos de memória em si mesmos ”7
O trecho segreda alguns elementos que vale a pena evidenciar já que se referem a uma justificativa teórica das produções psíquicas: em primeiro lugar que a consciência é uma produção derivada de forças inconscientes e que, do ponto de vista cronológico, é uma aquisição posterior a todo processo. Se quisermos, o eu pouco determina no engendramento dos processos psíquicos, melhor seria dizer, o trabalho do eu aparece na reta final de todo o trabalho psíquico como resultante deste próprio processo.
Mas não é só: esta ordem da consciência liga-se à animação alucinatória da representação de palavra8 que surge na finalização do processo psíquico, quando da exigência da comunicação. Mas em sua totalidade esse processo se faz mediante uma complexa estrutura psíquica inconsciente, que ao engendrar as suas produções dispensa uma ordem consciente. Aliás, a força da consciência secundária é extraída do processo psíquico inconsciente. Nos termos freudianos: os processos primários engendram os secundários.
Frente a esta nova estrutura do aparato anímico indaga-se: o que determina os processos patológicos? No rastro da complexidade psíquica Freud supõe um maior nuançamento dos processos que ali se efetivam: em cada fase da vida se realiza uma configuração, um registro que comporá o acervo mnemônico do indivíduo. As fases se sucedem e tal fato exige um rearranjo das configurações anteriores: os registros daquelas fases deveriam estar presentes nas fases posteriores (qual caleidoscópio que sob um dado movimento realiza uma nova ordenação) reconfiguradas nos arranjos próprios da nova fase.
Entretanto, no caso das patologias, essa conformação nova do registro (a qual Freud nomeia de retranscrição) não se efetiva, o que implica que a excitação seja:
“... tratada de acordo com as leis psicológicas vigentes noperíodo psíquico precedente e seguindo as vias abertas naquela época. Assim, persiste um anacronismo...”9
Aqui temos explicitada a estrutura do recalque. Seu mote está radicado na liberação do desprazer ocasionado pela transcrição de elementos de um registro anterior no atual. Isso se verifica acentuadamente no caso da vida sexual: houve uma excitação, mas seu registro não compreende nenhum sentido na infância10 . Na reativação desta lembrança, um desprazer é produzido em intensidade não controlável, não inibível.
“Portanto, um evento sexual de uma fase, atua na fase seguinte como se fosse um evento atual e, por conseguinte, não é passível de inibição. O que determina a defesa patológica (o recalcamento), portanto, é a natureza sexual do evento e sua ocorrência numa fase posterior.”11
Essa mesma fórmula se aplica sobre as ocorrências prazerosas. Ao serem reproduzidas provocam uma descarga ligada ao prazer: deste modo temos uma compulsão. Mesmo que esta ocorrência seja re-evocada em uma fase que a torna impertinente e anacrônica, ela se efetiva porque as metas psíquicas estão aí contempladas em seu caráter absoluto. No dizer de Freud:
“... quando uma experiência sexual é recordada numa fase diferente, a descarga de prazer é acompanhada por uma compulsão, e a descarga de desprazer, pelo recalcamento.”12
O que se verifica é que tanto no caso do desprazer, como no do prazer, o psiquismo se recusa a atualizar os elementos de memória. Em assim procedendo, as referências coladas sobre as aquisições das novas fases ficam alijadas dos processos psíquicos. Em última instância, em quaisquer dos mecanismos se evita o desprazer que ocorreria caso uma tradução fosse efetivada. Manter vivas em contextos diversos as constelações de memória constituídas numa fase pretérita cumpre o duplo papel de oferecer ao psiquismo a repetição do prazer e a evitação de um desprazer.
Nesse novo contexto teórico das elaborações freudianas, as idéias que se seguem apontam para a complexidade com que são contemplados os sistemas e os processos psíquicos: 1. Múltiplos sistemas que cumprem um papel determinante na morfologia patógena; 2. Inscrições múltiplas condicionadas pelas fases do desenvolvimento humano; 3. Comércio dessas inscrições entre os sistemas nomeados por Freud de transcrições; 4. Anacronismo decorrente de uma transcrição não efetivada num novo contexto; 5. Coabitação de um duplo registro: o recalcado e o seu substituto (aquele que é mais ou menos fidedigno à cena de sedução e aquele derivado deste, que alucina a sedução e produz uma constelação psíquica, uma realidade para além do factual, a fantasiosa) numa dada fase psíquica. Essa complexidade exibe uma operação própria do aparato anímico, que apoiado nos elementos registrados da realidade (externa) reordena e reinventa novas formas de registro, o que implica conceber como atuante e de forma privilegiada uma realidade psíquica (interna) que altera o registro mais primitivo.
“Fico muito satisfeito, porém, com a recepção dada às minhas fantasias. Sei que você as coloca no lugar certo, investiga estes pontos de vista um pouco mais e não me encara nem como um devaneador, pelo fato de eu comunicar essas coisas incompletas, nem como tolo, que, por essa razão, acredita estar acima da investigação minuciosa e da correção. Trata-se de sínteses e “working hypothesis”, que podemos trocar um com o outro sem preocupação.”13
É deste modo que Freud se dirige a Fliess em 17 de Dezembro de 1896 qualificando seu trabalho com o material psíquico como sendo da ordem da fantasia. Mas esta idéia da fantasia aplicada ao próprio trabalho (e não somente ao material inventariado pela clínica e elaborado metapsicologicamente), tem duas referências negativas: 1. Não se refere ao devaneio delineado no embate com os casos clínicos, isto é, seu esforço intelectual não se inscreve na ordem das produções psíquicas desprovidas de controle, mas, longe disso, é algo que as evidências da clínica incitam a pensar com uma certa lógica que as ordena e justifica14 ; 2. Que não se trata de um trabalho improfícuo e tolo como pretenderam Kraft Ebing15 , Meynert16 e agora Breuer17 , mas de um esforço absolutamente necessário e pertinente frente ao esgotamento da neurologia18. Esse trabalho flagra realidades impossíveis de serem registradas pelas lentes laboratoriais.
Por outro lado, esse esforço tem uma referência positiva: ele se inscreve no seio de uma “investigação minuciosa e de correção”. Em outros termos: é um esforço científico extra cânon ortodoxo. Entretanto, rigor e validade do resultado observado tornam pertinentes as construções teóricas agora oferecidas a esse universo das psicopatologias.
Todo esse percurso teórico aqui rastreado mostra que Freud supera sua desconfiança relativamente ao grau de verdade que habita o discurso histérico. Trata-se de uma verdade o atentado dos pais à inocência de suas filhas? Descentrando o foco deste ponto Freud faz emergir o problema da natureza da verdade deste mesmo discurso: o que diz a histérica, ou o que esse dizer porta?
“... adquiri uma noção segura da histeria. Tudo remonta a reprodução de cenas do passado. A algumas se pode chegar diretamente, e a outras por meio de fantasias que se erguem à frente delas. As fantasias provêm de coisas que foram ouvidas, mas só posteriormente entendidas, e todo o material delas, é claro, é verdadeiro. São estruturas protetoras, sublimações dos fatos, embelezamento deles e, ao mesmo tempo, servem para o alívio pessoal.”19
E mais adiante, nesta carta de dois de Maio de 1897 acrescenta:
“Apercebo-me agora de que todas as três neuroses (histeria, neurose obsessiva e paranóia) exibem os mesmo elementos (ao lado da mesma etiologia), quais sejam, fragmentos de memória, impulsos (derivados das lembranças) e ficções protetoras; mas a irrupção na consciência, a formação de solução de compromissos (isto é, sintomas), ocorre nelas em pontos diferentes. Na histeria são as reminiscências, na neurose obsessiva os impulsos perversos, na paranóia as ficções protetoras (fantasias) que penetram na vida normal, em meio a distorções devidas a solução de compromisso.”20
A morfologia das psiconeuroses exibe deste modo a operatividade psíquica: ela sempre se dá mediante desvios, deslocamentos, distorções, fantasias (e no caso patológico, que é o que aqui nos interessa, nunca direta e transparentemente). Nessa medida, a fantasia enquanto estratégia psíquica é concebida negativamente: ela distorce os resíduos que o psiquismo registra e graças a uma tal distorção não se pode a eles acessar fidedignamente. Em outros termos: a concepção de fantasia ainda não recebeu o estatuto de categoria psicanalítica; contudo, já se concebe o modo imperativo de funcionamento do psiquismo: ele se processa dando saltos qualitativos na composição ou configuração psíquica, exibindo uma ordem do real entrançada pelos vestígios de memória e pelas criações ficcionais que daí despontam efusivamente.
Mas é, sobretudo com a carta de 21 de Setembro de 1897 que assistiremos Freud sedimentar a idéia de que a sua investigação não é do tipo Sherlockholmiana21 , isto é, pautada na perseguição exclusiva dos indícios da factualidade. Afinal, trata-se de uma verdade constatada a invasão da sexualidade do adulto no mundo infantil? A própria natureza do seu objeto investigativo lhe exige uma outra operatividade para que possam ser compreendidos os processos efetivados no aparato anímico.
O elenco das decepções com a teoria da sedução já foi inventariado à exaustão pelos historiadores da psicanálise22 . À guisa de contextualização, apontemos as ordens dessas decepções para nos centrarmos naquela que nos interessa: 1. A primeira decepção diz respeito ao método. A análise psíquica em nenhum dos casos clínicos permitiu aportar no factual. O que implica reconhecer que os discursos das psiconeuroses nunca permitiram compor um quadro que legitime a identidade entre vivência e recordação. 2. A outra diz respeito à hipótese estatística: atentados de adultos sobre crianças ocorrem, mas para que se constituam em causa das patologias é necessário que sejam universais. Em outras palavras, todos os pais precisariam seduzir os seus filhos. Ora, isso contraria o bom senso. 3. É a decepção de ordem metapsicológica que permite elaborar conceitos de outro modo impensáveis:
“...não há indicações de realidade no inconsciente, de modo que não se pode distinguir entre a verdade e a ficção que foram catexizados pelo afeto (por conseguinte, restaria a solução de que a fantasia sexual se prende invariavelmente ao tema dos pais).”23
4. E ainda: na psicose se constata que o registro inconsciente é inacessível pela consciência.
A questão que problematiza a origem do desejo recebe com o item três um acréscimo que clarifica os processos psíquicos: no registro inconsciente não se inscrevem signos de realidade. Disso Freud já desconfiava e, em certa medida, já o afirmava na carta 112.
O que ali se inscreve então? É o discurso psiconeurótico que vai responder ao questionamento: aquilo que o inconsciente forja de seu pela incitação do afeto. Por exemplo, no seu discurso a histérica encobre uma erótica entredita, porque interditada. Ao se expressar, seu discurso expõe uma sedução que em seu escamoteamento deve ser traduzido por um desejo de ser seduzida. No fundo a “expressividade patógena” isola o que está disperso na vida normal. O próprio Freud pode ser paradigma dessa constatação:24
“Descobri, também em meu próprio caso, o fenômeno de me apaixonar por mamãe e ter ciúme de papai, e agora considero um acontecimento universal do início da infância, mesmo que não ocorra tão cedo quanto nas crianças que se tornam histéricas.”25
A despeito do impasse da universalização (que aponta para a imergência do desejo somente nas crianças que se tornam histéricas) Freud já dá passos significativos no reconhecimento de sua origem. Experimentamos na tenra infância transitar o triângulo amoroso constituído pelo tripé pai-mãe-filho. E os dois primeiros suportes desta tríade se constituem no ponto de apoio e de partida para o trabalho da fantasia que, originariamente, é edipiana:
“... a lenda grega capta uma compulsão que todos reconhecem, pois cada um pressente sua existência em si mesmo. Cada pessoa da platéia foi, um dia, um Édipo em potencial na fantasia, e cada um recua, horrorizado, diante da realização de sonho ali transplantada para a realidade, com toda a carga de recalcamento que separa seu estado infantil do estado atual.”26
A tragédia grega faz uma suspensão da vida ordinária, e no espaço extraordinário teatral, mobiliza os espectadores ao reconhecimento (ainda que exteriorizado nos personagens) da realização do desejo que cada um porta.
Esse desejo, reiteremos, se ancora na memória da experiência de prazer que um dia tivemos. Essa experiência de prazer passa, necessariamente, pela corporeidade, isto é, pelas zonas erógenas. Não nos compete desenvolver o vínculo entre memória e zonas erógenas, mas mantenhamos viva a lembrança de que a noção de complexidade psíquica envolve também a concepção de fases da vida nas quais, do ponto de vista biológico, se privilegia uma dada parte do corpo como o lócus onde as sensações ganham vulto e incitam as inscrições psíquicas.
Levantar a questão da origem do desejo é, em primeiro lugar, apontar para este lugar parceiro do biológico, o psíquico, mediante o qual se processa o desejo humano. A natureza desta produção, já o indicamos, é psíquica, o que significa dizer que: 1. A representação tem primazia frente à sensação na perspectiva anímica; 2. A representação é mais forte que a sensação, dado que a re-evocação supõe uma experiência antecedente que, do ponto de vista qualitativo é inócua, e só se torna operante posteriormente, quando da atribuição do sentido a esta vivência; 3. Mediante a representação a memória se constitui (e a memória é inconsciente e assegura a vida); a representação tem o estatuto de produção real psíquica.
“A liberação da sexualidade (como você sabe, tenho em mente uma espécie de secreção que é justamente sentida como o estado interno da libido) é promovida, portanto, não só 1. Através da estimulação periférica dos órgãos sexuais, ou 2. Através das excitações internas provenientes desses órgãos, mas também 3. Das idéias, ou seja, dos traços mnêmicos – logo, também, por intermédio da ação retardada.”27
O psiquismo dá existência a realidades que não têm propriamente materialidade. Tais realidades são as fantasias. Se antes elas eram o negativo do real material, agora elas se apresentam como forma específica de expressão da realidade psíquica.
Nessa perspectiva, Édipo resulta dessa atividade. A um só tempo ele subsume um duplo aspecto: o de ser produto de um processo (edipianamente falando, mãe e pai não são correspondentes idênticos das figuras reais históricas) apoiado (e desencadeado a partir de) em funções biológicas, das quais se torna independente; o de ser um elemento estruturante dessa fábrica de fantasias que é o aparato anímico, mediante o qual o humano dá identidade e legitimidade aos seus produtos, que num só tempo se apóia na realidade, mas dele se destaca produzindo realidades psíquicas.
Nessa medida a fantasia implica uma positividade, pois por seu intermédio o universo propriamente humano é instituído.
Pode-se afirmar que uma aproximação está sendo realizada no interior do itinerário freudiano entre o psíquico e o real. Desta aproximação emerge a concepção de realidade psíquica. Sobre ela não se aplicam adequadamente as categorias que tentam extrair-lhe uma facticidade e uma historicidade exclusivas. Esse não é o foco exclusivo mesmo no contexto da teoria da sedução (Não nos esqueçamos do núcleo das noções de cena, trauma e posterioridade. Num dado hiato, a alma opera e de sua operatividade surgem os seus produtos. Se naquele contexto ainda não contemplamos uma certa relativização no que diz respeito à realidade factual, com o advento do Complexo de Édipo essa relativização é encetada e o privilégio da perspectiva freudiana deslocado de lugar).
As questões mais pertinentes não se situam, portanto, na verificação detetivesca, material, factual. A valoração do discurso, a escuta analítica vão se justificando do ponto de vista metapsicológico justamente porque formula as questões: O que as fantasias portam? O que elas são em si próprias? Para qual realidade apontam?
Tudo isso nos conduz, enfim, na direção da constatação do lugar ocupado pela representação paterna na Teoria Freudiana que se exforça por explicar o funcionamento psíquico. Na referência a esta representação, o aparato psíquico processa, realiza, recalca desejo.
Esse , podemos afirmar, é o momento zero da Teoria Freudiana. Sabemos que a concepção edipiana do aparato psíquico vem introduzir um sem numero de vividades que exigiriam de nos uma outra reflexão, postergada para um momento mais oportuno. Assim como o esforço freudiano em 1913 para dar conta da universalização dos processos psíquicos, supondo uma horda destinada a ser clã, de cujo processo a figura paterna também é central. Mas esses dois passos requerem uma reflexão mais demorada e complementar desse primeiro, dado modestamente aqui, neste espaço.
* Esta conferência foi apresentada na XII Jornada do Círculo Psicanalítico da Bahia, em novembro/2000
** Psicanalista, Especialista e Mestre em Psicanálise e Doutor em Filosofia pela Unicamp, pesquisador do CNPQ da PUC/SP (1995-1999), atualmente Professor da Faculdade Ruy Barbosa e Universidade Católica
1 FREUD, S. “Novas Pontuações sobre as Neuropsicoses de defesa”. SE Vol.III
2 É o automatismo promovido pela quantidade a explicação fornecida por Freud para a repressão ao prazer. Tal repressão não seria fruto de um conflito, dado que o modelo psíquico construído até o “Projeto de uma Psicologia” soluciona a fuga da dor e a busca do prazer. E ao falarmos em automatismo pomos em relevo a incompatibilidade teórica da intencionalidade, já reconhecida a nível clínico.
Três cartas podem ser mencionadas como preparatórias da guinada que Freud está por dar: em 15/10/95 (“Correspondência deFfreud à Fliess” Assoun, P.L. Imago Ed. 1985 p. 145) ele remata a defasagem entre a prematuridade biológica e psíquica: ocorrências sexuais podem se dar antes da puberdade, e suas consequências só se tornam efetivas a posteriori. Assim, a histeria decorreria de um trauma sexual pré-sexual e a neurose obsessiva de um prazer sexual pré-sexual; em 31/10/95 (“Correspondência...” pp. 148/9) se dilui a diferença entre quantidades interna/externa. Tudo o que afeta o psiquismo vem de dentro, é interno; em 08/12/95 (“Correspondência...” pp. 155/6) ganha força a idéia de oposições representacionais, fator decisivo para que se firmem as idéias de intencionalidade dos atos psíquicos, de defesa psíquica, de repressão ao prazer.
3 «Correspondência...» p. 208 {Carta de 6/12/1896}.
4 MASSON, J.F. “Atentado à Verdade”. Ed. José Olympio. (1984). [Vale a pena questionar se no texto indicado o autor entendeu essa questão no seio do pensamento freudiano quando tenta, forçosamente, atribuir-lhe um sentido jornalístico-criminal, na sua terminologia nomeada de scherlockholmiana].
5 Chamamos transparência o transporte da vivência pela via da recordação: na expressão desta última, não importa mais questionar se tal ocorreu, como ocorreu.
6 Embora não seja o nosso problema mostrar como o inconsciente é o topos da intencionalidade e do estabelecimento das relações causais no psiquismo, é relevante salientar que as características que Freud está atribuindo a este sistema solidificam a concepção de que ele é o determinante dos atos psíquicos. Quais são estas características? O material presente no inconsciente representa legitimamente as pulsões; o processamento desses conteúdos se efetiva obedecendo aos moldes primários de realização de desejo; são eles (os conteúdos inconscientes) que, privilegiadamente, recebem o trabalho da censura do Pré-Consciente. Deste modo, sintoma, sonho, ato falho e até mesmo a religião não são produções estranhas a essa espécie de usina do desejo. Antes, ligam-se causal e intencionalmente a tal sistema.
7 “Correspondência...” p. 209.
8 Desde o “Projeto...” a consciência pode surgir no interior de um dado processo psíquico por uma dupla via: a via perceptual e a via da palavra. A consciência perceptual não garante a substituição do processo primário pelo secundário. Isto seria tarefa da segunda consciência, função atribuída à representação de palavra. Por exemplo, o grito quando pensado como ato intencional, ao reproduzir sons apreendidos do objeto auxiliar na experiência de satisfação (ou do objeto hostil na experiência de dor), por se inscrever no circuito comunicativo, por estabelecer com o outro uma relação de intenções, se torna critério para a primazia do processo secundário. Mas tal critério (linguístico) não afasta de modo absoluto a alucinação, veremos logo mais em que caso.
9 «Correspondência...» p. 209.
10 É assim que se justifica o discurso truncado da histérica. As razões que ela fornece ao seu comportamento bizarro são igualmente bizarras, ilógicas, injustificadas.
11 «Correspondência ...» p. 210.
12 Ibid.
13 Ibid p. 216 {Carta de 17/12/96}.
14 Freud pretende estar fazendo ciência. E o pensar científico é, metapsicologicamente falando, o mais acertado (lógico) de todos segundo ele.
15 GAY, P. «Freud, uma Vida para o nosso Tempo». p. 100 Companhia das Letras Ed. (1989). [O autor qualifica a importancia atribuida à sexualidade na etiologia das neuroses, descoberta por Freud, por diversas personalidades da época].
16 JONES, E. «A Vida e a Obra de Sigmund Freud» Vol. I. p.300 Imago ED. (1989); ROUDINESCO, E. Os Cem Anos da Psicanàlise na França. p.48. [apontam para a semelhança entre as posturas de Meynert e de Kraft Ebing].
17 Resistente e descrente relativamente as evidências das suas e das descobertas do parceiro de pesquisa. Vide «Correspondência...» p. 218.
18 Freud afirma – desde «A interpretação das Afasias: um estudo crítico». Ed. 70 Série Persona. Portugal (tradução portuguesa da tradução italiana de 1977) – que o trabalho da neurologia está completo (P.41 – Veja-se, dentre tantas demonstrações, o esforço de diferenciar afasias decorrentes de lesão e aquelas outras, que mais lhe interessam, de natureza funcional). O confirma ROUDINESCO, E. Op. Cit. p.47.
19 «Correspondência...» p. 240 {Carta de 02/05/1897}.
20 Ibid.
21 Muito embora MASSON o pretenda assim em “Atentado... “, citado acima, nota 63].
22 MONZANI, L. R. Freud, o movimento de um pensamento p.41 Ed. Unicamp 1989.
23 «Correspondência...» p. 266 {Carta de 21/09/1897}.
24 RIEFF, P. “Freud, the mind of the moralist” pp. 39/50 University of Chicago Press (1979), demonstra como Freud, com seu próprio exemplo, cristaliza nuanças do drama humano, daí poder ser tomado como representativo.
25 «Correspondência...» p. 273 {Carta de 15/10/1897}.
26 Ibid.
27 Ibid (Carta de 14.11.1897) p. 280.