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Cógito
versão impressa ISSN 1519-9479
Cogito v.4 Salvador 2002
HISTÓRICO
Círculo Psicanalítico da Bahia – trinta anos: marco da psicanálise na Bahia*
Virgínia Lúcia S. Brito Galvão**
Voltando à origem, vamos até Viena - 1934, trazendo um breve histórico. Nesse período, o clima anti-semítico em Viena ameaçava a comunidade judia; Freud sendo judeu transfere-se para Londres em 1938 e a maioria dos seus discípulos se dispersa logo que a guerra se inicia.
Igor Caruso, russo de nascimento, católico e psicólogo por formação, permanece em Viena durante a guerra onde travou conhecimento com o grupo de estudos do “Instituto Imperial para Investigação Psicológica e Psicoterapia”, iniciando análise didática com Augusty Aichhorn, trocando mais tarde para Vicktor von Gebsattel, sem nenhuma ligação especial com as escolas correntes. Caruso atuava como professor da Universidade de Viena e realizava, em paralelo, seminários com a proposta de “repensar Freud a partir de suas origens”. Inicialmente tratava-se de um grupo de estudos da teoria e prática psicanalítica, sem objetivo institucional, congregando freudianos ortodoxos, adlerianos, junguianos e outras pessoas como Caruso que não pertenciam a nenhuma dessas escolas, sendo muitos deles analisados por freudianos. Nessa época, a ortodoxia que imperava no meio psicanalítico, não proporcionava espaço para discutir com liberdade a doutrina freudiana, nem voltar às origens para repensar Freud como desejava Caruso. A leitura questionadora e dialética desses seminários passa a ser muito procurada, expandindo-se e fazendo surgir na fase final da segunda guerra mundial o Círculo de Psicologia Profunda de Viena (WATP - WIENER ARBEITSKREISE FUR TIEFEN PSYCHOLOGIE). Por iniciativa de Igor Caruso constituiu-se formalmente em 1947, como junta de pesquisas particulares, à qual cabia a tarefa de desenvolver as noções de psicologia profunda e seu emprego na educação, psicologia prática, medicina, sociologia, dentre outras.
Nesse período, a Associação Psicanalítica Internacional (IPA) era a instituição oficial, considerada detentora do saber psicanalítico opinando até sobre a bibliografia a ser lida. A IPA mantinha dois núcleos no Brasil sediados em São Paulo e Rio de Janeiro. Caruso não aceitou esse patrulhamento, sua proposta de repensar Freud era inconciliável aos objetivos uniformizantes na formação analítica, valorizando as divergências no processo de criação intelectual. Sendo ele um grande pensador não tinha a pretensão de impor seus conceitos, criticava um possível “grupo carusiano”, reafirmando que a psicanálise está em Freud. “Caruso caracterizou-se pela fidelidade a Freud e pela concepção de liberdade na construção da trajetória intelectual de cada pessoa.” (citação de Carlos Pinto em entrevista ao jornal do CPB, outubro, 1993)
A psicanálise é retomada e revitalizada após o término da segunda guerra. O trabalho do Círculo de Psicologia Profunda de Viena também alargou suas fronteiras com a abertura de várias filiadas na Áustria, e posteriormente em outros países. No Brasil, Malomar Lund Edelweiss, Reitor da Universidade Católica de Pelotas e Gerda Kronfeld, médica, mantinham laços de amizade e a partir do interesse comum pela psicanálise e informações sobre o trabalho de Caruso, resolveram se deslocar até Viena onde permanecem por algum tempo para fazer formação psicanalítica com Igor Caruso.
Após concluírem análise didática e estudo da teoria psicanalítica no Círculo de Viena, Gerda e Malomar retornam ao Brasil e fundam em 1956, na cidade de Pelotas, o Círculo Brasileiro de Psicologia Profunda, nome dado em analogia ao Círculo de Psicologia Profunda de Viena (Wiener Arbeistkreise fur Tiefen Psicologie). Nessa época, já havia no Rio de Janeiro uma sociedade psicanalítica dissidente, filiada à corrente culturalista dos Estados Unidos, surgindo então o Círculo Brasileiro também dissidente. O Círculo Brasileiro de Psicologia Profunda, desde a sua fundação torna-se membro da Federação Internacional dos Círculos de Psicologia Profunda fundada por Caruso (Internationale Föderration der Arbeitskreise Für Tiefenpsicologie), filiando-se mais tarde à Federação Internacional das Sociedades Psicanalíticas (International Federation of Psicanalitic Societies).
No início dos anos 60, um grupo de psicólogos e médicos mineiros interessados no estudo da psicanálise, mantiveram contatos com o professor Malomar, tendo a intenção de fazer formação psicanalítica. O trabalho é iniciado em 1963, surgindo o Círculo Brasileiro de Psicologia Profunda em Minas Gerais. Anos mais tarde, em Belo Horizonte, a tradução do nome é corrigida para Círculo Brasileiro de Psicanálise, com seção de Minas Gerais e Rio Grande do Sul.
Em 1968 Caruso veio a Belo Horizonte acolhendo o convite dos membros do Círculo de Minas para coordenar seminários de teoria, técnica e supervisão psicanalítica, além de um curso universitário de dois semestres intitulado: “Filogênese e Ontogênese da Personalização”. Todo o material do curso foi traduzido para o português e editado sob a forma de apostila. Caruso obteve um contrato com editora austríaca e convidou alguns dos membros do Círculo Brasileiro de Psicanálise, para escrever um livro que seria uma espécie de súmula desse repensar Freud. O projeto foi iniciado, esbarrando em dificuldades editoriais. Como o livro seria publicado em alemão, houve problemas para a recopilação das citações nas línguas originais. Não sendo encontrado alguém que pudesse assumir este trabalho, o projeto foi suspenso. A permanência de Caruso em Belo Horizonte marca o reconhecimento internacional do Círculo Brasileiro de Psicanálise de Minas Gerais.
Após a constituição do Círculo do Rio de Janeiro em final da década de 60, formado por Psicanalistas que deixavam a IPA, os membros do Círculo de Minas Gerais começam a alimentar idéias expansionistas. Nessa época, só existiam sociedades psicanalíticas no Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul e Belo Horizonte. Um grupo de psicólogos e médicos baianos manifestava o desejo de fazer formação em psicanálise e mantiveram contato com o Círculo de Minas através de Caio Flamínio. Por outro lado, Carlos Tironi, ítalo-baiano em formação psicanalítica nesse mesmo círculo, convida o psicanalista Carlos Pinto Corrêa a ministrar um curso em Salvador no Instituto de Psicologia, dirigido nessa época por Irmão Dubuois, marcando data para início. A aspiração expansionista do Círculo mineiro encontra eco em Salvador.
Agora chegamos à Bahia!
Numa manhã ensolarada de fevereiro em 1971 o psicanalista mineiro Carlos Pinto Corrêa aterrissa em Salvador trazendo consigo o desejo de fundar a primeira instituição psicanalítica do nosso estado. Concluído o curso por ele ministrado no Instituto de Psicologia, entrevista profissionais interessados em começar formação psicanalítica.
Na condição de analista didata autorizado pelo Círculo Brasileiro de Psicanálise, no dia 5 de julho de 1971 às 18 horas realiza a primeira sessão de análise. Um início de análise que não se encerrava naquele ato, mas marcava uma nova base de trabalho para a psicanálise na Bahia. O ato do dia 5 de julho não se traduzia em exercício clínico de um psicanalista que buscava nova morada. Era a marca da fundação daquilo que podemos chamar a primeira Instituição Psicanalítica da Bahia.
Carlos Pinto Correa recebe para análise didática e grupo de estudos dois participantes: Eny Iglesias e Luis Fernando Pinto, primeira turma da instituição que então se inicia.
Em janeiro de 1972, após seis meses de ponte aérea, estava consolidado o trabalho na Bahia, momento em que Carlos Pinto fecha seu consultório de Belo Horizonte e fixa residência em Salvador. A partir deste momento, a instituição forma outras turmas perfazendo em 2000 o total de 10 turmas com formação psicanalítica concluída.
Neste momento, percorro com o olhar o movimento do Círculo da Bahia a partir de sua pré-história e observo:
No momento inicial o Círculo de Psicologia Profunda de Viena tinha como objetivo reler Freud numa perspectiva dialética respeitando a trajetória intelectual de cada indivíduo, opondo-se à postura dogmática da IPA. Tanto o Círculo de Viena, como o Círculo Brasileiro de Psicanálise com suas várias seções foram gradualmente sofrendo transformações, onde prevalecia uma lei estatutária hermética em detrimento das necessidades dos membros e sócios, vivia-se um momento de idealização da figura do analista onde o final de análise era marcado pela identificação com o psicanalista. A instituição era um espaço para as identificações imaginárias. Surge o pensamento de Lacan sobre a formação do analista como um divisor de águas para a psicanálise. Em 1975 o texto dos escritos é traduzido e publicado no Brasil. A partir de Lacan o saber do psicanalista começa a ser questionado, de detentor do saber, passa a ser suposto. O lugar do analista agora é visto como de sujeito barrado e faltante. Acompanhando os pressupostos teóricos de Lacan as instituições não podem ser mais as mesmas, surge a necessidade de uma mudança institucional. Divergências, concordâncias e rompimentos ocorrem. De que maneira continuará a ser escrito este percurso institucional? As diferenças apontam para o espaço do não saber, para as falhas, discordâncias, faltas e possíveis transformações, espaço para ir além da repetição.
A instituição psicanalítica é o lugar que possibilita ao analista a elaboração dos seus restos inanalisáveis, espaço da construção, desenvolvimento e transmissão do saber psicanalítico, cotidiano infiltrado pelas fantasias dos seus membros, marcado pelas diferenças, lançando no seu dia a dia o grande desafio do convívio com o outro.
BIBLIOGRAFIA
CORRÊA, Carlos Pinto. “Igor Caruso”. Estudos de Psicanálise, Salvador, no. 10, 1981, pp. 33 – 59. [ Links ]
___________________ “Testemunho de um Caminho”. Estudos de Psicanálise, número16, Belo Horizonte, 1993 [ Links ]
___________________ “Vinte e Cinco Anos”. Trabalho apresentado no XI Congresso do Círculo Brasileiro de Psicanálise, Salvador, 1996. [ Links ]
___________________ “Entrevista”. Publicada em Circular – Boletim Informativo do Círculo Psicanalítico da Bahia, edição especial, ano II, outubro/1993. [ Links ]
EDELWEISS, Malomar Lund. “O Pensamento Psicanalítico de Caruso”. Boletim Brasileiro de Psicologia Profunda, Porto Alegre, ano V, número I, 1966, pp. 3 – 25. [ Links ]
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IGLESIAS, Eny Lima. “Vinte e Cinco Anos do Círculo Psicanalítico da Bahia”. Trabalho apresentado no XI Congresso do Círculo Brasileiro de Psicanálise, Salvador, 1996. [ Links ]
JONES, Ernest. “Vida e Obra de Sigmund Freud”. Rio de Janeiro. Zahar Editores. 1975. [ Links ]
* Palestra proferida na abertura da XIII Jornada do Círculo Psicanalítico da Bahia, em novembro/2001
** Psicóloga. Associada do Círculo Psicanalítico da Bahia