Cógito
ISSN 1519-9479
Cogito v.4 Salvador 2002
GOZO E SEXUALIDADE
Sobre a sexualidade em Freud*
Mônica Rebouças**
RESUMO
A sexualidade em Freud, exaustivamente debatida lança luz sobre a inutilidade do reescrever, redebater, reelaborar. A autora propõe uma revisão, citando afirmações antropológicas sobre uma possível origem da linguagem no humano a partir das diferenças ambientais de ter ou não ter alimento, caminha para especulações filosóficas onde a linguagem é resultado de variações e incertezas dialéticas chegando ao pensar psicanalítico que interroga as afirmações e descrições e instala dúvidas. Para Freud a sexualidade marcava algo de soberano e o que ele denuciava então era o mal estar diante da diferença, da dúvida. Lacan continua com a não certeza, a não toda verdade contida na sexualidade e marcada pela linguagem, instaladora de gozo. A unidade e a diferença constituintes para o Simbólico marcam e se colocam como as fontes de sexualidade apontadas por Freud e desenvolvidas por Lacan. Reescrevemos, redebatemos, reelaboramos sobre a unidade, a diferença e a dúvida.
Palavras-chave: Sexualidade, Falo, Castração, Linguagem, Gozo, Dialética.
A unidade se impõe como algo irresistível. A diferença, marca de que não há unidade, de que existem 2 (dois) – um sim e um não – é o grande desafio. A compreensão do humano na vida de relação esbarra na grande questão da distinção:
sim ≠ não e
presença ≠ ausência.
Podemos seguir infinitos exemplos de antônimos que tentam representar a unidade do corpo andrógino do MITO que se divide e transforma-se em dois – distintos (30). A marca do humano é a distinção da diferença e a possibilidade de diante dela desenvolver habilidades. Nesta direção a antropologia contribui com algo sobre a espécie humana, a filosofia com algo sobre a razão do humano e a psicanálise sobre o pulsional. Porém não podemos perder de vista a distinção entre os respectivos objetos de estudo de cada área em questão e que não é possível esgotar tudo sobre os temas, e sim elaborar com algumas associações. O encontro dos signos a serem usados, o reconhecimento da distinção dos objetos de estudo e a idéia de que não se vai esgotar o assunto, não resolvem a intransponível barreira dos dialetos falados por cada uma destas correntes de pensamento, criando o risco de se estabelecer mais um subdialeto.
A antropologia, por exemplo, tem uma condição original por ser “uma ciência do homem patrocinada por uma sociedade que tal como as outras, se definiu exclusivamente a si própria como humanidade e a sua própria ordem como cultura”(6) . Este exemplo serve para as outras disciplinas que ao se constituírem, se auto definem e se auto legislam não tentando com isso uma relação com o que está fora, distinto, diferente.
Na antropologia a linguagem é resultado do trabalho transformando as diferenças ambientais. Segundo F. Engels (33), a experiência de saciedade e de fome, associada ao reconhecimento da diferença de um ambiente rico e outro escasso de alimento, fez com que alguns primatas descessem das árvores e produzissem alimento, através do trabalho. Enquanto trabalhavam os primatas falavam(33).
Os animais reconhecem diferenças e limites na natureza por experiências da espécie a que pertencem, no registro de um saber instintual, o homem faz este reconhecimento e fala – cobrindo com isso, ou tentando cobrir, estas diferenças e limites da natureza, no registro simbólico da linguagem. É como se nas fases arcaicas, a necessidade reconhecesse só o SIM ou só o NÃO – absolutos. Através da linguagem o humano intermedia então esses conceitos absolutos e os contrasta com um desejo que tenta transformar o SIM em NÃO; o NÃO em SIM. O desejo é fruto desta motivação entre o SIM – NÃO e o NÃO – SIM (1) (31) (47). O humano encontra-se dividido “entre” o corpo e o psiquismo, “entre” o somático e o anímico. O “entre”, que não é um território neutro, não é uma terra de ninguém, é o nascedouro da pulsão. Mesmo em conceitos não-psicanalíticos se pode encontrar indicações de um funcionamento pulsional como uma forma de simbolização, revelando o trabalho psíquico em busca de uma satisfação instintual (46). A linguagem aponta para a ausência da unidade e é resultado do sujeito articulando o um e o dois, o SIM e o NÃO. A linguagem é imperativa, ela busca sempre identificar uma resposta, ou seja ela remonta à necessidade que só reconhecia o SIM ou o NÃO absolutos. A linguagem segue a busca das verdades que são identificadas ao um ( X = X ) o completo. Em contraste, o que se encontra no desejo e na diferença é a unidade não toda ( S ≠ S ), a inconstância da divisão do “SIM-NÃO” “NÃO-SIM” – o vazio (47)(48). A evolução da experiência com as diferenças leva o humano a encontrar no seu corpo uma marca definitiva desta aventura desafiante da busca da unidade = A GENITÁLIA. O homem tenta se reconhecer em uma identidade dentro de sua espécie – MACHO ou FÊMEA – FEMININO ou MASCULINO. A linguagem se constitui na ordem das diferenças e por isso ela permite a reflexão a respeito dos sexos(2)(45). Todos os elementos da vida de relação do humano serão desviados para compreensão das diferenças - oposições e correlações - sem uma precisão definida mas marcando uma articulação, marcando a cultura. Para Lévi – Strauss(7), deve existir qualquer relação entre linguagem e cultura, ambas evoluíram através de milênios concomitantemente e se constituíram sobre a oposição e correlação. A pré existência da cultura à linguagem ou da linguagem à cultura traz uma indicação para a pré existência da linguagem à própria linguagem, já que o imbricamento entre a linguagem e cultura não permitem uma separação definitiva tornando especulativo tudo sobre a questão. Parece existir uma condição de conhecimento a priori ao dado da experiência que coloca a linguagem separada do que representa e com uma legalidade própria, com organização autônoma e por isso prévia a si própria (3)(4) (5)(47).
A filosofia procura formas para pensar a realidade e denuncia que a compreensão do humano visa “pôr ordem na casa”, restabelecendo um critério único, quando o que se apresenta é parcial, anárquico, diferente. A introdução da filosofia, sua base, seu vestíbulo, é a lógica(14). A lógica é o processo pelo qual se passa o reconhecimento do que se apresenta e é no seu estudo que vemos o desenvolver das formas do pensar e do comunicar do humano, tendendo sempre a uma ordenação procurando criteriar e estabelecer um entendimento para as diferenças.
Aristóteles liga a razão à interpretação da verdade e falsidade como agentes da diferença e lança a semente da hermenêutica que ao ser a expressão de um pensamento o interpreta. A hermenêutica então é o exame das condições onde se dá a compreensão. A compreensão como uma relação e não como um objeto. A relação se manifesta na forma da transmissão da tradição mediante a linguagem – a linguagem não como objeto mas como acontecimento cujo sentido cumpre penetrar. Aristóteles decompõe a razão do humano e cria com isso o que se pode chamar de lógica ocidental. A lógica aristotélica é principalmente baseada em argumentos – o silogismo - e é uma lógica dos termos, montada sobre metáforas – comparações – inferindo que uma proposição é verdadeira pelo fato de duas outras serem verdadeiras. Por exemplo dos fatos de que: 1) todos os homens serem mortais. 2) Sócrates ser homem. Pode-se logicamente concluir que 3) Sócrates é mortal. Na linguagem também o que se estabelece é uma contínua comparação – metafórica; quando afirmamos que temos aqui uma cadeira, dizemos então que não temos uma mesa, nem um lápis, etc(13). Reconhecemos outros processos lógicos, não incluídos na lógica aristotélica, mas que não a excluem. Surgem então outras visões.
O maniqueísmo, sob o ponto de vista do dualismo universal, do bem e do mal, da luz e das trevas, traz o conceito de diferença carregado de valor e atrela-se aos encontrados em Platão onde a explicação da diferença justifica a razão(15).
O monismo entende as diferenças reduzindo tudo a uma “única realidade” ou a um “tipo único de realidade”, o que dá origem às críticas a esta corrente(17).
A diferença passa a ter uma compreensão especial na dialética – definida como do grego – “Dia” – o conceito de dualidade, troca, acrescida a - “Lektikós” – apto à palavra, capaz de falar – tendo a mesma raiz de logos (palavra, razão) podendo se associar ao conceito de diálogo. No diálogo se instalam mais de um – compreende-se então o um e o outro (12).
A dialética marcou o pensamento alemão e universal por definir o desenvolvimento de processos em oposição, diferentes, se resolvendo em sínteses temporárias, fugazes. A estrutura da compreensão dos fatos da existência é contraditória, passa por uma tese, antítese e síntese para se reiniciar podendo ser entendido como uma transformação constante(12). Para Hegel, o processo por onde marcha o pensamento é exteriorizado pelo que ele produz – o SER e a IDÉIA – e que interioriza voltando para si, reconhecendo sua produção. A visão materialista de Marx e Engels propondo a dialética da cabeça colocada sobre seus pés confirma a influência contemporânea do pensamento humano marcado pelas contradições surgidas a partir dos antagonismos, tendendo a uma síntese que se parte imediatamente ao ser constituída, mantendo o MOVIMENTO (16).
A lógica formal aristotélica explica a montagem da linguagem mas não se adequa ao entendimento do processo do pensamento, que é dialético. Neste contexto, a relação entre o pensamento e a linguagem pode ser revisada, sob o ponto de vista da filosofia, e contribuir com a compreensão da montagem pulsional. A lógica formal, que é a base da linguagem, se torna insuficiente quando o reconhecimento não obedece ao exato, quando é preciso passar para um grau de generalidades. Diante das diferenças a produção das idéias é sempre dialética e sua expressão é sempre formal. A linguagem estabelece-se numa dimensão que tenta contornar a relação HOMEM - SEMELHANTE e a do UM - OUTRO. O pensamento segue um percurso dialético que acompanha o MOVIMENTO. Desta forma, o conteúdo dialético do pensamento não se enquadra na lógica formal da linguagem criando o VAZIO. “O que é pensado dialeticamente tem de ser dito formalmente, pois se acha subordinado às categorias da linguagem, que são formadas por força de sua constituição social, de sua função como instrumento criado pelo homem para a comunicação com os semelhantes”(10).
Todas estas correntes deverão dar origem aos conteúdos expostos na visão contemporânea do homem e após guardados os limites dos termos, que as vezes se confundem, podemos reconhecer idéias complementares. Os postulados de Kant (18), por exemplo, identificam um contraste entre uma realidade transcendental, inalcansável, por uma razão que é teórica ( pura e prática ). O resultante deste contraste é um conceito prático do bem mais alto como objeto de nossa vontade, feito de um modo inteiramente a priori, por razão pura. Esta pode ser considerada uma visão pragmática que reduz o significado de uma coisa simplesmente aos hábitos que ela envolve, no entanto a própria corrente pragmática denuncia o significado de uma proposição constituído nas futuras conseqüências de experiência que ela havia predito. Como se só depois do dito é que existisse o objeto e não antes como era de se esperar. O que tratamos aqui, no entanto, não é da corrente de pensamento ao qual pertencemos. Nós fazemos questões: como se posiciona o sujeito diante da sexualidade? Como foi que Freud definiu isso? A Psicanálise, hoje, como vê a sexualidade?
Na teoria freudiana o conceito de unidade é relembrado com a proposta do mito hermafrodita, citado no banquete de Platão por Aristófanes para justificar a sexualidade. Para o mito proposto na teoria de Freud o homem em busca da unidade procura a outra metade – diferente – fora de si tentando resgatar o corpo único não diferenciado. Esta busca é imperativa, ela exige a resposta única(47).
De forma esquemática podemos descrever que Freud foi um dos pensadores da humanidade que mais se concentrou na sexualidade humana e que a considerou sob diversas formas ao longo de sua obra:
- Estuda as afasias apresentando um psiquismo como aparelho de linguagem e atribui, de forma biológica, a sexualidade como causa de doenças(47) (52).
- Evolui para a universalidade dos fenômenos sexuais nos seres humanos(23) e estabelece a ligação com representações verbais como sendo características de um “pré consciente” e o desligamento entre a representação de palavras e representação de coisas correspondentes como sendo um “recalque”(11).
- Denuncia uma sexualidade polar feminina e masculina relacionadas ao falo – não ao pênis – mas ao FALO, que é faltante e por isso se representa como símbolo e necessita da linguagem para contornar esta falta(31) (53).
- Re-significa a sexualidade, afastando-a da genitalidade, e aproximando-a de algo mais amplo como sendo qualquer forma de gratificação ou busca de prazer (9) que implica em linguagem por esta ser essencial para qualquer estruturação de um universo de representação e em toda regulação de um “princípio de prazer” e um “de realidade”(52).
- Define a energia que preside os atos humanos como de natureza pulsional pondo em relevo a energia sexual chamada – LIBIDO, presente na relação entre a representação da palavra e do objeto de forma simbólica (8).
- Introduz o conceito de pulsão como resultado da polaridade enfrentada na elaboração dos impulsos instintuais sob a influencia da vida mental e que encontra na linguagem dos sonhos, das parapraxias, dos chistes e do sintoma, formas de satisfação parcial (8).
- Conclui envolvendo a sexualidade com o recalcamento da pulsão responsável pelas pulsões parciais, que podem ser associadas à linguagem por serem condições determinantes que priorizam a atividade do indivíduo nas constituições dos representantes, abrindo um novo espaço para o que existe de singular nesta atividade representativa(2) (27).
- Instala o conceito de inconsciente(39) (40), que se identifica com objetos internos incognoscíveis pelo mundo externo(31), constituído pelo recalcado e cria o método psicanalítico(9) (47) que privilegia a fala dirigida a um outro como instrumento de associação livre passível de alimentação através da relação com o analista (transferência) e que poderá evoluir para a tarefa da decifração de um saber inconsciente que se experimenta progressivamente com a falta da palavra que representa o que se quer falar e corresponde ao que vem a chamar de “rochedo da castração”, o ponto incurável.
A sexualidade, para Freud, representa a grande questão do humano na busca da unidade - desejo incestuoso - como origem da pulsão que nunca se realiza e é sempre parcial. A busca da unidade pode ser captada: no mito andrógino. Na bolha narcísica (mãe/filho). No só sim ou só não. Na pulsão de morte. No inanimado.
O fato de se reconhecer e ser reconhecido como pertencente a um sexo pode ser chamado de identidade sexual, conceito introduzido por R. Stoller(19), em 1968 visando estabelecer uma distinção entre os dados do biológico, que fazem objetivamente, de um indivíduo um homem ou uma mulher, assim como os dados do psicológico e do social, que o instalam na convicção de ser homem ou mulher. Stoller percorre a formação da identidade transexual para propor uma teoria antifreudiana usando os conceitos sem o alcance que os termos vêm a ter(20).
O conceito de “falo”, em Freud, é a compreensão: da ambivalência contida no complexo de Édipo e evolui para a do poder contido no pai, detentor da lei, que deverá ser respeitado e destituído, simultaneamente gerando a culpa, fundadora da castração(28)(29).
A evolução dos pensamentos, na busca da unidade, revela momentos místicos, científicos e filosóficos. O pensamento místico, primitivo, tenta resgatar a unidade através da criação mágica. A ignorância fica protegida pelo saber místico que atribui ao mágico a solução das diferenças. Criam-se alternativas que explicam a angústia de entender e aceitar que existe um SIM e um NÃO.O científico, experimentado, embora tente resgatar a unidade através da avaliação da realidade, impulsiona a evolução do saber místico e encontra no palpável a explicação para as diferenças que existem entre o SIM e o NÃO.O filosófico, questionador, também não resgata a unidade na comparação do SIM e do NÃO, ele reformula o conhecimento e se permite conviver com a dúvida, separar as diferenças e promover a báscula do SIM e do NÃO.
Sobre a sexualidade em Freud podemos dizer que houve em algum momento um desvio biologizante altamente debatido na literatura(25)(26). Este desvio faz um percurso místico onde reconhece nos mitos a necessidade extraordinária que justifica a fixação do homem na sexualidade genital. Há um esforço extraordinário, de Freud, valendo-se da ciência para explicar a fixação do homem na sexualidade genital e é na montagem das fases ligadas ao corpo humano onde há uma aproximação máxima das explicações científicas. Finalmente a posição freudiana identifica um mal estar que permanece pela aspiração do retorno à unidade, tentada na sexualidade genital, e que percorre toda a vida do sujeito. O saber freudiano propõe uma compreensão sábia:
existe o um - o SIM - o NÃO, presença e ausência, queremos o retorno ao só um, não haverá o retorno, instala-se o mal estar (32).
O desvio biologizante da sexualidade em Freud faz contato com o visual e o tátil. O reconhecimento da diferença no humano está marcado de modo privilegiado pela genitália, já que o órgão de produção da voz é similar no masculino e no feminino, o olhar, a sucção, a defecação não fazem diferença entre os sexos, não marcam a diferença. A diferença na voz, no olhar, na sucção, na defecação é sentida pelas presença e ausência e encontram na genitália um signo, uma letra, algo que vai mais além da presença e ausência. Identifica-se o pudor, o esconder, e a atenção da visão, audição, sucção e sensação anal para o foco das diferenças - A GENITÁLIA. A informação da genitália, é um engano, mas ela se liberta do que é sentido para ir ao encontro do que tem sentido, não encontra, mas aponta algo.
É a atração pela diferença, e por toda uma gama de detalhes relacionados à sexualidade genital que Freud capta e descreve. O que Freud denuncia é a atenção voltada para a grande questão do ser humano que é a polaridade despertada no ter ou não ter:
SIM X NÃO/ PÊNIS X VULVA/ PRESENÇA X AUSÊNCIA/ FALO X CASTRAÇÃO
A diferença entre os sexos tem uma base fetichista já que parte do princípio de que a diferença pode ser marcada por um elemento presente na realidade – O PÊNIS.
A presença do pênis no homem então marca o grande engodo, encobre a falta masculina, exacerba e denuncia a feminina. As genitálias então “contêm” a báscula do desejo, da falta, do falo. Ao estabelecer esta fixação fetichista, a genitália atrai a atenção, cria dependência e estabelece então o que se vê perpetuado na cultura:
o erotismo do além - mar, do mais além, do sempre.
No jogo da genitália encobrindo a falta de unidade identificamos o comportamento fetichista, que cobre a castração com a peça íntima(38). Vejamos Freud em fetichismo (1927), “Em conclusão, podemos dizer que o protótipo normal dos fetiches é um pênis de homem, assim como o protótipo normal de órgãos inferiores é o pequeno pênis real de uma mulher, o clitóris”(24). Tentando negar a diferença entre os sexos, sob a égide da negação da castração da mãe, o homossexualismo não foge à diferença entre os sexos. Existe um homossexualismo feminino e um masculino. Sendo então a única negação absoluta da diferença entre os sexos a do mito hermafrodita com o retorno do um completo, indiferenciado(25) (26) (37).
A forma pela qual homens e mulheres relacionam-se com seu próprio sexo, bem como as questões da castração e da diferença entre os sexos na teoria analítica pode ser chamado de sexuação(21). A sexualidade descrita por Freud segue um caminho de genitalidade, das pulsões parciais, do amor e da libido. A genitalidade se instala através das pulsões parciais(41). Desde Freud então o conceito de falo é introduzido como símbolo, fugindo do conceito anatômico e seguindo para um representante da representação (54).
O termo sexuação introduzido por Lacan designa a forma como são reconhecidos e diferenciados, no inconsciente(39)(40), os seres; um que tem, outro que não tem(21).
A diferença dos sexos mostra-se matéria de intermináveis debates, definições e propostas. Para Freud, até 1923: o pênis é desejado pois é bom; o pênis é estruturante; o pênis é um objeto de desejo; o pênis é desejado por homens e mulheres. A partir daí desenvolve o conceito de FALO.
Lacan então continua: é a castração que mostra o objeto do desejo; o importante para a constituição do inconsciente não é ter o falo, é não ter(38). Lacan sugere que o mito é o da lamela criado para “encarnar a parte faltante” (41) justificando o amor como algo narcisista e imaginário(44). A busca então não é da outra metade perdida, mas é parte de si mesmo que se perdeu para sempre por conta da constituição do Sujeito ($) através da linguagem. O ser é vivo, sexuado e mortal e o objeto suposto do desejo não existe. Quanto a imagem (MOI), na sua representação, quem detém algo sobre isso é o Outro. É o olhar do Outro que informa algo sobre o MOI (imagem)(35). A genitália participa de alguma forma neste processo; a imagem (o MOI) é incompleta. Algo aí não se inscreve: é o “menos fi":-φ. O que é visto pelo Outro não é toda a verdade do MOI(35).A genitália detém uma informação que o Outro fornece como um lampejo reduzido à forma do corpo e isto não é nada. A determinação genital atrai para o engano já que a diferença não se instala neste nível, ela é um ponto especular atraindo escopicamente o vazio do desejo (-φ).O processo no qual se instala a diferença é representado como uma visão especular (38) e a aparência de uma pessoa e os adereços que traz no corpo incluindo com isso a genitália são os representantes do arsenal com que se busca velar a falta, o vazio, o buraco.
O que então desencadeia no humano falante, e tão bem desvendado por Freud, o fato de ter uma genitália? Representa o ser na busca do outro. A marca do corpo define uma proposta, uma provocação para que a partir daí se instale o movimento pulsional; exercendo então, digamos assim, um efeito de linguagem(43). O movimento pulsional se instala a partir da incompletude, não a do corpo, não a da genitália, mas a da linguagem. O corpo não é mais que uma lousa onde a linguagem inscreve suas marcas(47). Nesta inscrição o indivíduo tentará se identificar – ele não se vê a si na lousa, ele se olha em seu membro sexual, ele se vê faltante, com a falta encoberta: é o “menos fi”(-φ). Para Lacan o SER é vazio, o sujeito do inconsciente é assexuado e atemporal. A sexuação para Lacan pressupõe uma redefinição do falo, ou da função fálica e uma indagação sobre a sua dimensão universal. A função fálica é a função da castração e o feminino e o masculino estariam representados em fórmulas lógicas, relacionando a castração e sua dimensão universal; é a partir do vazio do sujeito que ele se posiciona na sua sexuação(44). O vazio, representante do desejo é que permite a alguém poder se posicionar como feminino ou masculino. Não é o pênis nem o clitóris que definem uma posição feminina ou masculina mas sim o modo de relacionar-se com a falta.
No Seminário 20, Lacan apresenta as clássicas fórmulas da sua lógica da sexuação(44) que são possibilidades de posicionamento do sujeito em relação ao falo e a castração tornando contingentes os efeitos de seu sexo anatômico em relação à estrutura simbólica: “é a busca da qual a obra de Freud testemunha, de todos esses diversos detalhes aos quais o desejo está enganchado e que a aparência de uma pessoa não se apresenta senão como vestimenta do que se trata de encontrar ” (49)
Existe ou não uma diferença entre os sexos? O feminino é diferente do masculino? O homem se opõe a figura macho e a mulher se opõe a figura fêmea? A diferenciação dos sexos não é simples. Para Lacan, no Seminário 5, em três níveis distintos os sexos não se distinguem, é só em um quarto e único nível que se pode estabelecer alguma distinção, o processo envolvido corresponde a algumas etapas do Édipo(50): os dois sexos identificam-se com o falo e são o falo, por isso no primeiro nível não há diferença. Os dois são o falo. No que concerne a relação de amor, para que se estabeleça a falta, os dois sexos são privados do falo e só assim partem em busca do outro; neste segundo nível então também não há diferença. Os dois não tem o falo. O desejo da relação simbólica identifica o significante fálico no seu objeto de desejo, por isso tanto o homem como a mulher, enquanto desejantes, reconhecem o significante fálico no seu objeto de desejo, colocando então no terceiro nível também uma ausência de diferença entre os sexos, pois os dois desejam o falo do outro. Os dois querem o falo do outro. Na escolha do objeto de amor e desejo, na posição que o objeto ocupante do lugar do objeto “a” é que se instala a diferença, só na “relação sexual inexistente”, no encontro imaginário com a ilusão é que se instala a possibilidade de um parceiro que tem o falo e outro que não tem. A mulher tem então o encontro com uma ilusão privada ou dotada, castrada ou potente. O homem também estará encontrando uma ilusão privada ou dotada, castrada ou potente. Nos primeiro, segundo e terceiro níveis há o reconhecimento do si próprio e da posição a ser desempenhada e isto é assexuado. É só no impulso para o outro, no reconhecimento do objeto de sua escolha, no seu objeto de desejo que se instala a diferença, o objeto do desejo tem um lampejo de sexuação. É neste fragmento fugaz, no relâmpago de saída fictícia do um para o outro, que se instala a diferença entre os sexos(41)(44).O conceito de diferença se instala então no reconhecimento do sujeito no outro, em uma relação especular.
A saída do um para o outro é a marca da diferença, criando a linguagem que corta o sujeito e constitui o objeto “a”. O que o texto lacaniano propõe é que a linguagem seja procurada no sujeito e que o sujeito seja procurado na linguagem pois a linguagem corta o sujeito mas o constitutivo é o objeto “a”(44). É a síntese dialética diante de poder estar com um possuidor ou um destituído que instala a diferença, levando a um retorno instantâneo para a condição de objeto que reduz os dois, possuidor e destituído, em único – inexistente – assexuado(44)(51). O que retorna é a questão inicial: Onde se instala a diferença? O UM não se divide, onde então se instala o DOIS? A diferença entre os sexos, que é dialética, marcada no corpo com a presença da genitália, acaba atraindo a cultura, fazendo com que desde a instalação da linguagem o animal humano se concentre na marca da diferença entre os sexos como forma de registrar essa busca interminável do sujeito (S) e sua relação com o Outro (A). Sujeito (S) e o objeto(a) não se encontram, existe só um lampejo matemizado no fantasma $ ◊ a (24)(44). Apesar da marca registrada na genitália, apesar da diferença totalmente estabelecida no corpo, a busca é inesgotável.
O humano continua fixado na sexualidade genital, cultura após cultura revelando cada vez mais que a genitália e os prazeres do erotismo do corpo não dão conta da grande questão que neles está embutida. A genitália e o sexo genital, as representações sexuais descritas nos primórdios da cultura e tão bem revisadas por Freud, nada mais são do que a vestimenta(50) de uma pergunta constitutiva: “Existe diferença entre os sexos?” Ou melhor: “Existe diferença?”
Este trabalho bordeja em mares antropológicos, filosóficos, psicanalíticos. Apreende algo que percorre os discursos e que está além do nome do autor e de onde é encontrado. É um lampejo em várias correntes de pensamento. Será que é sobre a mesma coisa que estão falando ou há algo de muito diferente em cada um destes discursos?
Será que a dúvida sobre a certeza que eles apontam, há tanto tempo, já se transformou em certeza sobre a dúvida?
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* Trabalho apresentado na XIII Jornada do Círculo Psicanalítico da Bahia, novembro de 2001
** Médica. Associada do Círculo Psicanalítico da Bahia